A CONTRATAÇÃO PÚBLICA “VERDE”
A CONTRATAÇÃO PÚBLICA “VERDE”
A contratação pública “verde”
Marco Rodrigues1 Patrícia Anjos Azevedo2
xxxxx://xxx.xxx//00.00000/XXXX0000000
Sumário: 1. Introdução. 2. Princípios gerais da contratação pública (principais destaques). 2.1. Princípio da prossecução do interesse público. 2.2. Princípio da proporcionalidade. 2.3. Princípios da legalidade e da discricionariedade. 2.4. Princípio da concorrência. 2.4.1. Manifestações do princípio da concorrência. 2.5. Princípios da igualdade e da não discriminação. 2.6. Princípios da transparência e da publicidade. 2.7. Princípios da imparcialidade e da boa fé. 2.8. Princípios da colaboração e da participação. 3. A contratação pública como instrumento de proteção do ambiente. 3.1. As preocupações concorrenciais e as considerações ambientais no âmbito de instrumentos de Direito internacional e da UE: especial destaque para a Diretiva 2014/24/EU. 3.2. O Acórdão Concordia Bus. 3.3. O princípio do caráter voluntário das considerações ambientais na contratação pública e a concorrência. 4. Considerações finais. Referências.
Resumo: O art.º 1.º-A do Código dos Contratos Públicos (CCP) estabelece, no seu n.º 1, que na formação e execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição da República Portuguesa (CRP), dos Tratados da UE e do Código do Procedimento Administrativo (CPA), em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação. O objetivo primário (ou principal) da contratação pública trata-se da racionalidade económica. Neste seguimento, via de regra, os processos de compras terão de ser pautados pela preocupação com os custos, tendo em conta uma boa relação qualidade- preço. Comprar com racionalidade económica passa por seguir processos de compras dirigidos à consideração dos custos, numa ideia de racionalidade económica, e sem descurar determinados princípios, como é o caso do princípio da concorrência. A legislação referente à contratação pública vem contemplar procedimentos que levam à compra de acordo com critérios económicos, com atenção para os custos, que corresponderão a um importante fator de avaliação em matéria de compras públicas. No âmbito dos procedimentos de contratação pública, as considerações ambientais são perfeitamente compatíveis com as preocupações de cariz puramente económico.
Palavras-chave: contratação pública; considerações ambientais; contratação pública “verde”.
Abstract: Article 1.º-A of the Public Contracts Code (CCP) establishes, in paragraph 1, that in the formation and execution of public contracts, the general principles arising from the Constitution of the Portuguese Republic (CRP) must be respected, of the EU Treaties and the Code of Administrative Procedure (CPA), in particular the principles of legality, pursuit of the public interest, impartiality, proportionality, good faith, protection of trust, sustainability and responsibility, as well as such as the principles of competition, advertising and transparency, equal treatment and non-discrimination. The primary (or main) objective of public procurement is economic rationality. In this context, as a rule, purchasing processes will have to be guided by concerns about costs, taking into account a good quality-price ratio. Buying with economic rationality involves following purchasing processes aimed at considering costs, with an idea of economic rationality, and without neglecting certain principles, such as the principle of competition. The legislation relating to public procurement includes procedures that lead to purchases in accordance with economic criteria, with attention to costs, which will correspond to an important evaluation factor in terms of public procurement. Within the scope
1Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais, Universidade Portucalense, Infante D. Xxxxxxxx. Email: xxxxxxxxxx000@xxxxxxx.xxx .
2Prof.ª Adjunta na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto. Email: xxxxxxxx_xxxxx_xxxxxxx00@xxxxxxx.xxx .
of public procurement procedures, environmental considerations are perfectly compatible with concerns of a purely economic nature.
Keywords: public procurement; environmental considerations; “green” public procurement.
1. INTRODUÇÃO
O objetivo primário (ou inicial) da regulamentação da contratação pública trata-se da racionalidade económica. Comprar com racionalidade económica passa, em princípio, por seguir processos de compras dirigidos à consideração dos custos, custos esses que deverão ser inferiores aos resultados da atividade. A legislação referente à contratação pública vem contemplar procedimentos que levam à compra de acordo com critérios económicos, com atenção para os custos, que corresponderão a um importante fator de avaliação em matéria de compras públicas.
