A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO COMO UM CONTRATO ATÍPICO E GRATUITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO COMO UM CONTRATO ATÍPICO E GRATUITO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
ANGOLANO: REFLEXOS DA LEI N.º 29/21, DE 9 DE NOVEMBRO - (LEI DA REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA)1
Albertino TOMÉ2
Huambo, Angola
“A força do direito deve superar o direito da força.”
(Xxx Xxxxxxx)
RESUMO
No afã do preâmbulo da Lei n.º 29/21, de 9 de Novembro, a infertilidade é um problema de saúde pública com implicações médicas, sociais, culturais, religiosas e psicológicas. Destarte, a situação de infertilidade pode provocar efeitos negativos tanto na esfera individual como conjugal, podendo desestabilizar as relações dos casais e ocasionar um decréscimo na qualidade de vida familiar. A obstaculização do projecto parental pela infertilidade impõe aos casais um enorme sofrimento emocional e social, que legitima o anseio em superá-lo, nomeadamente nas famílias africanas, como é o nosso caso. Nesta conformidade, em função do avanço do conhecimento científico e as novas tecnologias reprodutivas que têm proporcionado várias alternativas terapêuticas para a infertilidade, ampliando, sobremaneira, as possibilidades de os casais alcançarem o desiderato de ter filhos, sentimos a necessidade de com algumas adaptações, ilustrar aos caros leitores, sobre à existência de um diploma legal que, regula a reprodução humana medicamente assistida, cuja aplicação gravita em torno das
1 Artigo 042/2022, publicado em xxxxx://xxxxx.xx.xx/x-xxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxxxx-xxxx-xx-xxxxxxxx-xxxxxxx-x- gratuito-no-ordenamento-juridico-angolano-albertino-tome/ , aos 20 de Junho de 2022. O conteúdo deste artigo é de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da JuLaw. É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.
2 Licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx – Huambo. Área Jurídico – Civil, opção: Ciências Políticas. Advogado; Consultor e Assessor Jurídico; Gestor de Trabalhos Científicos; Master em Inteligência Emocional pela Mindset Academy.
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pessoas casadas, formal, costumeiramente, união de facto sendo reconhecida ou não e as pessoas solteiras ou sem companheiros, sendo, neste processo imperioso o respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, igualdade e não discriminação, consentimento expresso, informado, esclarecido e livre, impossibilidade de alternativa de procriação e o respeito pelos valore éticos, deontológicos e bioéticos. Escalpelizamos também na análise da gestação de substituição, enquanto cerne da questão, na perspectiva de ser um contrato bilateral onde uma das partes, a mais caridosa, por via de um formalismo próprio, se doa, sem remuneração, a suportar a barriga em nome de outrem até o nascimento de um concepturo concebido.
Palavras – Chave: Gestação, Substituição, Dignidade da pessoa humana e Contrato gratuito.
REPLACEMENT MANAGEMENT AS AN ATYPICAL AND FREE CONTRACT IN THE ANGOLAN LEGAL SYSTEM: REFLECTIONS OF LAW N.º 29/21, OF NOVEMBER 9. (MEDICALLY ASSISTED REPRODUCTION LAW)
Abstract
Pursuant to the preamble of Law no. 29/21, of 9 November, infertility is a public health problem with medical, social, cultural, religious and psychological implications. Thus, the situation of infertility can cause negative effects both in the individual and marital spheres, which can destabilize couples' relationships and cause a decrease in the quality of family life. The obstacle to the parental project due to infertility imposes enormous emotional and social suffering on couples, which legitimizes the desire to overcome it, particularly in African families, as is our case. Accordingly, due to the advancement of scientific knowledge and the new reproductive technologies that have provided several therapeutic alternatives for infertility, greatly expanding the possibilities for couples to achieve the desire to have children, we feel the need to, with some adaptations, illustrate to dear readers, about the existence of a legal diploma that regulates medically assisted human reproduction, whose application revolves around married people, formally, customarily, de facto union being recognized or not and single people or without partners, being, in this imperative process, respect for the principle of human dignity, equality and non-discrimination, express, informed, informed and free consent, impossibility of alternative procreation and respect for ethical, deontological and bioethical values. We also scalped the analysis of surrogacy, as the heart of the matter, in the perspective of being a bilateral contract where one of the parties, the most charitable, through its own formalism, donates, without remuneration, to support the belly in the name of another until the birth of a conceived concept.
