Direito Público. Direito Administrativo. Contratos de concessão de serviços públicos estaduais. Pandemia de COVID-19 (coronavírus). Emergência biossanitária mundial. Duração e impacto econômico imprevisíveis. Imprevisão e caso fortuito. Possível...
Parecer nº 07/2020 – PGE/PG-17 – JVSM – Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx
(Ref. SEI-220008/001107/2020)
Direito Público. Direito Administrativo. Contratos de concessão de serviços públicos estaduais. Pandemia de COVID-19 (coronavírus). Emergência biossanitária mundial. Duração e impacto econômico imprevisíveis. Imprevisão e caso fortuito. Possível repartição dos prejuízos entre as partes. Afastamento de sanções administrativas e caducidade em razão de inexecução contratual. Necessidade de devido processo legal administrativo para averiguar, de modo específico, a configuração de nexo causal entre pandemia, e os impactos em cada contrato. Dever de negociação.
Ao Exmo. Subprocurador-Geral do Estado, Dr. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxx Xxxxx,
SUMÁRIO. 1. Relatório. 2. O cenário fático-normativo: a pandemia de COVID-19. 3. Algumas limitações da abordagem. 3.1. Limitação no tempo: não se sabe quando a pandemia se encerrará. 3.2. Limitação epistêmica: não se sabe quais efeitos nos contratos a pandemia acarretará. 4. O enquadramento jurídico da pandemia 4.1. A pandemia é fato do príncipe? 4.2. A pandemia é hipótese de quebra da base objetiva do contrato? 4.3. A pandemia é hipótese de incidência da teoria da imprevisão? 4.4. A pandemia é hipótese de caso fortuito ou de força maior? 5. Em direção às revisões pandêmicas. 5.1. Qual poderia ser uma compreensão contextual e realista de uma revisão pandêmica? 5.2. Qual poderia ser um conteúdo e um procedimento mínimo de um pedido de revisão pandêmica? 6. Síntese objetiva. 7. Encerramento.
1. Relatório
Trata-se de consulta encaminhada pelo Ilmo. Subprocurador-Geral do Estado, Dr. Xxxxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxx, indagando se a pandemia de COVID-19 constituiria “fonte e razão bastante á revisão de contrato de concessão”. No despacho de encaminhamento da consulta, o Subprocurador- Geral destaca que a “pandemia atingiu não só as empresas concessionárias, mas o Estado do Rio de Janeiro também, eis que exauriu parte considerável de seu orçamento”. O subprocurador geral ainda observa que a pandemia seria espécie de força maior, que atingiria de modo igual ambas as partes – Estado e concessionárias, “razão por que, numa análise preliminar e perfunctória, parece-me não caber a uma parte, tão somente, o direito à revisão, mas a ambas, extraordinariamente” (fl. 12).
A consulta se originou a partir de pleito formulado pela concessionária Supervia, em 14 de abril de 2020, proponho revisão extraordinária do contrato de concessão dos serviços de transporte ferroviário de passageiros no âmbito do estado do Rio de Janeiro. A concessionária motiva o pedido
de revisão com base em alegação de perda de demanda provocada pelo cenário de emergência e calamidade pública ocasionado pela pandemia do novo coronavírus.
A AGETRANSP, antecipando-se a prováveis pleitos semelhantes de outras concessionárias de transportes, elaborou consulta jurídica interna a respeito da “natureza jurídica dos impactos do COVID-19 sobre os contratos de infraestrutura de transportes, bem como a possibilidade de ser reconhecido direito à realização de revisão extraordinária de tais ajustes em virtude da superveniência desse evento” (fl. 1).
Em resposta, a Procuradoria Geral da AGETRANSP, no parecer nº 31/2020/AGETRANSP/PGA, concluiu que a pandemia de COVID-19 seria “evento imprevisível capaz de conferir direito à revisão extraordinária nos contratos de concessão em geral, tanto por meio da aplicação da denominada Teoria da Imprevisão quanto pela ocorrência de força maior, caracterizadora de álea extraordinária para fins de reequilíbrio dos contratos de concessão de infraestrutura, nos termos do art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/1993, aplicável supletivamente às concessões”. Por outro lado, sustentou que “o reconhecimento em abstrato da natureza de força maior a esse evento, por si só, não confere direito de reequilíbrio às concessionárias em geral, sendo imprescindível, em cada caso, a efetiva comprovação dos impactos econômicos sofridos por cada concessionária, bem como a análise da matriz de risco estabelecida pelas partes” (fls. 03/09).
Ato seguinte, o Xxxxxxxxxxx Presidente da AGETRANSP, acatando recomendação feita no parecer, encaminhou a consulta à PGE-RJ, já que a tese a ser eventualmente fixada poderia repercutir em outros contratos de concessão estaduais, para além, inclusive, dos regulados pela agência (fl. 10).
Assim, portanto, o escopo do presente parecer é o de (i) identificar os efeitos jurídicos da pandemia de COVID-19 sobre os contratos de concessão de serviços públicos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, com foco em (ii) saber se é caso de se promover a revisão extraordinária desses contratos.
Para tal fim, o roteiro a ser empreendido é o seguinte. Em primeiro lugar, identificar-se-á o cenário fático-normativo da pandemia de COVID-19: o que ela é e quais são as normas jurídicas que lhe são imediatamente aplicáveis. Depois, destacar-se-á algumas duas limitações da abordagem: limitação quanto ao tempo a ser considerado para a identificação de seus efeitos nos contratos e limitação quanto a quais efeitos ocorrerão e serão considerados relevantes. Então, ingressa-se na vexata quaestio do parecer – o enquadramento jurídico da pandemia. O percurso é tradicional: indagar-se-á se a ela se aplicam as teorias revisionais motivadas por seu enquadramento como fato do príncipe, ou por se tratar de hipótese de quebra da base objetiva do contrato, ou por incidir a teoria da imprevisão, ou, ainda, por se tratar de caso fortuito ou de força maior. O próximo tópico revisita, por vezes criticamente, algumas compreensões da literatura acerca da distribuição do ônus nas hipóteses de álea extraordinária, indicando-se possíveis delineamentos dos pedidos e procedimentos das revisões contratuais motivadas pela pandemia. Busca-se, ao longo do texto, compreensão contextual e realista. O trabalho se encerra com síntese objetiva, em parágrafos numerados, das principais conclusões a que se chegou ao longo do texto.
2. O Cenário Fático-Normativo: A Pandemia de COVID-19
A pandemia de COVID-19, doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), teve sua primeira manifestação na cidade de Wuhan, na China, e, em pouco tempo, propagou-se pelo mundo 1. A Organização Mundial da Saúde foi alertada da existência de surto de casos de pneumonia
1 Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Organização Pan Americana da Saúde
(OPAS), atual. em 23 jul. 2020.
<xxxxx://xxx.xxxx.xxxxxxxxxxxxx.xxx/?xxxxxxxxxx_xxxxxxx&xxxxxxxxxxxx&xxx00XX:xxxxx00&Xxxxxxx000>. Acesso em: 24 jul. 2020. Archived: WHO Timeline - COVID-19, World Health Organization, 27 apr. 2020. Disponível em:
de causa desconhecida em dezembro de 2019. No final de janeiro de 2020, a OMS reconheceu a doença como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional2 e, em março, reconheceu tratar-se de pandemia3.
O Brasil, atento à propagação da doença, promulgou, em 6 de fevereiro de 2020, a lei federal nº 13.979, reconhecendo a COVID-19 como “emergência de saúde pública de importância internacional”.
A partir das experiências de países que vivenciaram a pandemia antes do Brasil – especialmente, naquele momento, a Itália –, observou-se que a velocidade de propagação da COVID- 19 poderia colocar em xeque a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde4. Recomendou-se, com base em estudos das medidas mais eficazes para mitigar a propagação da doença, a restrição da circulação de pessoas5. No caso do estado do Rio de Janeiro, estudo da Fundação Xxxxxxx Xxxx chegou a recomendar a realização de lockdown, medida mais intensa de isolamento social6.
Com base nos estudos disponíveis e na experiência internacional, e diante do que se identificou como a rápida propagação do vírus no Brasil, diversos entes federativos adotaram medidas de contenção da circulação de pessoas7. Não se chegou a adotar o lockdown entre nós, mas se restringiu a circulação pessoas e se limitou o exercício de atividades econômicas8.
<xxxxx://xxx.xxx.xxxxxxxx-xxxx/xxxxxX/00-00-0000-xxx-xxxxxxxx---xxxxx- I9?gclid=EAlaIQobChMImqb8k83m6gIVxgWRChIAOwRsEAAYASAAEgJ3YID_BwE>. Acesso em: 24 jul. 2020.
2 “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) é considerada, nos termos do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), ‘um evento extraordinário que pode constituir um risco de saúde pública para outros países devido a disseminação internacional de doenças; e potencialmente requer uma resposta internacional coordenada e imediata’. É a sexta vez na história que uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional é declarada. As outras foram: 25 de abril de 2009 – pandemia de HINI; 5 de maio de 2014 – disseminação internacional de poliovírus; 8 agosto de 2014 – surto de Ebola na África Ocidental; 1 de fevereiro de 2016 – vírus zika e aumento de casos de microcefalia e outras malformações congênitas; 18 maio de 2018 – surto de ebola na República Democrática do Congo” (Grifou-se) Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), atual. em 23 jul. 2020. Visto em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxxxxxxxxxxxx.xxx/?xxxxxxxxxxxxxxxxx&xxxxxxxxxxxx&xxx00XX:xxxxx00&0xxxxxx000>. Acesso em:
24 jul. 2020. O Regulamento Sanitário Internacional pode ser acessado em:
<xxxxx://xxx.xxx.xxxxxxx/xxxxxxxxxxxx/0000000000000/xx/>.
3 O termo “pandemia” se refere à distribuição geográfica de uma doença, e não à sua gravidade. A designação reconhece que, no momento, existem surtos de COVID-19 em vários países e regiões do mundo. Cf.: Folha informativa – COVID- 19 (doença causada pelo novo coronavírus). Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), atual. em 23 jul. 2020. Visto em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxxxxxxxxxxxx.xxx/?xxxxxxxxxxxxxxxxx&xxxxxxxxxxxx&xxx0000:xxxxx00&0xxxxxx000>. Acesso em: 24 jul. 2020.
4 Em colapso: a dramática situação dos hospitais da Itália na crise do coronavírus. BBC, 19 mar. 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx-00000000/>. Acesso em: 21 jul. 2020.
5 Destaque-se estudo do Imperial College of London, que fez comparação estatística entre as estimativas de propagação da COVID-19 para cada estratégia de enfrentamento. V. XXXXXX, Xxxxxxx GT el. al. The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression. Imperial College COVID-19 Response Team. 26 mar. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxx/xxx/xxx/xxxxxxxxxxxxxxx/Xxxxxxxx-Xxxxxxx-XXXXX00- Global-Impact-26-03-2020.pdf >. Acesso em: 21 jul. 2020.
6 A Fundação Xxxxxxx Xxxx, em resposta à consulta do Ministério Público do Rio de Janeiro, recomendou “a adoção de medidas rígidas de distanciamento social e de ações de lockdown no estado do Rio de Janeiro, em particular na região metropolitana, visando à redução do ritmo de crescimento de casos e a preparação do sistema de saúde para o atendimento adequado e com qualidade às pessoas acometidas com as formas graves da COVID-19”. Cf. FIOCRUZ. A evolução da Covid-19 no estado do Rio de Janeiro: desafios no enfrentamento da crise sanitária e humanitária relacionada à pandemia. Rio de Janeiro, 06 mai. 2020, p. 1. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxxxxx.xx/xxxxxxx/xxxxx-00- fiocruz-alerta-para-urgencia-de-medidas-rigidas-de-isolamento-social>. Acesso em: 21 jul. 2020.
7 O Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341, identificou a competência concorrente dos entes federativos para o enfrentamento da pandemia de COVID-19.
8 Uma análise comparativa dos efeitos das políticas na propagação da pandemia entre os entes infra nacionais pode ser encontrada no estudo “Medidas Legais de Incentivo ao Distanciamento Social: comparação das políticas de Governos Estaduais e Prefeituras das capitais do Brasil”, de Xxxxxxx Xxxxxxxxxx xx Xxxxxx. Acessível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/00000/00000/0/XXXX_X00_ COVID%2019_Artigo%208.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2020.
Num curto período de tempo, práticas sociais tão antigas quanto o ser humano – festas ao ar livre, teatros – foram proibidas, novas práticas ameaçaram surgir (o cumprimento com os cotovelos), termos como “quarentena” e “média móvel” ingressaram no léxico, passamos a nos preocupar com respiradores (e juristas, resgatamos institutos semi-arcaicos9), obcecamo-nos com lives10, sobrecarregamos serviços de delivery11, e alguns até potencializaram o uso percussivo das panelas. A história – esse pesadelo do qual estamos tentando acordar – possuía um nome diferente. Era o novo normal.
Em termos normativos, o primeiro regulamento a reconhecer a “emergência de saúde pública de importância internacional” no Estado do Rio de Janeiro foi o decreto nº 46.966, de 11 de março de 2020. As primeiras medidas de suspensão e restrição de atividades econômicas com finalidade de reduzir aglomerações foram implementadas pelo decreto estadual nº 46.973 de 16 de março de 2020, em princípio limitadas a quinze dias. Posteriormente, outros decretos foram editados pelo Governador do Estado, tais como o decreto nº 46.980, de 19 de março de 2020, que atualizou o rol de atividades suspensas e prorrogou a suspensão por mais quinze dias; e o decreto nº 46.983, de 20 de março de 2020, que restringiu o funcionamento do transporte público (art. 1º). O mais recente, à época da redação deste parecer, é o decreto nº 47.176, de 21 de julho de 2020, que atualizou o rol de atividades suspensas e, novamente, prorrogou a suspensão por quinze dias (art. 5º)12.
A lei federal nº 13.979/2020, a Lei da Pandemia, limitou a duração da situação de emergência em saúde pública a ato do Ministro da Saúde, o qual não poderá estipular prazo superior ao declarado pela OMS (art. 1, §§2º e 3º13). Os decretos do estado do Rio são editados em atenção ao prazo estipulado na lei federal nº 13.979/2020. Veja-se que se trata de elemento a favor da conclusão de que a suspensão das atividades decorre antes de recomendação científica do que de exercício de discricionariedade administrativa, inclusive porque ignorar recomendações científicas, no entendimento do STF, pode implicar a prática de erro grosseiro do administrador público14.
Nesse ínterim, concessionárias de serviços públicos passaram a alegar que as medidas contenção da pandemia causaram desequilíbrio econômico-financeiro em seus contratos, formulando, em alguns casos, pleitos de revisão15. Só que, antes de se identificar a natureza jurídica da pandemia de COVID-19 para os efeitos dos contratos de concessão, é importante destacar duas limitações da abordagem a ser aqui empreendida, e que repercutem no que o Poder Público e concessionárias podem ou devem fazer a respeito. A elas.
9 A requisição administrativa é exemplo. O instituto, que andava desprestigiado no Direito Administrativo, voltou a ser invocado em função da pandemia. Cf. XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx de. Dez perguntas e respostas sobre requisição administrativa em tempos de COVID-19. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/00000000/Xxx-
_perguntas_e_respostas sobre requisi%C3%A7%C3%A3o_administrativa_em_tempos_de_COVID-19>. Acesso em: l ago. 2020.
10 LESKIN, Page. Instagram Live usage jumped 70% last month. A psychologist says it's because ‘people are not designed to be isolated.’ Business Insider. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxxx-00-xxxxxxx- increase-social-distancing-psychologist-explains.2020-4>. Acesso em: 21 jul 2020.
11 Serviço de delivery tem aumento de 400% devido à pandemia. Bandnews FM Rio. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx-xxxxxxxx/xxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxx-xxxxxxx-xx-000-xxxxxx>. Acesso em: 21 jul. 2020.