Convém ainda aludirmos à proteção da concorrência (e à igualdade de oportunidades), no sentido do acesso às vantagens económicas que decorrem da celebração de contratos públicos. Destarte, o Estado tem de publicitar que pretende ir ao mercado, anunciando aos potenciais “fornecedores” aquilo que é pretendido, com a finalidade de receber diversas propostas, que vai avaliar de acordo com o critério da “proposta economicamente mais vantajosa” (PEMV), com vista à obtenção do “best value for public money” (proteção do interesse público financeiro e defesa dos contribuintes).
Com a reforma de 2014 das Diretivas da contratação pública3, a abertura do Direito da União Europeia (UE) à “utilização estratégica da contratação pública” veio alargar o potencial regulador dos contratos públicos, com especial enfoque para o facto de a adjudicação dos contratos se tratar de uma ferramenta que ultrapassa a intenção imediata – e mais visível – da compra. As referências doutrinárias e jurisprudenciais, designadamente por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), às “políticas secundárias” e às “políticas horizontais” da contratação pública4 vieram dar o mote no sentido da consagração de fatores sociais e ambientais nos critérios de adjudicação e nas condições de execução dos contratos.
A título de exemplo, no considerando 95 da Diretiva 2014/24/UE, pode ler-se: “é
extremamente importante tirar o máximo proveito do potencial dos contratos públicos para cumprir os
3 V.g., Diretivas 2014/23/UE (relativa à adjudicação de contratos de concessão), 2014/24/UE (relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE) e 2014/25/UE (relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva 2004/17/CE), todas de 26 de fevereiro de 2014.
4 Há autores que utilizam o termo “políticas horizontais”, em vez de “políticas secundárias”, sendo que esta última será uma terminologia mais tradicional. Para maiores desenvolvimentos sobre esta questão doutrinária, veja-se a nota de rodapé n.º 1 do seguinte contributo: Xxxxx, C. F. (2017). “Políticas horizontais Ambientais e Sociais e Concorrência na Contratação Pública: Uma leitura em face do caleidoscópio ambiental e social reforçado pela Diretiva 2014/24/UE e pelo Anteprojeto do Código dos Contratos Públicos”, in Revista de Contratos Públicos, n.º 15, pp. 169-202. Coimbra: Cedipre, UC, Almedina.
objetivos da Estratégia Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”. Esta regulamentação aponta para a já aludida “utilização estratégica”, que pugna pela realização dos objetivos sociais e ambientais (isto é, a sustentabilidade), bem como por políticas tendentes à inovação e ao desenvolvimento. Também a Comunicação da Comissão Europeia COM (2017) 572 final, de 03 de outubro de 2017, intitulada “Dinamizar a contratação pública em benefício da Europa” aponta como uma das seis prioridades estratégicas no sentido da transformação da contratação pública num instrumento de política económica de cada Estado-Membro, precisamente a “adoção generalizada da contratação pública estratégica” 5.
2. PRINCÍPIOS GERAIS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA (PRINCIPAIS DESTAQUES)
2.1. Princípio da prossecução do interesse público
Em termos históricos, a regulamentação da contratação pública surge devido às exigências decorrentes da boa utilização dos dinheiros públicos. Neste sentido, deve afirmar- se que a regulamentação da contratação pública deverá encontrar-se ao serviço da realização do interesse público, designadamente o interesse público financeiro, isto é, o “best value for money”. Contudo, este não é o único interesse público a acautelar neste contexto e, daí, ser importante destacar a “utilização estratégica da contratação pública”, que alude à utilização da contratação pública e das compras públicas enquanto instrumento de regulação e de incentivo à inovação tecnológica, à sustentabilidade e às políticas sociais e ambientais, em geral6.
2.2. Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade, que se encontra previsto no art.º 1.º-A, n.º 1 do CCP, apresenta uma tripla dimensão, isto é: necessidade, adequação e proibição do excesso (ou proporcionalidade em sentido estrito). Este princípio encontra-se concretizado, por exemplo, no âmbito do concurso limitado, onde se estabelece que os requisitos mínimos de capacidade técnica e financeira devem ser “adequados à natureza das prestações objeto do contrato a celebrar” (art.º 165.º, n.º 1 do CCP); ademais, e no que respeita aos impedimentos, o princípio da proporcionalidade manifesta-se no facto de se considerarem impedidas as entidades abrangidas por conflitos de competências “que não possam ser eficazmente corrigidos por outras medidas menos gravosas que a exclusão” [art.º 55.º, n.º 1, k)].
5 Para maiores desenvolvimentos, veja-se: Xxxxxxxxx, P. C. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, pp. 340-341.
