Consequências da Pandemia
Consequências da Pandemia
Criada pela COVID-19 nas Obrigações e nos Contratos
– Uma Visão pelo Ângulo
do Direito Civil
Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx
Advogado do escritório Xxxxxx Xxxxxxxx Advogados, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Professor de Di- reito Civil da PUC-Rio e da EMERJ.
RESUMO:
Esse estudo visa a examinar o efeito da pandemia causa- da pela COVID-19 nos contratos e nas obrigações. Busca-se de- monstrar que a aplicação direta, geral e irrefletida do art. 393 do Código Civil, sem maior exame das peculiaridades de cada ne- gócio jurídico, pode gerar soluções ilegais e injustas.
Sempre com o objetivo de demonstrar a complexidade da matéria e a inviabilidade de saídas simplistas, o estudo cuida da questão em duas partes. Na primeira delas, são examinados os efeitos da pandemia sob a ótica da teoria impossibilidade, anali- sando as distinções marcantes entre a impossibilidade temporá- ria e a definitiva e suas consequências; a aplicação da teoria da impossibilidade nos contratos bilaterais e suas peculiaridades; a possibilidade da redução dos negócios jurídicos nos casos de impossibilidade parcial; a necessidade do respeito à alocação dos riscos traçada pelas partes; os cômodos de representação; e, por fim, o dever de negociar. A segunda parte é dedicada ao exa- me da aplicação da teoria da onerosidade excessiva em razão da pandemia, examinado seus limites, requisitos e consequências.
PALAVRAS CHAVES:
Pandemia. Obrigação. Contrato. Impossibilidade. Impossi- bilidade temporária. Impossibilidade Definitiva. Contratos Bila- terais. Impossibilidade parcial. Alocação de Riscos. Cômodos de Representação. Dever de negociar. Onerosidade Excessiva. Re- quisitos. Consequências.
ABSTRACT:
The aim of this study is to examine the effect of the coro- navirus disease pandemic (COVID 19) on the performance of contracts and obligations. The author seeks to demonstrate that direct, generalized application of article 393 of the Civil Code, without due reflection and consideration of the peculiarities of the transaction or obligation in question might lead to unlawful and unfair outcomes, The issue is complex, and simplistic solu- tions are unfeasible.
The study is divided into two part. In the first part, the au- thor examines the effects of the pandemic through the prism of the doctrine of impossibility of performance, taking into conside- ration the following aspects: key distinctions between temporary impossibility and definitive impossibility and the consequences of each; the peculiarities of the application of the doctrine of im- possibility to bilateral contracts; whether legal transactions can be ‘reduced’ in the event of partial impossibility of performan- ce; the need to respect the allocation of risks delineated by the parties; the redress due for loss of enjoyment/benefit of an asset (cômodos de representação) and, finally, the duty to negotiate. In the second part of the study the author examines the application of the doctrine of excessive onerousness to the consequence of the pandemic and the limitations, pre-requisites and consequences of such application.
KEYWORDS:
Pandemic. Obligations. Contracts. Impossibility of perfor- mance. Temporary impossibility. Definitive impossibility. Bilate-
ral Contracts. Partial impossibility. Allocation of Risks. Redress for Loss of Enjoyment or Benefit. Duty to negotiate. Excessive onerousness. Requisites. Consequences.
“Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Mor- ria- se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém cho- rou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos.” (XXXXXX XXXXXXXXX)1.
1. NOTAS INTRODUTÓRIAS
Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi comunicada acerca da existência de diversos casos identificados como pneumonia na cidade de Wuhan, na província de Hubei, na China. Uma semana depois, em 7 de ja- neiro de 2020, as autoridades chinesas informaram que a causa da doença seria um novo tipo de vírus, de uma família de Coro- navírus, que fora denominado de Covid-19.
As taxas de contágio do novo vírus são alarmantes. Os poucos casos aparecidos no início de janeiro se multiplicaram exponencialmente. Com impressionante velocidade, a Covid-19 rompeu as fronteiras da China. Hoje, menos de três meses depois do aparecimento dos primeiros casos na longínqua Wuhan, as pessoas afetadas são contadas aos milhões; os mortos são milha- res, espalhados por quase todos os continentes.
Diante da ausência de vacina e de medicação testada e cer- tificada pelos órgãos competentes, a solução única preconizada pela OMS é o isolamento social, com a paralisação de todas as atividades que não sejam consideradas essenciais. Escolas, lojas, fábricas, escritórios ou estão fechados com atividades suspensas, ou estão funcionado em regimes excepcionais, como plantões, rodízios, home-office e situações similares.
1 “A menina Sem Estrela”, 1ª reimpressão, Companhia das Letras, São Paulo, 1993, p. 51.
A paralisação das atividades, ditada pelo isolamento social, ob- viamente, tem reflexos econômicos e jurídicos. Milhares e milhares de obrigações deixarão de ser cumpridas, gerando impactos em ou- tros negócios numa espiral nefasta de incumprimentos e prejuízos.
Esse quadro, literalmente catastrófico, traz de pronto à mente dos operadores do Direito a figura biforme do caso for- tuito e da força maior2, consagrada no art. 393 do Código Civil3. Entretanto, a invocação do caso fortuito ou da força maior não é uma panaceia. Não pode ser utilizada como uma solução sim- plista (rectius: simplória), aplicável diretamente a todos os casos, sem as considerações peculiares de cada situação concreta.
Na verdade, dentro da ótica do Direito Civil, a pandemia, como evento externo, irresistível e imprevisível, pode, dependen- do das circunstâncias de cada caso concreto, gerar a incidência de dois institutos jurídicos importantes: a impossibilidade superve- niente (temporária ou definitiva) e a onerosidade excessiva.
Nos dois capítulos subsequentes, serão examinadas as duas figuras jurídicas referidas no parágrafo anterior, sem a pretensão de esgotar o assunto, mas principalmente para trazer o alerta de que a situação é muito mais complexa e multifacetada do que a simples aplicação direta e sem critério do art. 393 do Código Civil.
2 Embora exista na doutrina enorme esforço de alguns autores para demarcar uma diferenciação entre as figuras do caso fortuito e da força maior, a verdade é que, em termos práticos, essa diferenciação é irre- levante. Havendo inclusive doutrinadores que consideram os dois termos como sinônimos (cf. Xxxxxxx, Xxxxxxx et Xxxxxx, “Obligations”, T. II, vol. 0, 0x xx., Xxxxxxxxxxxxx, Xxxxx, 0000, p. 663)
3 O art. 393 do Código Civil recebeu a seguinte redação: “O devedor não responde pelos prejuízos resul- tantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. O artigo é complementado por seu parágrafo único, segundo o qual “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
2. IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE4
A pandemia e seus efeitos podem se encaixar no conceito de caso fortuito e de força maior, visto que inegavelmente cons- tituem evento externo, inevitável e imprevisível.
Ocorre que a esses requisitos deve ser agregado mais um fator fundamental, sem o qual o efeito de exoneração do art. 393 do Código Civil não se verificará. É preciso que esse evento ex- terno, inevitável e imprevisível gere a impossibilidade do cum- primento da obrigação, ainda que temporária. Como se lê na clássica lição de Xxxxxxx, Xxxxxxx et Chabas “[a] força maior ou caso fortuito é um evento exterior imprevisível e irresistível que impede alguém de cumprir sua obrigação”5.
Xxxxxxxxx dar atenção à parte final do excerto extraído da clássica lição dos civilistas franceses, pois caso o evento capaz, em tese, de caracterizar caso fortuito ou força maior não afete efetiva- mente a possibilidade de cumprimento da obrigação no tempo, no lugar e na forma pactuados ou determinados pela lei (CC., art. 394), o efeito de liberação da responsabilidade não existirá.