12 A relação completa dos decretos estaduais editados no contexto de enfrentamento da pandemia de COVID-19 no estado do Rio de Janeiro pode ser encontrada no sítio eletrônico da PGE-RJ. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xx.xxx.xx/xxxxx00/xxxxxxxx/xxxxxxxx>. Acesso em: 21 jul. 2020.
13 § 2º Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei. § 3° O prazo de que trata o § 2º deste artigo não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde.
14 No julgamento da ADI 4621, o Supremo conferiu interpretação conforme à MP 966/2020 para determinar que, na caracterização do que é erro grosseiro do administrador público, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades, de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas.
15 No caso que deu origem a esta consulta, tem-se a Supervia. Mas também a concessionária dos serviços metroviários no estado do Rio de Janeiro pretende formular pleito equivalente, do que pude ter notícia em reunião online de que participei em meados de julho.
3. Algumas Limitações da Abordagem
Há limitações na resolução de casos de que se ignora (i) sua duração no tempo e (ii) quais exatamente serão as consequências. Ambas as limitações se reconduzem a um mesmo problema – um problema de informação –, cuja mitigação aponta para soluções incompletas, difusas e experimentais16.
3.1. Limitação no Tempo: Não se Sabe Quando a Pandemia se Encerrará
Não se sabe quando a pandemia começou, mas, para efeitos gerais, a data possivelmente mais segura seria 11 de março de 2020, quando a OMS reconheceu a circunstância. Mas qual terá sido a data de início dos efeitos da propagação do vírus sobre os serviços públicos concedidos no estado do Rio de Janeiro? Pode ser necessário outro corte, que, como todo critério, será subinclusivo – deixará de fora o início de efeitos em setores relevantes – e sobreinclusivo (incluirá inícios que não deveria)17. Propõe-se preliminarmente, aqui, a data de 16 de março, início de vigência do primeiro decreto estadual18. O problema, no entanto, não é tanto o início da pandemia quanto seu encerramento, e, mais especificamente, o encerramento de seus efeitos sobre os contratos administrativos em curso. Explica-se.
As projeções da comunidade científica para a duração da pandemia de COVID-19 divergem profundamente. Um estudo realizado por pesquisadores de Harvard, publicado na revista Science, prevê que sua duração pode se estender por até cinco anos19. Outro estudo, realizado por pesquisadores da Center of Infectious Diseases Research and Policy, da Universidade de Minnesota, supõe que a pandemia deve durar dois anos20. Já estudo do Laboratório de Inovação de Dados da Universidade de Tecnologia e Design de Singapura estima que a pandemia, no Xxxxxx, xxxxxxxx-xx-x xx xxx 00 xx xxxxxxxx xx 000000. Em comum, todos eles consideram a probabilidade de surtos sazonais da doença, devido ao relaxamento de medidas de isolamento social, que podem ser seguidos a novos períodos de restituição das medidas.
É dizer: há profunda incerteza a respeito da data do fim da pandemia. E há fatores que tornam tal prognose ainda mais complicada, pois a data pode ser móvel conforme se adotem medidas de isolamento (as quais, por sua vez, podem variar no tempo); a data parece ser móvel não apenas em relação a países, mas também em relação a estados, regiões e microregiões (nos últimos tempos se verifica, por exemplo, interiorização da doença22); e há incógnita a respeito de recidivas da doença, em razão de possíveis mutações do vírus (no que seriam novas ondas de contaminação)23. No limite,
16 HA XXX, Xxxxxxxxx. The use of knowledge in society. In: The American Economic Review, vol. 35, no. 4. (set., 1945), pp. 519-530.
17 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Playing by the rules: a Philosophical Examination of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. Oxford: Clarendon Press. 1991, pp. 17 e ss.
18 Data mais precisa seria encontrada com estudo específico para cada contrato de delegação de serviço público estadual.
19 XXXXXXX, Xxxxxxx X. et al. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the postpandemic period,
Science, 22 May 2020, Val. 368, Issue 6493, pp. 860-868. Disponível em: <https:
//xxxxxxx.xxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/000/0000/000>. Acesso em: 24 jul. 2020.
20 XXXXX, Xxxxxxxx X. et al. COVlD-19: The CIDRAP Viewpoint Part I: The Future of the COVID-19 Pandemic: Lessons Learned from Pandemic Influenza, 30 abr. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx. edu/sites/default/files/public/downloads/cidrap-covid19-viewpoint-part1_0.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2020.
21 LUO, Jianxi. Predictive Monitoring of COVID- 19. Data-Driven Innovation Lab Singapore University of Technology and Design, updated on May 14, 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxx>. Acesso em: 01 ago 2020.
22 FIOCRUZ, Tendência de interiorização aumenta e pode gerar mais pressão sobre grandes centros. 5 Mai. 2020, disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxxxxx.xx/xxxxxxx/xxxxx-00-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxxxxxx-xxxxxxx-x-xxxx-xxxxx-xxxx- pressao-sobre-grandes-centros>. Acesso em: 1 ago. 2020.
23 XXXX, Xxxxxx. Covid-19: Risk of second wave is very real, say researchers. BMJ 2020; 369;2294, 9. Jun. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xxxxxxx/xxx/000/xxx.x0000.xxxx.xxx>. Acesso em: 1 ago. 2020.
o que parece mais seguro não é esperar o encerramento da pandemia por razões naturais – como o que ocorreu com a gripe espanhola24 –, mas em razão do uso massivo de uma vacina eficaz25.
Se a data de encerramento da pandemia é móvel entre regiões que adotam medidas administrativas diversas, estados e microrregiões, o fato é que os efeitos, por exemplo, sobre contratos de concessão de transportes, podem ser variados. Modos de transporte podem interligar regiões em que o status pandemicus seja diverso. Uma região antes ‘curada’ pode voltar a ter número significativo de casos. Qual data considerar para o dies ad quem daquelas revisões contratuais?
Por fim, observe-se que o fim da pandemia não é mesmo que o fim dos efeitos da pandemia sobre os contratos administrativos. Tais efeitos podem haver sido encerrados antes ou depois da data em que a pandemia haja se ultimado.
3.2. Limitação Epistêmica: Não se Sabe Quais Efeitos nos Contratos a Pandemia Acarretará
Não se sabe exatamente quais efeitos nos contratos de concessão a pandemia acarretará. Cogita-se de mudanças no espaço de trabalho, com a adoção definitiva do home office por empresas e órgãos públicos26. Com isso, é de se esperar que parte da demanda por transportes públicos desapareça. Os fluminenses precisarão utilizar trens, ônibus, metrô ou barcas nos níveis de antes? A própria eficiência impulsionada pela automatização – que, de resto, já estava em curso –, pode vir a demandar menos trabalho humano em diversos setores. Surge dado novo no consumo: o medo do contágio. O metrô pressupõe deslocamento em vagões fechados. Apesar de todas as medidas sanitárias, retomará a confiança do consumidor?
Até aqui, cogita-se de mudanças tendentes à redução da demanda. Contudo, contratos de longuíssimo prazo, como concessões de serviços públicos, só são tendentes ao pacta sunt servanda na cogitação de romanos antigos. Na prática, são contratos incompletos27, plenos de oportunidades de absorção de custos e eivados de oportunidades conexas. É possível supor que algumas concessionárias, em certos casos, consigam absorver parte dos desafios. Situações de dificuldade são, por vezes, propícias à criação de soluções. Fará sentido “reequilibrar” tais contratos?
***
Em resumo: não se sabe por quanto tempo a pandemia vai durar, se ela vai se encerrar por igual em toda a geografia do estado do Rio de Janeiro (e do Brasil), e quais os efeitos destrutivos e criativos ela operará junto às concessões estaduais. Em ambientes de incerteza crônica, as soluções devem ser incompletas – elas não podem pretender resolver definitivamente problemas –, difusas – elas estarão a cargo de todos os interessados: contratantes, concessionárias, reguladores técnicos, controladores e sociedade civil – e experimentais: desafios inéditos convidam a soluções inovadoras.
24 XXXXX, Xxxx X. The Great Influenza: the story behind the deadliest pandemic in history. Nova Iorque: Penguin Books, 2005.
25 Segundo relatório da OMS, há 26 vacinas em estágio de estudos clínicos e 139 em estágio pré-clínico. V. OMS, DRAFT landscape of COVID-19 candidate vaccines – 31 July 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx. xxx.xxx/xxxxxxxxxxxx/x/xxxx/xxxxx-xxxxxxxxx-xx-xxxxx-00-xxxxxxxxx-xxxxxxxx>. Acesso em: 1 ago. 2020.
26 É, por exemplo, o caso da Petrobras, que comunicou à Reuters e a seus empregados a respeito da extensão do regime de home office para metade de seu pessoal administrativo. V. XXXXX, Xxxxxxx e XXXXXXXX, Gram. Petrobras manterá metade do pessoal administrativo em home office permanente. Reuters. 17 jun. 2020. Disponível em: <https:
//xx.xxxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxXxxx/xxXXXXX00X0X0-XXXXX>. Acesso em: 1º ago. 2020. No Governo Federal, havia, até o início de julho, mais de 350.000 servidores públicos trabalhando em regime remoto, segundo levantamento feito pelo Ministério da Economia (81 mil apenas neste Ministério). V. Governo Federal. Balanço do Ministério da Economia registra cerca de 81 mil servidores em trabalho remoto. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxx.xx/xx-xx/xxxxxxxx/xxxxxxxx- impostos-e-gestao-publica/2020/07/balanco-do-ministerio-da-economia-registra-quase-81-mil-servidores-em-trabalho- remoto/working-from-her-home-office-ptsfx79.jpg/view>. Acesso em: 1 ago. 2020.
27 XXXXXXX, Xxxxxx. Contratos Incompletos e Infraestrutura: Contratos Administrativos, Concessões de Serviço Público e PPPs. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE. n. 19, jun. 2020, Salvador. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx.xxx?xxxx000>. Acesso em: 1 ago. 2020.
Imaginar que uma revisão contratual, no meio da maior pandemia da história, resuma-se ao deferimento monológico de um pleito com base num amontoado de planilhas, é dar razão à ironia de Xxxxx Xxxxxxx, para quem, para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante, e completamente errada.
4. O Enquadramento Jurídico da Pandemia
Antes de tudo, um intermezzo doloroso: qual é a natureza jurídica das ‘naturezas jurídicas’? Há, sobre elas, certo uso preciosista, como quando, na prova oral de concurso público, o examinador indaga sobre a natureza jurídica do peixe. O Direito é uma ciência social aplicada. Distinções e conteúdos se justificam especialmente em razão de sua utilidade28. Mas saber a natureza jurídica de algo pode ser útil: enquadrando instituto dentro de categorias prévias, ou associando-o a institutos análogos, identifica-se-lhe os efeitos e apressa-se seu tratamento. Opera-se o que Xxxxx chama de função redutora do encargo argumentativo29. Nem toda natureza jurídica é uma natureza morta30.
Cumpre, então, realizar esclarecimentos sobre algumas das várias teorias que tratam das revisões de contratos, antes de pretender enquadrar a pandemia dentro de uma.
A base de todas é a cláusula rebus sic standibus, obra dos glosadores medievais, supostamente implícita em todos os contratos públicos ou privados. Por ela, o cumprimento das obrigações contratadas estaria condicionado à manutenção das circunstâncias do momento da celebração do contrato.
Com a Idade Moderna e seu pressuposto de valorização do indivíduo, valoriza-se, et pour cause, a autonomia da vontade, com o que a cláusula caiu em declínio. A ideia de revisão ou resolução como ferramentas aptas a contornar desequilíbrios contratuais só ressurge a partir da Primeira Guerra. A cláusula rebus sic standibus foi recuperada, ainda que sob outros nomes, contornos e requisitos.
Teorias revisionais há muitas, no Brasil e no estrangeiro. Entre nós, as mais importantes são a teoria da imprevisão (art. 317 c/c 478 a 480 do Código Civil e art. 65, II, d, da lei nº 8.666/93), a teoria da base objetiva do negócio jurídico (art. 6, V, do Código de Defesa do Consumidor)31, a revisão motivada no fato do príncipe e a que decorre de caso fortuito ou de força maior32.
28 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Distinguendo: xxxxxxxx xx xxxxxx x xxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxx. Xxxxxxxxx: Editorial Xxxxxx, 0000.
29 Cf. XXXXX, Xxxxxx. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 254 (o destaque gráfico consta do texto original): “É possível à justificação dogmática adotar, ao menos provisoriamente, itens que foram previamente examinados e aceitos. Isso reduz o encargo do processo justificativo, a ponto de, na ausência de alguns motivos especiais, novo exame ser desnecessário. Podemos ser isentos de discutir de novo toda a questão de valor em cada caso. Essa função redutora de encargo não só é indispensável para o trabalho do tribunal que ocorra sob limites de tempo, mas também de importância para a discussão jurídica cientifica. Também nessa esfera – como em todas as esferas – é impossível discutir tudo de novo em todos os casos.” A função de descarga da dogmática jurídica é, muito simplesmente, aquela graças à qual, segundo Xxxxxx Xxxxxxx, “não se precisa discutir tudo a cada vez”. V. XXXXXXX, Xxxxxx. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Ainda,
v. XXXXX, Xxxxxxxx. Teoria dos Principias: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4º ed. São Paulo: Malheiros, 2005. pp. 56-57
30 Um exemplo de natureza jurídica útil pode ser encontrando em: MENDONÇA, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx de. Qual a natureza jurídica dos sandeboxes regulatórios? Acessível em: xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xx/xx- content/uploads/2020/03/030320_Jose_Vicente_JOTA.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020.
31 Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, com base nos estudos de Xxxxxx Xxxx xx Xxxxxxxx, sistematizou as diversas teorias revisionais, a maioria das quais desimportante para este parecer: “Tão numerosos foram os fundamentos aduzidos ou privilegiados pelas concepções dos diversos teóricos do Direito a fim de lastrear dita revisibilidade que, entre nós, Xxxxxx Xxxx xx Xxxxxxxx encontrou campo para, em interessante esforço de arrolamento e sistematização, colecionar e ordenar as orientações encontradas, agrupando-as em teorias intrínsecas e extrínsecas. Dentre as primeiras apartou, de um lado, as embasadas (a) na vontade, e, de outro, (b) na prestação. Indicou como compreendidas nas teorias arrimadas na vontade:
(1) a teoria da pressuposição (Windscheid); (2) a teoria da vontade marginal (Osti); (3) a teoria da base do negócio (Xxxxxxxx); (4) a xxxxxx xx xxxx (Xxxxxxx); (0) x xxxxxx xx xxxxxxxx xxxxxxxxxxxxxx (Xxxxxx); e (6) a teoria do dever de
Em comum entre todas estão certos requisitos: (a) o evento que as motiva deve ser superveniente à celebração de contrato cuja duração se protraia no tempo; (b) ele deve ser externo ao contrato; (c) ele deve ser tal que venha a perturbar intensamente o equilíbrio contratual, não podendo se tratar de desequilíbrio de fácil solução33. Além disso, (d) é preciso evidenciar o nexo de causalidade entre o evento e o desequilíbrio34.
Mas há, é claro, aspectos particulares a cada teoria. A eles – e ao caso.
4.1. A Pandemia é Fato do Príncipe?
No fato do príncipe, o fato externo ao contrato é ato da Poder Público. Na lição clássica do Direito Administrativo, o fato do príncipe é uma das áleas administrativas, ao lado da alteração unilateral do contrato e do fato da administração35. Ele implica o dever de reparação do prejuízo por parte da administração, fundamentado, por vezes, no artigo 37, XXI da CRFB-88, e, por vezes, no art. 37, §6° (responsabilidade civil objetiva do estado por atos lícitos)36.
