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encaminhados à “Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal – CCAF, para que seja realizada reunião prévia com os órgãos e entidades federais competentes para verificar o interesse e viabilidade na conciliação”.
Ato contínuo, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se favoravelmente à designação de audiência pública, com participação de todos os órgãos públicos envolvidos, das partes interessadas, inclusive representantes das comunidades indígenas Parakanã e Araweté, e do Ministério Público Federal, visando a dirimir o conflito social retratado nos autos do Mandado de Segurança.
Em 9.09.2020, sobreveio petição da Advocacia-Geral da União, informando que os procedimentos preparatórios da conciliação ainda se encontram em curso na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal. Por esse motivo, requereu dilação de prazo por 30 dias antes da manifestação conclusiva sobre a viabilidade da instância conciliatória.
Houve nova manifestação da parte recorrente, alegando que, recentemente, a Administração Pública Federal passou a promover a desocupação da área vindicada no Mandado de Segurança. Requereu, portanto, a concessão de provimento jurisdicional apto a suspender todo e qualquer ato de desocupação da área litigiosa, bem como fosse determinado à autoridade coatora a realização de novo estudo antropológico acerca do conflito social retratado na impetração.
Em 24.11.2020, o Município de São Felix do Xingu informou que os órgãos públicos federais promoveram novos atos de desocupação forçada da área litigiosa, o que potencializou o conflito social latente na região. Reiterou a manifestação de interesse na solução consensual do litígio, bem como o pedido de suspensão dos atos de desintrusão praticados pela Administração Pública Federal.
O Estado do Pará requereu ingresso no feito na condição de amicus curiae (eDOC 72).
A Associação Indígena TATO’A, organização indígena representante de comunidades Parakanã da terra indígena Apyterewa, pleiteou o
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ingresso como litisconsorte passivo necessário (eDOC 74). Aduziu que quando discutida a demarcação de terras indígenas, é necessária a formação de litisconsórcio necessário que oportunize a participação dos povos indígenas.
Aponta a ilegitimidade ativa do Município de São Félix do Xingu- PA, ao argumento de que não há imóveis do ente federado na terra demarcada. Em relação ao mérito do mandado de segurança, defende a legalidade do procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena Apyterewa, inclusive no tocante à garantia do contraditório e da ampla defesa.
A União informou o insucesso das tratativas extrajudiciais de conciliação conduzidas no âmbito da Câmara de Mediação e de Conciliação da AGU (eDOC 82).
O Município de São Félix do Xingu-PA insiste na realização de audiência de conciliação no âmbito deste Tribunal (eDOC 84).
A Associação Indígena TATO’A apresentou nova manifestação (eDOC 89), agora favorável à tentativa de conciliação, e requereu o desentranhamento da petição do eDOC 74. Em seguida, no eDOC 93, requereu a homologação de acordo celebrado com colonos não-indígenas.
No eDOC 97, a Associação Indígena TATO’A manifestou-se novamente pela inviabilidade do mandado de segurança.
Posteriormente, nos eDOC 103 e 108, a Associação Indígena TATO’A mais uma vez explicitou o interesse na realização de audiência de conciliação, pleiteando o desentranhamento das manifestações dos eDOCs 74 e 97.
No eDOC 111, o Conselho Indigenista Missionário – CIMI requereu o ingresso no feito como amicus curiae.
É o relatório. Decido.
I. De início, admito o ingresso da Associação Indígena TATO’A no processo, conforme requerido no eDOC 74.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou-se no
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sentido de que é admitida o ingresso de comunidade indígena em relação processual na qual se discute a demarcação de suas terras tradicionais. Nesse sentido, colaciono as seguintes decisões monocráticas: AR 2761- MC, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxx, DJe de 07/11/2019; ACO nº 2.323, Rel. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, DJe 18.02.2019; MS nº 34.250 MC/DF, Rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx, decisão monocrática, j. 07.02.2017; MS nº 28.541, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, DJe de 05/11/2018; AR nº 2.456-MC, Rel. Xxxxxx Xxxxx, DJe 06.09.2019; AR nº 2.750-MC, Rel. Min. Xxxx Xxxxx, DJe 07.10.2019.
No caso dos autos, é inequívoco que a associação representa ao menos parte dos indígenas da TI Apyterewa, ostentando legitimidade e pertinência com a questão controvertida neste mandado de segurança.
