APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS. PRELIMINARES. NÃO CONHECIMENTO DA APELAÇÃO. PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. AUSÊNCIA DE JURISDIÇÃO...
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Nº 70072090608 (Nº CNJ: 0419254-25.2016.8.21.7000) 2016/CÍVEL
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS. PRELIMINARES. NÃO CONHECIMENTO DA APELAÇÃO. PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. AUSÊNCIA DE JURISDIÇÃO BRASILEIRA PARA O PROCESSO E JULGAMENTO DO CASO. JURISDIÇÃO BRASILEIRA. PRINCÍPIOS UNIDROIT RELATIVOS AOS CONTRATOS COMERCIAIS INTERNACIONAIS. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE CONTRATOS DE COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS. DEVER DE BOA-FÉ.
1- Deve ser rejeitada a preliminar de não conhecimento do apelo, pois, contrariamente ao alegado pela autora, em contrarrazões, o recurso impugna de forma direta os fundamentos da sentença, guardando observância ao princípio da dialeticidade.
2- Do mesmo modo, não merece acolhimento a preliminar da ré que tampouco prospera, por aplicação do critério domiciliar de fixação de jurisdição internacional. Jurisdição brasileira caracterizada, no caso, pela circunstância de que a requerida possui domicílio no Brasil – o que se apura com base no art. 75, IV, Código Civil, considerando que, por força do princípio da territorialidade em matéria processual, cânone do Direito Internacional Privado, a qualificação do domicílio, para a questão em tela, deve dar-se à luz da “lex fori”. Preliminar cuja rejeição funda-se, assim, na hipótese de jurisdição internacional concorrente dada pelo art. 88, I, do CPC/73 (vigente ao tempo da propositura da ação), e pelo art. 12, “caput”, da LINDB. Desacolhimento da preliminar que igualmente se dá ante a impropriedade da evocação, pela ré, do art. 100, IV, “d”, do CPC/73: o dispositivo estipula norma de competência interna, cujo âmbito, por isso, não se justapõe àquele do art. 88, e cuja incidência, pela mesma razão, ocorre de forma sucessiva àquele.
3- Não merece prosperar a tese defensiva de nulidade do contrato entabulado entre as partes, porque não verificada qualquer uma das situações previstas no
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Capítulo III dos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, tratando-se a arguição da ré, na verdade, de afronta manifesta à máxima de boa-fé nas relações comerciais internacionais, conforme se extrai do art. 7(1) da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (“Convenção de Viena de 1980”). Sentença de procedência mantida.
4- Desprovimento do apelo que também decorre da rejeição do pedido sucessivo de minoração dos honorários sucumbenciais, pois já fixados no patamar mínimo dado pelo art. 85, §2º, do Novo CPC. Preliminares rejeitadas. Apelação cível desprovida.
DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL | |
Nº 70072090608 (Nº CNJ: 0419254- 25.2016.8.21.7000) | COMARCA DE CAXIAS DO SUL |
VOGES METALURGIA LTDA. | APELANTE |
INVERSIONES METALMECANICAS I.C.A. – IMETAL I.C.A. | APELADA |
AC Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em rejeitar as preliminares e, no mérito, em negar provimento à apelação cível.
Custas na forma da lei.
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Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. XXXXXXXX XXXXX (PRESIDENTE) E XXX.x XXX XXXXX XXXXXXXX XXXXX XXXXXX XXXXXX.
Porto Alegre, 30 de março de 2017.
DES. XXXXXXX XXXXXXXX SUDBRACK,
Relator.
R E L A T Ó R I O DES. XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX (RELATOR)
De início, a fim de evitar desnecessária tautologia, transcrevo o relatório da sentença recorrida, proferida pela Xxxxxxxxxx xx 0x Xxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx xx Xxxxxx xx Xxx, Xxx. Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
INVERSIONES METALMECANICAS I,C.A. (IMETAL,
C.A.), já qualificada na inicial, ajuizou AÇÃO DE COBRANÇA contra VOGES METALÚRGICA LTDA.,
referindo que importou mercadorias da ré (16 motores elétricos trifásicos), pelo valor total de US$ 73.996,44. Em razão do mercado de importação da Venezuela permitir a compra de dólares americanos, mediante o CADIVI, órgão governamental de controle de câmbio e importação, somente quando as mercadorias chegarem no porto, foi pago o valor mencionado à ré antecipadamente a fim de viabilização da operação comercial. Contudo, a fim de cumprir as regras do seu país, com rígido controle de câmbio, efetuou o pagamento novamente à ré quando da chegada das mercadorias no porto, a qual, conforme combinado entre as partes, ficou de restituir o valor, o que não ocorreu. Pediu a procedência da ação para a condenação da ré ao pagamento do valor de R$
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150.908,33, consoante conversão em 23/01/2013. Juntou documentos.
A ré contestou o pedido (fls. 51/67), arguindo, em preliminar, incompetência absoluta da Justiça Brasileira para julgamento da causa e necessidade de tradução dos documentos escritos em língua estrangeira. No mérito, alegou que a autora não se desincumbiu do seu ônus de demonstrar o suposto bis in idem dos pagamentos e que somente recebeu de forma legal o valor correspondente a operação realizada entre as partes, consoante as regras do Sistema Financeiro Venezuelano. Ressaltou a impossibilidade de ressarcimento dos valores pretendidos pela autora, pois fruto de ato ilícito cometido em seu país, com burla das regras, através de pagamentos por banco norte-americano, versão também não comprovada. Defendeu a nulidade do negócio jurídico, pedindo a improcedência da ação. Acostou documentos.
Houve réplica (fls. 83/92)
As partes foram intimadas sobre o interesse em produzir provas. A autora requereu a expedição de ofício ao Banco Central a fim de informar acerca dos depósitos realizados em favor da ré e produção de prova oral. A ré noticiou o deferimento do pedido de sua recuperação judicial, ratificando as preliminares arguidas (fls. 93/99).
A ré requereu o benefício da AJG (fls. 111/117).