Em suma, não basta que exista um evento que se encaixe nos três requisitos tradicionais. É fundamental que o evento gere real e efetivo empeço à realização das obrigações tal qual ajus- tadas. Ou seja, que exista uma relação de causa de efeito entre o evento capaz de caracterizar a força maior e o impedimento da realização plena da obrigação6. Sem a demonstração desse liame,
4 Destaque-se que, em contraponto à impossibilidade superveniente, a doutrina aponta a existência da impos- sibilidade originária, que é aquela que já existia quando da celebração do contrato, por ser anterior ou contem- porânea. No exame da impossibilidade originária, também chamada de impossibilidade genética, avulta- se a divisão entre (a) impossibilidade objetiva, que é aquela que atinge todas as pessoas e leva à nulidade do con- trato na forma do art. 166, II, do Código Civil; e, (b) a impossibilidade subjetiva que atinge apenas o contratante que se obrigou à realização da obrigação e não consegue satisfazê-la, sendo que neste caso não haverá nulidade do contrato, mas restará configurado o inadimplemento daquele que se obrigou sem ter meios de cumprir o prometido. Nas palavras de Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx, “A impossibilidade ‘originária’ presente ao tempo da constituição da obrigação é a causa da nulidade do negócio. A impossibilidade originária que nulifica é apenas a ‘objetiva’ (a que é em si mesma e para todos – absoluta). Na originária ‘subjetiva” (a que é impossível somente para o devedor – relativa), o ato é válido caracterizando apenas uma incapacidade (impotência) do devedor” (“Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor”, 2ª Edição, Aide, São Paulo, p. 97)
5 Xxxxxxx, Xxxxxxx et Xxxxxx; ob cit, p. 465 (tradução livre, no original: “La force majeure, ou cas fortuit, est un événemet extérieur imprévisible et irreésistible qui empêche une persone d’accomplir son obligation”)
6 Neste sentido, vale lembrar da lição de XXXXXX XXXXXXX XXXXX acerca da necessidade de o caso fortuito precisar se caracterizar como evento necessário, que deve ser compreendido por uma visão concreta , e não meramente abstrata. Ou seja, “este [o caso fortuito] deve ser compreendido `situadamen-
que, em princípio, incumbe àquele que postula o efeito liberató- rio7, a obrigação deverá ser cumprida.
Saliente-se, ainda, que, mesmo caracterizado o caso fortui- to e a força maior capazes de gerar entraves ao cumprimento da obrigação, levando à aplicação do art. 393 do Código Civil, seu efeito poderá ser (aliás, na maioria dos casos será) restrito. A consequência direta da aplicação da referida norma legal se limita a impedir que o devedor responda pelos efeitos da mora (ou inadimplemento)8. Em princípio9, mormente no que concer- ne aos casos de impossibilidade temporária, não será afetada a obrigação originária e principal que deixou de ser cumprida no tempo, no lugar e na forma adrede estabelecidas. “O efeito mais marcante da força maior é o de fazer desparecer a responsabilidade do devedor no caso de inexecução de sua obrigação. É uma causa de libera- ção ou de exoneração da responsabilidade”10.
Aliás, essa consequência pode ser extraída diretamen- te do texto legal que aponta com precisão que “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior (...)”. A regra não ataca a higidez da obrigação. Apenas impede o nascimento da obrigação secundária de indenizar
te’, de maneira que o fato será ou não ‘necessário’, caracterizando o fortuito ou força maior, conforme a concreta situação em que verificado, a possibilidade de conhecimento do fato pelo agente, usando normal diligência, e a sua impossibilidade de resistir ao evento, ou de eliminá-lo (ou de resistir ou eliminar as suas consequências) relativamente ao dever a ser prestado. Deve ser igualmente considerado o tipo de atividade desen- volvida pelo devedor, a qualidade dos sujeitos envolvidos, a extensão dos seus deveres de garantia, custódia, conservação, segurança, controle, etc., e, principalmente, a cláusula geral da boa-fé (art. 422), a qual exige que o limite da responsabilidade do devedor seja avaliado em referência ao inteiro conte- údo da relação obrigacional. » (“Comentários ao Código Civil”, volume V, tomo I, Ed. Forense, p. 200)
7 Vale aqui lembrar-se do art. 373 do Código de Processo Civil que, em regra, aponta como ônus do autor a prova dos fatos constitutivos de seu pedido (inciso I); e ao réu o ônus de comprovar os fatos impeditivo, modificativo do direito do autor. Deve ser lembrado que a regra geral pode ser alterada pela aplicação da teoria da carga dinâmica da prova (CPC, art. 373, § 1º), pela convenção das partes (CPC, art. 373, § 3º) ou pela inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII).
8 Perdas e danos no caso da mora; e a resolução do contrato, acrescida ou não, conforme o caso, de perdas
e danos, na hipótese de inadimplemento.
9 Existirão algumas hipóteses em que as circunstâncias levarão não só à exoneração dos efeitos da mora ou do inadimplemento, mas atingirá as obrigações, como, por exemplo, naquelas situações em que o obstá- culo, por sua gravidade ou pelo seu tempo de duração, for capaz de gerar a impossibilidade definitiva do cumprimento da obrigação ou a perda do interesse do credor, objetivamente considerada.
10 XXXXXXXXX XXXXXXXXX (“Droit Civil – Xxx Xxxxxxxxxxx, Xx Xxxxxxx”, Xxxx XXX, 0xxx ed., Econo- mica, Paris, 2003, p. 841) (tradução livre; no original: “L’effet le plus remarquable de la force majeure est de faire disparaître la responsabilité du débiteur en cas d’inexécution de son obligation. C’est une cause de libération ou d’exonération de la responsabilité”.)
as perdas e danos decorrentes do descumprimento causado pelo evento xxxxxxx00.
Existem, ainda, alguns outros pontos que devem ser exa- minados, por sua enorme relevância, como: (a) os efeitos da impossibilidade temporária; (b) a caracterização da impossibi- lidade definitiva e seus efeitos; (c) a aplicação da impossibilida- de superveniente nos contratos bilaterais; (d) a impossibilidade parcial; (e) a alocação dos riscos do contrato (f) os cômodos de representação; e (g) o dever de negociar.
(a) Os efeitos da impossibilidade temporária.
A impossibilidade temporária, por ser fugaz, não determi- na a extinção da obrigação. Seu efeito é apenas o de suspender a eficácia da obrigação enquanto perdurar a situação de anorma- lidade que impede o seu cumprimento no tempo, no lugar e na forma fixados. Nas palavras de XXXXX XXXXXXXX, “por defini- ção, a suspensão é provisória: durante esse período, o contrato não surte efeitos, não está em vigor, mas haverá sempre o retorno automático dos seus efeitos assim que se torne possível” 12 13.
A impossibilidade temporária e passageira, portanto, não extingue a obrigação nem o contrato, apenas suspende os efeitos
11 Importante aqui lembrar-se da divisão entre a responsabilidade primária ou originária, decorrente da lei ou do contrato, e a responsabilidade secundária (dever de reparar), que nasce com o descum- primento da responsabilidade primária acrescido da ocorrência de dano. “Há, assim, um dever jurídico originário, chamado por alguns de primário, cuja violação gera um dever jurídico sucessivo, também secundá- rio, que é o dever deindenizar o prejuízo” (XXXXXX XXXXXXXXX XXXXX, “Programa de Responsabilidade Civil”, 2ª edição, Malheiros, Rio de Janeiro, 1999, PP. 19 e 20).
12 XXXXX XXXXXXXX (“Droit Civil – Xxx Xxxxxxxxxxx”, 0xxx ed., Xxxxxxxxxxxxx, Xxxxx, 0000, p. 221) (tra- dução livre, no original “Par définition, la suspension est provisoire: pendant cette période, le contrat est relâché, n’est plus ‘em viguer’; mais il existe toujours est sa reprise se fera automatiquement dês qu’elle sera possible”.)