Keywords: Pregnancy, Replacement, Human Dignity and Free Contract.
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PRÓLOGO
1. Definição
A Lei n.º 29/21, de 9 de Novembro, que consagra o regime jurídico da gestação de substituição, define-a como “qualquer situação em que a mulher assume e compromete-se, por conta de outrem, carregar um embrião ou feto que foi concebido por meio de um procedimento de reprodução assistida e derivada dos gâmetas de um doador ou doadores”3.
Um outro entendimento, aflui de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx que prefere adoptar uma noção mais restrita e neutra, visto que o conceito dado pela Lei faz menção a uma renúncia da própria maternidade, contendo dessa forma uma visão apriorística da matéria da determinação da filiação, atribuindo a qualidade de mãe àquela que irá dar luz4. O autor define a gestação de substituição como “uma mulher dispõe-se a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto a outra mulher, reconhecendo a esta a qualidade jurídica de mãe5”. Esta definição, mais se adequa à nossa realidade actual, como veremos mais adiante.
Na esteira de Xxxx Xxxxxxxx Ascensão prefere falar em “gestação para outrem com base em acordo de gestação6”, sendo que Xxxxx Xxxxxx define-a como “a mulher que se obriga, por contrato, a suportar a gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o nascimento7”. Por sua vez, Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx entende ser uma “mulher aceita gerar um filho, fazê-lo nascer, e se compromete a entregá-lo a outra mulher, renunciando em favor desta a todos os direitos sobre a criança, renunciando à própria qualificação jurídica de «mãe»8”.
Em suma, a gestação de substituição, é qualquer situação em que uma mulher disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade9.
3 Cfr. Al. J do artigo 9.º da Lei n.º 29/21, de 9 de Novembro – Lei Sobre a Reprodução Humana Medicamente Assistida.
4 Cfr. Xxxxx Xxxxxx XXXXXXXX, Mãe portadora – a problemática da maternidade de substituição, p. 326.
5 Ibidem.
6 Cfr. Xxxx Xxxxxxxx xx XXXXXXXX, O início da vida in Estudos de Direito da Bioética, p. 23
7 Cfr. Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx XXXXXX, O Direito da Família Português: algumas características, p. 74 apud Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, Gestação de substituição: Uma gravidez a favor de outrem, 2018, p.30.
8 Cfr. Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx xx XXXXXXXX , Mãe há só uma (duas): O contrato de gestação, pp. 8-9.
9 Grifei.
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2. Da Questão Terminológica
Vulgarmente conhecida como “mãe portadora”, “barriga de aluguer”, “mãe substitutiva”, “mãe hospedeira” e “maternidade de substituição”, é certo que existem várias denominações utilizadas para fazer referência à gestação de substituição10. A nosso ver, nem todas correctas. Afinal, uma mulher que apenas servirá de suporte para a gestação, será, verdadeiramente,
a “mãe” daquela criança? Sabemos que não.
O papel de mãe não pode ser reduzido ao suporte gestacional, sendo o conceito de maternidade infinitamente maior do que isso. Ser mãe é mais do que “trazer um ser ao mundo”, é muito mais do que partilhar carga genética e vai muito além do período de gestação. Ser mãe é “emprego a tempo completo” que dura a vida inteira. É o acto de amar incondicionalmente, de cuidar, de educar, de transmitir valores, princípios e costumes11.
Entendemos que não é correcto reduzir o amplo papel da mãe, cingindo-o e equiparando- o, ao papel desempenhado pela mulher que irá suportar a gravidez.
O legislador angolano inicialmente adoptou na sua epígrafe a expressão “maternidade de substituição”, mas tal expressão é dotada de vícios, visto que quando falamos de “maternidade”, está-se a referir a um “estado ou qualidade de mãe12”.
Nesta temática, e para melhor compreensão, ainda que à título comparado, importa referir que, o CNECV13 veio realçar que “a semântica escolhida nunca é indiferente em Bioética14” e assumiu um papel extremamente relevante ao afirmar que, tal expressão pode ser “indiciadora de equívocos e ambiguidades éticas e antropológicas15” devendo, antes, ser utilizada a
10 Cfr. Xxxxx Xxxxxx XXXXXXXX, ob. cit. pp. 323-324.
11 Cfr. Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, Gestação de substituição: Uma gravidez a favor de outrem, Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Direito, Lisboa, 2018, p.30.