Em despacho saneador (fl. 123), foi desacolhida a preliminar de incompetência absoluta e indeferida prova oral. Restou desacolhida, ainda, a alegação de ausência de pressuposto judicial pela não tradução dos documentos acostados pela autora, tendo em vista que de língua de fácil compreensão. Foi deferido o pedido de expedição de ofício ao Banco do Brasil.
A ré interpôs agravo de instrumento, ao qual foi negado provimento (fls. 173/184).
O Ministério Público teve vistas dos autos, dizendo não se tratar de caso de intervenção (fl. 120).
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Foi dado vistas dos autos ao Administrador Judicial, que opinou pelo prosseguimento (fl. 122).
Foi indeferido o pedido de AJG formulado pela parte ré (fl. 154). Houve agravo de instrumento, ao qual foi negado seguimento (fls. 204/206).
Sobreveio resposta do ofício (fls. 196/202), dando-se vistas às partes, fazendo-se, depois da manifestação delas, os autos conclusos para sentença.
Já o dispositivo sentencial foi assim redigido:
ISSO POSTO, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO,
condenando a ré ao pagamento do débito em favor da autora, no valor de R$ 150.908,33 (cento e cinquenta mil novecentos e oito reais e trinta e três centavos), a ser corrigido monetariamente pelo IGP-M(FGV) a contar de 23/01/2013 e acrescido de juros de mora de 1% ao mês a incidir da citação.
Sucumbente, arcará a ré com o pagamento das custas processuais e honorários advocatícios aos patronos da autora, os quais fixo em 10% sobre o valor atualizado da condenação, com fundamento no § 2º do art. 85 do CPC/15.
Inconformada, apelou a ré, Voges Metalurgia Ltda. Referiu, primeiramente, a ausência de prova, nos autos, quanto à transferência de valores em duplicidade alegada pela empresa estrangeira autora, na petição inicial, assim evocando a norma do art. 373, I, do CPC/2015, e requerendo a reforma da sentença para, dessa forma, julgar-se totalmente procedente o pedido. Xxxxxx, nesses termos, que a autora não se desincumbiu do ônus de comprovar os fatos constitutivos do seu direito. Em seguida, aduziu que, ainda que se repute satisfeito o encargo probatório atinente à autora, o pedido deve ser julgado improcedente, haja vista a nulidade do negócio
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jurídico, na forma no art. 166, II, do Código Civil, à luz do regramento do sistema financeiro venezuelano. Formulou, por fim, pedido sucessivo de minoração da verba honorária sucumbencial, impugnando o seu arbitramento em 10% sobre o valor atualizado da condenação com base na equidade, na proporcionalidade e na razoabilidade. Assim, postulou o provimento do apelo (fls. 224/236).
Após o recebimento do apelo, nos efeitos devolutivo e suspensivo, a empresa estrangeira autora apresentou contrarrazões, nas quais formulou preliminar de não conhecimento do recurso, por ausência de impugnação específica dos fundamentos da sentença (fls. 251/259). Em seguida, os autos foram remetidos a esta Corte e a mim distribuídos, por prevenção, por força do art. 146, V, do Regimento Interno do TJRS1. E, quando já conclusos os autos em gabinete, converti o feito em diligência, nos seguintes termos (fl. 260):
Do exame dos autos, exsurge dúvida quanto ao ordenamento jurídico aplicável ao deslinde do mérito da controvérsia: embora se trate, a toda a evidência, de operação de compra e venda internacional de mercadorias, os elementos de prova constantes do feito não se mostram conclusivos acerca do modo e local de celebração do contrato entabulado entre as partes.
Assim, à luz das regras de conexão aplicáveis a contratos com elemento de estraneidade entre presentes e entre ausentes dadas, respectivamente, pelo art. 9º, “caput” e §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, esclareçam as partes a
1 A distribuição por prevenção deveu-se aos acórdãos proferidos, sob minha Relatoria, no Agravo de Instrumento n.º 70065345423, em que este Colegiado rechaçou a arguição da ré de ausência de jurisdição brasileira para o caso em apreço, e no Agravo de Instrumento n.º 70066307596, no qual foi indeferida à demandada a concessão do benefício da gratuidade judiciária.
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este Juízo quanto ao local e/ou modo de celebração do contrato de que trata o litígio, no prazo de 10 (dez) dias, a fim de possibilitar a identificação do Direito aplicável.
Após, retornem os autos conclusos a este Relator, para a oportuna inclusão do recurso em pauta de julgamento colegiado.
Em resposta, a empresa demandada referiu que a avença foi firmada na Venezuela, devendo “ser aplicadas as normas daquele país para fins de deslinde das controvérsias narradas neste caso”, ao mesmo tempo em que requereu “o reconhecimento da incompetência absoluta da Justiça brasileira para julgar o caso, nos termos do art. 9o, “caput”, da LINDB, e do art. 100, IV, “d”, do Código de Processo Civil de 1973 (fl. 265). Já a autora referiu que o contrato foi firmado no Brasil, nada mencionando, contudo, sobre a preliminar de falta de jurisdição brasileira ou, ainda, sobre o Direito aplicável ao deslinde do mérito (fls. 270/271).
É o relatório.
V O T O S
DES. XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX (RELATOR)
1 Questões preliminares
1.1 Não conhecimento da apelação cível
O exame do apelo da pessoa jurídica ré, Voges Metalurgia Ltda., evidencia que, nas razões dirigidas a esta Corte, a demandada impugna, sim, os fundamentos da sentença. A Magistrada sentenciante considerou haver prova suficiente, nos autos, da transação financeira realizada entre as partes, conclusão diretamente contraposta, pela ré, ao
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arguir a norma do art. 373, I, do CPC/2015. Ademais, também constou da sentença juízo quanto à plena validade do negócio jurídico, o que a ré pretende desconstituir por meio da evocação do art. 166, II, do Código Civil. Logo, não há dúvida de que a recorrente observou plenamente o princípio da dialeticidade, tendo impugnado de modo específico o “thema decidendum”, do que decorre a rejeição da preliminar da demandante de não conhecimento do apelo da ré.