13 No mesmo sentido é a lição de XXXXXXX XXXXX, segundo a qual “enquanto a impossibilidade tempo- rária dura, o devedor não reponde pelos prejuízos resultantes do retardamento da prestação, mas logo que o impedimento desapareça, fica obrigado a efectuá-la” (Xxxxxxx Xxxxx, “Direito das Obrigações”, 7a ed., Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 966). XXXXXXX XXXXXXX segue o mesmo caminho, como se vê no seguinte trecho: “O efeito da impossibilidade temporária será, portanto, o de exonerar o devedor dos danos mora- tórios, mas só enquanto a impossibilidade perdurar” (XXXXXXX XXXXXXX, “Das Obrigações em Geral”, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 747). A doutrina francesa, aqui representada por XXXXXXXXX XXXXXXXXX, não discrepa afirmando que, “todavia, sendo o evento de força maior temporário, ele não gerará nada mais do que a suspensão dos efeitos do contrato” (XXXXXXXXX XXXXXXXXX, “Droit Civil – Xxx Xxxxxxxxxxx, Xx Xxxxxxx”, Xxxx XXX, 0xxx ed., Economica, Paris, 2003, p. 841 – tradução livre; no original: “Toute fois, lorsque l’événement de force majeure n’est que temporaire, il ne doit entraîner qu’une suspension des effets du contrat”)
da obrigação afetada.
Xxxxxxxxx apontar um pequeno senão na lição do civilista francês citado acima. Não é de todo correto afirmar que a im- possibilidade temporária venha a afetar a totalidade do contra- to suspendendo todos os seus efeitos. A impossibilidade des- sa natureza sustará a eficácia da obrigação afetada e de outras quando for necessário à manutenção do sinalagma14 ou quando atingir o âmago do contrato, impedindo a aplicação do art. 184 do Código Civil.
O evento inevitável e imprevisível caracterizador da im- possibilidade temporária será um fator exógeno à estrutura da relação obrigacional, não atingindo seus elementos (plano da existência) nem seus requisitos (plano da validade). Afe- tada por um fator exógeno, a obrigação será ineficaz, já que “ (...) a ineficácia em sentido estrito decorre de uma deficiência extrín- seca. O negócio simplesmente ineficaz está aparelhado de todos os elementos essenciais e pressupostos de validade, de modo que sua eficá- cia está apenas impedida por uma circunstância de fato extrínseca”.15 16 A classificação da impossibilidade temporária como fator
de ineficácia é fundamental para explicar o retorno imediato dos efeitos da obrigação tão logo cessada a circunstância que lhe deu causa, na hipótese, a pandemia, pois, em razão da distinção entre a invalidade e a ineficácia, é possível admitir que, “sem quebra da coerência ou de qualquer norma jurídica, ocorrendo o fator de eficácia, o ato passe, sem mais, a produzir efeitos; há pós eficacização.”17
É preciso notar que a ineficácia, mais das vezes, não atingirá o negócio jurídico como um todo, mas apenas aquela obrigação cuja satisfação se tornou temporariamente inviável. Existindo
14 Esta questão será mais bem analisada no capítulo atinente aos efeitos da impossibilidade nos contratos bilaterais, item “c” abaixo.
15 XXXXXX XXXXX XX XXXXX XXXXX, “Curso de Direito Civil”, vol I, 8ª edição, Xxxxxxx Xxxxxx, 1996, p. 503. 16 A pandemia poderá ser classificada como fator de ineficácia pendente. Veja-se que “Ocorre ineficácia
pendente ou simples quando falta um elemento integrativo à plena eficácia dum negócio em formação quer se trate de um elemento assessório exigido pela vontade das partes (negócio sob condição suspensi- va), quer de elemento estranho a sua vontade” (XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX, apud. XXXXXXX XXXXXXXXX XX XXXXXXX, “Xxxxxxx Xxxxxxxx – Existência, Validade e Eficácia”, 4ª edição, Saraiva, São Paulo, 2002, P.53)
17 XXXXXXX XXXXXXXXX XX XXXXXXX, Ob. cit.; p. 70.
outras obrigações que não foram afetadas pela impossibilidade temporária e podendo elas ser destacadas, levando-se em conta as justas expectativas das partes, aplicar-se- á a regra do art. 184 do Código Civil, mantendo hígidas as obrigações separáveis18. Situação semelhante se dará com os deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva19. Existente e válido o contrato, tais deveres, como o de cooperação e colaboração, persistirão. Aliás, o prin- cípio da boa-fé objetiva será um elemento fundamental para re- solver diversos casos de difícil solução que surgirão em razão da pandemia que acomete a humanidade.
É preciso ressaltar mais uma vez que a impossibilidade temporária poderá não se limitar a um dos efeitos diretos do art. 393 do Código Civil, que é a exoneração da responsabilidade ci- vil. Constituindo verdadeiro fator de ineficácia pendente, haverá a suspensão de todos os efeitos da obrigação, o que não só im- pedirá a ocorrência da mora, mas gerará outras consequências, como a interrupção da fluência dos prazos contratuais direta- mente ligados à obrigação suspensa.
(b) A caracterização da impossibilidade definitiva e seus efeitos
É preciso verificar que, conquanto temporário, o evento exter- no, inevitável e imprevisível pode trazer consequências definitivas. XXXXX XXXXXXX lembra que “quando a suspensão se torne excessivamente longa e venha a ser intolerável para a outra parte, se abrirá para ela a possibilidade de romper definitivamente o contrato”20.
18 Confira-se o item “d” abaixo.
19 Os deveres anexos de conduta, como se vê na lição de XXXXXX XXXXXXX XX XXXX XXXXX: “Caracteri- zam-se por uma função auxiliar na realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes. Servem, ao menos as suas mais típicas manifestação, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afectados em conexão com o con- trato (Erhaltungsinteresse), independentemente do interesse no cumprimento. Trata-se de deveres de adopção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (art. 239º e 762º), dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação. Na formulação de Xxxxxx, identificam-se com os deveres de adoptar o comportamento que se pode esperar entre contrastes honrados e leais. (“Cessão da Posição Contratual”, Coimbra, Almedina, 1982, pp. 339/340” A doutrina costuma enunciar diversos deveres anexo de conduta, dentre os quais: (a) os deveres de cuidado, previdência e segurança; (b) os deveres de aviso e esclarecimento; (c) os deveres de informação; (d) os deveres de prestar contas; (e) os deveres de colaboração e cooperação; (f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; e, (g) os deveres de omissão e segredo.
20 Tradução livre, no original: “Cependant, lorsque cette suspension est trop longue et devient intolerable pour l’autre partie, il faut ouvrir à celle-ci le doit de rompre définitivement le contrat...” (XXXXX XXXX- XXXX, ob. cit.; p. cit.)
Na realidade, o evento temporário poderá caracterizar impossibilidade definitiva em duas situações: (a) quando seus efeitos, ainda que de pouca duração temporal, foram suficientes para inviabilizar o cumprimento da obrigação, como se dá, por exemplo, na hipótese do perecimento do objeto da prestação (im- possibilidade definitiva por inviabilidade); ou (b) nas hipóteses em que a eficácia dos eventos, conquanto fugaz, levou à perda do interesse do credor (impossibilidade definitiva por falta de interesse do credor).
XXX XXXXXX XX XXXXXX XXXXXX examinou as duas situações, indicando que haverá a impossibilidade definitiva por inviabilidade “[q]uando a impossibilidade temporária incide sobre um ‘negócio fixo’, cujo cumprimento não pode ser efetuado em outra época; sendo inimputável, dá margem a extinção ipso iure”21. Haverá ainda “outros negócios, cujos termos ou natureza admitem o cumprimento posterior, figurando o tempo indicado como simples programação para o futuro ou para marcar a época da exigibilidade, a impossibilidade tempo- rária somente assumirá a feição de incumprimento definitivo se no en- tretempo ficar destruído o interesse do credor em receber a prestação”22. Para facilidade de análise, estes “outros casos” podem ser classifi- cados como impossibilidade definitiva por falta do interesse do credor. A impossibilidade definitiva por inviabilidade não gera muitos questionamentos jurídicos. Seu exame se dará basica-
mente no campo dos fatos e sob a ótica das provas.