Pois bem: os possíveis desequilíbrios contratuais afetando concessões estaduais decorrem de ato atribuível à administração do estado do Rio de Janeiro? Por um lado, diversas atividades econômicas, incluindo concessões, foram paralisadas temporariamente e/ou tiveram sua operação limitada por regulamentos. De forma indireta, a limitação de funcionamento de outras atividades econômicas – comércio de rua, bares, restaurantes, cinemas –, reduziram a demanda. Por outro lado, a crise biossanitária originada pela pandemia de COVID-19, evento externo à vontade da administração pública, ao qual ela não deu causa nem tinha como evitar, foi a razão desses regulamentos, que atendiam a recomendações da comunidade científica.
esforço (Xxxxxxxx). Apontou como estribas no exame da prestação: (1) a teoria do estado de necessidade (Xxxxxx e Xxxxxxxx); e (2) a teoria do equilíbrio das prestações (Xxxxxxx e Xxxxx). Já as teorias extrinsecas compreenderiam aquelas cujo fundamento reside: (1) na Moral (Xxxxxx e Xxxxxx); (2) na boa-fé (Xxxxx e Klenke); (3) na extensibilidade do fortuito Gurisprudências alemã, inglesa e francesa); (4) na socialização do Direito (BadenesGasset); e (5) na equididade e na justiça (Xxxxxx Xxxxxxxx da Fonseca).” XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Grandes temas de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 203.
32 Embora haja debates acerca da diferença entre caso fortuito e força maior, eles serão tratados como sinônimos, já que seu efeito jurídico, entre nós, é o mesmo.
33 Há certa controvérsia sobre se é exigível a onerosidade excessiva para configuração de fato do príncipe, ou se bastaria o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Sobre o tema, ver XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Estudos sobre o Regime Econômico-Financeiro de Contratos de Concessão, 1ª ed., Lendon: Laccademia Publishing, 2020, pp. 170-172. No caso da teoria da imprevisão, embora a redação do art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/93, não preveja expressamente o requisito da onerosidade excessiva, é pacífico nos tribunais que não se trata de qualquer desequilíbrio contratual, mas daquele cuja intensidade ultrapassa as variações normais de mercado. Do contrário, estar-se-ia incentivando a apresentação de propostas inexequíveis. Cf.: STF, Ag. Reg. em MS nº 35.196/DF, Min. Rel. Xxxx Xxx, Primeira Turma, j. 12/11/2019, pp. 05-06; STJ, REsp nº 1.129.738/SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, Segunda Turma, DJe 21.10.2010; TCU, Xxxxxxx 1604/201, Plenário, Rel. Xxxxxxx Xxxxxx, Data da Sessão 01/07/2015; TCU, Acórdão nº 7181/2018, Segunda Câmara, Rel. Xxxxxx Xxxxxx, Data da Sessão, 07/08/2018; TCU, Xxxxxxx 1431/2017, Plenário, Rel. Vital Do Rêgo, Data da Sessão: 05/07/2017; TCU, Xxxxxxx 3495/2012, Xxxxxxxx, Rel. Xxxxxx Xxxxxx, Data da sessão 10/12/2012; TCU, Acórdão nº 763/1994. Relator: Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx. Data da sessão: 13.12.1994; TJRJ, Embargos Infringentes nº 0204999-92.2009.8.19.0001, 21ª CC, Rel. Des. Xxxxxx Xxxx Xxxxxxx, x. 30/10/2008.
34 RE 71.443/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, j. 15/06/1973, DJ 28/09/1973; REsp l.798 .728/DF, Segunda Turma, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxxx, x. 28/03/2019; TCU, Acórdão nº 1446/2018, Plenário, Rel. Xxxxx Xxxxxx, data da sessão 26/06/2018; TCU, Xxxxxxx 3495/2012, Xxxxxxxx, Rel. Xxxxxx Xxxxxx, Data da sessão 10/12/2012; TJRJ, Apelação nº: 0046124-14.2015.8.19.0001, 26º CC, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, j. 12/02/2020.
35 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, [e-book], pp. 632- 636.
36 Há divergência, na literatura jurídica francesa, quanto a se fundamento do fato do príncipe é o equilíbrio econômico- financeiro do contrato, gerando direito à revisão, ou se é a responsabilidade civil extracontratual, gerando dever de indenização extracontratual. No Brasil, o entendimento majoritário é o de que ele se funda no equilíbrio econômico- financeiro. V. SANTOS, Leonardo Antonacci Barone. Fato do Príncipe e Teoria da Imprevisão entre o Brasil e a França. Revista de Direito da Administração Pública, a. 4, v. 1, n. I, jan/jun, 2019, p. 57-86. Por outro lado, o STF já fundamentou com base na responsabilidade extracontratual: RE nº 571.969-DF, Tribunal Pleno, Min. Rel. Xxxxxx Xxxxx, x. 12/03/2014, DJe 18/09/2014.
Mesmo que não houvessem sido editados, haveria, em razão da pandemia, queda na circulação de pessoas e crise econômica, seja em consequência do cenário macroeconômico, seja por medo da doença associado ao medo de (não) ser atendido num sistema de saúde potencialmente em colapso37.
Embora a problemática não se resuma a esta resposta, fato é que, embora a causa aparente da possível alteração do equilíbrio dos contratos de concessão sejam os regulamentos do poder público, a causa sine qua non dos possíveis desequilíbrios é a crise biossanitária internacional. Os regulamentos sequer teriam sido editados se não fosse a pandemia. A hipótese não é de revisão contratual motivada por fato do príncipe.
4.2. A Pandemia é Hipótese de Quebra da Base Objetiva do Contrato?
A teoria da base objetiva do negócio jurídico, desenvolvida especialmente por Xxxx Xxxxxx, suscita a revisão contratual quando há alteração superveniente das circunstâncias objetivas de sua celebração38. Ela não exige nem imprevisibilidade nem extraordinariedade das circunstâncias, bastando desequilíbrio superveniente do contrato, causador de onerosidade excessiva a uma das partes.
A teoria da base objetiva do negócio só parece haver sido adotada expressamente pelo Código de Defesa do Consumidor. Para os contratos administrativos e para contratos privados que não os de consumo, o legislador não o fez; adotou, no lugar, a teoria da imprevisão39 (v. abaixo). Ao contrário do que ocorre com a redação do Código Civil (arts. 317 c/c 478 a 480) e da lei nº 8.666/1993 (art. 65, II, d), o artigo 6°, V, do CDC não contém nem o vocábulo “imprevisíveis” nem se refere à extraordinariedade do evento ou da álea superveniente40.
Há razão para tanto: a teoria da base objetiva do negócio jurídico é muito interventiva na autonomia da vontade. Daí incidir nas relações de consumo, caracterizadas por suposta hipossuficiência do consumidor. O mesmo não vale para os contratos regidos pelo Código Civil, em que tal presunção ordinariamente não se faz41, tampouco para os contratos administrativos, em que, de um lado, está a administração pública, com todo um regime de exorbitâncias legais, e, de outro, sociedades empresárias dotadas de expertise técnica e em geral informadas quanto aos riscos de se contratar com o Poder Público. Um jogo de hiperssuficientes.
Mas, ainda que a teoria da base objetiva abrangesse contratos públicos, a verdade é que não houve alteração na base do negócio. A noção é mais específica a cada contrato e ao próprio negócio do que a uma situação sanitária mundial.
A hipótese não parece, assim, ser caso de quebra da base objetiva do contrato.
4.3. A Pandemia é Hipótese de Incidência da Teoria da Imprevisão?
37 O ponto foi anotado, também, no parecer CJ/ARTESP n. 552/2020, da PGE-SP.
38 A teoria da base objetiva do negócio jurídico não se confunde com sua precursora, a teoria da base subjetiva do negócio jurídico, desenvolvida por Xxxx Xxxxxxxx. A diferença é que a quebra da base subjetiva depende da frustração das expectativas de uma das partes que fosse de conhecimento da outra, ao passo que a base objetiva independe da aferição das expectativas das partes, bastando a alteração superveniente das circunstâncias fáticas que motivaram a celebração do contrato. Cf. XXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 34-36.
39 Há quem defenda que o Código Civil na verdade adotou a teoria da onerosidade excessiva de Xxxxxxxx Xxxx, uma variante da teoria da imprevisão. Os requisitos de ambas são, contudo, muito próximos.
40 Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: (...) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. (Grifou-se.)
41 XXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 58.
No caso da teoria da imprevisão42, exige-se que o evento externo seja imprevisível (ou previsível, mas de consequências incalculáveis)43 e extraordinário44, isto é, que seja álea econômica extraordinária. Considera-se previsível o que as partes indicaram expressamente no contrato ou que deveriam haver razoavelmente previsto45. Trata-se de conceito de exclusão, que deixa de fora os riscos normais do negócio (álea econômica ordinária)46, porque seriam previsíveis, e aqueles riscos que, embora extraordinários, tornaram-se previsíveis em razão de as partes os terem alocado nominalmente no contrato (álea convencional ou matriz de riscos47)48.
A consequência que se afirma, no que seria a teoria das áleas, seria a assunção de toda e qualquer álea extraordinária pela administração pública49, ao menos na ausência de disposição legal em sentido diverso (haveria tal disposição, por exemplo, no caso das concessões regidas pela lei federal das PPPs, em que se impõe “repartição objetiva de riscos entre as partes”50).
A hipótese em análise guarda proximidade, em abstrato, com a da incidência da teoria da imprevisão. A pandemia do COVID-19 não teria como ser razoavelmente prevista pelas partes em seus contratos, e é evento extraordinário. Daí não decorreria, caso se configure tais hipóteses nos casos concretos, que a álea econômica extraordinária deva ser integralmente alocada ao Poder Público (v. discussão ao longo do parecer).
4.4. A Pandemia é Hipótese de Caso Fortuito ou de Força Maior?
42 A teoria da imprevisão pode ser definida da seguinte forma: “Álea Econômica (Teoria da Imprevisão): é todo acontecimento externo ao contrato, estranho à vontade das partes, imprevisível e inevitável, que causa um desequilíbrio considerável, tornando a execução do contrato excessivamente onerosa para uma das partes”. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. A Evolução da Proteção do Equilíbrio Econômico-Financeiro nas Concessões de Serviços Públicos e nas PPPs. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 263, p. 35-66, maio 2013, p. 44. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx000000/0000>. Acesso em: 22 Jul. 2020.
43 A expressão “previsível, mas de consequências incalculáveis”, empregada art. 65, II , d, da lei nº 8.666/93, significa que a imprevisibilidade não se restringe apenas aos fatos em si, mas às proporções que tomam quanto a seus efeitos, duração e intensidade. Exemplo emblemático foi a inflação nos anos 80. A inflação já havia se tornado fenômeno tão corriqueiro que não era mais imprevisível nem extraordinária, porém suas consequências contratuais restavam incalculáveis. V. STJ, REsp nº 46.532, 4º Turma, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx, x. 05/05/2005; TJRJ, AI 1999.002.02041, 15ª CC, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxxx, x. 26/05/ 1999.
44 A exigência destes dois requisitos é o que distingue a teoria da imprevisão da teoria da base objetiva do contrato. Mas, em ambas as noções, há onerosidade excessiva superveniente para uma das partes.
45 A aferição do que é legitimamente antecipável (i.e., do que deveria ter sido previsto no contrato) depende da análise, em concreto, das circunstâncias de cada negócio jurídico, como “o conjunto de informações disponíveis às partes no momento da contratação, as características do ramo de atividade no qual a prestação devida se encontra inserida, bem como a natureza do objeto do contrato”. XXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 63.
46 “A álea ordinária ou empresarial, presente em qualquer tipo de negócio, não pode, de acordo com os paradigmas da doutrina clássica, ensejar uma proteção especial para a concessionária: as circunstâncias previsíveis; as imprevisíveis, mas de resultados contornáveis ou de pequenos reflexos econômicos, devem ser suportadas pelo contratado”. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. A Evolução da Proteção do Equilíbrio Econômico-Financeiro nas Concessões de Serviços Públicos e nas PPPs. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 263, p. 35-66, maio 2013, p. 42. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00000/0000>. Acesso em: 22 Jul. 2020.
47 Segundo o art. 42, X, da lei nº 13.303/2016, matriz de riscos é a “cláusula contratual definidora de riscos e responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações: a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato, impactantes no equilíbrio econômico-financeiro da avença, e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo quando de sua ocorrência”.
48 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx de. Uma releitura do equilíbrio econômico-financeiro nas concessões de serviços públicos. 2018. 240 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2018. p. 149.
49 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 387: “No Brasil, todos os eventos aptos a produzir efeitos nocivos à configuração contratual original estão compreendidos na teoria da intangibilidade da equação econômico-financeira, com consequências jurídicas equivalentes.”.
50 Lei n. 11.079/04, art. 4º: Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: (...) VI – repartição objetiva de riscos entre as partes.
Algumas palavras acerca do caso fortuito ou de força maior, aqui tomados por sinônimos. A hipótese de caso de força maior é por vezes empregada como sinônimo de teoria da imprevisão, mas, em rigor, dela difere porque a imprevisão diz respeito a prestação contratual cujo cumprimento ainda é possível, mesmo que excessivamente onerosa a uma das partes, ao passo que a força maior diz respeito a prestação cujo cumprimento se tornou impossível. A resposta à força maior é, tradicionalmente, a terminação do contrato51-52. Enquanto a teoria da imprevisão pretende reequilibrar o contrato, a força maior busca afastar os efeitos do inadimplemento (e.g. sanções administrativas, caducidade).
A força maior é o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (art. 393, par. único, Código Civil). É possível que a pandemia do coronavírus possa vir a se amoldar, para alguns a interpretação de alguns contratos, na definição.
***
A pandemia de COVID-19 se encaixa, abstratamente, nos requisitos tanto da teoria da imprevisão quanto na hipótese de força maior. É evento imprevisível e extraordinário. É superveniente aos contratos concessionais. Mesmo no caso de contratos celebrados após seu estopim, em fevereiro ou março de 2020, embora o evento em si tenha se tornado previsível, suas consequências, por ora, são incalculáveis (v. tópico 3.2), considerando-se, ainda, que não se sabe por quanto tempo irá durar (v. tópico 3.1).
Uma primeira conclusão é a de que parece possível aplicar aos contratos de concessão afetados pela pandemia de COVID-19, conforme o caso, a teoria da imprevisão – a fim de os reequilibrar –, e os efeitos do reconhecimento da ocorrência de evento de força maior, a fim de lhes afastar os efeitos do inadimplemento (e.g. sanções administrativas, caducidade). Há importante observação, a ser desenvolvida no tópico a seguir, que é a de que a alocação dos prejuízos em função do reconhecimento da imprevisão poderá não vir a recair inteiramente sob a administração pública.
5. Em Direção às Revisões Pandêmicas
O conhecimento convencional do Direito Administrativo brasileiro afirma o seguinte:
(i) Há uma norma constitucional do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, cuja fonte está na expressão “garantidas as condições efetivas da proposta” (art. 37, XXI, CRFB-88), ou, genericamente, na garantia ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CRFB-88);
(ii) A garantia do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos pressupõe, no caso de alterações supervenientes que causem desequilíbrio contratual, o retorno á correlação econômico-financeira entre encargos privados e contraprestação pública do momento da apresentação da proposta, pelo particular, na licitação que deu origem á sua contratação;
(iii) A correlação é imóvel ao longo da execução do contrato; alterá-la violaria as condições de isonomia entre todos os licitantes presentes na licitação;
51 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. La théorie de l'imprévision dans les contrats de concession de service public: une approche comparée entre la France et le Brésil. Master de Drait public approfondi, 2018, Université Paris II, 2019.
52 Nem sempre, contudo, o caso fortuito ou força maior precisará levar à resolução do contrato. Impossibilidades transitórias podem levar à suspensão do contato, com devolução do prazo de execução (v. enunciado n. 191 da Súmula do TCU e, no âmbito da PGE, parecer nº 103/2019-FAG/PG-17).