1.2 Ausência de jurisdição brasileira para o caso
Tampouco a preliminar arguida pela ré merece ser acolhida, porque, contrariamente ao que alegou, o litígio em apreço não extrapola os limites da jurisdição brasileira. A constituição de advogado no Brasil, pela empresa estrangeira, com a subsequente propositura, aqui, da presente ação, encontra pleno respaldo no Direito brasileiro, por força das normas do art. 88, I, do Código de Processo Civil de 1973, vigente ao tempo do seu ajuizamento, e do art. 12, “caput”, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Em síntese, o litígio decorrente do contrato internacional em apreço pode ser movido perante o Poder Judiciário brasileiro porque a ré, Voges Metalurgia Ltda., tem domicílio no Brasil.
O Direito Internacional Privado consagra, em matéria processual, o princípio da territorialidade, por força do qual é a “lex fori”, ou seja, a lei do Estado no qual tramita a ação, que determina “a disciplina da atuação do juiz e das partes, a organização do Judiciário e o processo e procedimento envolvidos”2. Precisamente em função disso, a Convenção de
2 BASSO, Maristela. Curso de direito internacional privado. – 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2014, p. 181.
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Direito Internacional Privado de Havana de 1928 (o “Código Bustamante”)3 estabelece, em seu art. 314, que “a lei de cada Estado contratante determina a competência dos tribunais, assim como a sua organização, as formas de processo, a execução das sentenças e os recursos contra suas decisões”. Disso decorre que, para fins de exame do preenchimento da hipótese de jurisdição brasileira dada pelo art. 88, I, do CPC/73 e pelo art. 12, “caput”, da LINDB, a verificação do domicílio da ré deve dar-se com base no ordenamento jurídico brasileiro. Em outros termos, devido ao princípio da territorialidade em matéria de Direito Internacional Privado, é à luz do Direito Brasileiro que o Magistrado deverá perquirir se o réu possui domicílio no Brasil4, de tal sorte que o enfrentamento da preliminar, no caso concreto, passa pela aplicação do art. 75, IV, do Código Civil, a teor do qual se define como domicílio da pessoa jurídica “o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos”. Portanto, considerando que os atos constitutivos da requerida, em apenso à contestação, informam que a sociedade empresária limitada ré tem como sede social e foro jurídico o Município de Caxias do Sul/RS (Cláusula Segunda, fl. 70), resta claro que, repita-se, à luz do art. 75, IV, do
3 O assim chamado Código Bustamante integra o ordenamento jurídico brasileiro desde a promulgação do Decreto Presidencial n.º 18.871, de 13.08.1929, ato presidencial que concluiu o rito de incorporação do tratado em questão ao ordenamento jurídico brasileiro interno, assim dotando-o de eficácia e possibilitando a sua aplicação judicial, inclusive independentemente de evocação pelas partes. Nesta Câmara, convém ressaltar, o recurso à normativa do Código Bustamante já tem precedentes: na Apelação Cível n.º 70070573506, de minha Relatoria, esta Corte valeu-se da norma do art. 399 do Código Bustamante para examinar, com base na legislação processual argentina, a regularidade extrínseca das provas produzidas, naquele feito, com relação a fatos ocorridos no território argentino; e, na Apelação Cível n.º 70061035572, igualmente de minha Relatoria, este Colegiado evocou a norma do art. 401 do Código Bustamante para aferir, com base nas regras de ônus da prova dadas pelo Direito brasileiro, a suficiência dos elementos probatórios produzidos quanto aos fatos ocorridos em território uruguaio, com amparo, ainda, no disposto no art. 13 da LINDB.
4 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Domicílio e residência no direito internacional privado. Revista dos
Tribunais, n.º 372, out./1966, p. 7-21.
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Código Civil, a demandada é pessoa jurídica domiciliada no Brasil, o que caracteriza, por si só, a hipótese dos precitados art. 88, I, do CPC/73, e art. 12, “caput”, da LINDB.
Digo que a sede social da ré em território brasileiro caracteriza, por si só, a jurisdição brasileira porque, como já tive a ocasião de pontuar – com amparo em distinta doutrina sobre o tema5, quando do julgamento da Apelação Cível n.º 70070573506, em 27/10/2016 –, o rol de hipóteses legais de configuração da jurisdição brasileira concorrente não possui natureza cumulativa. Ou seja, basta que um dos cenários enumerados pelo ora revogado art. 88, I, do CPC/73, esteja preenchido para que, no caso concreto, o Magistrado brasileiro detenha jurisdição. Logo, a rejeição da preliminar em exame prescinde de que se verifique se é o Brasil o local de cumprimento da obrigação (inciso II o art. 88 do CPC/73) ou, ainda, se o litígio decorre de ato ou fato aqui praticado (inciso III do art. 88 do CPC/73). A jurisdição brasileira caracteriza-se simplesmente pela localização do domicílio da ré em território nacional, daí porque, em última análise, a rejeição da preliminar em tela funda-se, no caso concreto, na simples aplicação do critério domiciliar do qual já me vali – ressalto – tanto na Apelação Cível n.º 70061035572, julgada em 23/04/2015, quanto no Agravo de Instrumento n.º 70065345423, em 10/09/2015.
De outra parte, convém ressaltar – até mesmo para evitar a eventual oposição de embargos de declaração, pela ré, com base no art. 489, IV, do CPC/2015 – que tampouco o teor da manifestação da ré em
5 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Problemas relativos a litígios internacionais. – Doutrinas essenciais de direito internacional. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Vol. 04, p. 1237-1261, 2012.