É preciso destacar que, no caso examinado (pandemia), se a impossibilidade temporária tomar ares de perenidade, pela in- viabilidade do cumprimento da obrigação em outro momento, haverá nulidade do negócio, com a aplicação do art. 166, II, do Código Civil, já que a impossibilidade aqui será superveniente, isto é, posterior à celebração do contrato, e, por isso, equiparável à impossibilidade original absoluta23.
Maiores indagações existem na questão da perda do inte- resse do credor. Desde já, é preciso notar que a perda do interesse
21 Ob. cit.; p. 100.
22 Ob.cit.; p. 101.
23 Cf. Xxx XXXXXX XX XXXXXX XXXXXX, ob. cit.; p. 99.
capaz de gerar a extinção da obrigação deve ser considerada do ponto de vista objetivo (perda do interesse objetivo). “Essencial para a extinção é que as circunstâncias supervenientes tenham, de facto, realizado ou impossibilitado o fim da prestação e não preenchido apenas um motivo do interesse do credor”24 25.
Em outras palavras: “a importância do interesse afectado pelo incumprimento, aferida embora em função do sujeito, há-de ser aprecia- da objectivamente, com base em elementos susceptíveis de serem valora- dos por qualquer pessoa (designadamente, pelo próprio devedor ou pelo juiz), e não segundo o juízo valorativo arbitrário do próprio credor’”.26 Ou seja, pouco importa a afirmação do credor de que o fato
teria gerado sua falta de interesse (perda do interesse subjetiva). O que é fundamental é a apuração da perda do interesse objeti- vo, cujo exame está ligado à análise da manutenção da finalidade do contrato e das legítimas expectativas do credor quando da sua celebração. Extinta a finalidade, o contrato perde a sua razão de ser. E, como ensina ANTUNES VARELLA, “[e]ste desapareci- mento [da finalidade do contrato] pode dar-se, porque circunstâncias estranhas à vontade das partes fizeram desaparecer a necessidade que se lhe visava satisfazer com a prestação (frustração do fim da obriga- ção: ‘zweckvereitelung’, como chamam os autores alemães), sem que a prestação em si mesma, se torne impossível, ou porque o fim visado pela prestação foi alcançado por outra via (‘zweckerreichung’)”27 28.
Além do exame da manutenção do interesse objetivo do credor, em respeito ao princípio da conservação dos contratos, deverá ser ponderado se o contrato ainda mantém a sua utili- dade, como instrumento de trocas justas na sociedade. Nessa
24 XXXXXXX XXXXXXX, “Das Obrigações em Geral”, Almedina, Coimbra, 1970, p. 746.
25 Sobre a questão, cabe lembrar a regra do art. 792º - 2 do Código Civil português, segundo qual “A impos- sibilidade só se considera temporária enquanto, atenta a finalidade da obrigação, se mantiver o interesse do credor”.
26 XXXX XXXXXXXX XXXXXXX, apud. XXXXXX XXXXXXX-XXXXX, A Boa-Fé no Direito Privado –
Critérios para a sua aplicação, 2ª ed., Saraivajur, São Paulo, 2018, p. 754. 27 “Das Obrigações em Geral”, Almedina, Coimbra, 1970, p. 745”.
28 Na mesma linha: “‘Interesse’ é uma relação posta entre o sujeito credor e a prestação prometida, servindo esta a suprir necessidade ou carência; daí dizer-se que o credor está ‘interessado’ na prestação do credor. A prestação que desatender a esse interesse, porque já não tem capacidade de suprir a necessidade do sujeito credor, é uma prestação inútil”. (XXX XXXXXX XX XXXXXX XXXXXX, Extinção dos Contratos por Incumpri- mento do Devedor – Resolução, de acordo com o Novo Código Civil, 2ª ed., revista e atualizada, Aide, Rio de Janeiro, 2004,ob. cit.; p. 132)
averiguação, deve ser examinada a persistência de uma utilida- de suficiente do contrato, apurando se a prestação do devedor, ainda que incompleta, é capaz de manter o interesse na operação econômica subjacente. Alguns fatores são importantes para me- dir a persistência da utilidade, como: (a) a comparação entre a parte da operação executada e a parte não executada; (b) a rele- vância do prejuízo causado pela inexecução; (c) a possibilidade e a pertinência de uma execução futura; (d) as particularidades do objeto do contrato e a posição das partes em relação a ele; (e) a intensidade e a duração da relação contratual; e (f) a utilidade comprovada do contrato.29
É preciso notar que, na alocação de riscos do contrato, po- dem as partes fixar um prazo razoável para cessar a suspensão decorrente da impossibilidade temporária sem que isso afete o interesse objetivo do credor. Ou seja, as partes podem definir previamente no contrato um prazo para o restabelecimento da normalidade, definindo que, ultrapassado aquele prazo, a obri- gação será considerada impossível e o contrato extinto ipso iure30. Destaque-se que a possibilidade de regular o prazo de ma- nutenção do interesse do credor encontra respaldo na parte final da regra do art. 393 do Código Civil, que permite às partes de um negócio jurídico regular os efeitos do caso fortuito e da força maior. Se as partes têm o direito de apontar quais são os fatores externos capazes de gerar impossibilidade e quais não o são, a fortiori também têm a faculdade de estabelecer o lapso temporal capaz de caracterizar a impossibilidade, em razão da perda do
interesse do credor.
(c) A aplicação da impossibilidade superveniente nos contra- tos sinalagmáticos
É preciso ter cuidado redobrado com a aplicação das con- sequências da impossibilidade do cumprimento das obrigações nos contratos sinalagmáticos, pois “nesses contratos, uma obriga-
29 Cf. XXXXXX XXXXXXX, “La Résolution du Contrat pour Inexécution”, 1ª Edição, LGDJ, Paris,
p. 316 e ss.
30 XXXXXXX XXXXXXX, “Das Obrigações em Geral”, Almedina, Coimbra, 1970, p. 748.
ção é a causa, a razão de ser, o pressuposto da outra, verificando-se interdependência essencial entre as prestações”31.
A interdependência e o equilíbrio entre as contraprestações faz com que se torne inviável considerar a suspensão ou a extin- ção de obrigações sem se refletir acerca das consequências para a contraparte e suas obrigações. Ou seja, “permanece a questão de saber, nos contratos sinalagmáticos, se a contrapartida é, no entanto, devida, isto é, se o devedor impedido de executar pode no entanto recla- mar a obrigação correlativa”. 32
Essa resposta será diferente caso se trate de impossibilidade temporária (ineficácia pendente); ou se cuide de impossibilidade definitiva, causada pela inviabilidade da prestação (nulidade) ou gerada pela falta de interesse do credor (resolução).
Na hipótese de impossibilidade temporária, a eficácia da obrigação atingida pelo evento externo restaria obstada, como acima já se afirmou. Por outro lado, a obrigação da outra parte poderia restar plenamente eficaz, levando à quebra do equilíbrio do contrato e da interdependência das prestações. Diante dessa situação, abriria, em princípio, para a parte obrigada a cumprir sua obrigação sem receber a contraprestação, a possibilidade de invocação da regra da exceção do contrato não cumprido, positi- vada no art. 476 do Código Civil, segundo o qual “[n]os contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação pode exigir o implemento da do outro”.