(iv) Aplica-se, aos contratos administrativos, a teoria das áleas, em que a álea ordinária – o risco normal do negócio – incumbe ao particular, e as áleas extraordinárias, sejam administrativas (alteração unilateral do contrato administrativo, descumprimento do contrato pelo poder público e fato do príncipe) ou econômicas (teoria da imprevisão e caso fortuito ou força maior), ficam integralmente a cargo da administração pública;
(v) A razão pela qual a administração pública assume todo o risco extraordinário das contratações (ao contrário de como é feito na França, país em que se elaborou a teoria da imprevisão, e em que se aplica divisão mais equitativa da álea econômica extraordinária entre as partes) é que, aqui, (a) tal assunção se faz como contrapartida às garantias exorbitantes do Poder Público e a seu nível de ingerência na execução contratual, ou (b) porque a instabilidade, entre nós, “possui foros de normalidade”, de modo que se justificaria seu uso mais largo;
(vi) Um fundamento normativo possível para a teoria das áleas é a referência, feita pelo art. 2º, II, da lei n. 8.987/95, a que o desempenho da atividade concedida ocorrerá “por conta e risco” do contratado; deve-se ler “por conta e risco” do particular como “por conta e risco ordinário do negócio”, no que se impõe que o risco extraordinário seja assumido pelo Poder Público;
(vii) Apesar da afirmação legal de que, nas concessões regidas pela nº 8.987/95, a execução se dará por “conta e risco” do particular, é comum que parte do risco ordinário do negócio seja assumido pelo Poder Público, o que não ilegal, e, talvez, seja mesmo desejável;
(viii) A norma constitucional do equilíbrio econômico-financeiro aplicável aos contratos administrativos encontra homólogo funcional no princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos privados, mas a solução, que, no Direito privado, socorre-se de argumentos como a solidariedade social e a isonomia substancial para vincular alguma divisão dos riscos entre as partes, aqui, no Direito público, carreira a assunção de todo o risco de excepcionalidades econômicas do contrato ao poder público, também como contrapartida às garantias exorbitantes da administração pública;
(ix) Não se aplica a referida divisão de riscos nos casos em que a lei expressamente a excepciona, como o faz no caso das PPPs federais (em que há ‘divisão objetiva de riscos’); nesses casos, não há excepcionalidade que ultrapasse a divisão do contrato;
(x) Argumentos que discrepam dos itens (i) a (ix) pressupõem uma violação às condições de isonomia da licitação (na medida em que a precificação do risco, pelos particulares, poderia ter sido outra), tendem a gerar propostas licitatórias pouco sérias, afastam os melhores licitantes (numa ‘seleção adversa’ em que só sobram os piores), e, no geral, encarecem as contratações públicas;
O conhecimento convencional expressa o acquis epistêmico de diversas gerações de práticos e teóricos. No Direito, prática social conservadora por excelência, – no Direito Administrativo, disciplina constituída antes na jurisprudência e na literatura do que na legislação, convém se aproximar das tradições de modo crítico. É o que se pretende fazer, na análise de cada afirmação (que será repetida para fins de clareza). Confira-se.
(i) Há uma norma constitucional do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, cuja fonte está na expressão “garantidas as condições efetivas da proposta” (art. 37, XXI, CRFB-88), ou, genericamente, lia garantia ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CRFB- 88).
Essa talvez seja a afirmação mais fundacional de todas. É amplamente repetida nos manuais53. Recente pesquisa de Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx mostra, contudo, que não há bases para compreender “garantidas as condições efetivas da proposta” como significando a constitucionalização do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos.
Durante o processo de edição da Constituição de 1988 houve diversas propostas de emenda tentando inserir, na redação do que hoje é o artigo 175, a proteção ao equilíbrio econômico- financeiro. Todas rejeitadas. Buscou-se, no mínimo, delegar a matéria ao legislador ordinário. Isso se reflete na redação do parágrafo único, inciso III, que afirma que a política tarifária deverá ser fixada por lei54.
Em verdade, ainda segundo o pesquisador, a intenção do constituinte com a expressão “mantidas as condições efetivas da proposta” era a de moralizar as contratações públicas, garantindo que a administração seria adimplente quanto ao pagamento. Mantidas as condições efetivas da proposta significa que a administração deverá cumprir o contrato. É, dito de outra forma, a consagração do pacta sunt servanda55.
E mais: ainda que se pudesse extrair do art. 37, XXI, uma norma de garantia das condições iniciais da contratação, a previsão não se aplica aos contratos de delegação de serviços públicos, mas só aos contratos administrativos comuns, os de obras e serviços, regidos pela lei nº 8.666/93. É que a redação do art. 37, XXI pressupõe pagamento pela administração pública, ao passo que, nos contratos concessionais, o pagamento, em regra, é feito pelos próprios usuários dos serviços. Não é à toa que a redação do art. 37, XXI não faz referência a “concessões” ou “permissões”, haja vista que tais espécies contratuais são reguladas pelo art. 175, cujo inciso terceiro do parágrafo único, como se observou, delega a definição da forma de reequilíbrio (política tarifária) à lei56.
Também não parece adequado fundar um direito constitucional ao equilíbrio econômico- financeiro no direito de propriedade, porque, a par da generalidade da afirmação57, se assim fosse, só tutelaria os reequilíbrios em favor do particular, mas não aqueles em favor da administração pública
– o que é amplamente reconhecido58.
53 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de Direito Administrativo, 32ª ed., 2015, São Paulo: Malheiros, pp. 765- 766. XXXXX, Xxxxxxxxx. Manual de Direito Administrativo. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2016, E-book s/p; XXXXXXXX XXXXX, Xxxx xxx Xxxxxx. Manual de Direito Administrativo. 31ª ed., São Paulo: Atlas, 2017, E-book s/p.; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito Administrativo Brasileiro. 42ª ed., São Paulo: Malheiros, 2016, p. 244. FIGUEIREDO, Xxxxx Xxxxx, A equação econômico-financeira do contrato de concessão: aspectos pontuais, REDAE, n. 07, 2006., pp. 7 e 8.
54 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Estudos sobre o Regime Econômico-Financeiro de Contratos de Concessão, 1ª ed., London: Laccademia Publishing, 2020, p. 92 e p. 95-96.
55 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Estudos sobre o Regime Econômico-Financeiro de Contratos de Concessão, lª ed., London: Laccademia Publishing, 2020, p. 101 e ss e p. 129 e ss. Ainda: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx de. Uma releitura do equilíbrio econômico-financeiro nas concessões de serviços públicos. 2018. 240 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2018. p. 54 e ss.
56 Aqui, também DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Parcerias na Administração Pública, 10' ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 109.
57 É dizer: a Constituição de 1988 afirma genericamente uma “garantia do direito de propriedade” (art. 5º, XXII), do que não se extrai regra especifica de correlação econômico-financeira entre encargos privados e contraprestação pública do momento exato da apresentação da proposta, pelo particular, na licitação que deu origem à sua contratação.
58 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 603.
Conclusão: a afirmação de uma base constitucional para o equilíbrio econômico-financeiro no art. 37, XXI, ou no direito de propriedade, só é verdadeira em sentido descritivo-sociológico (significando que a tese vem sendo afirmada em manuais e adotada em muitos julgados), mas não corresponde nem ao sentido histórico nem a seu conteúdo textual mínimo.
(ii) A garantia do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos pressupõe, no caso de alterações supervenientes que causem desequilíbrio contratual, o retorno à correlação econômico- financeira entre encargos privados e contraprestação pública do momento da apresentação da proposta, pelo particular, na licitação que deu origem à sua contratação.
(iii) A correlação é imóvel ao longo da execução do contrato; alterá-la violaria as condições de isonomia presentes na licitação.
Aqui, tem-se a vindicação de fórmula para o equilíbrio econômico-financeiro: uma fórmula relacional de igualdade, em que o momento no qual o particular apresenta ao Poder Público sua proposta na licitação será crucial. Nesse momento, vai-se identificar a relação econômico-financeira entre encargos privados e contraprestação pública. Eles serão fotografados, e aquela relação, naquele momento mágico – tal como na literatura para mocinhas casadoiras vendida em banca de jornal – deverá durar até o fim.
Será que nossa história constitucional acolhe tanto romantismo? Ainda em seu estudo das constituições anteriores, Xxxxxxx Xxxxxxxx verificou que, de longa data, há um debate entre duas estratégias de equilíbrio para as concessões de serviços públicos: o modelo francês do “equilíbrio econômico-financeiro”, próximo ao nosso, ainda que temperado pela teoria da imprevisão (teoria que, lá, admite a divisão dos prejuízos decorrentes da álea econômica extraordinária entre as partes), e o modelo americano, da “justa remuneração” (fair return ou fair remuneration), em que o equilíbrio do contrato é aferido de forma dinâmica, a partir de condições de mercado (e.g. razoabilidade de preços, aderência a custos do serviço), e orientado à lógica da prestação de "serviço adequado". As constituições de 1934, 1937, 1946, ao invés de adotarem o modelo francês, teriam optado pelo modelo americano. Mesmo a Constituição de 1967, que previu o equilíbrio econômico- financeiro, fê-lo em conjunto com a justa remuneração. Já a Constituição de 1988, como se viu, optou por delegar a questão ao legislador ordinário59.
Pois o fato é que a Constituição de 1988, que não garante o equilíbrio econômico-financeiro das concessões no art. 37, XXI, naturalmente tampouco traz qualquer fórmula para o orientar60. Na legislação infraconstitucional também não há critérios inteiramente precisos. A lei das concessões fala que o contrato correrá “por conta e risco” do contratado, e o restante é teoria das áleas (v. abaixo). Quem mais se aproxima de definir algo é a lei nº 8.666/93, que observa, em seu art. 65, II, d, que as partes podem conjuntamente alterar o contrato, para (destaques acrescentados):
(...) restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do
59 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Estudos sobre o Regime Econômico-Financeiro de Contratos de Concessão, 1ª ed., London: Laccademia Publishing, 2020, pp. 55- 112.
60 “(...) a Constituição não traz qualquer referência normativa para disciplinar a divisão dos riscos e dos ônus contratuais do negócio de concessão de serviços públicos.” XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. A divisão de riscos e o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão de serviço público no Estado Regulador. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 67,2013, p. 218-249, aqui, p. 225.
equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
Vê-se que a lei n. 8.666/93 sinaliza coisas diversas. Ela fala em relação que as partes combinaram, no início, entre os encargos do contratado e o pagamento da administração, mas também fala em “justa remuneração” da obra, serviço ou fornecimento. Qual terá sido a estratégia de equilíbrio adotada pelo legislador infraconstitucional? O equilíbrio-econômico francês? A “justa remuneração” americana? Ou terá, sincreticamente – tão ao nosso gosto –, optado por compromisso dilatório61, deixando a estratégia específica a cargo de cada contrato, e, eventualmente, renegociações futuras? Por esse raciocínio, o acordo para manter o “equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato” significaria tão-só “manter a saúde inicial do contrato”, sem que isso implique voltar ao passado. O reequilíbrio deveria buscar o equilíbrio do contrato – que havia no início e que se perdeu – ao mesmo tempo em que se garanta justa remuneração ao particular. Uma relação mais livre, sem ilusões de primeiros momentos.
Há detalhe a respeito da ideia de equilíbrio como retroação às condições fixadas da data da apresentação das propostas. É que retomar à condição existente à época da data da apresentação da proposta, e não, por ex., à data imediatamente anterior ao desequilíbrio, pode significar que o Poder Público esteja absorvendo parte da ineficiência prestacional ocorrida entre o início da execução e o início do desequilíbrio. Para usar a terminológica das áleas (v. próximas afirmações), o Estado pode estar absorvendo parte da álea econômica ordinária da concessionária.
Por fim, e ainda que se considere que o conteúdo do equilíbrio econômico-financeiro é o de relação entre encargos e retribuição, instanciada no momento da apresentação da proposta, note-se que uma relação, por definição, não pode se manter imóvel, ainda mais ao longo dos vários anos e diversos eventos de uma concessão. A visão de pacta sunt servanda é visão de instante. As condições da proposta, no momento seguinte à sua apresentação, já não podem mais ser mantidas. O rio de Xxxxxxxxx também corre por ali.
Em síntese: é no mínimo discutível que equilíbrio econômico-financeiro tenha que se resumir a correlação fixa, instanciada no momento da apresentação da proposta licitatória, entre encargos privados e contraprestação pública. Nosso regime jurídico pretende garantir o equilíbrio do que foi contratado, garantindo-se remuneração justa ao particular, observando-se que tais contratações são vinculantes também para a administração pública. Em todo caso, não é realista imaginar que uma relação entre encargos e vantagens mantenha-se a mesma ao longo de trinta anos, o que permite que revisões contratuais possam ser algo diverso de um limitado exercício de retroação à conta do Poder Público.
(iv) Aplica-se, aos contratos administrativos, a teoria das áleas, em que a álea ordinária – o risco normal do negócio – incumbe ao particular, e as áleas extraordinárias, sejam administrativas (alteração unilateral do contrato administrativo, descumprimento do contrato pelo Poder Público e
61 Sobre o conceito de compromisso dilatório, cf. XXXXXXX, Xxxx. Teoria de la constitución. Madrid: Alianza, 1996, p. 52 ss. Vale lembrar que nossa constituição econômica – dentro do qual a atuação do Estado por meio de contratos públicos poderia ser incluída – é radicalmente compromissória. A esse respeito, v. XXXXX, Washington Pe1uso. A experiência brasileira de Constituição econômica, Revista de Informação Legislativa, n. 102, 1989, p. 21 ss.; XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. A ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Cadernos de direito econômico e empresarial – Revista de Direito Público, n. 93, 1990, p. 263ss.
fato do príncipe) ou econômicas (teoria da imprevisão e caso fortuito ou força maior), ficariam integralmente a cargo da administração pública.
(v) A razão pela qual a administração pública assume todo o risco extraordinário das contratações (ao contrário de como é feito na França, país em que se elaborou a teoria da imprevisão, e em que se aplica divisão mais equitativa da álea econômica extraordinária entre as partes) é que, aqui, (a) tal assunção se faz como contrapartida às garantias exorbitantes do Poder Público e a seu nível de ingerência na execução contratual, ou (b) porque a instabilidade, entre nós, “possui foros de normalidade”, de modo que se justificaria seu uso mais largo.
A teoria das áleas já está algo desgastada, mas ainda permanece no default dos operadores do Direito Administrativo. Relembremos seu conteúdo.
O empreendedor assume os riscos ordinários, aqueles “que todo empresário corre, como resultado da própria flutuação do mercado” (Xx Xxxxxx). A administração pública assume os riscos extraordinários, que se dividem em álea econômica e álea administrativa. A álea econômica é a aplicação da teoria da imprevisão e/ou do caso fortuito ao contrato público. A álea administrativa são três riscos inerentes às contratações administrativas: o risco de modificação unilateral do contrato por parte da administração; o risco do fato do príncipe – decisão geral da administração, alheia ao contrato, mas que o afeta; o risco advindo do fato da administração: a inexecução contratual culposa da administração.
A teoria das áleas seria aplicável aos contratos administrativos comuns, regidos pela lei n. 8.666/93. Ela não se aplica a leis que suscitam regimes específicos de divisão de riscos (lei das PPPs, lei do RDC etc.). Em relação à lei n. 8.987/95, a questão é mais dividida, porque, a uma, a lei afirma que todo o risco seria arcado pelo particular (o que pode, ou não, significar que os riscos extraordinários serão por ele arcados); a duas, porque há quem afirme que, mesmo aqui, é possível ajustar riscos entre as partes (por ex., numa matriz de riscos, negociada caso acaso)62; a três, porque há quem pretenda operar interpretação exegética retroativa da lei 8.987/95 à luz da lei nº 8.666/93, para dizer que, na ausência de divisão específica de riscos, e já que a lei das licitações se afirma genericamente aplicável às concessões, talvez a álea extraordinária seja, nesse caso, da administração pública.
Há vários problemas com a teoria das áleas. Ela não evita a ocorrência de problemas, mas é apenas reparadora; ela é terrivelmente vaga (o que vem a ser exatamente um risco “ordinário” do negócio?); ela atribui riscos excessivos ao poder concedente (o que assume, como se viu, até o caso fortuito e a força maior)63. Na França, país de origem desses institutos, há diferenças relevantes em relação ao Brasil, especialmente na divisão da álea econômica entre as partes64.