12 Vide Parecer 63/CNECV/2012 do Conselho Português de Ética para as Ciência da Vida, p. 7 apud Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, 2018, p.31.
13 Significando Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Mais se informa que o “Nacional” refere-se a Portugal.
14 Ibidem.
15 Ibidem.
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expressão gestação de substituição e gestante de substituição, que melhor corresponde ao processo a ser desenvolvido.
3. Natureza Jurídica Do Contrato De Gestação De Substituição
Em sede do acordo de gestação de substituição, temos duas partes envolvidas: o casal contratante e a gestante de substituição, podendo esta última estar ou não, acompanhada por um(a) companheiro(a). Estamos, pois, diante de um negócio jurídico bilateral, que deverá ser reduzido a escrito, e que deve constar a vontade de cada uma das partes, incluindo “as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez16”.
Outrossim, as partes devem estar devidamente informadas e esclarecidas quanto ao procedimento em si e suas implicações, sendo certo que a supervisão do referido contrato e todo o processo (…).
Na esteira da lei civilista, vigora um conjunto de princípios do qual Xxxx Xxxxx designa como “a ossatura do Direito Civil17” e que alicerça todos os seus fundamentos, dando-lhes harmonia e sentido. Destacamos, o princípio da autonomia privada, cujo alcance não só resulta no ramo do direito civil, pelo seu art.º 405.º e ss., como também encontra respaldo a nível constitucional, nos marcos dos art.ºs 32.º n.º 1 e 14.º da Constituição da República de Angola. Para Xxxx Xxxxx, tal princípio consiste no “poder reconhecido aos particulares de auto- regulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica18”. Na mesma linha de raciocínio, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx afirma que “o campo de aplicação do princípio da autonomia privada é, em geral fixado em função da chamada liberdade de contratar19” e que
este tem alcance no âmbito dos direitos subjectivos.
16 Vide LRMA – Lei da Reprodução Medicamente Assistida.
17 Cfr. Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx XXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, p. 95 apud Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, 0000, p. 45.
18 Cfr. Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx XXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, p. 102 apud Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, 2018, p.
45.
19 Cfr. Xxxx Xxxxxxxx XXXXXXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, p. 90.
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Na visão de Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx, a autonomia privada consiste na “possibilidade de alguém estabelecer os efeitos jurídicos que se irão repercutir na sua esfera jurídica20”. O autor entende que a liberdade contratual está intimamente ligada à autonomia privada, definindo-a como “a possibilidade conferida pela ordem jurídica a cada uma das partes de auto-regular, através de um acordo mútuo, as suas relações para com a outra, por ela livremente escolhida, em termos vinculativos para ambas21”.
Com efeito, o indivíduo exerce o seu poder de autodeterminação, quando age de forma livre com o intuito de alcançar interesses próprios, tendo como alicerce a liberdade contratual, ainda que esta esteja sujeita a certas limitações.
Sabe-se que o regime da liberdade contratual comporta algumas restrições, nomeadamente, quando estamos diante de negócios jurídicos que são contrários à ordem pública e aos bons costumes, nos termos do art.º 280.º do CC. Nesse sentido, alguns autores questionam o tipo de contrato que se forma no âmbito da gestação de substituição, nomeadamente se estamos perante um contrato de compra e venda22, doação23 ou xxxxxxx00.
Xxxxxxxx Xxxxxxxxx afirma que “a utilização de uma mulher como gestante retira a maternidade do campo da vida pessoal e privada, para a transformar numa tarefa ou num serviço25”. Em sentido contrário, Xxxxxxx Xxxxx afirma que “não é comparável esta alienação com a utilização da força do trabalho”, tendo em consideração que “o trabalho, mesmo quando realizado em condições penosas de esforço e de sobrecarga horária, não se apodera da totalidade da vida da pessoa, estando ao trabalhador a sua vida íntima, a sua existência fora do trabalho, aquilo que é de todo inalienável, o tempo durante o qual vive por si e para si26”.
Mas o útero pode ser vendido? Doado ou alugado?
20 Cfr. Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx XXXXXX, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Vol. I, p.21.