Portanto, defiro o pedido de ingresso da Associação Indígena TATO’A no processo, na condição de litisconsorte passivo.
II. A Associação Indígena TATO’A arguiu a ilegitimidade ativa do Município de São Félix do Xingu-PA, ao argumento de que a edilidade não comprovou a titularidade de bem imóvel dentro da TI Apyterewa.
No entanto, verifico que o próprio Decreto Presidencial impugnado neste processo assim descreve a terra indígena demarcada:
Art. 1º Fica homologada a demarcação administrativa, promovida pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI, da terra indígena destinada à posse permanente do grupo indígena Parakanã, a seguir descrito: a Terra Indígena denominada Apyretewa, com superfície de setecentos e setenta e três mil, quatrocentos e setenta hectares, três ares e treze centiares e perímetro de quinhentos e vinte e seis mil, novecentos e cinco metros e quarenta e quatro centímetros, situada no Município de São Félix do Xingu, no Estado do Pará (...).
Como se vê, a TI Apyterewa localiza-se dentro do território do Município de São Félix do Xingu-PA, do que se extrai incontroversa sua legitimidade ativa.
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Acresce que o ente federado participou de todo o processo administrativo de demarcação no qual teriam ocorrido as nulidades alegadas no mandado de segurança.
Dessa forma, afasto a questão preliminar.
III. O Estado do Pará e o Conselho Indigenista Missionário requereram o ingresso no feito na condição de amicus curiae.
A figura do amicus curiae, em que pese, tradicionalmente aceita em processos de índole objetiva, tem sido admitida pela jurisprudência desta Corte em processos subjetivos, como no caso do mandado de segurança e do mandado de injunção, a depender da representatividade do postulante e da transcendência subjetiva do objeto da lide.
Isso porque as razões que fundamentam a participação do amicus curiae nos processos objetivos (ampliação do debate, repercussão da decisão e esclarecimento de questões técnicas ou jurídicas de grande complexidade) também podem estar presentes em causas como a presente.
Mesmo antes do advento do novo Código de Processo Civil, em 2013, já havia me pronunciado no MS 32.033, no sentido de que não há qualquer incompatibilidade do rito do mandado de segurança com a participação do amicus curiae, tampouco existe qualquer impedimento legal para a sua admissão pelo fato de o mandado de segurança não se tratar de um feito do controle abstrato pois, esta Corte, àquela época, já havia admitido a possibilidade de amicus curiae em recurso extraordinário.
Além disso, destaquei inexistir óbice legal para tanto [admissão de amicus curiae em mandado de segurança], apontando que a medida condiz com o processo constitucional, dado que a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões é essencial e constitui um excelente instrumento de informação para a Corte Suprema, com subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos dos mais variados.
Continuo a entender que a admissão de amicus curiae confere ao
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processo uma diversidade de pensamentos, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, que, a meu ver, não pode ficar restrito ao controle concentrado. Pelo contrário, penso que, justamente por se tratar a questão discutida nos autos, matéria de inegável importância, a jurisdição exercida por este Tribunal deve se afastar de uma perspectiva estritamente subjetiva.
Essa interpretação ampliada da figura amicus curie, inclusive veio positivada no art. 138 do atual Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
“Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação”. (grifo nosso)
Nessa linha, o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), corretamente aduz que: ”É cabível a intervenção de amicus curiae (art. 138 do CPC) no procedimento do Mandado de Injunção (Lei n. 13.300/2016)”.
Perceba, portanto, que se apresentam como balizas da participação de terceiros como amicus curiae: relevância da matéria e representatividade dos postulantes. Trata-se de providência que confere caráter pluralista e democrático ao processo.
Na situação em tela, mostra-se adequada as intervenção requerida pelo Estado do Pará, consideradas a relevância da matéria controvertida – demarcação de terra indígena com significativa extensão territorial – e a representatividade do peticionante, cujo território abarca a TI Apyterewa. Da mesma forma, merece acolhimento o pleito do Conselho Indigenista Missionário, cuja atuação relevante no campo da afirmação dos direitos e culturas dos povos indígenas é fato notório, do que se extrai
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também sua representatividade para inserir-se nos debates conduzidos neste processo.