62 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. A Evolução da Proteção do Equilíbrio Econômico-Financeiro nas Concessões de Serviços Públicos e nas PPPs. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 263, p. 35-66, maio 2013, p. 51. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00000/0000>. Acesso em: 22 Jul. 2020.
63 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
64 As principais diferenças estão na teoria da imprevisão francesa e brasileira: (i) enquanto, no Direito Administrativo francês, o fundamento principal da aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos é a continuidade dos serviços públicos, no Direito Administrativo brasileiro o fundamento principal é a noção de equilíbrio econômico- financeiro (garantia da propriedade privada); (ii) no Brasil a teoria se aplica a todo e qualquer contrato administrativo (salvo exceções legais), ao passo que, na França, o âmbito de aplicação se restringe aos contratos de concessão de serviço público e a outros contratos administrativos que tenham ligação direta com a finalidade de prestação de serviço público;
(iii) na França, a teoria da imprevisão se difere do fato do príncipe, porque a imprevisão implica o ressarcimento apenas parcial do prejuízo suportado pela concessionária, e o fato do príncipe, ressarcimento total. No Brasil a diferença é mais nebulosa, visto que tanto fato do príncipe quanto a teoria da imprevisão acarretariam reparação integral; (iv) na França, a teoria da Imprevisão abrange apenas fatos imprevisíveis, enquanto que, no Brasil, abrange fatos previsíveis, mas de consequências incalculáveis. Em suma: o escopo da teoria da imprevisão, na França, é menor do que o que ela se tornou
Uma pergunta importante: por que o Poder Público, pela teoria brasileira das áleas, teria que arcar com toda a álea econômica extraordinária? A literatura especializada tende a apresentar duas razões (a segunda é generalização da primeira): (a) o Estado assume todo risco extraordinário em contrapartida às garantias de que goza o Poder Público, via contratos administrativos, e, também, a seu nível de ingerência na execução contratual65; (b) porque a instabilidade na execução de contratos públicos, entre nós, é comum, de modo que se justificaria uma teoria da imprevisão mais garantista em favor do particular66.
Mas faz sentido que seja assim?
(a) E se o contrato não possuir tais garantias? E se tais garantias jamais forem utilizadas? E se, no exercício das garantias, a jurisprudência vier a minorá-las? Haveria algum ajuste fino na abrangência e na intensidade dos riscos extraordinários assumidos pelo Estado? Para a teoria brasileira das áleas, a resposta é negativa.
E ainda: o nível de ingerência é, em abstrato, o mesmo para todos os contratos administrativos? Para todos os projetos de infraestrutura? Considerando que o suposto default do nível de assunção de risco extraordinário, pelo Estado, seria “todo”, uma leitura ajustada às circunstâncias (contextual) reduziria, caso a caso, a abrangência e a intensidade com que o Poder Público assumiria a álea extraordinária? E se a concessionária contratar seguro para alguns desses riscos: há supergarantia indevida em favor da concessionária ao se ter dois seguradores – a seguradora propriamente dita, e a administração pública?
O fundamento da assunção da álea econômica em razão das garantias pró-estado dos contratos administrativos tem seu caso-padrão nas áleas administrativas (fato da administração, fato do príncipe e alteração unilateral do contrato), alterações do ajustado as quais a administração pública deu causa. Mas faz sentido que o mesmo argumento se aplique às áleas econômicas extraordinárias, cuja alteração não foi causada por nenhuma das partes?67
(b) O segundo fundamento leva a conclusões contraintutivas. Ele opera assim: a Administração brasileira é pouco confiável, logo, vamos tomá-la seguradora de tudo – o que gera toda sorte de incentivo para que ela não segure nada, ou, no mínimo, para que se tome ainda mais inconstante, afinal, o ônus econômico e argumentativo é imenso em assumir tudo aquilo que não for risco ordinário do empreendedor68. A solução para o alcoólatra não pode ser, naturalmente, beber mais
no Brasil. Aplicamos uma “teoria ampliada da imprevisão”. V. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. La théorie de l'imprévision dans les contrats de concession de service public: une approche comparée entre la France et le Brésil. Master de Droit public approfondi, 2018, Université Paris lI, 2019, 106 f. Ainda, .XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx. Fato do Príncipe e Teoria da Imprevisão entre o Brasil e a França. Revista de Direito da Administração Pública, a. 4, v. 1, n. 1, jan/jun, 2019, pp. 57-86. Xxxxxxxx ao colega Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão pelo envio da dissertação de mestrado francesa.
65 “A adoção desse modelo seguia uma equação bastante simples e compreensível: quanto maior a intervenção do Estado na definição do empreendimento a ser explorado (e normalmente era muito grande), menor seria a assunção de risco do empresário, que implementaria as decisões estatais” PORTO NETO, Xxxxxxxxx. Licitação para contratação de parceria público-privada. In: Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 162.
66 “A teoria da imprevisão, que fora instaurada na França, sob feição circunscrita, pois estabelecia partilha de prejuízos, assumiu novo caráter, inclusive porque se tomou evidente que os casos a serem por ela atendidos não correspondiam a fenômenos esporádicos, relacionados com a situação efêmera. Deveras: em se verificando que a instabilidade adquirira foros de normalidade, por consectária de novo período histórico, razão alguma haveria para manipulá-la em guisa de paliativo limitado ao socorro de emergências, mero recurso ocasional balanceador de prejuízos incidentais.” XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de Direito Administrativo, 27ª ed. , ver. ampli. e atual., 2010, São Paulo: Malheiras, p. 654.
67 No mesmo sentido, v. XXXX, Xxxxxx. Les principes du Droil Administratif. Paris: M. Giard, 1925. Passim.
68 Quando o ônus é imenso, há toda sorte de incentivos para se fugir dele. Em texto clássico, Xxxxxxx Xxxxxx observa que sanções muito graves conduzem racionalmente a que todo tipo de conduta seja adotada para que ela seja evitada. Cf XXXXXX, Xxxxxxx. Law and Economics in Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. In: Ratio Juris 66, 2004. É importante registrar que, num ambiente de hipercontrole e de Direito Administrativo do medo, a estratégia racional- dominante do gestor público é a de não assumir a álea econômica, ou, ao menos, não assumir sua totalidade. (A estratégia
álcool. A pretexto de se cercar de garantias contra o Poder Público, a teoria das áleas pode auxiliar na construção de ambiência em que, mercê de seu excesso e de sua imprecisão, o particular saia ainda menos garantido69-70.
E ainda: se a instabilidade é o normal na administração brasileira, ela evidentemente será precificada pelo particular, então alguém poderia alegar que a admissão de uma “teoria ampliada da imprevisão” seria indevidamente supergarantista à concessionária71.
Enfim: deve-se esforçar para fazer com que a divisão de riscos – que é, economicamente, junto ao preço, um dos elementos mais importantes da concessão – não se reduza a decisão, antes de tudo doutrinária, fundada em platitudes linguísticas.
(vi) Um fundamento normativo possível para a teoria das áleas é a referência, feita pelo art. 2º, II, da lei n. 8.987/95, a que o desempenho da atividade concedida ocorrerá "por conta e risco" do contratado; deve-se ler “por conta e risco” do particular como “por conta e risco ordinário do negócio”, no que se impõe que o risco extraordinário seja assumido pelo Poder Público.
(vii) Apesar da afirmação legal de que, nas concessões regidas pela lei nº 8.987/95, a execução se dará por “conta e risco” do particular, é comum que parte do risco ordinário do negócio seja assumido pelo Poder Público, o que não ilegal, e, talvez, seja mesmo desejável ou inevitável.
A teoria das áleas dirá que, no art. 2º, II, da lei n. 8.987/95, a expressão “por sua conta e risco” (da concessionária) implica que as áleas ordinárias serão da concessionária, e as áleas extraordinárias, sempre do poder concedente72. Na prática, no entanto, não é o que se observa. A literatura especializada já destacou que a administração pública assume, direta ou indiretamente, vários riscos “ordinários” da concessão (ex., desapropria imóveis, abre linhas de crédito, funciona como ponto focal de negociação etc.)73. A própria opção, feita na lei ou no contrato, por revisões ordinárias e periódicas (ex., revisões a cada cinco anos), é técnica de compartilhamento de riscos entre as partes74.
racional-dominante da concessionária, ainda que motivada primordialmente por razões econômicas, é idêntica. Em abstrato, o acordo é o resultado ótimo.)
69 Em outras palavras: pressupor que a administração brasileira é instável e pouco confiável, e, em solução a isso, sugerir uma teoria da imprevisão abrangente, sobreonerosa e imprecisa, é ser parte do mal cuja cura se pretende ser.
70 Ultima observação lateral: no restante da América Latina, em que o risco-país é, na média, até maior do que no Brasil, a teoria da imprevisão, pelo que se sabe, admite a divisão de riscos entre poder concedente e concessionária. O que justifica a excepcionalidade brasileira?
71 Esse é um argumento altamente estilizado (como são todos dessa espécie; mais sobre isso à frente).
72 Xxxxx, é de se questionar a razão pela qual, das palavras “por sua conta e risco (da concessionária)”, entendeu-se que o risco por ela assumido seria só o risco ordinário. Não é o que, intuitivamente, exsurge da redação do dispositivo. A leitura imediata é a de que todo o risco – ordinário ou extraordinário – restaria alocado ao particular. Há quem defenda que, na ausência de alocação específica dos riscos no contrato de concessão, todo o risco, incluindo o extraordinário, seria do contratante. Xxxxxx, só assim a execução contratual se daria “por sua conta e risco” (essa é a posição, ao que parece, de Xxxxxxx Xxxxxxxx). A solução, no entanto, pelo que se argumenta, encareceria excessivamente os contratos de concessão.
V. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Estudos sobre o Regime Econômico-Financeiro de Contratos de Concessão, 1ª ed., London: Laccademia Publishing, 2020, pp. 189-191. Para a crítica do encarecimento das concessões e de sua inviabilidade econômica, caso se entenda pelo default da alocação privada do risco extraordinário. v. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A imprevisão na previsão e os contratos concessionais. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público- privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 109-124. O que a doutrina de Direito Administrativo faz, em relação ao art. 2º, II, da lei n. 8.987/95, é o que tecnicamente se chama de integração de lacuna ‘oculta’ por redução teleológica. X. XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxxxx xx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. 0x xx. Xxxxxx: Calouste Gulbenkian, 1997. pp. 555-564.
73 “A concessão nunca se dá por conta e risco exclusivos da concessionária. Mesmo sob o enfoque da doutrina tradicional das áleas da concessão, a Administração Pública assume os riscos extraordinários do empreendimento. Ainda que
Aliás, a bem da verdade, a possibilidade de alocação de riscos nos contratos de concessões comuns se extrai da interpretação sistemática da própria lei nº 8.987/97, já que seus arts. 23 e 29 preveem que os critérios e procedimentos de reajuste e revisão de tarifas serão determinados pelo contrato, e seu art. 9º prevê que a administração pública pode prever, no edital e no contrato, as condições pelas quais a tarifa será determinada.
Sequer é possível extrair da expressão “por sua conta e risco” uma alocação automática de riscos. O compartilhamento de riscos, sejam ordinários ou extraordinários, é da essência das concessões. Há liberdade contratual para a alocação75, contanto que não se aniquile o risco do negócio, nem se comprometa a responsabilidade fiscal da administração contratante (para as PPPs, ex vi, por ex., do art. 4, IV da Lei nº 11.079/2004)76.
Mas o ponto, aqui, é menos a conclusão do que o processo. Reconhece-se, corretamente, que a literalidade do art. 2º da lei das concessões não produz o melhor dos resultados. Opera-se-lhe redução teleológica. Interpreta-se o dispositivo de modo sistemático. Argumenta-se de modo consequencialista para evitar projetos excessivamente custosos.
Não será legítimo operar da mesma a forma em relação à alea extraordinária supostamente alocada, toda ela, à administração contratante?
(viii) A norma constitucional do equilíbrio econômico-financeiro aplicável aos contratos administrativos encontra homólogo funcional no princípio do equilíbrio econômico-financeiro entre as prestações, mas a solução, que, no Direito privado, socorre-se de argumentos como a justiça contratual e a isonomia substancial para vincular alguma divisão dos riscos entre as partes, ali, no Direito público, carreira a assunção de todo o risco de excepcionalidades econômicas do contrato ao Poder Público, também como contrapartida às garantidas exorbitantes da administração pública.
O Direito Civil trabalha com o princípio do equilíbrio econômico entre as prestações, que é, em boa parte de sua incidência, homólogo funcional à noção de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos. Na literatura de Direito Civil ele não costuma aparecer fundado no direito de propriedade, mas nas ideias de justiça contratual e de isonomia substantiva. Há, lá como cá, discussão sobre como se reequilibrar contratos, dado que nem o Código Civil nem o Código de
admitíssemos, teoricamente, a transferência dessas áleas extraordinárias ao concessionário, restariam, nessa hipótese, sob a responsabilidade do concedente, os riscos relacionados às matérias nas quais, por força legal, vigora a responsabilidade solidária entre concessionário e concedente (o risco relacionado ao cumprimento das normas ambientais...)” XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O risco no contrato de concessão de serviços públicos. Xxxx (doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, pp. 205-206. Como aponta Xxxxxxx Xxxxx, os contratos de concessão, em diversos setores (e.g. energia elétrica e telecomunicações), adotam o modelo tarifário da regulação por incentivos, pelo qual há a repartição da álea ordinária entre concessionária e usuários, haja vista haver redução da tarifa atrelada a ganhos de produtividade - uma álea tipicamente ordinária. V. XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. A divisão de riscos e o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão de serviço público no Estado Regulador. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 67, 2013, p.218-249.
74 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. A Evolução da Proteção do Equilíbrio Econômico-Financeiro nas Concessões de Serviços Públicos e nas PPPs. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 263, p. 35-66, maio 2013, p. 51. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/x0000/0000>. Acesso em: 03 ago. 2020.
75 Como pondera Xxxxxx Xxxxxx, é claro que a liberdade de alocação de riscos não é absoluta; a alocação (racional) de riscos deve estar pautada por critérios de eficiência, de forma a alocar cada risco com a parte que tem melhor condições de gerenciá-lo, isto é, com maior capacidade para evitá-los ou, não sendo possível evitá-los, com maior capacidade de atenuar suas consequências. Cf. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A imprevisão na previsão e os contratos concessionais. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público-privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 109·124.
76 Lei 11.079/2004: Art. 4º. Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: (...) IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias.
Defesa do Consumidor trazem qualquer fórmula. Há quem defenda o retorno à equação econômico· financeira da época da celebração do contrato, argumentando que art. 479 do Código Civil prevê a revisão equitativa77 e que a mera recondução aos limites da álea ordinária não reestabeleceria a equidade da relação contratual78.
A posição que prevalece no Direito Privado, contudo, é a de que a revisão deve se limitar a atenuar o prejuízo, repartindo o excesso com a outra parte, sem reestabelecer o equilíbrio entre as prestações existente ao momento da celebração do contrato. A revisão deve reconduzir ao patamar em que os prejuízos da parte inserem-se nos parâmetros normais das condições de mercado (recondução aos limites da álea ordinária). Afirma Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx00:
A função do regime de excessiva onerosidade é assegurar uma repartição justa das consequências decorrentes da alteração superveniente das circunstâncias. Reconduzir totalmente ao equilíbrio original entre as prestações seria puramente transferir todas as consequências da alteração das circunstâncias à parte não afetada originalmente por ela. (Destacou-se)
Mesmo nos contratos de consumo, assimétricos por natureza, e nos quais vigora teoria revisional mais interventiva do que a da imprevisão (incide a teoria da base objetiva do negócio jurídico), a jurisprudência entende que deve haver repartição de prejuízos entre fornecedores e consumidores80.
É de se questionar, então, se, afora a ideia (algo imprecisa) de compensar exorbitâncias do Poder Público (v. comentário acima) – há justificava plausível para se conferir aplicações tão díspares de norma que parece possuir núcleo comum de conteúdo.