21 Idem, p.24.
22 Vide artigo 874.º do Código Civil. 23 Art.º 940.º e ss. do Código Civil. 24 Art.º 1022.º e ss. do Código Civil.
25 Cfr. Xxxxxxxx XXXXXXXXX, apud Estrela CHABY, Direito de Constituir Família, Filiação e Adopção: notas à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem In Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Xxx Xxxxx Xxxxx, p. 355. Vide Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, 2018, p. 48.
26 Ibidem.
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O referido contrato não pode ser enquadrado nas modalidades de contrato de aluguer ou compra e venda, visto que as mesmas têm como pressuposto a existência de uma retribuição/remuneração, o que não sucede no âmbito do contrato de gestação de substituição, atenta a sua natureza gratuita, modelo escolhido pelo legislador27.
Para Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, o contrato de gestação de substituição enquadra-se no âmbito do contrato de prestação de serviço atípico, consagrado no art.º 1154.º do Código Civil, entendendo que a definição contida no referido preceituado, se adapta à gestação de substituição, visto que o serviço prestado pela gestante é a gestação por conta de outrem, e que esta “compromete-se a entregar, de facto e de direito, à mãe de recepção o fruto da sua actividade de gestação28”.
Ora, tal entendimento gera alguma controvérsia e repulsa em alguns autores, na medida em que estaríamos a comparar o serviço prestado pela gestante, aos demais serviços prestados no âmbito das relações jurídicas, pelo que a vida de uma criança não poderá ser reduzida dessa forma29. Contudo, o contrato de gestação de substituição, a ser enquadrado no âmbito da modalidade de prestação de serviços atípico, não permite o pagamento de uma contraprestação, atenta a proibição expressa contida na lei.
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx estipula que o contrato de gestação de substituição possui três fases, sendo eles: a negociação, a celebração do acordo e o cumprimento do que foi estipulado30. Para o autor, a negociação é efectuada entre a gestante de substituição e a mãe social, sendo que os respectivos companheiros ou companheiras, apenas intervêm para efeitos de prestação do consentimento31.
27 Cfr. art.º 8.º n.º 3.º da Lei Portuguesa da PMA.
28 Cfr. Xxxxx Xxxxxx XXXXXXXX, ob. cit. p.330.
29 Cfr. Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx xx XXXXXXXX, Mãe há só uma (duas): O contrato de gestação, p. 22-25; e Xxxx XXXXX,
A Dimensão Ética da Maternidade de Substituição, p. 82 e ss.
30 Cfr. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, ob. cit. p.327.
31 O autor entende que o consentimento se concretiza, na óptica do(a) companheiro(a) da mãe contratante ou mãe social, na declaração da “vontade de assumir a paternidade jurídica da criança” e na óptica do(a) companheiro(a) da gestante de substituição o “compromisso da entrega da criança à mãe de recepção e no reconhecimento de que esta é, para todos os efeitos legal, a mãe, e de que o próprio companheiro ou marido da mãe de gestação não é o pai”. Idem, Ibidem, p.119.
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No que diz respeito ao cumprimento do contrato de gestação por parte da gestante, o autor entende existir quatro momentos: a concepção ou implantação de xxxxxxx; a gravidez; o parto; e a entrega da criança à mãe de recepção32. Nesta última fase, a gestante de substituição deverá reconhecer que o casal contratante são os titulares das situações jurídicas parentais daquela criança.
Deste modo, corroboramos com o entendimento segundo o qual, é inconcebível enquadrar o contrato de gestação de substituição, no âmbito dessas modalidades, por entendermos que uma criança não pode ser objecto de qualquer negócio jurídico, nos termos do art.º 66.º do CC e, como tal, não devemos falar de “transferência de propriedade”, por se tratar de um ser humano.
E, mais atestamos que, neste tipo de contrato, a gratuidade e o altruísmo, devem imperar, no sentido de se evitar uma possível exploração económica de mulheres carentes para que não se tornem meros objectos ao “alugarem” seus úteros, mas que sejam auxiliares na criação da vida humana, conduta esta que não pode ser quantificada em valor pecuniário. Entendemos ser esta também a posição do legislador, ao reprimir qualquer tipo de contraprestação., seja ela monetária ou susceptível de ser avaliada em dinheiro. O contrário, estaríamos a desvalorizar a dignidade da pessoa humana e, como consequência, a sua elevação ao estatuto de "coisa".