6 Para maiores desenvolvimentos, cfr. Xxxxxxxxx, X. X. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, pp. 358-359.
2.3. Princípios da legalidade e da discricionariedade
O princípio da legalidade trata-se de um princípio fundamental da atuação da Administração Pública. No âmbito da contratação pública aplica-se, naturalmente, este princípio, que estabelece a obediência, na escolha do procedimento, em todas as suas fases, bem como em todas as decisões aí adotadas, à lei (em sentido amplo). Aliás, o desrespeito pela lei, em matéria de contratação pública, pode acarretar a responsabilidade financeira reintegratória e a responsabilidade sancionatória dos decisores públicos. Com a revisão de 2017 do CCP, alargou-se o leque de possibilidades tendentes ao exercício do poder discricionário em matéria de contratação pública.
2.4. Princípio da concorrência
O princípio da concorrência7 encontra-se previsto na parte final do art.º 1.º-A, n.º 1 do CCP e trata-se de um valor nuclear para o Direito da Contratação Pública, muito embora não seja exclusivo deste ramo, já que se aplica quer às relações de Direito Administrativo que se desenvolvem entre a Administração Pública e os particulares; quer às relações de Direito Privado que se estabelecem entre os particulares (neste caso, integrará o Direito da Concorrência) 8. O princípio da concorrência encontra-se, desde logo, relacionado com o princípio da igualdade, previsto na CRP, e materializa-se na abertura à concorrência, o que remete para a hierarquia dos procedimentos de adjudicação, de acordo com a qual se dá primazia aos procedimentos abertos de seleção dos concorrentes, em detrimento dos procedimentos de acesso limitado ou fechados (como o ajuste direto, por exemplo). A jurisprudência europeia, recusando as presunções inilidíveis no âmbito das causas de exclusão dos concorrentes, admite que a Administração Pública adjudicante afira, no caso concreto, se se verificam situações ou práticas suscetíveis de falsear a concorrência, tendo como resultado a exclusão dos concorrentes. A concorrência é, muitas vezes, um critério de avaliação dos Tribunais, designadamente no que toca à apreciação da legalidade das decisões e dos procedimentos adotados pelas entidades adjudicantes.
2.4.1. Manifestações do princípio da concorrência
A primeira manifestação é do princípio da publicidade. Assim, e quando o valor do benefício económico do contrato a celebrar seja suscetível de despertar interesse no mercado,
7 Segundo a doutrina de Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, “(…) é de duas fontes superiores que o legislador recebe a obrigação de erguer o princípio da concorrência como centro aglutinador da formação de contratos públicos: (i) por um lado, a concorrência na escolha do co-contratante da Administração constitui um instrumento de criação do mercado interno comunitário; (ii) por outro lado, antes de qualquer imposição externa, é o próprio ordenamento constitucional português que estabelece a defesa da concorrência não só como valor estruturante da organização económica mas também como instrumento de prossecução eficaz do interesse público.” – Cfr. Xxxxxxx, X. X. (2020). Direito da Contratação Pública. Lisboa: AAFDL Editora, Vol. I, p. 69.
8 Para maiores desenvolvimentos, cfr. Xxxxxxxxx, X. X. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, pp. 354 e ss.
exige-se que todos os operadores económicos tenham conhecimento de que a Administração pretende contratar. Tal facto manifesta-se na previsão legal de publicação de um ou mais anúncios, exceto se um interesse material superior impuser a respetiva não publicitação (cfr. art.ºs 24.º e seguintes do CCP). Além disso, e para que a participação livre e concorrencial não seja colocada em causa, designadamente mediante a formulação de condições contratuais restritivas, não pode ainda verificar-se qualquer discriminação no procedimento, com o intuito de favorecer ou desfavorecer operadores no mercado – nisto consiste o princípio da não discriminação. São ainda fixados impedimentos à participação no procedimento por parte de operadores que beneficiem de condições privilegiadas à obtenção da adjudicação, pelo facto de, por exemplo, terem participado, direta ou indiretamente, na elaboração das peças do procedimento, na condição de a dita participação falsear as condições concorrenciais – cfr. xxxxxx x) do n.º 1 do art.º 55.º do CCP. Acresce que, tendo diversos operadores económicos manifestado a sua intenção de participar no procedimento, é exigível que a entidade adjudicante lhes atribua um tratamento segundo os ditames da igualdade e da imparcialidade, quer no tocante à apreciação das candidaturas, soluções e propostas, quer ainda no que concerne às informações ou esclarecimentos prestados a cada um deles.