(ix) Não se aplica a referida divisão de riscos nos casos em que a lei expressamente a excepciona, como o faz no caso das PPPs federais (em que há ‘divisão objetiva de riscos’); nesses casos, não há excepcionalidade que ultrapasse a divisão do contrato.
Há posição que defende que, nos contratos administrativos e nas concessões comuns, a administração pública deve recompor integralmente os prejuízos decorrentes de álea extraordinária, em razão das previsões do art. 37, XXI da CRFB-88 e do artigo 2º da lei 8.987/95. Por outro lado, nas concessões especiais, o risco decorrente de álea extraordinária deveria ser repartido, porque a lei nº 11.079/2004 impôs a repartição objetiva de riscos entre as partes (art. 4º, VI), inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária (art. 5º, III). Para os defensores dessa posição, a repartição da álea extraordinária nas concessões especiais seria
77 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
78 XXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 163.
79 XXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 164.
80 STJ, REsp nº 472.594, 2ª Seção, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Direito, Rel. p/ acórdão Min. Xxxxx Xxxxxxxxxx Xx., x. 12/02/2003; STJ, REsp nº 401.021, 4ª Turma, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx Xxxxx, Rel. p/ acórdão Min. Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx,
j. 17/ 12/2002; STJ, REsp nº 268.661, 3ª Turma, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, x. 16.08.2001; STJ, Resp nº 437.660, Rel. Min. Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx, 4ª Turma, x. 08.04.2003.
possível desde que prevista no edital e no contrato, pois, assim, estariam “mantidas as condições efetivas da proposta” (art. 37, XXI, CRFB)81.
A discussão assume contornos mais interessante porque há quem defenda que, mesmo aí, seria possível rediscutir a alocação do risco extraordinário que se concretizou com a pandemia do COVID-
19. Ter-se-ia “força maior das maiores” ou “imprevisão na previsão”, de modo que, ainda que o contrato aloque genericamente o risco por força maior ou por álea econômica extraordinária, a pandemia de COVID-19, em particular, não estaria ali englobada82. Outros podem afirmar que tal conclusão inutilizaria a própria ideia da alocação de riscos em uma matriz de riscos. O parecer não discutirá a polêmica.
(x) Argumentos que discrepam dos itens (i) a (ix) pressupõem uma violação às condições de isonomia da licitação (na medida em que a precificação do risco, pelos particulares, poderia ser outra), tendem a gerar propostas licitatórias pouco sérias, afastam os melhores licitantes (numa ‘seleção adversa’ em que só sobram os piores), e, no geral, encarecem as contratações públicas.
Argumentos que discrepem das conclusões principais enunciadas nos itens (i) a (ix) – especialmente argumentos jurídicos que neguem a existência da fórmula do equilíbrio como retro ação às condições econômico-financeiras do momento da oferta (item ii), alocação da totalidade da álea econômica extraordinária para a administração pública (item iv) e de seus fundamentos (item v)
– violariam as condições de isonomia da licitação, gerariam propostas pouco sérias, afastariam os melhores licitantes e, de modo geral, encareceriam as contratações públicas.
São conclusões discutíveis. São razões que adiantam estados de coisas para julgá-los, e, então, considerar cursos de ação no presente. São argumentos consequencialistas83. Mas, para que sejam válidos, é importante haver nível suficiente de consistência na ocorrência, daquele modo, dos estados de coisas que são adiantados (não certeza, porque, do contrário, qualquer argumento consequencialista será suprarrogatório).
Considerando, em particular, o encarecimento das contratações, o problema é que não há dados inteiramente confiáveis a respeito da prognose - isso quando há dados – e, decerto, há tendência a se confundir, nesse tipo de argumentação, correlação com causalidade. O custo das contratações públicas, no Brasil, está correlacionado a uma série de mazelas: ineficiência do trabalho, baixo nível educacional, tributação regressiva, baixos índices de concorrência, “cultura política”, insegurança jurídica. Embora seja em tese correto afirmar que ambiências de insegurança jurídica estejam correlacionadas ao encarecimento de contratos, não é correto afirmar que, neste particular, dividir parte do risco econômico extraordinário entre as partes seja fator crucial, ou, sequer, que represente insegurança jurídica. Como se disse, é plausível supor, inclusive, que dividir o risco possa trazer
81 Nessa linha: MODESTO, Paulo, Reforma do Estado, Formas de Prestação de Serviços ao Público e Parcerias Público- Privadas, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, v. 2, 2005, p. 35-36, nota de rodapé 33. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx>. Acesso em: 23 jul. 2020. XXXXXX, Xxxxxxxx. Direito administrativo e controle. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 184.
82 Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx sustenta que a pandemia de COVID-19 seria “força maior das maiores”. Cf. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Contratos de concessão, força maior extraordinária e revisão da matriz de riscos, Jota, 30 abr. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx-x-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx·xx·xxxxxxxxx-xxxxx-xxxxx-xxxxxxxxxxxxxx-x- revisao-da-matriz-de-riscos-30042020>. Ainda, o instigante artigo de Xxxxxx Xxxxxx: XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A imprevisão na previsão e os contratos concessionais. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público-privadas. Belo Horizonte: Fórum, 20 I 6. p. 109-124.
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mais, e não menos segurança jurídica (afinal, as partes terão que negociar, e não pretender vencer custosa disputa do tipo the-winner-takes-it-all).
A respeito do argumento da violação à isonomia – a precificação do risco entre os concorrentes, na licitação, poderia ser outro – o argumento pressupõe que tenha havido licitação (nem sempre houve), que o risco tenha sido o fator primordial para a disputa (é fator muito importante, mas há casos em que aquele risco é desinfluente, ex., o contratante quer ter um primeiro contrato naquela administração), que as condições macroeconômicas do momento da licitação sejam as mesmas das do momento da revisão, que o risco ‘licitado’ seja imóvel ao longo da execução do contrato e que as potenciais licitantes confiem sinceramente nisso no momento dos lances, que o apetite pelo risco entre todas as licitantes seja aproximadamente o mesmo etc.
Além disso, o ‘princípio da isonomia’ leva a diferentes resultados e pode ser manobrado de modo retórico. Considere-se, por exemplo, a afirmação de que a divisão em partes iguais do risco extraordinário, numa concessão de transporte público estadual, levaria ao encarecimento de futuros contratos. Socorrer aquela concessionária especifica à custa de todos os moradores do território do estado do Rio de Janeiro viola a isonomia? Não socorrer aquela concessionária à custa de favorecer suas possíveis concorrentes em certames futuros (a contratada terá absorvido parte do custo) viola a isonomia? Crê-se que o argumento da isonomia pode ser reconstruído de diversas formas, levando a diversos resultados (inclusive resultados que se cancelam mutuamente).
A mesma crítica pode ser feita em relação à alegação de que admitir algum risco extraordinário econômico para a concessionária – e não assumi-lo inteiramente para o Poder Público – selecionará adversamente licitantes capazes de realizar precificações mais precisas, ou, quiçá, mais sérios. É prognose conjectural, a depender do controle de diversas variáveis (v. acima).
E então: decisões negociadas ou arbitradas no momento presente, entre partes presentes, ajustadas aos contextos micro e macroeconômicos, tendem a gerar credibilidade quanto a seu cumprimento. A “teoria das áleas” seria preferível a elas?
5.1. Qual Poderia ser uma Compreensão Contextual e Realista de uma Revisão Pandêmica?
Uma compreensão contextual e realista das revisões pandêmicas não supõe que a administração pública aceitará, com certo amor fati, o repasse integral da álea econômica extraordinária. Uma compreensão contextual e realista também não argumentará, em arrogante monólogo, com supremacias de interesses público, para alocá-la apenas junto às concessionárias.
Ora, o compartilhamento de riscos é da essência dos contratos concessionais. Riscos são intrinsecamente dinâmicos. Riscos são inevitavelmente distribuídos entre as partes. Não se trata de supor que o equilíbrio econômico-financeiro precise necessariamente ser a fotografia de um único momento fixo no tempo – que se idealiza e se busca e se frustra –, nem que seja princípio, para, então, ponderá-lo84.
Para o caso da pandemia causada pelo COVID-19, afirmá-lo, então, como enquadrável na hipótese da teoria da imprevisão (e, quanto aos efeitos sancionatórios, como forca maior), não significa que a álea econômica extraordinária tenha que ser inteiramente alocada para a administração pública. Xxxxxx tenha chegado o momento de rever a teoria brasileira da imprevisão, para tomá-la mais precisa, minimalista e flexível. A solução jurídica mais adequada parece-me um retomo
84 É preciso ser crítico em relação à reconstrução de certos conteúdos normativos como princípios. Houve e há excessos. Mas, se a moda ontem foi afirmá-los, a moda hoje é criticá-los. Vale então a crítica da crítica: princípios existem e continuam úteis – eles só não são tudo o que o Direito positivo tem a nos oferecer. Em todo caso, se se trata de enquadrar a noção usual de equilíbrio econômico dentro das espécies de normas propostas pela Teoria Padrão das Normas (Alexy- Dworkin e comentadores), é plausível supor que um valor relacional como o equilíbrio econômico-financeiro seja um postulado normativo aplicativo (Xxxxxxxx Xxxxx), um meta-princípio ou um ‘princípio vazio’ (Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx). Ele não postula materialmente nada, só afirma que determinada relação, estabelecida em certo momento, deve ser mantida.
(ajustado) à raízes francesas da teoria da imprevisão85, pautada pela noção de repartição dos prejuízos decorrentes da álea econômica extraordinária.86
Tal revisão de premissas da literatura não se mostra textualmente incompatível com a lei n. 8.666/93. A uma porque norma não é dispositivo normativo (como a literatura especializada demonstrou ao reduzir a incidência do art. 2º da lei n. 8.987/95). A duas porque o art. 65, II, d, da lei
n. 8.666/93, fala em acordo entre as partes e, ainda, em justa remuneração, remetendo à ideia de recuperação equitativa da saúde inicial do contrato. No limite, há argumentos materiais suficientes (justiça contratual, isonomia, segurança jurídica bilateral etc.) para se operar integração por redução teolológica.
Assim, tal incidência ajustada ao contexto da teoria da imprevisão (a) permite divisão da álea extraordinária entre as partes (para a teoria francesa, a divisão tem que ocorrer), sendo que (b) a divisão não precisa ser igualitária, e, (c) se houver divisão, ela terá que ser razoável e justificada.
5.2. Qual Poderia ser um Conteúdo e um Procedimento Mínimo de um Pedido de Revisão Pandêmica?
Observando que o presente parecer não se volta à análise de qualquer pedido específico de revisão extraordinária de contrato de concessão, mostra-se possível, em abstrato, figurar conteúdo mínimo e estrutura procedimental para os pleitos de revisões extraordinárias motivadas pela pandemia87.
85 A favor da repartição dos prejuízos resultantes de álea econômica extraordinária entre a administração pública e o contratado: DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Parcerias na Administração Pública, 10ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.
109. XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx da. A teoria da imprevisão e os contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 201, p. 35-44, jul. 1995. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00000/00000>. Acesso em: 23 Jul. 2020. XXXXXX, Xxxx. O equilíbrio financeiro na concessão de serviço público. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 65, p. 1-25, maio 1961, p. 8. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00000/00000>. Acesso em: 23 Jul. 2020. Em XXXXXXX, Xxxxx. Contrato de empreitada – reajustamento de preços – teoria da imprevisão – cláusula “rebus sic stantibus”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 25, p. 357-363, jul. 1951. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00000/00000>. Acesso em: 26 Jul. 2020. XXXXXXXX XXXXXX, Xxxx. Teoria do “fato do príncipe”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 75, p. 23-30, jun. 1964. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxx\.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00000/00000>. Acesso em: 26 Jul. 2020. Registre-se a posição intermediária da Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx que faz uma distinção (não muito clara) entre “fatos imprevistos” e “álea econômica extraordinária”. Para a autora, “fatos imprevistos” têm por consequência a alteração unilateral do contrato pela Administração e, por isso, ensejam a recomposição integral, ao contrário da “álea econômica extraordinária” que provoca consequências não imputáveis a quaisquer das partes e, por isso, enseja recomposição apenas parcial. Cf. FIGUEIREDO, Xxxxx Xxxxx. Extinção dos Contratos Administrativos. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 107- 108.
86 Veja-se que, pela jurisprudência do Conselho de Estado Francês, não necessariamente a repartição dos prejuízos entre as partes será igualitária. A administração pública pode arcar com a maior parte, desde que se mostre necessário para garantir a continuidade do serviço público. No precedente do caso do gás de Bordeaux, o Conselho de Estado Francês fixou entendimento de que as partes têm o dever de negociar como vai se dar o reequilíbrio do contrato e, caso não cheguem a um acordo, cabe ao juiz decidir equitativamente (CE, Compagnie Générale d'Éclairage de Bordeaux, 30 mars 1916). Porém, em precedente, posterior, fixou parâmetro para essa repartição de prejuízos: a administração pública só pode arcar com até 90% do déficit, percentual que pode ser reduzido diante da situação financeira da empresa, os serviços executados, os lucros obtidos no passado e os benefícios esperados para o futuro, a natureza mais ou menos precária da contratação e a diligência do contratado para superar as dificuldades encontradas (CE sect., Compagnie française des cábles télégraphiques, 21 avril 1944). O que o Conselho de Estado Francês não admite é que se repasse a totalidade do prejuízo para a administração pública, a ponto de se esvaziar o risco do negócio assumido contratualmente pelo particular, considerando que a Administração não deu causa ao desequilíbrio.
87 Tomo aqui por inspiração as recomendações do parecer nº CJ/ARTESP n.º 552/2020, da PGE-SP, e sugestões dos seguintes ensaios: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Contratos de concessão, força maior extraordinária e revisão da matriz de riscos, Jota, 30 abr. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xxxxxxx-x-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx- forca-maior-extraordinaria-e-revisao-da-matriz-de-riscos-30042020>. Acesso em: 22 jul. 2020. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Sete passos para começar a colocar ordem no caos, CONJUR, 21 abr. 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/xxxxxxxx-xxxx-xxxxxx-xxxxxxx-xxxxxxx-xxxxx-xxxx>. Acesso em: 24 jul. 2020.
Em primeiro lugar, é recomendável a instauração de processo administrativo específico para cada concessão, para se analisar, em concreto, como se deu a alocação dos riscos. Também se mostra recomendável averiguar, no procedimento, se há seguro que mitigue o prejuízo. O processo deverá respeitar o contraditório e a ampla defesa.
Deve ser comprovado e documentado nos autos dos respectivos processos, caso a caso, o nexo causal entre o evento da pandemia de COVID-19 e o desequilíbrio econômico-financeiro e, também, entre a pandemia e as possíveis inexecuções contratuais.
Naturalmente, o desequilíbrio também pode se manifestar a favor do poder concedente.
O reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos deve se limitar às prestações englobadas no período em que a pandemia de COVID-19 afetou o contrato88.
É importante verificar se a concessionária agiu de modo a mitigar seus prejuízos. Caso ela tivesse possibilidade razoável de o fazer, não se admite que tenha se mantido inerte89.
Como aqui se defendeu, é plausível cogitar, em prol da continuidade do serviço público e da conservação dos negócios jurídicos, uma vez apurado o desequilíbrio, que seja promovida, nesse mesmo processo administrativo de apuração, a renegociação da repartição dos riscos extraordinários, a ser formalizado em termo aditivo.
Há dever de renegociar. Não há dúvidas sobre sua existência quanto aos contratos que contenham cláusulas expressas. Ainda que elas não existam, contudo, tal dever se extrai do princípio da boa-fé objetiva (art. 422, CC/02), da conservação dos negócios jurídicos e do incentivo a soluções consensuais (ex. art. 26, da LINDB90).
Dever de renegociar não se confunde com dever de chegar a acordo. O dever de renegociar consiste em comunicar prontamente a contraparte acerca da existência do desequilíbrio contratual, de suscitar renegociação que possibilite o reequilíbrio do contrato, ou de responder a proposta nesse sentido, analisando-a seriamente91.