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resposta ao despacho deste Relator de conversão do feito em diligência, possibilita o acolhimento da preliminar. Em nada diz com a prefacial em tela a alegação da ré de que a firmatura e a execução do contrato ocorreram na Venezuela, com base na qual não só requereu a aplicação do Direito venezuelano como, ademais, sustentou a “incompetência absoluta da Justiça brasileira, nos termos do art. 9º, “caput”, da LINDB, e do art. 100, IV, “d”, do CPC/1973” (fls. 265/265v). Ora, é evidente a imprecisão com que a demandada aborda os conceitos de jurisdição competente, que interessa à preliminar em tela, e de Direito aplicável, que com essa não se confunde e que será objeto de exame no item a seguir. Ademais, o art. 100 da lei processual revogada dispunha sobre critérios de competência interna, ou seja, estipulava normas internas de organização judiciária, cuja incidência é, portanto, temporalmente posterior à análise da existência de jurisdição brasileira para o caso6. Por isso, não há espaço para o acolhimento da tese defensiva de que a presente ação deveria ter sido ajuizada na Venezuela, sob o fundamento de que a empresa estrangeira autora exige o cumprimento de obrigação em tese lá inadimplida, na forma do art. 100, IV, “d”, do CPC/73.
Em suma, tal como referi no voto de Relator que proferi no já mencionado Agravo de Instrumento n.º 70065345423,
[...] o art. 12, “caput”, da LINDB, e o art. 88, I, do CPC (de 1973), são exemplos de normas de delimitação da “competência internacional”, isto é, dos limites espaciais da autoridade judiciária brasileira, questão
6 XXXXXXXX, Xxxxxx, XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxx. Jurisdição e competência para o julgamento de ilícitos cíveis com elementos de estraneidade segundo o direito brasileiro. Revista de Processo, vol. 231, mai./2014, p. 39-54.63
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essa que é anterior à demarcação da competência interna, da qual se encarrega o art. 100 do mesmo CPC. Trata-se, pois, de normas cujos campos de aplicação não se justapõem, porque não se confundem, e cujas incidências têm lugar, no tempo, de forma sucessiva, sendo aquela anterior a essa.
Nesses termos, afasto a preliminar de ausência de jurisdição brasileira para o caso, assim rejeitando o pedido de extinção do feito sem resolução do mérito, com base no art. 485, IV, do CPC/2015 (ao qual correspondia o art. 267, IV, do CPC/73), evocado pela ré / apelante.
2 Questão prejudicial
A controvérsia relativa ao local e ao modo de firmatura do contrato de que cuidam os autos revela-se fundamental ao mais correto deslinde do mérito, porque o ordenamento jurídico aplicável à questão de fundo pode variar, a depender da sua celebração entre presentes ou entre ausentes – ou, ainda, no último caso, a depender de qual das partes haja figurado como proponente. Afinal, é sabido que a LINDB, ao estabelecer o rol de elementos de conexão do Direito Internacional Privado brasileiro, consagra a regra “locus regit actum” ou “ius loci celebrationis”, i.e. lei do local da celebração, para as obrigações de caráter contratual, como se depreende do seu art. 9º. Precisamente em função disso, a divergência das partes a esse respeito pode qualificar-se, à luz do Direito Processual Civil, como questão prejudicial, visto que essa, diferentemente da questão preliminar,
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não impede o exame do mérito, tratando, isto sim, de condicioná-lo, ou seja, determinando como ele será julgado7.
Assim sendo, analiso o tópico em apreço nesta seção, de forma apartada das preliminares, e desde logo pontuo que a conversão à que procedi do feito em diligência, com o escopo de identificar o Direito aplicável à resolução do mérito, está em plena conformidade com a legislação pátria. Por um lado, porque assim se propiciou às partes o exercício do contraditório sobre a questão prejudicial em tela, ao gosto do art. 10 do CPC/2015, nos termos do qual “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Por outro, porque a doutrina do Direito Internacional Privado brasileiro apresenta-se majoritária, senão unânime, no sentido de que o Juiz deve perquirir quanto à aplicação do Direito estrangeiro, e eventualmente aplicá-lo, mesmo “ex officio”, ou seja, independentemente de arguição das partes, sob pena, em última análise, de incorrer em negativa de vigência às normas da Lei de Introdução que estipulam os elementos de estraneidade ou de conexão dos quais deve valer-se o Juiz nacional8 9.
7 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxx, XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx de. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. – 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 503.
8 Nesse sentido: XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Aplicação do direito estrangeiro pelo juiz nacional. Revista dos Tribunais, vol. 794, jun./1999, p.33-45; BASSO, Maristela. Curso de direito internacional privado. – 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2014, p. 296; XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xx. Da aplicação do direito estrangeiro pelo juiz nacional. Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1968, p. 25; XXXXXXXX, Xxxxx. Direito internacional privado: parte geral. – 11. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 284- 285; XXXXXXXXX, Xxxxxxx, XXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Lei de introdução ao Código Civil comentada. Vol. III. Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1944, p. 387; XXXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Direito internacional privado: teoria e prática. – 15. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012, p.
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Pois bem. A empresa demandada referiu que a avença foi firmada na Venezuela, devendo “ser aplicadas as normas daquele país para fins de deslinde das controvérsias narradas neste caso” (fl. 265), ao passo que a autora sustentou ter sido o Brasil o local de celebração do contrato, sem nada mencionar quanto ao Direito aplicável (fls.270/271). Assim, é certo que e a resposta de ambas as partes à ordem da fl. 260 não esclarece a esta Corte se o deslinde do mérito do presente litígio deve dar-se com base no Direito brasileiro, por força do “caput” do art. 9º da LINDB, ou, ao invés disso, com base no Direito venezuelano, por força do §2º do mesmo art. 9º da Lei de Introdução. Ou, dito de outro modo, tendo em vista o teor das manifestações da autora e da ré, bem como a ausência de quaisquer documentos relativos a elas, a conversão do feito em diligência não logrou êxito em modificar o caráter inconclusivo do conjunto probatório trazido aos autos anteriormente à sentença, quanto ao elemento de conexão e o Direito aplicável: afinal de contas, as faturas, comprovantes de transferência de valores e cópias de e-mails trazidos conjuntamente à petição inicial (fls. 21/36) nada provam a esse respeito, assim como não o fazem os
260-261; XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xx. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. Rio de Janeiro: Xxxxxxxx, 1943, Vol. 03, p. 308; XXXXXXX, Xxxxx. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 410; XXXXXXXX, Xxxxxxx. Direito internacional privado. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1980, Vol. 1, p. 464.