2.5. Princípios da igualdade e da não discriminação
No âmbito do Direito da Contratação Pública, os princípios da igualdade9 e da não discriminação encontram-se previstos na Diretiva 2004/18/CE, bem como nas diretivas de 2014 referentes à Contratação Pública. Por exemplo, a Diretiva 2014/24/UE dita que os concursos não podem ser organizados com o fito de reduzir artificialmente a concorrência – o que acontece, de acordo com a segunda parte do n.º 1 do art.º 18.º da referida Diretiva, quando o concurso se encontre organizado de forma a “favorecer ou desfavorecer indevidamente determinados operadores económicos” 10. Muito embora não se encontre expressamente previsto no CCP, o princípio da não discriminação trata-se de um corolário do princípio da igualdade de tratamento, materializando-se especialmente no princípio da não discriminação em razão da nacionalidade.
2.6. Princípios da transparência e da publicidade
9 Nas palavras de Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, “(…) o princípio da igualdade preside, por natureza, a qualquer procedimento administrativo: a Administração fica impedida de dispensar um tratamento desigual em casos diversos (…) se não existe um fundamento constitucionalmente aceitável para essa diferenciação.” – Cfr. Xxxxxxx, X. X. (2020). Direito da Contratação Pública. Lisboa: AAFDL Editora, Vol. I, p. 81.
10 De notar que o que se encontra aqui em causa trata-se da proibição de favorecimento ou desfavorecimento indevido, não
se afastando, aqui, as formas legais de redução da concorrência, tais como os “contratos reservados”.
O princípio da transparência tem como finalidade pugnar pela ausência do risco de favoritismos ou de qualquer outro tipo de arbítrio por parte da entidade adjudicante11. Este princípio implica que todas as condições e modalidades do procedimento de adjudicação se encontrem formuladas de forma clara, precisa e unívoca no anúncio ou nas peças do procedimento12. De notar que um dos corolários mais importantes do princípio da transparência prende-se com o dever de fundamentação das decisões tomadas no decurso dos procedimentos de formação dos contratos. A transparência encontra-se ainda relacionada com a publicidade, o que se materializa no acesso, quer dos participantes no procedimento, quer do público, em geral, às decisões adotadas desde a adjudicação até aos ajustamentos ao contrato13.
2.7. Princípios da imparcialidade e da boa fé
Conforme prevê o art.º 9.º do CPA (bem como o n.º 2 do art.º 266.º da CRP), também aplicável no domínio do Direito da Contratação Pública, a Administração Pública deve tratar de forma imparcial todos os interessados, candidatos e concorrentes, atendendo, com base em razões objetivas, aos interesses relevantes no caso concreto e tomando as medidas indispensáveis à isenção administrativa e à confiança nessa isenção14. As garantias de imparcialidade justificam regras específicas, no CCP, destinadas a prevenir a ocorrência de conflitos de interesses durante o procedimento (como, por exemplo, o art.º 55.º do CCP, que se refere aos impedimentos).
2.8. Princípios da colaboração e da participação
Subjacente ao princípio da colaboração (recíproca) entre a Administração e os particulares (previsto no art.º 11.º do CPA) encontra-se o princípio da participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações que lhes digam diretamente respeito, numa ideia de coresponsabilização pelas decisões (cfr. n.º 5 do art.º 267.º da CRP e art.º 12.º do CPA)15. Mais concretamente, a legislação sobre contratação pública privilegia, por exemplo, a realização da audiência prévia dos interessados antes da aprovação das decisões finais da entidade adjudicante, sendo que se estabelecem ainda formas específicas de participação no procedimento como, por exemplo, o regime de suprimento de erros e
11 Cfr. Xxxxxxx do TJUE, de 16 de abril de 2015, SC Enterprise Focused Solutions SRL, Processo C-278/14.
12 Cfr. Xxxxxxx do TJUE, de 29 de abril de 2004, Comissão/CAS Succhi di Frutta, Processo C-496/99.
13 Para maiores desenvolvimentos, cfr. Xxxxxxxxx, X. X. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, pp. 362-365.
14 Neste sentido, e para maiores desenvolvimentos, cfr. Xxxxxxxxx, X. X. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, pp. 365-366.
15 Para maiores desenvolvimentos sobre os princípios aqui em causa, cfr. Xxxxxxx, X. X. (2020). Direito da Contratação Pública. Lisboa: AAFDL Editora, Vol. I, pp. 108-110.
omissões (art.º 50.º do CCP). Com isto, pretende o legislador antecipar, resolvendo, os litígios que possam vir a surgir entre as partes.