O norte a guiar tais renegociações deve ser a conciliação entre a continuidade dos serviços públicos (art. 6º, parágrafo único, da Lei nº 8987/95), a justa remuneração da concessionária e a preservação de seus investimentos, e a responsabilidade fiscal (art. 4º, VI da Lei nº 11 .079/2004), em respeito, inclusive, ao Regime de Recuperação Fiscal a que se sujeita o estado do Rio de Janeiro.
Se tal conciliação não for possível, em último caso, deve-se terminar o contrato e promover nova licitação (mas sem ilusões de que esta seja uma solução simples ou barata).
6. Síntese Objetiva
Ao longo deste parecer foi possível chegar às seguintes conclusões.
88 XXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 72-73.
89 STJ: REsp 758.518/PR, Rel. Ministro Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, 3ª Turma, j. 17/06/2010, DJe 28/06/2010. Ainda, XXXXXXX, Xxxxx; SCHWTND, Xxxxxx Xxxxxxxx. Pandemia de Covid-19 e o equilíbrio econômico-financeiro das concessões. In: XXXXXX XXXXX, Xxxxxx (Org.). Covid-19 e o direito brasileiro, 2ª ed., ampl. e atual., Curitiba: Xxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxxxx e Talamini, 2020, p. 1.549 (E-book).
90 Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
91 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Construindo um dever de renegociar no Direito brasileiro. Revista Interdisciplinar de Direito Faculdade de Direito de Valença, v. 16, n. 1, pp.13-42, jan./jun. 2018.
(a) A pandemia de COVID-19, doença infecciosa causada pelo novo coronavírus, impactou o mundo. A partir de experiências internacionais e da literatura científica, entes públicos brasileiros passaram a adotar uma série de medidas, tais como o fechamento de atividades econômicas e a imposição de isolamento social, como forma de evitar a propagação do vírus.
(b) Editou-se lei federal (a lei n. 13.979/2020), além de decretos de entes infranacionais, em atenção a protocolos recomendados por organizações científicas. Nesse ínterim, concessionárias de serviços públicos, alegando que as medidas de contenção da pandemia impactaram seus contratos, pleitearam revisões extraordinárias.
(c) Há limitações na resolução de casos de que se ignora sua duração no tempo e quais exatamente serão as consequências. Ambas as limitações se reconduzem a um mesmo problema – um problema de informação –, cuja mitigação aponta para soluções incompletas, difusas e experimentais. Não se sabe por quanto tempo a pandemia vai durar, se ela vai se encerrar por igual em toda a geografia do estado do Rio de Janeiro (e do Brasil), e quais efeitos destrutivos e criativos operará junto às concessões estaduais.
(d) Naturezas jurídicas, numa ciência social aplicada como o Direito, servem para reduzir o ônus argumentativo. É por isso que se discute qual seria a natureza jurídica, junto aos contratos de concessão de serviços públicos, da pandemia de COVID-19. Há várias teorias revisionais, mas as que importam ao parecer são as teorias da imprevisão, da base objetiva do negócio jurídico, do fato do príncipe e em decorrência de caso fortuito ou de força maior.
(e) A pandemia não é fato do príncipe. Embora a causa aparente da alteração do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos seja os regulamentos do poder público, a causa sine qua non dos possíveis desequilíbrios é a crise biossanitária internacional. Ela também não parece ser quebra da base objetiva do negócio jurídico (onerosidade excessiva).
(e) Parece possível aplicar aos contratos de concessão afetados pela pandemia de COVID-19, conforme o caso, a teoria da imprevisão, – a fim de os reequilibrar –, e os efeitos do reconhecimento da ocorrência de evento de força maior, a fim de lhes afastar efeitos do inadimplemento (e.g. sanções administrativas, caducidade).
(f) O conhecimento convencional do Direito Administrativo brasileiro vindica algumas conclusões a respeito das revisões dos contratos concessionais. Convém respeitá-las por meio da crítica informada, e não da submissão reverencial.
(g) A afirmação de uma base constitucional para o equilíbrio econômico- financeiro no art. 37, XXI, ou no direito de propriedade, só é verdadeira em sentido descritivo-sociológico (significando que a tese vem sendo afirmada em manuais e adotada em julgados), mas não corresponde nem ao sentido histórico nem a seu conteúdo textual mínimo.
(h) É juridicamente discutível que o equilíbrio econômico-financeiro tenha que se resumir a correlação fixa, instanciada no momento da apresentação da proposta licitatória, entre encargos privados e contraprestação pública. Nosso regime jurídico pretende garantir o equilíbrio do contratado, garantindo remuneração justa ao particular, observando-se que tais contratações são vinculantes também para a administração pública. Não é realista imaginar que nem relação nem proporção entre encargos e vantagens mantenha-se a mesma
ao longo de anos, o que permite que revisões contratuais sejam algo diverso de um limitado exercício de retroação à conta do Poder Público. Ou seja: há uma garantia (bilateral) da saúde inicial dos contratos públicos, mas não um princípio constitucional da absoluta intangibilidade da equação econômico- financeira originária.
(i) Pela teoria das áleas, o empreendedor assume os riscos ordinários do negócio. A administração pública assume os riscos extraordinários, que se dividem em álea econômica e álea administrativa. A álea econômica é a aplicação da teoria da imprevisão e/ou do caso fortuito ao contrato. A álea administrativa são três riscos inerentes às contratações administrativas: o risco de modificação unilateral do contrato por parte da administração; o risco do fato do príncipe – decisão da administração, alheia ao contrato, mas que o afeta; o risco advindo do fato da administração: a inexecução contratual culposa da administração.
(j) A teoria das áleas seria aplicável aos contratos administrativos comuns, regidos pela lei n. 8.666/93. Ela não se aplica a leis que suscitam regimes específicos de divisão de riscos (lei das PPPs, lei do RDC etc.) Em relação à lei n. 8.987/95, a questão é mais dividida, porque, a uma, a lei afirma que todo o risco seria arcada pelo particular (o que pode, ou não, significar que os riscos extraordinários serão por ele arcados); a duas, porque há quem afirme que, mesmo aqui, é possível ajustar riscos entre as partes (por ex., numa matriz de riscos); a três, porque há quem pretenda operar interpretação exegética retroativa da lei 8.987/95 à luz da lei nº 8.666/93, para dizer que, já que a lei das licitações se afirma genericamente aplicável às concessões, talvez a álea extraordinária seja sempre da administração pública.
(k) Há vários problemas com a teoria das áleas. Ela não evita a ocorrência de problemas, mas é apenas reparadora; ela é vaga; ela atribui riscos excessivos ao poder concedente.
(l) Pela teoria brasileira das áleas (que difere de sua matriz francesa), a administração contratante tem que arcar com toda a álea econômica extraordinária (teoria da imprevisão) em contrapartida às garantias de que goza, e, também, a seu nível de ingerência na execução contratual; e porque a instabilidade na execução de contratos públicos seria mais comum no Brasil do que na França, de modo que se justificaria uma teoria da imprevisão mais garantista em favor do particular.
(m) Há problemas nessas razões. E se o contrato não possui garantias? E se elas não são exercitadas? E se elas são mitigadas pela jurisprudência e pela prática? Faz sentido assunção de risco econômico, não causado por nenhuma das partes, a pretexto de que uma delas possui contrato juridicamente desigual? Além disso, pressupor que a administração brasileira é instável, e, em solução a isso, sugerir uma teoria abrangente, sobreonerosa e imprecisa, é ser parte do mal cuja cura se pretende ser.
(n) Deve-se fazer com que a divisão de riscos não se reduza a decisão antes de tudo doutrinária, fundada em platitudes linguísticas.
(o) O poder público assume parte das áleas ordinárias das concessões regidas pela lei n. 8.987/95. A literatura especializada opera uma redução teleológica do art. 2º, interpreta o diploma de modo sistemático, e argumenta, de modo consequencialista, contrariamente ao encarecimento das concessões, o que alega que se ocorreria se o particular absorvesse todo o risco do contrato.
(p) Há norma no Direito privado, a do equilíbrio entre as prestações, cujo núcleo de conteúdo se assemelha à do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, presente no Direito Administrativo, mas que, lá, admite soluções diferentes. Há tanta diversidade de razões em cada área do Direito?
(q) Não se aplica a divisão de riscos da teoria das áleas nos casos em que a lei expressamente a excepciona, como no caso das PPPs federais (em que se exige ‘divisão objetiva de riscos’); nesses casos, para alguns, não haveria excepcionalidade que ultrapassasse a divisão do contrato (essa seria a razão de uma matriz de risco), ao passo que, para outros, a hipótese do COVID-19 seria uma ‘força maior das maiores’ ou uma ‘imprevisão radical’ , a ultrapassar in casu referências contratuais genéricas a caso fortuito e força maior.
(r) Discordar das premissas tradicionais não necessariamente gera contratações mais caras, viola a licitação ou seleciona negativamente licitantes. O ônus da validação empírica está em quem lança tais prognoses, mas, em todo caso, não há dados confiáveis para secundar tais afirmações (quando há sequer dados); o custo das contratações públicas brasileiras está correlacionado a uma série de mazelas; soluções de divisão de risco podem quiçá gerar mais, e não menos, segurança. Tais argumentos fazem suposições a respeito do ambiente de concorrência, do apetite de risco dos licitantes etc. Além disso, a ‘isonomia’, quando operada argumentativamente, pode levar a diferentes resultados, alguns mutuamente excludentes.
(s) Afirmar o caso da pandemia de COVID-19 como enquadrável na hipótese da teoria da imprevisão (e, quanto aos efeitos sancionatórios, como força maior), não significa que a álea econômica extraordinária tenha que ser inteiramente alocada para a administração pública. Xxxxxx tenha chegado o momento de rever a teoria brasileira da imprevisão, para torná-la mais precisa, minimalista e flexível. A solução jurídica adequada parece ser um retorno (ajustado) às suas raízes, pautada pela repartição dos prejuízos decorrentes da álea econômica extraordinária.
(t) Tal revisão de premissas da literatura não é textualmente incompatível com a lei n. 8.666/93. A uma porque norma não é dispositivo normativo (como a literatura especializada demonstrou, ao reduzir a incidência do art. 20 da lei n. 8.987/95). A duas porque o art. 65, II, d, da lei n. 8.666/93 fala em acordo entre as partes e, ainda, em justa remuneração, remetendo à ide ia de recuperação equitativa da saúde inicial do contrato. No limite, há argumentos materiais suficientes (justiça contratual, isonomia, segurança jurídica bilateral etc.) para se operar integração por redução teolológica.
(u) Tal incidência contextual da teoria da imprevisão (i) permitiria, sem obrigar, divisão da álea extraordinária entre as partes, sendo que (ii) a divisão não precisaria ser igualitária, e, (iii) se houvesse divisão, ela teria que ser razoável e justificada.
(v) É recomendável a instauração de processo administrativo específico para cada concessão, para analisar, em concreto, como se deu a alocação dos riscos. Também se mostra recomendável averiguar, no procedimento, se há seguro que mitigue o prejuízo. O processo deverá respeitar o contraditório e a ampla defesa. Deve ser comprovado e documentado nos autos dos respectivos processos, caso a caso, o nexo causal entre o evento da pandemia de COVID-
19 e o desequilíbrio econômico-financeiro e, também, entre pandemia e
possíveis inexecuções contratuais. O reequilíbrio é bilateral: ele também pode se dar em favor do estado.
(w) O reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos deve se limitar às prestações englobadas no período em que a pandemia de COVID-19 afetou o contrato. É importante verificar se a concessionária agiu de modo a mitigar prejuízos.
(x) É possível, em prol da continuidade do serviço público e da conservação dos negócios jurídicos, uma vez apurado o desequilíbrio, que seja promovida, nesse mesmo processo administrativo de apuração, a renegociação da repartição de riscos econômicos extraordinários, a ser formalizada em termo aditivo.
(y) Há dever de renegociar, o que não se confunde com o dever de chegar a acordo. Se a conciliação não for possível, deve-se terminar o contrato e promover nova licitação.
7. Encerramento: Rever ou Romper com a Teoria da Imprevisão?
Situações de incerteza suscitam soluções incompletas, difusas, experimentais. Espera-se que as propostas indicadas sejam suficientemente cooperativas e abertas para atender aos requisitos. Um adágio americano afirma que hard cases make bad law. Em 1923, Xxxxxx Xxxxxx escreveu que era o contrário: hard cases make good law. Eles desafiam soluções novas e testam soluções antigas. Pois bem: é chegada a hora de rever nossa teoria da imprevisão.
Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2020.
Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx
Procurador do Estado
VISTO.
Aprovo o bem lançado Parecer n. 07/2020 PGE/PG-17/JVSM, de lavra do Procurador do Estado Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, no exercício da Chefia da Douta Procuradoria Administrativa, que estabeleceu os parâmetros para o eventual reequilíbrio econômico-financeiro das delegações de serviços públicos do Estado do Rio de Janeiro diante da Pandemia da COVID-19, fato inédito a ser enfrentado pela primeira vez na história do Direito brasileiro, ao que, iniludivelmente, procedeu o ilustrado Parecerista que resistiu às facilidades da engenharia jurídica pronta, cujas fundações de seu arcabouço repousavam sobre terrenos diversos do que o que a atualidade se nos apresenta.
Entre os parâmetros fixados, pode-se destacar, ilustrativamente:
1. Os prejuízos foram Causados pela pandemia em si, sendo os atos estatais a ela pertinentes e dela decorrentes d forma consequencial. Em verdade, uma mera decorrência do atendimento às imposições científicas para mitigar os seus efeitos.
2. A Pandemia pode ser enquadrada tanto como força maior, caso fortuito ou genericamente na teoria da imprevisão. É despicienda a taxonomia entre elas para as consequências jurídicas objeto do parecer.
3. Apenas após o fim da pandemia se poderá ser estimada integral e adequadamente os seus efeitos econômicos para as partes dos contratos de delegação. Destacamos também, de nossa parte, que, entre outros, devem ser aferidos pela administração pública os seguintes elementos: o que foi prejuízo e o que foi diminuição do lucro; o que é prejuízo diretamente decorrente da pandemia e o que é prejuízo anterior à pandemia ou vinculado a outras causas, total ou parcialmente; aferir eventuais lucratividades inesperadas ocorridas no passado ou potencialmente verificáveis no futuro (a justiça na economia do contrato deve ser vista globalmente); se o delegatário tomou as medidas possíveis para diminuir seus prejuízos; as reduções de despesas também ocorridas durante a pandemia, como redução de despesas com terceirizados e suspensões de contratos de trabalho etc.
4. A manutenção do equilíbrio econômico-financeiro não pode mais ser vista, ainda mais em contratos incompletos a exemplo das concessões, como uma estática manutenção da relação entre ônus e bônus estabelecida no momento inicial da concessão.
5. O argumento de que o Estado deve ter maiores responsabilidades nas delegações de serviços públicos em razão dos seus poderes exorbitantes, nenhuma relação guarda com fatos imprevisíveis da natureza.
6. Na relação de delegação de serviços públicos, à exceção dos usuários, não há hipossuficientes. Ambas as partes são hiperssuficientes. Na verdade, via de regra, é o delegatário que possui condições técnicas, econômicas e de assimetria informacional muito mais favoráveis do que o Estado.
7. Apesar de não ser necessariamente um pressuposto para as conclusões do parecer, o art. 37, XXI, CF, não consubstancia uma previsão constitucional da garantia do equilíbrio econômico-financeiro. A expressão “mantidas as condições iniciais da proposta” apenas espelha o princípio da vinculação ao instrumento convocatório, inerente à própria ideia de licitação. E, acrescemos, mesmo que assim não fosse, dela não se poderia deduzir este ou aquele modelo determinado de alocação de riscos. Seria como se extrair diretamente da Constituição uma única modelagem da alocação de riscos de todos os contratos celebrados pela administração pública.