Perto deste entendimento, caminha a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, quando no seu preâmbulo consagrou “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Ainda mais longe, o seu art.º 1.º prevê que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Deste modo, a própria sociedade elevou o homem do status de coisa, ao status de pessoa, livre e digna, resultando na abolição da escravatura33.
Pelo exposto, se depreende que o contrato gestacional pode considerar-se uma modalidade do contrato de prestação de serviços, na medida em que uma mulher se obriga a entregar à
32 Ibidem.
33 Cfr. Xxxxx Xxxxx xx XXXXX, ob. cit. p. 50.
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contraparte o resultado da gravidez que suportou, sem receber uma contrapartida económica.34 Devendo considerar-se também a sua bilateralidade, não comutatividade e a não obrigatoriedade, pelo facto de não existirem sacrifícios patrimoniais pelos contraentes e segue a forma e circunstâncias ponderadas pela lei. Mais se assevera que, a existência de remuneração, gera a ilicitude do contrato em estudo, em função do objecto em causa.
4. Elementos E Objecto Do Contrato
No que toca à estrutura e produção de efeitos podemos reconhecer negócios jurídicos unilaterais, receptícios ou não, negócios plurilaterais, inclusive bilaterais. 35 O contrato, ou negócio jurídico, é constituído pelos sujeitos, objecto e a existência de uma ou mais declarações de vontade, dependendo se estamos perante um negócio unilateral ou bilateral, uma vez que o negócio jurídico necessita de ser válido para desempenhar a sua função. São considerados ainda os requisitos gerais de validade do negócio, sendo estes a capacidade das partes, a declaração de vontade sem vícios e a idoneidade do objecto.36 No caso em análise, o contrato é um negócio bilateral, ou seja, “é formado por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, que se ajustam na sua comum pretensão de produzir resultado jurídico unitário, embora com um significado para cada parte”37.
No contrato de gestação de substituição, os sujeitos serão os beneficiários e a gestante, e as declarações de vontade serão divergentes, mas irão corresponder uma com a outra. Os primeiros declaram a vontade de ter um filho e que o bebé que vier a nascer em resultado do contrato será considerado seu filho. A segunda declara que, de livre vontade e de forma altruísta, gerará uma criança para o casal. Fica, assim, claro que o objecto deste contrato,
34 Cfr. Xxxxx Xxxxxx XXXXXXXXX, “Subitamente, no verão passado”: A contratualização da gestação humana e os problemas relativos ao consentimento, in Debatendo a procriação medicamente assistida, Porto e FDUP, 16 e 17 de Março de 2017, Projecto FCT UID 443_CIJE, p. 114.
35 Cfr. Xxxxx Xxxxxxxx XXXXXXX, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina Coimbra, 1992, p.426 apud Jéssica Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx XXXXX, Gestação de substituição revogação da renúncia antecipada à maternidade e direitos da mulher gestante, Faculdade de Direito, Escola do Porto, 2019, p.19.
36 Cfr. Mota Xxxxxxx Xxxxx XXXXX, Teoria do Direito Civil, 4ª ed., 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, pp. 383- 384.
37 Idem, p. 647.
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embora seja determinado, é a criança que irá nascer, ou seja, o contrato cumpre-se após o nascimento completo e com vida do recém-nascido, que deverá ser entregue ao casal de beneficiários. No entanto, não é só à entrega da criança que a gestante se obriga de forma a cumprir o contrato, mas também a submeter-se a uma intervenção médica que diz respeito à técnica de PMA (Procriação Medicamente Assistida) e, sendo esta bem-sucedida, compromete- se a levar a gravidez até ao fim e, se tudo correr bem durante os meses de gravidez, obriga-se a entregar a criança após o parto. Os contratos bilaterais podem ser bilaterais perfeitos, quando existe uma reciprocidade entre as obrigações das partes, ou bilaterais imperfeitos, quando inicialmente só existem obrigações para uma das partes, podendo surgir obrigações para a outra parte durante a execução do contrato.38
O contrato de gestação é assim um contrato bilateral imperfeito, pois, inicialmente, só gera obrigações para uma das partes, a gestante, que tem uma obrigação de facere, num primeiro momento, e de dare, num segundo. Contudo, mais tarde surge a obrigação do ressarcimento dos gastos da gestante, por parte dos beneficiários no que diga respeito a despesas médicas.39/40 A mulher gestante é fundamental neste procedimento e é quem assume mais obrigações neste contrato, uma vez que tem várias obrigações a seu cargo e cada uma delas surge quando ela cumpre a anterior. A gestante no início dá o seu consentimento para o tratamento de PMA (Procriação Medicamente Assistida), ou seja, para a transferência do material genético de ambos os membros do casal ou de pelo menos um deles para o seu útero, sendo o procedimento bem-sucedido, irá passar pelo período da gravidez, seguindo-se o momento do parto e, por último, a entrega da criança ao casal. O legislador quis deixar também claro o carácter excepcional e subsidiário da situação de gestação de substituição, bem como os motivos que levam o casal a ponderar a procriação por esta via, ou seja, só podem recorrer a ela em último recurso, quando a via natural não é opção por questões clínicas.