Ante o exposto, defiro a admissão do Estado do Pará e do Conselho Indigenista Missionário como amicus curiae, podendo apresentar memorial e proferir sustentação oral (arts. 138, caput, e §2º; e 1.038, I, do CPC).
IV. Conforme relatado, o Município de São Félix do Xingu-PA propôs a remessa dos autos a Núcleo de Conciliação, para promoção de tentativa de conciliação entre as partes, tendo em vista a predisposição dos litigantes para adoção de solução concertada.
Diante disso, a União foi intimada a manifestar-se sobre o pedido do Município, ao que respondeu informando o envio dos autos para “Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal – CCAF, para que seja realizada reunião prévia com os órgãos e entidades federais competentes para verificar o interesse e viabilidade na conciliação”.
A essa simples providência processual, seguiu-se uma série de manifestações das partes, muitas vezes contraditórias, que devem ser devidamente apreciadas e cotejadas, para fins de saneamento do feito e análise da viabilidade de alcançar-se solução amigável à questão controvertida.
Antes de proceder ao exame dos eventos processuais, saliento que atualmente não há mais dúvidas de que o ordenamento jurídico brasileiro optou pelo caminho do prestígio e da expansão das técnicas alternativas de solução e prevenção de conflitos. Há, no arranjo normativo encerrado no Código de Processo Civil, clara manifestação de preferência pela resolução pacífica dos litígios, colocando em segundo plano a solução imposta unilateral e soberanamente pelo Estado-juiz.
Observa-se a implementação de sistema de Justiça multiportas pelo legislador nacional, com evidente inspiração nos programas do alternative dispute resolution do direito norte-americano. O acordo passa a ser visto como o meio mais adequado para concretizar e efetivar os interesses materiais postulados pela partes, afastando a tendência de enxergar na
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solução jurisdicional a mais adequada técnica de pacificação social.
Tenho prestigiado essa perspectiva em processos sob minha relatoria, inclusive aqueles de índole objetiva, em que sequer há uma lide instaurada na acepção tradicional. Na ADO 25-QO, por exemplo, relevante e antigo conflito federativo foi solucionado de forma amigável, após negociações conduzidas no âmbito deste Tribunal. O acórdão homologatório foi assim ementado:
Questões de ordem na ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 2. Lei Complementar prevista no art. 91 do ADCT. 3. Pedidos sucessivos de prorrogações dos prazos realizados pela União (primeiro requerimento, em 2.2019) e pela maioria dos Estados (segundo requerimento, em 2.2020). 4. Fatos supervenientes que justificam o abrandamento do prazo fixado no julgamento de mérito. Circunstâncias técnico-operacionais. Deferimento dos pleitos em parte. Precedentes. 5. Referendo das decisões. 6. Acordo realizado entre a União e todos os Entes Estaduais e Distrital. Homologação. 7. Encaminhamento ao Congresso Nacional para as deliberações cabíveis. (ADO 25 QO, Relator(a): XXXXXX XXXXXX, Tribunal Pleno, julgado em 20/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-270 DIVULG 11-11-2020 PUBLIC 12-11-2020)
Nada obstante essas considerações, que sempre devem permear o olhar do magistrado por força mesmo do art. 3º, § 2º, do Código de Processo Civil, é necessário reconhecer que o acordo não será sempre viável, seja em virtude de vedações legais, seja por obstáculos fáticos.
Basta observar que, em regra, direitos indisponíveis não podem ser alcançados por solução consensual que implique renúncia ou limitação ao seu exercício.
Da mesma forma, há situações em que, embora as partes não estejam dispostas a arcar com as consequências da resolução da lide por ato jurisdicional, inexiste substrato fático e volitivo que respalde com segurança e definitividade a saída consensual do litígio.
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No caso dos autos, três desdobramentos processuais relevantes ocorreram após a intimação da União para manifestar-se sobre o pedido do Município a Núcleo de Conciliação.
Em 09/07/2021, a União informou que “a Câmara de Mediação e de Conciliação da AGU não conseguiu avançar nas tratativas extrajudiciais de conciliação”.
Ou seja, embora tanto a União quanto o Município de São Félix do Xingu-PA tenham sinalizado favoravelmente à solução concertada, as tratativas no âmbito da Advocacia Geral da União não avançaram.