8. O art. 65, 11, d, da Lei n. 8666/93, além de não ser aplicável às delegações de serviços públicos, adota o dinâmico conceito de justa remuneração e, mais do que isso, pressupõe a negociação entre as partes, não direitos predeterminados ad hoc.
9. O art. 2º, 11, da Lei 8.987/95, refere-se, genericamente, a todos os riscos das concessões de serviços públicos como sendo de incumbência do concessionário. Mesmo que não se vá tão longe, a parte da doutrina brasileira ora refutada exclui de forma absoluta todos os riscos imprevisíveis da alçada do concessionário. Não o faz, todavia, reciprocamente para excluir todos os riscos ordinários do poder público. Tanto é assim, que não questiona as revisões tarifárias ordinárias periódicas.
10. Essa Parte da doutrina brasileira importou da teoria francesa do equilíbrio econômico-financeiro quase que apenas os elementos favoráveis aos particulares. Olvidou, especificamente, a parte da teoria que dispõe que os fatos imprevisíveis devem ter as suas consequências repartidas entre as partes, e apenas os prejuízos (não os lucros frustrados). A doutrina francesa sempre repugnou que o estado ficasse integralmente responsável por fatos que não lhe podem ser imputados ou por ele geridos, inclusive para manter os lucros dos privados. Tratar-se-ia, realmente, na feliz expressão do parecerista, de uma “teoria indevidamente supergarantista à concessionária”.
11. A posição afirmada pelo parecerista é acompanhada por autores nacionais de grande envergadura, como Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx di Xxxxxx, Xxxx Xxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx.
12. No mesmo sentido, a Teoria Geral dos Contratos, que naturalmente também esteia os contratos públicos, tanto aqui como alhures.
13. O parecer não trata de casos concretos, apenas fixando, para esses poderem ser decididos, mínimos conteúdos materiais (repartição equitativa dos prejuízos oriundos da pandemia) e procedimentais (participação dos delegatários no processo de decisão, abrindo-se, adira-se, inclusive espaço para a manifestação da sociedade).
14. Caso o processo de negociação, seguindo esses parâmetros, não chegue a bom termo, o contrato de delegação pode vir, em derradeira hipótese, a ser terminado.
De fato, na linha do parecer, contrariaria os mais básicos critérios de equidade, justiça e solidariedade social que os danos decorrentes de uma pandemia que abalou toda a humanidade fossem, em uma relação contratual, arcados apenas pela população, seja diretamente através de tarifas, seja através dos tributos que paga ao Estado.
A pandemia, fato exógeno originado fora dos lindes do país e do Estado e superior à sua vontade e a qualquer ato que pudesse praticar para evitá-la, gerou efeitos desastrosos não só para as receitas das empresas, mas também para a arrecadação do Estado e para a renda dos usuários. Há levantamentos econômicos do IBGE, demonstrando, em nível nacional, queda no PIB do Brasil decorrentes da pandemia1. O Estado, de forma inexorável, já combalido pelas sucessivas quedas do barril de petróleo, por uma nova, premente e prejudicial divisão dos royalties do petróleo, crises fiscais promovidas por suas recentes administrações corruptas e ruinosas, além de encontrar-se em situação de óbvia penúria financeira, sofrerá danos em razão desse encolhimento da economia do Brasil, ora provocada por situação total e absolutamente imprevisível, advinda de evento que refoge à cautela não só do homem ou do administrador público mediano, mas que escapa também e por completo o mais prudente e cauteloso dos seres humanos. Portanto, trata-se de onerosa força maior igualmente incidente sobre todas as três partes envolvidas em uma delegação de serviço público. Violaria inclusive a boa-fé e o dever de cooperação contratual, presente em uma concessão de serviços públicos mais do que em qualquer outra espécie de contrato, que uma das partes pretendesse impor integralmente a outra tais ônus. Observe-se que o evento tido por extraordinário foi caracterizado pela Organização Mundial de Saúde como uma pandemia, a primeira em mais de um século. O primeiro Decreto estadual a promover o distanciamento social foi equivocadamente considerado como 'fato do príncipe" por alguns apressados da análise, que, na sanha do precedente opinativo, não perceberam que se tratava de uma consequência e do reconhecimento de um fato posto. Diante da pandemia de COVID-19 e sob o ponto de vista das interações subjetivas num contrato de concessão, Estado, Concessionárias e usuários foram vítimas e não causadores ou motivadores de danos. Metaforicamente, o Príncipe subscreveu o Decreto ajoelhado como seus súditos, submetendo-se aos fatos, produzindo ato de natureza eminentemente declaratória, no sentido de reconhecer seu subjugo àqueles mesmos fatos e às suas inexoráveis consequências,
O Direito Administrativo passa nas últimas décadas por inúmeras transformações, com a revisão de dogmas que se firmavam por si só, sem maiores questionamentos e esteios no direito positivo, Entre esses dogmas doutrinários, não legislativos, se encontrava o de o Estado ter que arcar sozinho por todos os fatos imprevisíveis relevantes que ocorressem no curso de uma delegação de serviços públicos. Em artigo brilhante, vanguardista e premonitório o saudoso Procurador do Estado e Administrativista de proa, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, salientava essas mutações do Direito Administrativo concitando todos a rever os seus conceitos estruturados e as repetições de teses que já então tinha como póstumas. “Há, indubitavelmente, um novo Direito Administrativo, que emergiu e ainda está se definindo, no torvelinho das transformações que continuam a surpreender-nos por serem incrivelmente céleres e profundas” (Mutações do Direito Administrativo, novas considerações, avaliação e controle das transformações in RDE, nº 2, jun-ago/2005, Salvador, pp. 02-17). Esse o desafio por mim proposto à douta Procuradoria Administrativa e exitosamente vencido no Parecer ora aprovado.
Não seria crível que as importantes evoluções pelas quais passa o Direito Administrativo se direcionassem apenas em favor de apenas uma das partes (a privada) da relação jurídico- administrativa, na irrazoabilidade do vetusto dizer “me dá cá essa palha”. Avanços como proporcionalidade, razoabilidade, equilíbrio contratual dinâmico e consensualidade devem ser aplicados igualmente às duas partes das relações contratuais públicas, especialmente em eventos como o da hipótese em apreço, que foge a qualquer padrão de prudência contratual. De mais a mais,
1 Segundo o jornal VALOR, o PIB brasileiro caiu 0,9% no primeiro trimestre de 2020 frente aos três meses que lhe precedeu, conforme informado pelo IBGE. – xxxxx://xxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00/xxxx-xxxxx-xxxxxxx- intensifica-queda-do-pib-com-efeitos-da-pandemia-no-mundo.ghtml – consulta em 19 de agosto de 2020.
além de a legislação infra-constitucional não se bastante à solução da hipótese, esses princípios têm sede constitucional e conformam, por conseguinte, toda a ordem jurídica e sua eventual interpretação.
Xxxxxxx Xxxxxxxx, em artigo, salienta o risco da onerosidade excessiva para uma das partes de um contrato após o advento da pandemia. “Com efeito, a onerosidade excessiva ameaça cortar para os dois lados, e com gume afiado. Nesse cenário, como fazer com a possibilidade de uma revisão que, embora requerida e objetivamente adequada sob a perspectiva tradicional, pode produzir uma onerosidade excessiva “ao contrário?””.2
E, reafirme-se, nem caberia o argumento de essa responsabilidade do Estado por caso fortuito ou força maior decorrer das cláusulas exorbitantes que o poder público possui na relação contratual. Os fatos tratados no Parecer ora aprovado nada têm a ver com as alterações unilaterais que o Estado pode impor às delegações de serviços públicos. São, ao revés, fatos totalmente desvinculados da responsabilidade ou da possível gestão de ambas as partes. Violaria inclusive o princípio da isonomia que apenas uma das partes ficasse por eles responsáveis, e, no extremo, também seria violado o princípio da moralidade em razão de o Estado assumir totalmente fatos que não lhe dizem respeito, como um segurador universal do concessionário.
Tanto é assim que, no direito comparado e na história do direito administrativo, a mencionada parte da doutrina brasileira tradicional é minoritária e, estranhamente, reproduziu legislação estrangeira, excluindo a possibilidade de distribuição dos prejuízos entre o público e o privado, tal como previsto no Direito francês.
Mesmo em países semelhantes ao nosso na alegada instabilidade que levaria a tamanho beneplácito estatal, há divisão dos prejuízos decorrentes daqueles fatos extraordinários. Na Argentina, por exemplo, vige o Princípio do Compartilhamento dos Prejuízos:
Ley 23.696
Art. 49. – RECOMPOSICION DEL CONTRATO: La rescisión prevista en el artículo precedente, no procederá en aquellos casos en que sea posible la continuación de la obra, o la ejecución del contrato, previo acuerdo entre comitente o contratante y contratista que se inspire en el principio del sacrificio compartido por ambas partes contratantes. Estos acuerdos deberán ser aprobados por el Ministro competente en razón de la materia y deberán contemplar las siguientes condiciones mínimas: (...)
Ley nº. 25.344
ARTICULO 3º – La rescisión prevista en el artículo precedente, no procederá en aquellos casos en que sea posible la continuación de la obra, o la ejecución del contrato, previo acuerdo entre comitente o contratante y contratista que se inspire en el principio del sacrificio compartido por ambas partes. Estos acuerdos deberán ser aprobados por la autoridad competente en razón de la materia y deberán contemplar las siguientes condiciones mínimas: (...)
Vê-se então que, como propugnado no parecer aprovado, casos difíceis como esses exigem uma atuação primordialmente negociada das partes, até porque em casos de desequilíbrio sempre será de qualquer forma muito difícil se chegar a números concretos, certos e definidos. Essa necessidade de prévia negociação de boa-fé, não ilide, contudo, que, como deixam exposto os dispositivos legais
2 xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxxx-x-xxxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxx-xx-xxxx-xxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxx-00-xx-xxxxxxxxxx- dos-contratos-07042020 – consulta em 19 de agosto de 2020.
argentinos, deva ela se pautar pelo princípio do compartilhamento dos sacrifícios. Tanto é assim, que até mesmo a nossa Lei n. 8666/93 estabelece que o reequilíbrio diante de fatos extraordinários deve se dar por acordo.
Na Guidance Note emitida em 02/04/2020 pela Infrastructure and Project Authority, o Governo do Reino Unido afirma que a pandemia da COVID-19 não configura uma “Force Majeure Event” nos contratos de PFI e PF24 (equivalentes às parcerias público-privadas – PPPs lato sensu brasileiras):
• Os contratados de PPP devem se considerar parte da resposta do setor público à atual emergência do COVID-19.
• As contra partes contratantes da PPP devem cooperar para garantir a prestação contínua de serviços públicos (a emergência COVID-19 não é, e não deve ser, considerada um evento de força maior).
Já em Portugal, também exemplificativamente, chegaram a ser tomadas as seguintes medidas, Constantes do Decreto-Lei nº 19-A/2020:
Artigo 3º
Pretensões compensatórias e de reposição do equilíbrio financeiro
1 – Nos termos da alínea b) do artigo 4º do Decreto do Presidente da República nº 17-A/2020, de 2 de abril, são suspensas, de dia 3 de abril de 2020 até ao termo da vigência do estado de emergência, as cláusulas contratuais e disposições normativas que preveem o direito à reposição do equilíbrio financeiro ou a compensação por quebras de utilização em qualquer contrato de execução duradoura em que o Estado ou outra entidade pública sejam parte, incluindo contratos de parceria público-privada, não podendo os contraentes privados delas valer-se por factos ocorridos durante o referido período.
2 – Sem prejuízo do disposto no número anterior quanto ao período a que se reporta, nos contratos em que se preveja expressamente o direito do contraente ou parceiro privado a ser com- pensado por quebras de utilização ou em que a ocorrência de uma pandemia constitua fundamento passível de originar uma pretensão de reposição do equilíbrio financeiro, tal compensação ou reposição só pode ser realizada através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência do contrato, não dando lugar, independentemente de disposição legal ou estipulação contratual, a revisão de preços ou assunção, por parte do contraente ou parceiro público, de um dever de prestar à contraparte.
Artigo 8º
Indemnização pelo sacrifício
Não dão lugar a indemnização pelo sacrifício os danos resultantes de atos regularmente praticados pelo Estado ou outra entidade pública, no exercício das competências conferidas pela legislação de saúde pública e de proteção civil, ou no quadro do estado de emergência, para efeitos da prevenção e do combate à pandemia COVID-19, que constitui para o efeito causa de força maior.
No mais clássico direito administrativo francês, XXXXXX XXXX, autores dos mais influentes nos direitos administrativos de todos os países latinos, já afirmava:
“A teoria da imprevisão tem por objetivo assegurar uma ajuda financeira temporária a fim de impedir que o investidor suporte perdas muito altas, para que ele não quebre e não interrompa sua colaboração com o serviço público. (...) É uma teoria excepcional, que deve ser aplicada restritivamente e não extensivamente. (...)
Em nenhum caso a teoria da imprevisão é aplicável se o concessionário não estiver em déficit. Se ele tiver algum ganho, por menor que seja, a teoria da imprevisão não será aplicável. (...) Durante o período crítico propriamente dito, o poder concedente não dará nenhuma ajuda além da estritamente necessário. Ele apenas participa do déficit; uma fração desse déficit continua a cargo do concessionário.”
E, quanto à relação entre parâmetros dos limites da participação do Estado nos prejuízos e a necessidade de prévia negociação entre as partes, denotando como o consensualismo no direito administrativo não é tão recente assim, o mesmo autor explica:
“O Conselho de Estado indicou, por sua jurisprudência, às partes contratantes
– Administração e colaborador –, os elementos essenciais segundo os quais ele faz a repartição. As bases da transação amigável são então conhecidas e não são incertas. Se inspirando nas regras estabelecidas pelo Conselho de Estado, Administração e o contratado devem fazer, eles mesmos um, cálculo aproximativo das quantias que o juiz do contrato, em caso de ausência de acordo, provavelmente atribuirá a cada um. Nessas condições, por que litigar? Melhor se entender.”
Como se vê, tampouco o direito comparado, normalmente tão valorizado pela doutrina do direito administrativo econômico brasileiro, pode ser invocado em favor da corrente doutrinária afastada pelo Parecer ora aprovado, ao menos nessa inédita situação fática.
Reitera-se que o parecer foi emitido sem ter em vista qualquer caso concreto, devendo cada um deles passar por um processo administrativo pericial, com efetiva demonstração e comprovação de perdas e prejuízos de ambas as partes – Estado e Concessionária –, baseados em fatos e cálculos, permitindo-se, a partir daí, a negociação entre Poder Concedente e Concessionária, sempre partindo dos pressupostos materiais a adjetivos acima fixados. As partes poderão valer-se das mais variadas cláusulas obrigacionais do contrato, como prazo, realização de investimentos, entre outras, para o advento de uma ampla revisão contratual negociada, eis que, diante de uma nova ordem socioeconômica, é provável e possível que o interesse à revisão seja de natureza dúplice, tanto do Estado como do Concessionário. Os percentuais de compartilhamento dos danos poderão ser dos mais variáveis, não necessariamente divididos de forma equânime, devendo atender, outrossim, ser considerada a capacidade de cada parte do contrato em suportar o dano havido.
De observar-se, por fim, que a reparação de aumentos de despesa ocorridos e eventual previsão de sua reparação por meio exclusivo do Estado não se confunde com a situação advinda da pandemia de COVID-19, onde houve redução da demanda e da receita, fatos esses objeto e exame do Parecer acima aprovado.
Revela-se oportuno, considerando os múltiplos interesses e o escopo de haver uma unidade de tratamento entre as concessionárias nas negociações com o Poder Concedente, que seja elaborado um Decreto do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, no sentido de estatuir diretrizes gerais para a negociação alvitrada. Assim, recomendo à PG-17, por meio do ilustre Parecerista, minutar sobredito Decreto a fim de ser, ulteriormente, enviado à Chefia do Executivo.
À Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro – AGETRANSP e à Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro – AGENERSA.
Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2020.
Xxxxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Subprocurador-Geral do Estado