É preciso notar que a invocação da exceptio non adimpleti contractus pode gerar graves prejuízos e até mesmo a ruína, por completo, do devedor que já não tinha meios de cumprir sua obrigação, pois afetada pelos efeitos nefastos da pandemia. Ou seja, aquele que já se encontrava em penúria pode ter sua situa- ção financeira agravada pelo não recebimento das prestações da contraparte advindas da exceção do contrato não cumprido. Assim, é imperioso que a aplicação da regra do art. 476 do Código Civil leve
31 XXXXXXX XXXXX, “Contrato”, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1981, p. 83.
32 XXXXX XXXXXXX, (Ob. Cit.; p. 223) (tradução livre; no original: “... reste la question de savoir, dans les contrats synallagmatiques, si la contrapartie est neánmoins due, c’est-à-dire si le débiteur empêche d’exécuter peut neánmoins réclamer l’oblogatin corrélative”)
em consideração os deveres de cooperação e colaboração decorren- tes da boa-fé objetiva, de modo a gerar uma posição de equilíbrio que busque minimizar os prejuízos de ambas as partes.
Neste ponto, cabe lembrar, contudo, que os ditames da boa-fé atingem as duas partes, obrigando ambas a um atuar leal e cooperativo33. Ou seja, não se deve buscar parcimônia e razoa- bilidade apenas do credor que está em vias de deixar de receber a prestação que lhe foi prometida. É preciso que o devedor atin- gido pelos eventos externos demonstre comportamento colabo- rativo, mostrando esforço efetivo no cumprimento da obrigação, ainda que parcial, ou se colocando efetivamente à disposição para alcançar alternativas que mitiguem os prejuízos de todos os envolvidos.
No caso de impossibilidade definitiva pela inviabilidade do cumprimento da prestação, haverá nulidade do contrato; e na hipótese de impossibilidade por falta de interesse do credor, ha- verá resolução. Em ambas as situações, a consequência é o retor- no ao status quo ante. Como ensina RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR, “[s]endo a resolução o desfazimento da relação obrigacional por incumprimento de uma das partes, traz consigo a necessidade de reposição das circunstâncias assim como eram antes, razão pela qual não se pode colocar em dúvida a retroatividade dos efeitos do ato que resolve a relação ...”34
Outra não é a posição da doutrina estrangeira, como se vê na lição de XXXXXXXXX XXXXXXXXX, segundo a qual “o efeito da resolução e a destruição do contrato de tal sorte que ele pode ser con- siderado como se nunca tivesses sido concluído. Consequentemente, a resolução, como a nulidade, opera retroativamente, a consequência é que as partes devem proceder à repetição do que já havia sido executado”.35
33 Cf. XXXXXX XXXXXXX XX XXXX XXXXX: “[Cabem] tais deveres laterais, quer ao credor, quer ao devedor, implicando a sua culposa infracção, por qualquer dos sujeitos da obrigação, responsa- bilidade civil com fundamento em violação do contrato (at. 798º) e dando à contraparte, sob certas circunstâncias, o direito de resolução, tal como se se tratasse do não cumprimento culposo do dever de prestação.” (“Cessão da Posição Contratual”, Coimbra, Almedina, 1982, pp. 341/342).
34 Ob. cit.; p. 257.
35 Ob. cit.; p. 813 (tradução livre, no original: “L´effet essentiel de la résolution est l´anéantissement du contrat de telle sorte que l´on puisse considérer qu´il n´a jamais été conclu. Par conséquent, la résolution, comme la nullité, opère rétroactivement. La conséquence en est que les parties doivent procéder à la répéticion de ce qui a été exécuté”).
Exceção relevante a essa regra, acerca da retroatividade dos efeitos da resolução, são os contratos de duração continua- da – por óbvio, de marcante interesse para o objeto do presente estudo. Nessas hipóteses, é preciso verificar se as prestações já foram ou não satisfeitas no todo ou em parte. Se as prestações não foram cumpridas, haverá retroatividade. Por outro lado, se já houve cumprimento, ainda que parcial, não há como se cogitar da retroatividade. Recorra-se, novamente, aos ensinamentos de LARROUMET:
Quando é proferida a resolução de um contrato de trato sucessivo, não é possível, pelas mesmas razões que di- zem respeito às nulidades, se admitir a retroatividade. Bem entendido, se as obrigações criadas de uma parte a outra pelo contrato não tiverem sido executadas, não haverá nenhum problema. Neste caso, se considerará que o contrato nunca existiu e não haverá lugar para restituições. Pelo contrário, se o contrato foi executado em parte ou totalmente, não é possível se desfazer de determinadas obrigações, como a do locador que forne- ceu a utilização do bem alugado ao locatário enquanto não proferida a resolução. É por essa razão que a juris- prudência considera que a resolução de um contrato de trato sucessivo se opera sem retroatividade.36
Também aqui se faz necessária a mesma advertência de al- guns parágrafos acima no sentido de que tanto os efeitos da nuli- dade quanto os da resolução deverão passar pelo filtro da boa-fé, de modo a se evitar soluções que gerem vantagens significativas para uma parte em detrimento da outra.
36 Ob. cit.; p. 768. (tradução livre; no original : «Lorsqu´est prononcée la résolution d´un contrat à exécution sucessive, il n´est pas possible, pour la même raison qu´en ce qui concerne la nullité, d´admettre la rétroactivité. Bien entendu, si les obligations créées de part et d´autre par le contrat n´ont pas été executées, il n´y a pas de problème. En ce cas, on considererá que le contrat n´a jamais existé et´il n´y aura pas lieu de procéder à des res- titutions. En revanche, si le contrat a été execute en partie ou totalement, il n´est pas possible d´effacer cretaines obligations, telles que celle du bailleur qui a procure la jouissance du bien loué au preneur jusqu´au prononcé de la résolution. C´est la raison por laquele la jurisprudence considere que la résolution d´un contrat à execution sucessive opère sans rétroactivité”.)
(d) A impossibilidade parcial
A impossibilidade poderá ainda ser parcial, pois “pode atingir uma parte apenas da prestação, se a destruição afectou só uma parte da coi- sa (divisível) ou algumas das várias coisas (cumulativamente) devidas”.37
A impossibilidade parcial atrairá a regra do art. 184 do Có- digo Civil38, que consagra o princípio da conservação do con- trato, com a aplicação do brocardo utile per inutile non vitiatur, permitindo a redução do negócio jurídico. Ou seja, a parte atin- gida pela impossibilidade será suspensa (impossibilidade tem- porária) ou perecerá (impossibilidade definitiva), permanecendo válidas as demais partes, desde que separáveis.
A aplicação da regra depende de três requisitos. (i) É neces- sário que existam prestações que possam ser separadas de modo que a impossibilidade venha a atingir apenas uma parte delas, deixando as demais intactas. (ii) É imperioso que a parte afeta- da não seja considerada como “ponto fundamental”39 do negócio, que é aquele que, por força do ordenamento jurídico, não pode ser desconsiderado sem inviabilizar o negócio jurídico, porque caracteriza a sua essência (essentialia negotti), ou descaracterizá-
-lo, pois resulta da natureza do tipo eleito (naturalia negotti). (iii) É impositivo, ainda, que a impossibilidade parcial não contrarie as justas expectativas das partes, objetivamente consideradas, como ordena a parte inicial da norma ao apontar a necessidade de respeito à “intenção das partes”40.
Ou seja, os elementos particulares (accidentalia negotti), quando fundamentais à manutenção do plano contratual traça- do pelas partes, devem ser respeitados para viabilizar a redução a que alude o art. 184 do Código Civil.
37 XXXXXXX XXXXXXX, Ob. cit.; p. 740.
38 O dispositivo legal possuía a seguinte redação “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta fora separável, a invalidade da obri- gação principal implica a das obrigações acessórias, mas a dessa não induz a da obrigação principal”.
39 Cf. XXXX XXXXX XX XXXXX XXXXXXX, “Instituições de Direito Civil”, vol. I, 12ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1991, p. 444.