Paradoxalmente, e aqui reporto-me à segunda ocorrência processual, em 14/10/2021, a Associação Indígena TATO’A informou a celebração de acordo entre a comunidade indígena e a população não indígena para redefinição da área demarcada, pugnando pela sua homologação (eDOC 94).
O termo de acordo é assinado por indígenas vinculados à Associação Indígena TATO’A, por associações de “colonos não índios” - notadamente Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Projeto Paredão, Associação dos Pequenos Agricultores do Vale do São José e Associação dos Agricultores do Vale do Cedro -, e pelo Município de São Félix do Xingu. O documento foi produzido sem a participação da Funai, entidade responsável pela demarcação de terras indígenas (Decreto 1775/1996), e da União.
O terceiro desdobramento processual é uma sequência de petições contraditórias da Associação Indígena TATO’A, ora refutando qualquer possibilidade de solução consensual, especialmente que implique redução da área demarcada, ora aderindo integralmente aos termos do acordo.
Esse quadro gera perplexidade e indica graves problemas na legitimidade da representação dos indígenas enquanto comunidade neste processo, lançando sérias dúvidas sobre os interesses que são efetivamente tutelados na tentativa de conciliação.
A ressaltar essa óptica, há nos autos, especificamente no eDOC 99, Ata da Assembleia Geral Ordinária da Associação Indígena Tato’a, registrada em Cartório em 05/05/2021 e subscrita por dezenas de
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indígenas, em que há expressa manifestação contra qualquer espécie de acordo que implique a redução da TI Apyterewa.
Esses desdobramentos aqui narrados permitem que se depreenda conclusões relevantes sobre a situação controvertida nestes autos, evidenciando a inviabilidade, ao menos neste momento processual, de alcançar-se solução concertada para a lide.
Com efeito, a União expressamente tentou intermediar o acordo e mesmo após meses de tratativas não houve consenso, tampouco a exposição das razões que impediram o sucesso da empreitada da negocial ou, quando menos, a indicação de possível caminho para a transação.
Soa estranho que mesmo nesse cenário seja apresentado ao Supremo Tribunal Federal termo de acordo em que lideranças indígenas e associações não indígenas concordam, sem a participação da Xxxxx ou da União, com a redução em mais da metade da terra indígena cuja demarcação foi homologada pela Presidência da República.
A celebração de acordos que impliquem a redução de terras indígenas, embora não seja a princípio objeto de expressa e absoluta vedação legal, não prescinde de cuidados redobrados para que os interesses das comunidades indígenas sejam devidamente preservados e especialmente representados nas negociações.
Cautela maior é necessária quando se considera que o processo de demarcação da área controvertida nestes autos foi finalizado há mais de duas décadas e desde então a desintrusão não foi concluída.
Outrossim, é necessário ponderar que o contexto das tratativas envolve o dever constitucional do Estado brasileiro de tutelar os povos indígenas e assegurar-lhes os recursos ambientais necessários a seu bem- estar, cujo implemento não está dispensado quando buscada a solução concertada entre as partes.
É dizer, a terra tradicionalmente indígena não está integralmente à disposição dos interesses em disputa para materialização da transação. A demarcação observa critérios legais e constitucionais, ancorados em laudos antropológicos, razão pela qual não pode ser desconstituída por simples ato de vontade do Estado, muito menos das comunidades
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indígenas e não indígenas.
Lado outro, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu, no julgamento da Pet 3388 (Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxx, Tribunal Pleno, DJe de 24-09-2009), que as terras indígenas já demarcadas estão sujeitas à liderança institucional da União, de modo que é de todo inviável acordo não subscrito pela Funai e pela União.
A par desse aspecto, as negociações das partes não podem resultar em disposições inconstitucionais ou ilegais, como a cláusula do termo de acordo em tela que prevê o registro da propriedade da área atribuída aos indígenas em nome da Associação Indígena Tato’a.
Dessa forma, tendo em vista a ausência, neste momento processual, de condições legais e fáticas para concretização de solução concertada para o litígio da TI Apyterewa, declaro encerradas as tentativas de conciliação.
Publique-se.
Brasília, 14 de dezembro de 2021.
Ministro Xxxxxx Xxxxxx
Relator
Documento assinado digitalmente
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