38 Cfr. Xxxxx Xxxxxxxx XXXXXXX, 1992, p. 428 apud Jéssica Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx XXXXX, 2019, p.20.
39 Cfr. Xxxxx Xxxxxx XXXXXXXXX, idem, 16 e 17 de Março de 2017, Projecto FCT UID 443-CIJE, p.115. Cf. Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx XXXXX, 2019, p.20.
40 Cfr. Xxxx xx Xxxxx Xxxxxxx XXXXXX, Das obrigações em geral, Vol.I, 10.ª Edição, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.398.
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O material genético utilizado na situação de gestação de substituição tem de provir de pelo menos um dos membros do casal e nunca pode ter origem na mulher que irá suportar a gravidez. Neste procedimento, a criança que irá ser gerada pode biologicamente ser parente dos dois membros do casal, pois o material genético utilizado para fecundar a gestante pode pertencer à mulher e ao homem que formam o casal beneficiário, ou ser apenas familiar do homem do casal, mas terá sempre um vínculo biológico com pelo menos o homem do casal, não existindo qualquer vínculo biológico com a mulher gestante. Importa ainda salientar que neste contrato é necessária uma autorização administrativa prestada previamente pelo por quem de direito, no caso, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida ou uma instituição equivalente, sendo proibido qualquer pagamento ou doação à pessoa que irá suportar a gravidez, exceptuando o pagamento de despesas médicas, e a proibição da celebração de um contrato de gestação, quando existir subordinação económica ou laboral entre as partes.
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Considerações Finais
À guisa de conclusão, cumpre em primeira instância ressaltar que, a intervenção na reprodução humana através da ciência e da tecnologia é ética e moralmente admissível nos marcos do nosso ordenamento jurídico, bastando que se respeite, portanto, os valores fundamentais do ser humano, a unidade familiar e a licitude dos meios e fins.
Arrematando, vários pontos sobressaíram ao longo deste nosso breve e humilde ensaio, porém, sem descurar os demais aspectos abordados, e considerando que nos encontramos em sede de considerações finais, somos de opinião de que, para maior compreensão, olhando para a novidade da temática, no essencial prende-se com o fundamento segundo o qual, o contrato de gestação de substituição é celebrado pelo casal beneficiário e a mulher, que será a gestante, gerando assim obrigações a cumprir por ambas as partes, sendo que a segunda terá mais obrigações a seu cargo do que o casal, pois a mulher gestante não só consente na realização de uma intervenção clínica para que possa ficar grávida, como também concorda em levar a gravidez até ao fim, a passar pelo momento do parto e, por fim, a entregar o bebé ao casal. Já o casal terá a obrigação de ressarcir a gestante das despesas médicas. Este contrato tem de ser celebrado a título gratuito e as declarações de vontade das partes têm de ser prestadas de forma livre e informada, pretendendo-se que estas o sejam até ao final do procedimento. Mas se atesta que, é na ausência da remuneração onde reside a sua imperfeição enquanto contrato bilateral, pois geram deveres para uma das partes, pese embora de forma acidental existir a possibilidade de vier a originar deveres para outra parte, conforme vimos em linhas anteriores, isto é, no desenrolar da relação contratual, sem que entre as obrigações de um e outro dos contraentes se estabeleça, de facto, o nexo psicológico – jurídico próprio do sinalagma.
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LEGISLAÇÃO CONSULTADA (NACIONAIS)
• Constituição da República;
• Código Civil;
• Lei n.º29/21, de 9 de Novembro – Lei da Reprodução Medicamente Assistida.
(INTERNACIONAIS)
• Constituição da República Portuguesa.
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