40 “A inseparabilidade resulta da natureza do negócio jurídico ou do ato jurídico stricto sensu, ou da subordi- nação do todo à parte nula, no caso de saberem os que manifestaram a vontade, ou de o saber o que a manifestou, que seria nula a parte, Isto é: qual teria sido a conduta deles ou dele, quanto ao resto. Certo, quem quis o ato jurídico o quis todo, mas as circunstâncias podem mostrar que se quis resto, ainda sem a parte” (PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, Tomo IV, 2ª edição, Borsoi, Rio de Janeiro, 1954, p. 51)
(e) A alocação dos riscos do contrato
“O regime da impossibilidade tem, subjacente, as regras sobre repartição dos riscos, nas obrigações”41
Toda a discussão em torno da impossibilidade do cumpri- mento das obrigações e acerca do caso fortuito e da força maior está intimamente ligada à alocação de riscos dos contratos, que nada mais é do que a escolha dos contratantes sobre os riscos que eles aceitaram correr ao celebrar o contrato e aqueles outros que eles repudiaram.
Ao celebrar todo e qualquer contrato, por mais singelo que seja, o contratante assume riscos e, ao definir o conteúdo do con- trato, no exercício da autonomia de sua vontade, delimita quais pretende assumir.
É imperioso notar que a autonomia da vontade não é so- berana em todas as situações de alocação de riscos. Há hipóteses em que o ordenamento jurídico delimita os riscos de forma obri- gatória, levando em consideração o tipo contratual.
Veja-se, por exemplo, que o art. 735 do Código Civil impõe ao transportador todos os riscos pelos fatos de terceiros, equi- paráveis a fortuito interno, não sendo sequer válida cláusula de exoneração dessa responsabilidade42. De forma semelhante, o art. 618 do Código Civil aloca na álea do construtor os vícios de construção ocorridos no prazo irredutível de garantia nele fixa- do. Ainda no contrato de empreitada, a lei impõe ao empreiteiro (CC, art. 620) os riscos atinentes à flutuação do preço dos insu- mos ao permitir apenas a redução do preço global na hipótese de diminuição do custo deles, sem facultar, no entanto, que o incremento dos preços possa ser repassado ao dono da obra. Na mesma linha responde o depositário pelos danos causados à coi- sa depositada, salvo fortuito e força maior (CC., art. 642), sem que possa ser contratualmente pactuado de outra forma.
41 XXXXXXX XXXXXXXX, “Tratado de Direito Português”, vol. II, T. IV, Almedina, Coimbra, 2010, p. 186.
42 Veja-se que a proibição da cláusula de não indenizar e de limitação de responsabilidade são proi-
bidas pela parte final do art. 734 do Código Civil e pela Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.
A delimitação dos riscos fixadas pela lei pode atingir inclu- sive eventos de caso fortuito e força maior, determinando o or- denamento jurídico que certas pessoas em situações específicas são obrigadas a suportar até mesmo as consequências de fatos externos, inevitáveis e imprevisíveis. O art. 399 do Código Civil é o exemplo mais claro ao definir que “[o] devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso (...)”43 A lei ainda aponta hipótese em que a alocação de risco
por ela definida pode ser modificada pela vontade das partes, como se dá no art. 448 do Código Civil, que faculta às partes, “por cláusula expressa, reforçar diminuir ou excluir a responsabilidade pela evicção”. Ou ainda no art. 698 do Código Civil, que permite a inclusão da cláusula del credere levando a assunção dos risco do comissário de responder “solidariamente com as pessoas que houver tratado em nome do comitente”.
Entretanto, a hipótese mais importante – pelo menos para o presente debate – de possibilidade de mudança da alocação de risco legalmente fixada é o próprio art. 393 do Código Civil, que permite “às partes convencionem o deslocamento do risco do fortuito em favor do credor, fazendo com que persista a responsabilidade do de- vedor, mesmo se a inexecução se der em decorrência de evento inevitável para o qual este não tenha ocorrido”44.
Na verdade, as cláusulas de alocação de risco são comuns. Bastando lembrar as tradicionalíssimas cláusulas penais, de não indenizar e de limite de indenização. Mas as cláusulas de aloca- ção de risco não se limitam à exclusão ou à limitação de perdas e danos. Podem regular diversos outros aspectos, como se dá na
43 Existem diversos outros casos em que o ordenamento impõe a uma parte que se encontra em deter- minada situação a necessidade de arcar com os riscos do caso fortuito e da força maior, como é a hipóte- se daquele que substabeleceu o mandato sem poderes para tanto, na forma do art. 667, § 1º, do Código Civil, segundo o qual “Se, não obstante proibição do mandante, o mandatário se fizer substituir na execução do mandato, responderá ao seu constituinte pelos prejuízos ocorridos sob a gerência do substituto, embora provenien- tes de caso fortuito, salvo provando que o caso teria sobrevindo, ainda que não tivesse havido substabelecimento”. Situação idêntica é fixada pela lei para o gestor de negócio que iniciou a gestão contra a vontade ma- nifesta ou presumível do interessado (CC., art. 862). Também o possuidor que má-fé, na forma do art. 1.218, “(...) responde pela perda, ou deterioração da coisa, ainda que acidentais (...)”.
44 XXXXXXX XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXX XXXXXXX e XXXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXX,
“Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República”, vol. I, 2ª edição, Xxxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, 0000, p. 712.
concessão de prazo de cura de descumprimentos buscando evi- tar a resolução contratual; na fixação de garantia de fornecimen- to mínimo; nas regras sobre aceleração e redução do ritmo das obras nos contratos de empreitada; nas cláusulas de take or pay; e outras de semelhante jaez.
Todas essas regras de alocação de risco, fixadas pela lei ou pela vontade das partes, precisam ser respeitadas quando do exame dos efeitos da impossibilidade sobre os contratos, pois elas refletem os riscos que cada uma das partes resolveu assumir quando da decisão de contratar e de como contratar. Ou seja, trata-se de observar a manutenção do equilíbrio contratual origi- nal fixado pelas partes, de respeitar a autonomia da vontade e a segurança jurídica.
Acrescente-se que o respeito à alocação de risco decorre atualmente de regra legal. Com efeito, a norma do art. 421-A, I e II, do Código Civil define muito claramente que “as partes ne- gociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de rescisão e resolução” (CC, art. 421 – A, I) e que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada” (CC, art. 421 – A, II).
(f) Os cômodos de representação
Determina o art. 794º do Código Civil português que “[s]e, por virtude do facto que tornou impossível a prestação, o devedor adqui- rir algum direito sobre certa coisa, ou contra terceiro, em substituição do objecto da prestação, pode o credor exigir a prestação dessa coisa, ou substituir-se ao devedor na titularidade do direito que este tiver adqui- rido contra terceiro”.
A regra acima cuida dos denominados cômodos de repre- sentação, a qual se justifica não só por medida de justiça, mas como forma de impedir o enriquecimento sem causa. Afinal, “Compreende-se que a impossibilidade da prestação, não sendo imputá- vel ao devedor, o desonere da obrigação. Se, porém, em virtude do fac- to que determinou a impossibilidade, o devedor adquiriu algum direito (...), já não se justificaria que tal direito não aproveitasse ao credor”45
45 XXXXXXX XXXXXXX, “Das Obrigações em Geral”, Almedina, Coimbra, 1970, p. 750.
Em suma, não pode o detentor de uma determinada situa- ção jurídica tentar reduzir seus prejuízos sem levar em conside- ração os ganhos que obteve.
A regra dos cômodos de representação não é estranha ao ordenamento jurídico nacional. Está expressamente prevista no art. 636 do Código Civil, segundo o qual “O depositário que por força maior houver perdido a coisa depositada e recebido outra em seu lugar, é obrigado a entregar a segunda ao depositante e ceder-
-lhe as ações que no caso tiver contra o terceiro responsável pela restituição da primeira”.