9 Nesta Corte, o Codigo Procesal Civil y Comercial de La Nación Argentina foi aplicado, de ofício, para fins de exame das provas produzidas, nos autos da Apelação Cível n.º 70070573506, relativamente aos fatos daquela demanda ocorridos em território argentino, nos termos do voto de Relator que proferi, a partir do disposto no art. 13 da LINDB; e, na Apelação Cível n.º 70061035572, também sob minha Relatoria, recorreu-se, igualmente “ex officio”, ao teor das normas do Codigo General de Proceso e do Codigo Civil de La República Oriental del Uruguay, tanto para cotejo probatório, relativamente aos fatos ocorridos naquele Estado, quanto para o deslinde da questão de fundo, atinente aos pressupostos da responsabilidade civil decorrente de acidente de trânsito – o que se deu não apenas a partir das normas do art. 9º, “caput”, e do art. 13, ambos da LINDB, como também por força do disposto no art. 3º do Protocolo de São Luiz em Matéria de Responsabilidade Civil Emergente de Acidentes de Trânsito entre os Estados Partes do MERCOSUL.
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documentos juntados nas fls. 196/202 ou nas fls. 210/214. Toda a prova documental trazida ao feito diz respeito apenas ao pagamento dos valores relativos ao contrato, não contendo qualquer informação quanto ao modo ou local da sua celebração.
Tecnicamente, portanto, não há respaldo para que se acolha o pleito da ré de aplicação do Direito venezuelano, visto que não foi comprovada, nos autos, a circunstância de celebração do contrato no território daquele Estado, seja entre presentes (art. 9º, “caput”, LINDB), seja entre ausentes, com a autora como proponente (art. 9º, §2º, LINDB). Ao mesmo tempo, contudo, não se pode afirmar, a partir do cotejo dos autos, que o contrato tenha sido celebrado no Brasil. Em síntese, são incertos o modo e o local de firmatura do contrato de que versa o litígio, o que guarda relação direta com a identificação do marco jurídico a incidir no deslinde do mérito. Este, portanto, se trata de caso concreto em que a identificação do Direito aplicável reclama o recurso ao princípio da proximidade (“most significant relationship rule”), sobre o qual se manifesta Jacob Dolinger10:
O mais relevante princípio do moderno direito internacional privado é o da proximidade, que estabelece que as relações jurídicas devem ser regidas pela lei do país com a qual haja a mais íntima, próxima, direta conexão. Esse critério, muito mais flexível do que as regras de conexão, decorre do progressivo abandono de abordagens de natureza técnica e maior atenção às realidades sociais e econômicas que embasam o fenômeno jurídico.
A lei mais próxima é a que se situa mais próxima das partes e/ou da relação jurídica – é a lei mais talhada, mais adequada, mais apropriada para a causa em
10 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito internacional privado: parte geral. – 11. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 356.
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questão, portanto, a mais pertinente. A proximidade está no sentido da adequação.
[...]
Lembram autores que, quando Xxxxxxx falava na busca da sede da relação jurídica, estaria lançando a idéia de proximidade.
Este Colegiado já recorreu ao princípio da proximidade, por exemplo, na Apelação Cível n.º 70070973771, em 27/10/2016. Naquele precedente, o princípio atuou no sentido de afastar a incidência do California Civil Code e, com isso, ensejar a aplicação do Direito brasileiro – i.e. do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor – para resolver o mérito do litígio, relativo ao descumprimento de contrato de transporte de mudança que, a despeito da sua celebração no estado norte-americano da Califórnia, havia sido executado no Brasil, local da maior irradiação de efeitos jurídicos da avença, sobretudo porque aqui os consumidores da ação haviam experimentado os distintos desdobramentos das falhas na prestação dos serviços contratados.
Ademais, no recente julgamento da Apelação Cível n.º 70072362940, em 14/02/2017, de que também fui Relator, o princípio da proximidade foi utilizado a fim de afastar a lei dinamarquesa (que em princípio incidiria por força do art. 9º, §2º, da LINDB) para, assim, determinar como marco jurídico aplicável ao mérito os Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais e a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (a “Convenção de Viena de 1980”). A íntegra do voto de Relator por mim proferido evidencia que, naquele julgamento – tendo em vista que o litígio
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dizia respeito a contrato internacional de compra e venda de bens simultaneamente conectado à Dinamarca, ao Brasil e à China –, identificou- se como marco jurídico aplicável o teor da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit por considerá-lo mais talhado, mais adequado, mais apropriado ao enfrentamento das controvérsias decorrentes das relações entabuladas na seara do comércio internacional. E esse juízo amparou-se, por um lado, no reconhecimento da Convenção e dos Princípios como exemplos dos usos e costumes vigentes no comércio internacional, e, por outro, no fato de que a sua pertinência ganha especial relevo, no contexto brasileiro, ante o caráter insuficiente e obsoleto do regime de elementos de conexão ditado pelo art. 9º da LINDB. A esse respeito, reporto-me, novamente, à obra da eminente doutrinadora Xxxxxxxxx Xxxxx:
[...] as regras de conexão para determinação da lei aplicável aos contratos conforme exemplificadas pelo conteúdo normativo do art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (aqui uma referência ao método conflitual clássico) não estão ajustadas à dinâmica e práticas de negociações que foram surgindo no domínio do comércio internacional, especialmente no período do Pós-Guerra no curso das relações econômicas interestatais. Por isso é que a adoção de regras da nova ‘lex mercatoria’ aparece, em sua pretensão de validade doutrinária e jurisprudencial, como uma tentativa de superação dos principais problemas que apresentava a aplicação das regras de conexão clássicas do direito internacional privado para os contratos celebrados entre os principais atores do comércio internacional.11
11 BASSO, Maristela. Curso de direito internacional privado. – 4. ed. – São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 256.