3. A CONTRATAÇÃO PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DO AMBIENTE
3.1. As preocupações concorrenciais e as considerações ambientais no âmbito de instrumentos de Direito internacional e da UE: especial destaque para a Diretiva 2014/24/UE
A possibilidade de atender a considerações ambientais no âmbito da contratação pública foi apenas prevista na reforma de 2004 da regulamentação europeia dos contratos públicos. Numa fase anterior, destaque-se, designadamente, o contributo da Comunicação interpretativa da Comissão sobre o direito comunitário aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar considerações ambientais nos contratos públicos – COM (2001) 274 final. No ano seguinte, surge o Acórdão Concordia Bus Finland Oy Ab, do TJUE, referente ao Processo C-513/99, de 17 de setembro de 2002, de que nos ocuparemos a seguir.
Uma nota também para aludir à evolução da regulamentação internacional, designadamente o “Acordo sobre Contratos Públicos” de 1979, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), que não continha qualquer menção a considerações ambientais. Com a revisão de 2011, este instrumento passou a determinar que as entidades adjudicantes podem contemplar especificações técnicas tendentes à promoção da conservação dos recursos naturais e da proteção do ambiente. Também a “Lei Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional” (UNCITRAL) sobre contratação pública vem prever que, quando entendam apropriado, as entidades adjudicantes podem exigir qualificações técnicas e ambientais aos concorrentes, definindo as caraterísticas ambientais do objeto do procedimento como critério de adjudicação16.
Dignas de referência são também as iniciativas mais recentes da Comissão Europeia17 e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)18, que se traduzem, no fundo, em manuais que apelam às boas práticas no âmbito da contratação pública ecológica e sustentável.
3.2. O Acórdão Concordia Bus
16 Neste mesmo sentido, veja-se Xxxxxxxxx, P. C. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, p. 344.
17 Comissão Europeia (2016). Buying green! A handbook on green public procurement. Bélgica: União Europeia, 3.ª edição, disponível em:
xxxxx://xx.xxxxxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxx/xxx/Xxxxxx-Xxxxx-Xxxxxxxx-0xx-Xxxxxxx.xxx .
18 OECD (2015). Going Green, Best practices for sustainable procurement, disponível em: xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xxx/xxxxxx-xxxxxxxxxxx/Xxxxx_Xxxxx_Xxxx_Xxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxxxx_Xxxxxxxxxxx.xxx .
O Acórdão Concordia Bus, do TJUE, referente ao Processo C-513/99 opôs a Concordia Bus Finland Oy Ab à Cidade de Helsínquia e à empresa HKL Bussiliikenne, a propósito da discussão da validade da decisão da comissão de serviços comerciais da cidade de Helsínquia, que adjudicou o contrato relativo à gestão de uma linha da rede de autocarros urbanos desta cidade à HKL. De acordo com o anúncio do concurso, o adjudicatário seria quem apresentasse a proposta mais vantajosa para o município, no plano económico global, tendo em conta três categorias de critérios, a saber: (i) preço global pretendido pela exploração; (ii) qualidade dos autocarros; (iii) gestão da qualidade e do ambiente. Foram recebidas oito propostas, tendo ficado a HKL em primeiro lugar e a Concordia como segunda classificada, facto que levou a que a Concordia interpusesse recurso de anulação da dita decisão, invocando, entre outros argumentos, que a atribuição de pontos adicionais a um material cujas emissões de óxido de azoto e de nível sonoro são inferiores a certos limites não é equitativa, sendo ainda discriminatória. O provimento do recurso foi negado e a Concordia recorreu de tal decisão. O recurso foi, então, reenviado para o TJUE19. Ora, e na sequência do previsto no art.º 36.º da Diretiva 92/50, de 18 de junho de 1992, o TJUE veio admitir que, na definição da PEMV, as entidades adjudicantes “podem tomar em consideração critérios ecológicos, como o nível de emissões de óxido de azoto ou o nível sonoro dos autocarros, desde que esses critérios estejam relacionados com o objeto do concurso, não confiram à referida entidade adjudicante uma liberdade de escolha incondicional, estejam expressamente mencionados no caderno de encargos ou no anúncio de concurso e respeitem os princípios fundamentais do direito comunitário, designadamente o princípio da não discriminação.”