Conquanto a regra acima referida esteja vinculada ao con- trato de depósito, a aplicação dela de forma generalizada se co- aduna com as regras gerais do Direito Civil, pois a possibilidade de que alguém receba vantagens em razão de uma situação ad- versa e, ao mesmo tempo, seja integralmente compensado por todos os seus prejuízos agride o princípio da vedação ao enri- quecimento sem causas (CC., art. 884) e a limitação da reparação à extensão do dano (CC., artr. 944).
A lembrança dos cômodos da representação, no debate acerca da pandemia e seus efeitos nos contratos, é fundamental, pois, como se sabe, existem diversas políticas governamentais de salvaguarda da economia, atingindo, principalmente, alguns se- tores estratégicos. É, pois, imperioso que essas ajudas também sejam consideradas na criação do novo equilíbrio contratual e na reconstrução do sinalagma.
(g) O dever de negociar
Como visto, a questão da impossibilidade temporária ou definitiva causada pela pandemia gerará problemas muito com- plexos, cuja solução demandará reflexões e estudos, os quais a levarão a campos muito distantes da aplicação direta e irrefletida do art. 393 do Código Civil.
Algumas figuras jurídicas serão fundamentais para a elucidação desses graves problemas. Dentre elas, avulta-se o dever de negociar.
Conquanto não positivado diretamente no ordenamento jurídico nacional, o dever de negociar encontra respaldo firme na boa-fé objetiva e nos deveres anexos por ela criados. Como salienta XXXXXXXX SCHREIBER “… [d]e fato, a boa-fé objetiva, consagrada em nossa codificação (arts. 113, 187 e 422), impõe a coo- peração e a colaboração entre as partes em prol do escopo comum. O dever de renegociar exsurge, assim, como um dever anexo ou lateral de comunicar a outra parte prontamente acerca de um fato significativo na vida do contrato - seu excessivo desequilíbrio - e de empreender esforços para superá-lo por meio da revisão extrajudicial. Como dever anexo, o dever de renegociar integra o objeto do contrato independentemente de expressa previsão das partes”46.
A regra do dever de negociar encontra-se consagrada em normas do direito estrangeiro e em regras de soft law. Veja-se, como exemplo, princípios do UNIDROIT, mais especificamente a regra do art. 6.2.3 (1), segundo a qual havendo mudança do equilíbrio contratual decorrente de eventos supervenientes a parte lesada pode demandar da outra a abertura de negociações séria e inspiradas na boa-fé47.
Obviamente, o dever de negociar não impõe à parte uma obrigação de retroceder em suas posições, de reconhecer a vali- dade dos argumentos da contraparte ou de fazer liberalidades, mas sim de participar com seriedade, lealdade e colaboração de uma negociação visando ao reequilíbrio contratual. Vale nova- mente recorrer à lição de SCHREIBER:
46 “Equilíbrio Contratual e Dever de Negociar”, 1ª edição, Saraiva, São Paulo, 2018, p. 341.
47 Artigo 6.2.3 (efeitos) “1) Em caso de hardship, a parte lesada pode pedir a abertura de renegociações. O pedido deverá ser feito sem retardo indevido e ser motivado. 2) O pedido não justifica, por si só, que a parte lesada suspenda a execução de suas obrigações. 3) Na falta de acordo entre as partes num período de tempo razoável, uma ou a outra parte pode recorrer ao Poder Judiciário. 4) O Tribunal que conclua pela existência do hardship, pode, se considerar razoável: extinguir o contrato na data e nas condições que ele fixar; ou b) adaptar o contrato com vistas a reestabelecer o equilíbrio econô- mico” (tradução livre, no original: “Article 6.2.3 (Effets) 1) En cas de hardship, la partie lésée peut demander l’ouverture de renégociations. La demande doit être faite sans retard indu et être motivée.
2) La demande ne donne pas par ele même à la partie lésée le droit de suspendre l’exécution de ses obligations. 3) Faute d’accord entre les parties dans un délai raisonnable, l’une ou l’autre peut saisir le tribunal. 4) Le tribunal qui conclut à l’existence d’un cas de hardship peut, s’il l’estime raisonnable:
a) mettre fin au contrat à la date et aux conditions qu’il fixe; ou b) adapter le contrat en vue de rétablir l’équilibre des prestations”.
“Como se vê, o dever de renegociar não configura um dever de alcançar certo resultado ou de aceitar as novas condições propostas pelo contratante desfavorecido pelo desequilíbrio, não se trata de um dever de revisar o contra- to extrajudicialmente, mas simplesmente de ingressar em renegociação, informando prontamente o fato que a enseja e formulando um pleito de revisão do contrato, ou anali- sando e respondendo, com seriedade, ao pleito apresen- tado pelo outro contratante. Desdobra-se em duas eta- pas: (a) o dever de comunicar prontamente a contraparte acerca da existência do desequilíbrio contratual identi- ficado, e (b) o dever de suscitar uma renegociação que possibilite o reequilíbrio do contrato ou de responder a uma proposta nesse sentido analisando-a seriamente.”48
A renegociação séria e de boa-fé, muito ajudada, em algu- mas hipóteses, pela florescente mediação, certamente levará a situações mais côngruas e mais próximas das necessidades e das expectativas das partes.
3. DESEQUILÍBRIO SUPERVENIENTE DA EQUAÇÃO CON- TRATUAL
No capítulo anterior foi examinada a questão da impossi- bilidade superveniente, definitiva ou temporária, gerada por um evento exterior, como a pandemia. Todavia, é possível que a pan- demia - ou qualquer outro evento externo e superveniente - não gere a impossibilidade no cumprimento da prestação, mas faça com que o seu cumprimento se torne exageradamente oneroso para o devedor, causando um grave desequilíbrio da equação contratual pactuada pelas partes e ferindo significativamente o sinalagma. Esse desequilíbrio da relação contratual, assim como ocorre com a impossibilidade da prestação, demandará uma so- lução do ordenamento jurídico.
Em regra, os ordenamentos jurídicos ocidentais – e o or- denamento nacional não é uma exceção – contemplam mecanis-
48 Ob. cit.; p. cit.
mos para evitar que fatos extraordinários ocorridos após a cele- bração dos contratos – como é o caso da pandemia - venham a atingir o negócio originariamente entabulado pelas partes, ge- rando desequilíbrio das prestações e impondo prejuízos injus- tificados a um dos contratantes ou, até mesmo, a ambos. Afinal, “[p]arece bem evidente que ao tempo do adimplemento, nos contratos duradouros ou de execução diferida, devam existir circunstâncias que garantam a conservação do princípio da igualdade, expresso na equi- valência entre as obrigações reciprocamente prometidas e a obtenção do fim natural do contrato”49.