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Em suma, estou rejeitando a arguição prejudicial da ré de aplicação do Direito venezuelano, com base no art. 9º da LINDB, e resolvendo a questão prejudicial no sentido de que o mérito da presente ação de cobrança deve reger-se pela normativa da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit. Por isso, aqui me reporto, como razões de decidir acerca do tema, ao teor do voto por mim proferido na antes mencionada Apelação Cível n.º 70072362940, julgada em 14/02/2017, cujos fundamentos igualmente integram, pois, a presente decisão.
Ressalvo, todavia, que a tese defensiva atinente à nulidade do contrato não se submete à Convenção de Viena de 1980, já que essa estipula expressamente não disciplinar a “validade do contrato ou de suas cláusulas, bem como a validade dos usos e os efeitos que o contrato pode ter sobre a propriedade das mercadorias vendidas”, na alínea “a” do seu art. 4°. Esse aspecto do mérito será analisado com base tão somente no marco do Capítulo III dos Princípios Unidroit, porque considero que, a fim de suprir as lacunas existentes no regramento da Convenção de Viena de 1980, o Juiz que a aplica deve reportar-se, primordial e preferencialmente, não ao Direito interno, mas sim às demais normas da “nova lex mercatoria” e de direito uniforme pertinentes aos litígios emergentes do comércio internacional. Afinal de contas, do caráter internacional da Convenção, consagrado no seu art. 7(1), decorre que as soluções jurídicas construídas a partir da Convenção “devem ser aceitáveis em sistemas jurídicos diferentes e com diferentes tradições jurídicas e culturas, os quais podem interpretar matérias na
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área da compra e venda diferentemente e tratá-las diferentemente”12, do que extraio a maior aptidão do Direito uniforme, que tem precedência sobre o Direito interno, para suprir as lacunas externas da Convenção13.
3 Mérito
Com o intuito de obter a improcedência do pedido condenatório, a empresa brasileira ré sustentou a nulidade do contrato firmado entre as partes alegando, para tanto, que a avença foi pactuada à margem e em burla da regulações vigentes, na República Bolivariana da Venezuela, em matéria de operações de câmbio e importação. Foi nesse sentido a manifestação da ré em contestação (fls. 51/67) e na apelação dirigida a esta Corte (fls. 224/236), em síntese, no sentido de que, considerada a obrigatoriedade de emissão de dólares norte-americanos, para pagamento da importação, somente quando da chegada da carga na aduana venezuelana, não poderia a compradora (empresa com sede e atuação naquele país, bem como conhecedora, presumivelmente, da legislação a que submetida) ter efetuado adiantamento do valor da carga, para posterior reembolso, assim não fazendo jus – aduziu – à restituição pretendida. No marco do Capítulo III dos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, todavia, não há possibilidade de acolhimento da tese defensiva de nulidade do contrato.
12 SCHLECHTRIEM, Xxxxx, XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Comentários à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias / Xxxxx Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx; coordenação de tradução Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxx Xxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 205/206.
13 XXXX XXXXXX, Xxxxx. A sinergia entre a Convenção de Viena e os Princípios Unidroit
relativos aos contratos comerciais internacionais. In: XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx (Org.), XXXXXXXX, Xxxxxxxxx (Org.). Comentários à Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG): visão geral e aspectos pontuais. – São Paulo: Atlas, 2015, p. 205-243.
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Transcrevo, por oportuno, o regramento dado pela Seção 3 do Capítulo III dos Princípios Unidroit, aplicável ao presente caso:
Artigo 3.3.1 (Contratos que infringem normas imperativas)
(1) Quando o contrato infringir uma norma imperativa, de origem nacional, internacional ou supranacional, aplicável conforme o Artigo 1.4 destes Princípios, os efeitos dessa violação sobre o contrato, quando existentes, serão os efeitos expressamente prescritos pela norma imperativa em questão.
(2) Quando a norma imperativa não prescrever expressamente os efeitos de sua violação sobre o contrato, as partes poderão valer-se das medidas jurídicas nele previstas, desde que razoáveis segundo as circunstâncias.
(3) Para determinar o que é razoável há que se considerar, em particular: (a) a finalidade da norma que foi violada; (b) a categoria de pessoas para cuja proteção a norma existe; (c) qualquer sanção que possa ser imposta conforme a norma violada; (d) a gravidade da violação; (e) se uma ou ambas as partes conheciam ou deveriam ter conhecimento da violação;
(f) se o cumprimento do contrato implica a violação da norma; e (g) as expectativas razoáveis das partes.
Artigo 3.3.2 (Restituição)
(1) Quando tiver ocorrido o adimplemento de um contrato em violação a uma norma imperativa, nos termos do Artigo 3.3.1, a restituição poderá ser concedida sempre que razoável segundo as circunstâncias.
(2) Para determinar o que é razoável, deve-se atentar, com as devidas adaptações, para os critérios referidos no Artigo 3.3.1 (3).
(3) Se a restituição for concedida, aplicar-se-ão as regras previstas no Artigo 3.2.15, com as devidas adaptações.
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Observo, ademais, que os comentários oficiais aos Princípios Unidroit – disponíveis para consulta, via download, junto ao seu website – não definem, propriamente, o conceito de normas imperativas de caráter nacional, limitando-se, ao invés disso, a referir que são aquelas editadas pelos Estados de forma autônoma e soberana, no que tange, por exemplo, a pressupostos de forma específicos para determinados tipos de contrato, à nulidade de cláusulas penais, a requisitos de licenciamento e operação, a regulações em matéria ambiental etc.14 À luz dos Comentários aos Princípios Unidroit, portanto, é possível afirmar que deles se colhe a noção de que a norma de origem nacional apta a qualificar-se como imperativa é aquela relacionada, por sua própria natureza, à noção de ordem pública: em outros termos, é necessário que a norma nacional tida por violada, na pactuação ou na execução do contrato “sub judice”, revista-se de robustez e materialidade significativas, por seus próprios termos, ou, dito de outro modo, que se qualifique como cogente, não como meramente supletiva, para, assim, tornar sem efeitos jurídicos a vontade das partes representada pelo contrato. Prova disso é que, ao enumerar, em caráter exemplificativo, as normas imperativas internacionais, os comentários aos Princípios citam tratados multilaterais tais como a Convenção do Unidroit sobre Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, bem como instrumentos normativos de “soft law” da envergadura da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
14 International Institute for the Unification of Private Law (Unidroit), Rome. Unidroit principles of international commercial contracts 2010, p. 12 e p. 124-127.