3.3. O princípio do caráter voluntário das considerações ambientais na contratação pública e a concorrência
Do exposto anteriormente pode concluir-se que o Direito da UE coloca a proteção ambiental como possibilidade e não propriamente como obrigação das entidades adjudicantes. Por isso, convém aqui referir um “princípio do caráter voluntário das considerações ambientais na contratação pública”. Contudo, o aludido princípio contempla alguns desvios, previstos legalmente, de uma forma expressa. Desde logo, verifica-se a existência de normas de Direito da UE que impõem considerações ambientais em determinados domínios da contratação pública20.
19 Para maiores desenvolvimentos, cfr. a análise presente em: Xxxxx, F. F. (2017). “A contratação pública ecológica – o importante contributo da União Europeia”, in Rodrigues, N. C., Coord. (2017). Direito Internacional e Europeu da Contratação Pública. Lisboa: Universidade de Lisboa, pp. 132 e ss, disponível em: xxxxx://xxx.xxxxx.xx/xxx/xxxxx/xxxxxxx/xXxxx_XxxxxxxxxxxXxxxxxx_XX_XX.xxx .
20 Seguimos, nesta parte da nossa exposição, os mesmos exemplos apresentados por Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxx,
P. C. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol. I, pp. 342-343.
O facto de se ter em conta a proteção do ambiente nas compras públicas poderá implicar distorções à concorrência, bem como um afastamento do princípio da igualdade de oportunidades dos agentes económicos. Esta situação ocorrerá pela circunstância de determinados agentes económicos ficarem “de fora do mercado público”, por não conseguirem adaptar os seus métodos e processos às exigências tecnológicas em matéria de proteção ambiental, normalmente muito dispendiosas. O afastamento de determinados operadores económicos das compras públicas leva a que diminua o leque de escolha das entidades adjudicantes. Por esse motivo é que se justifica o caráter voluntário das considerações ambientais na contratação pública. Neste sentido, a UE apresenta como meramente excecional a imposição da proteção ambiental nas políticas de contratação pública, optando pela regra da possibilidade das considerações ambientais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No âmbito dos procedimentos de contratação pública, as considerações ambientais são perfeitamente compatíveis com as preocupações de cariz puramente económico. Importa aqui salientar que as considerações ambientais se compaginam, especialmente, com a abordagem do CCV. Quer isto dizer que, muito embora determinadas compras de produtos com grande eficiência energética, pelo facto de evidenciarem a utilização de tecnologias de última geração, possam apresentar um custo inicial mais elevado, em termos de utilização poderão apresentar um custo muito inferior, quando comparadas, por exemplo, com compras menos eficientes, energeticamente falando. Tal facto faz com que surjam, com alguma frequência, tensões entre as preocupações económicas e a proteção ambiental. Acresce que os aparentes mais elevados custos económicos poderão gerar externalidades positivas, tais como a conservação de recursos finitos ou a diminuição da emissão de gases com efeito de estufa.
REFERÊNCIAS
Comissão Europeia (2016). Buying green! A handbook on green public procurement. Bélgica: União Europeia, 3.ª edição, disponível em: xxxxx://xx.xxxxxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxx/xxx/Xxxxxx-Xxxxx-Xxxxxxxx-0xx-Xxxxxxx.xxx
Xxxxxxxxx, X. X. (2018). Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 3.ª Ed., Vol.I.
OECD (2015). Going Green, Best practices for sustainable procurement, disponível em: xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xxx/xxxxxx- procurement/Going_Green_Best_Practices_for_Sustainable_Procurement.pdf .
Xxxxxxx, X. X. (2020). Direito da Contratação Pública. Lisboa: AAFDL Editora, Vol. I.
Xxxxx, X. X. (2017). “Políticas horizontais Ambientais e Sociais e Concorrência na Contratação Pública: Uma leitura em face do caleidoscópio ambiental e social reforçado pela Diretiva 2014/24/UE e pelo Anteprojeto do Código dos Contratos Públicos”, in Revista de Contratos Públicos, n.º 15, pp. 169-202. Coimbra: Cedipre, UC, Almedina.
Xxxxx, X. X. (2017). “A contratação pública ecológica – o importante contributo da União Europeia”, in Rodrigues, N. C., Coord. (2017). Direito Internacional e Europeu da Contratação Pública. Lisboa: Universidade de Lisboa, pp. 132 e ss, disponível em: xxxxx://xxx.xxxxx.xx/xxx/xxxxx/xxxxxxx/xXxxx_XxxxxxxxxxxXxxxxxx_XX_XX.xxx .