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Dito isso, pondero que, no caso concreto, não aportou aos autos qualquer indício no sentido de que a regulação venezuelana de compra de dólares para fins de importação – que a ré alegou ter sido descumprida, na performance do contrato – se possa qualificar como de caráter imperativo, para, assim, ensejar a anulação da avença. Na verdade, não há prova a esse respeito tanto quanto não consta, dos autos, qualquer esforço argumentativo nesse sentido, já que a arguição de nulidade contratual deu-se de maneira vaga e imprecisa, para não dizer genérica e abstrata. Portanto, tenho que competia à ré o ônus probatório a esse respeito, na qualidade de devedora e, portanto, de interessada no reconhecimento da nulidade do contrato. De modo que, não tendo se desincumbido do encargo em questão, o caso em apreço não dá azo à pretendida declaração de nulidade do contrato, mesmo porque o caráter imperativo da regulação venezuelana em matéria de câmbio e importação não pode ser declarado, por esta Corte, sem que a parte interessada aporte quaisquer elementos nesse sentido.
Por outro lado, mesmo que aqui se pudesse qualificar como imperativa a legislação venezuelana interna à margem da qual as partes estipularam o modo de pagamento do valor contratado, remanesceria o direito da compradora à restituição pretendida. Nesse ponto, destaco que, nos termos do já citado art. 3.3.2 dos Princípios Unidroit, “quando tiver ocorrido o adimplemento de um contrato em violação a uma norma imperativa, nos termos do Artigo 3.3.1, a restituição poderá ser concedida sempre que razoável segundo as circunstâncias”. Com efeito, considerando o rol do art. 3.3.1 (3) dos Princípios, particularmente a finalidade da norma violada (a qual não possui qualquer outro escopo que não assegurar a intervenção estatal, via
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intermediação, nas operações de importação e exportação) e a gravidade da violação (absolutamente inexpressiva, considerando que o ajuste das partes constituiu mero adiantamento do pagamento que, pela legislação interna venezuelana, somente poderia ocorrer quando da entrega da mercadoria na aduana), o caso em exame comporta juízo positivo sobre a razoabilidade das circunstâncias, a permitir a restituição pleiteada pela empresa estrangeira autora, ainda que se admita, “ad argumentandum tantum”, que a norma venezuelana violada se qualifique como de cunho imperativo.
Se o regramento específico em matéria de ilegalidade contratual dado pelo Capítulo III dos Princípios Unidroit não respalda a tese da ré, tampouco o fazem, em última análise, as cláusulas gerais dadas pela Convenção de Viena de 1980.
Ainda que a CISG não discipline o tema da nulidade contratual, como dito, à maneira dos Princípios Unidroit, é certo que estipula o dever de boa-fé como cânone estruturante fundamental do regramento do fluxo transfronteiriço de mercadorias, fazendo-o conjuntamente às referências ao seu caráter internacional e à necessidade de promover a sua aplicação uniforme, na forma do seu art. 7(1). Sobre a conjunção do dever de boa-fé no comércio internacional com os demais preceitos ora apontados, reporto- me à elucidativa lição de Xxxxx Xxxxx e Renata Steiner15:
As duas expressões referenciadas à interpretação da Convenção no texto do art. 7 (1) CISG, são caráter internacional e aplicação uniforme, devendo a elas ser atribuído um conteúdo imperativo, sendo este o
15 XXXXX, Xxxxx, XXXXXXX, Xxxxxx. Compra e venda internacional de mercadorias: a Convenção das Nações Unidas sobre compra e venda internacional de mercadorias (CISG) / Xxxxx Xxxxx, Xxxxxx
C. Xxxxxxx. – Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 162.
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sentido que se extrai do comando “[...] ter-se-ão em conta [...]”.
Este é um dispositivo fundamental da CISG, cujo respeito deve ser rigoroso, uma vez que leva tanto em consideração a sua natureza pública e internacional como a sua própria razão de ser, que vem a ser a promoção da boa prática do comércio internacional, fundada no conhecimento de regras jurídicas comuns aos Estados contratantes – um dos principais objetivos da CISG e da UNCITRAL.
Portanto, também por esse prisma há óbice ao acolhimento da tese defensiva de nulidade contratual. Como consignei no voto de Relator proferido na já mencionada Apelação Cível n.º 70072362940, julgada em 14/02/2017, “a Convenção de Viena de 1980 constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias”, podendo ser qualificada como costume, tanto à luz do Direito Internacional Público, quanto à luz do Direito Civil brasileiro, razão pela qual está ao alcance dos Juízes nacionais, na forma do art. 113 do Código Civil de 2002. Ora, se a Convenção de Viena de 1980 define-se como expressão máxima da praxe do comércio internacional e, dito isso, se tal praxe tem por cânone maior a necessidade de respeito à boa-fé, então é certo que não assiste razão à ré, sob a Convenção, ao sustentar a nulidade do contrato. A arguição de nulidade da avença firmada entre as partes está em absoluta desconformidade com o dever máximo de boa-fé nas relações negociais no comércio internacional, que o art. 7 (1) CISG espelha. Afinal de contas, é razoável supor que a empresa venezuelana autora somente procedeu ao pagamento adiantado do valor das mercadorias adquiridas porque, se não o tivesse feito, a empresa brasileira ré muito provavelmente não as teria embarcado, receosa de
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somente receber o valor contratado quando da chegada das mercadorias na aduana, em território venezuelano. É costume, afinal de contas, que o pagamento do objeto da compra e venda preceda a sua entrega, não o contrário. Por isso, parece auto-evidente, a meu sentir, que a alegação de nulidade contratual caracteriza afronta ao dever de boa-fé: a ré pretende, em última análise, escusar-se do dever de restituir o valor recebido em duplicidade, com base em arguição por meio da qual impugna a sistemática entabulada entre as partes contratantes, precisamente, com o propósito de tornar mais seguro o negócio levado a efeito, o que veio a ocorrer, em seu favor, não em seu prejuízo, tanto que findou por receber em dobro o montante de fato devido.
Acerca do sentido e extensão da boa-fé objetiva, reporto-me à lição de Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx, no sentido de que essa
[...] exige de todos os que participação de relação intersubjetiva uma conduta leal e solidária. No contrato, deve ser obedecia na negociação prévia, na contratação, na execução e mesmo após o seu cumprimento. É fonte de deveres e de obrigações. É o limite para o exercício dos direitos: quer dizer, ainda que exista norma concedendo ou reconhecendo um certo direito, esse somente poderá ser exercido nos limites da boa-fé.16
Como consignei quando do julgamento da Apelação Cível n.º 70072362940, em 14/02/2017, antes mencionada, é sabido que, no intuito de criar uma uniformidade de regras para o tratamento destinado às relações comerciais internacionais, a Convenção de Viena de 1980
16 XXXXXX Xx, Xxx Xxxxxx de. O direito das obrigações na contemporaneidade. Revista de Direito do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, vol. 96, nov./dez. 2014, p. 13/20.
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estruturou a noção de contrato a partir de dois pilares fundamentais, a saber, a autonomia privada e a boa-fé objetiva17, da qual se pode extrair, entre outros, o dever das partes de atuar com lealdade negocial, a impor aos contratantes a compreensão de que o contrato de compra e venda internacional de mercadorias há de ser entendido como uma relação de cooperação entre os que dela participam18. E, se o regramento da Convenção de 1980 espelha, na sua essência, o dever de boa-fé subjacente às relações entabuladas na esfera do comércio internacional, não há dúvida de que a tese da ré deva ser rejeitada, porque de todo incompatível com o cânone em tela, quando se trata de contrato qualificado como internacional.
Ora, dando-se guarida a tese defensiva ora em exame, findar- se-ia por ensejar enriquecimento sem causa em benefício da vendedora / ré, resultado jurídico inaceitável não apenas desde a perspectiva do Direito do Comércio Internacional, “ex vi” das regras dos Princípios Unidroit e da Convenção de Viena de 1980 acima analisadas. O deslinde pretendido pela demandada contrariaria, em suma, a máxima de que a efetivação do Direito consiste em dar a cada um o que lhe é devido.
Assim, tendo a vendedora / ré recebido em duplicidade o valor a que efetivamente fazia jus, deve proceder à restituição pleiteada na exordial. Isso porque, contrariamente ao também alegado pela requerida, o
17 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx. A formação do contrato de compra e venda entre ausentes: a interlocução entre a Convenção de Viena de 1980 (CISG) e o direito brasileiro. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxx de (Org.) / XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx (Org.). A compra e venda internacional de mercadorias: estudos sobre a Convenção de Viena de 1980. São Paulo, Atlas, 2011, p. 109.
18 MIGLIAVACCA, Xxxxxxx Xxxxxxxxxx. A convenção das nações unidas sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: ratificação e incorporação pelo ordenamento jurídico brasileiro. – Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, Curso de Direito
– Porto Alegre, BR – RS, 2016, p. 37.
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conjunto dos autos contém, sim, prova do pagamento em dobro: para tanto, basta o cotejo do ofício expedido pela Sra. Gerente da Agência do Banco do Brasil do Município de Caxias do Sul, juntado na fl. 196, conjuntamente aos comprovantes de transferência internacional de valores acostados nas fls.197/202. E a tais documentos, convém ressaltar, agrega-se o teor da tratativa via e-mail entre as partes, cuja cópia veio nas fls. 89/90, em que a vendedora / ré mencionou expressamente que procederia à restituição do valor recebido, em dobro, de forma antecipada.
Mantido o juízo de procedência integral do pedido, tampouco há espaço, por fim, para o acolhimento do pedido sucessivo da ré de minoração dos honorários de sucumbência arbitrados na sentença. A Magistrada de primeira instância arbitrou a verba honorária em 10% sobre o valor atualizado da condenação, percentual que consiste no mínimo previsto na norma do art. 85, §2º, do Novo CPC, razão pela qual descabe a pretendida minoração. Mesmo porque, convém ressaltar, o valor atualizado da condenação não se mostra exorbitante, hipótese em que se poderia, porventura, em recurso à equidade, abrandar a regra geral estipulada pelo precitado art. 85 da legislação processual e, com isso, fixar os honorários em apreciação equitativa.
4 Dispositivo
ISSO POSTO, voto no sentido de: (i.) rejeitar as preliminares de não conhecimento da apelação cível e de ausência de jurisdição brasileira para o processo e julgamento do litígio, (ii.) rejeitar a questão prejudicial, suscitada pela ré, Voges Metalurgia S.A., de aplicação do ordenamento jurídico venezuelano ao deslinde do mérito, e (iii.) quanto à
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questão de fundo, propriamente dita, negar provimento ao apelo, assim ratificando, na íntegra, a sentença de procedência do pedido formulado pela empresa estrangeira autora, Inversiones Metalmecánicas I.C.A., relativamente à restituição, pela ré, do valor de R$150.908,33, com acréscimo de juros de mora, de 1% ao mês, desde a citação, e, não menos, de correção monetária, segundo o IGP-M, desde 23/01/2013, e relativamente aos honorários de sucumbência, na razão de 10% sobre o valor atualizado da condenação, nos termos supra.
XXX.x XXX XXXXX XXXXXXXX XXXXX XXXXXX XXXXXX - De acordo com o(a)
Relator(a).
DES. XXXXXXXX XXXXX (PRESIDENTE) - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. XXXXXXXX XXXXX - Presidente - Apelação Cível nº 70072090608, Comarca de Caxias do Sul: "PRELIMINARES REJEITADAS. APELAÇÃO CÍVEL DESPROVIDA. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: XXXXXXX XXXX XXXXXXX