Existem diversas teorias que buscam explicar a possibilida- de de alteração do contrato por quebra do equilíbrio da equação contratual decorrente de fatos supervenientes. Tais teorias vão desde a medieval cláusula rebus sic stantibus50 até a teoria da im- previsão51, passando pelas teorias da pressuposição52, da condi- ção implícita53 e da base do negócio54, esta última vista de forma
49 RUY ROSADO DE AGUIAR JUNIOR, Ob. cit., p. 150.
50 Segundo CAIO XXXXX XX XXXXX XXXXXXX, “os juristas da Idade Média, atentando que nos contratos de execução diferida o ambiente no momento da execução pode ser diverso do que existia no da celebração, sus- tentaram, acreditando-se fundados em um texto de Xxxxxxxx, em torno da condictio causa data causa non secuta, que o contrato deveria ser cumprido no pressuposto de que se conservassem imutáveis as condições externas, mas que, se houvesse alterações, a execução deveria ser igualmente modificada: ‘contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur’ (“Instituições de Direito Civil”, vol. III, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2003,, p. 162)
51 ENNECCERUS e XXXXXXX assim apresentam a teoria da imprevisão: “Todo contrato obrigatório só será vinculante enquanto as circunstâncias, abaixo das quais fora concluído, não tiverem se modificado no que for essencial” (cf. ENNECCERUS, KIPP e WOLFF, Tratado de Direito Civil, Tomo I, 1º, p. 206, Ed. Li- breria Bosch). A doutrina brasileira segue o mesmo caminho, como se vê no ensinamento de XXXXXX XXXXXXX- XXXXX: “... a Teoria da Imprevisão teve o mérito de relativizar a força obrigatória dos contratos, quando se manifestasse a alteração das circunstâncias supervenientes à conclusão contratual, e fossem essas circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis ao tempo da formação do contrato” (“Comentários ao Código Civil”, volume V, tomo I, p. 289, Ed. Forense)
52 Segundo a teoria da pressuposição de WINDSCHEID, “o contratante se obriga(?) com a certeza da permanência de uma situação ou da ocorrência de um fato sem o qual não teria contratado” (cf. XXX XXXXXX XX XXXXXX XXXXXX, ob. cit., p. 144)
53 A teoria da condição implícita (implied terms ou implied conditions no Direito inglês) tem sua fonte na jurisprudência dos países de direito consuetudinário, mais notadamente na jurisprudência inglesa. Como ensina XXXXXXX XXXXX, “A teoria da condição implícita é, antes, orientação seguida pelo juiz inglês em casos nos quais a execução do contrato não deve ser exigida pela superveniência de fatos que impedem seja a prestação cumprida. Considera-se que, nessas hipóteses, não subsiste o vínculo contratual, partindo da presunção de que as partes o concluíram no pressuposto de que perdurariam as condições externas em que foi celebrado. A sobrevivência do contrato subordina-se a uma condição implícita (implied condition), entendido o substantivo como uma condictio juris” (Transformações Gerais no Direito das Obrigações, RT, 2ª edição,
p. 98). Caso emblemático da aplicação da teoria da condição implícita na jurisprudência inglesa são os Coronation Cases. Tais processos cuidavam da locação de xxxxxxx, cujo objetivo exclusivo era permitir que os locatários assistissem a passagem do cortejo do Rei Xxxxxxx XXX. Os festejos, no entanto, foram adiados pela doença que acometeu o monarca. As cortes inglesas, considerando que fora frustrado o objetivo do contrato, permitiram que os locatários não efetuassem o pagamento dos aluguéis.
54 A teoria da base do negócio é assim conceituada por XXXXXXXXXX: “Por base do negócio, a esses
subjetiva por OERTMANN55, e objetiva por XXXXXX.56
O Código Civil brasileiro cuida da questão no art. 47857, que recebeu, em sua primeira parte, a seguinte redação: “Nos contra- tos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”.
A análise do referido dispositivo mostra que a resolução do contrato por onerosidade excessiva, no sistema do Código Ci- vil58, depende da presença de uma série de requisitos, tais como:
efeitos, se há de entender as representações dos interessados, ao tempo da conclusão do contrato, sobre a exis- tência de certas circunstâncias básicas para a sua decisão, no caso de que estas representações não hajam sido conhecidas meramente, senão constituídas, por ambas as partes, em base do contrato, como, por ex., a igualdade de valor, em princípio, da prestação e contraprestação nos contratos bilaterais (equivalência), a permanência aproximada do preço convencionado, a possibilidade de repor a provisão das mercadorias e outras circunstâncias semelhantes”. (Apud. RUY ROSADO DE AGUIAR JUNIOR, ob. cit., p. 144/145)
55 “Por base do negócio subjetiva deve se entender a representação mental ou a expectativa pela qual ambos os contratos foram guiados ao concluir o contrato. Não é suficiente a representação mental ou a expectativa que tenha determinado de modo decisivo a vontade de uma das partes, ainda que a outra tivesse ciência dela” (XXXX XXXXXX, “Base del negocio jurídico y cumplimiento de los con- tratos”, Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid. p. 224 – tradução livre; no original: “Por base del negocio subjetiva ha de entenderse una representación mental o esperanza de ambos contratantes por la que ambos se han dejado guiar al concluir el contrato. No es suficiente que la representación o esperanza haya determinado de modo decisivo la voluntad de uma de las partes, aun cuando la otra parte hubiese tenido noticia de ello”)
56 “Por base do negócio objetiva deve ser entendido o conjunto de circunstâncias e o estado geral de coisas cuja existência ou subsistência é objetivamente necessária para que o contrato segundo o signi- ficado da intenção de ambas as partes possa subsistir como regulação dotada de sentido” (XXXX XX- XXXX, Ob.cit.; p. 225 – tradução livre; no original “Por la base del negocio objetiva ha de entenderse el conjunto de ciscunstancias y estado general de cosas cuya existencia o subsistencia ES objetivamente necesaria para que el contrato, según el significado de las intenciones de ambos contratantes, pueda subsistir como regulación dotada de sentido”)
57 Vale aqui ressaltar que o art. 478 do novo Código Civil é claramente inspirado no art. 1.467 do Có- digo Civil italiano que tem a seguinte redação: “Nos contratos de execução continuada ou períodica e nos de execução diferida, se a prestação de uma parte tornar-se excessivamente onerosa pela ocorrência de eventos extraordinários e imprevissíveis, a parte que deve esta prestação pode demandar a reolução do contrato, cos os efeitos estabelecidos no art. 1458 (att. 168). A resolução não poderá ser requerida se a onerosidade superveniente integra a aléa normal do contrato. A parte contra a qual é demandada a resolução pode evitá-la oferecendo para modificar equitativamente as condições do contrato”. (tradução livre; no original: “Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione di una delle parti è divenuta eccessivamen- te onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dall’Art. 1458 (att. 168). La risoluzione non può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell’alea normale del contratto. La parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitarla offrendo di modificare equamente le condizioni del contratto. De fato, o tratamento da resolução por onerosidade excessiva na legislação italiana serviu de modelo fiel ao art. 478 do Código Civil brasileiro.
58 No sistema do Código de Defesa do Consumidor a situação é diversa. Para o art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, basta que existam “fatos supervenientes que as tornem (as prestações) excessiva- mente onerosas” para permitir “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações despropor- cionais ou sua revisão”. Assim, não só o microssistema consumerista autoriza expressamente a hipótese de revisão dos contratos por fatos supervenientes, mas também abranda sensivelmente os requisitos
(a) a existência de um contrato de execução continuada ou diferi- da; (b) a presença de excessivo ônus gerado para uma das partes;
(c) a existência de vantagem excessiva para a outra parte; e (d) a ocorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis causadores do desequilíbrio.
A necessidade de um contrato de execução continuada ou diferida é uma imposição de ordem lógica. Se o contrato for de execução imediata, sendo instantaneamente executado após sua celebração, os fatos supervenientes não poderão atingi-lo, alteran- do o equilíbrio de suas prestações, que, a essa altura, já terão sido completamente executadas e, ipso facto, extintas. Ou seja, “pela sua própria natureza, a imprevisão só se aplica aos contratos de prestações su- cessivas, ou nos a prazo, cuja execução se prolongue no tempo. Excluída está em relação aos contratos instantâneos e em relação aos aleatórios”.59 O segundo requisito, o surgimento de um ônus exagerado
para uma das partes, é indiscutivelmente o mais relevante de to-
dos, pois é a razão de ser do instituto, cujo objetivo é impedir o sa- crifício demasiado de um dos contratantes. Importante notar que não será todo e qualquer ônus que abrirá a possibilidade da apli- cação do art. 478 do Código Civil. É fundamental que esse ônus seja demasiado, provocando uma “extrema desvantagem”, como expressamente exige o texto legal. “Faz-se necessário ainda, para a resolução do contrato, que a sucessiva onerosidade exceda a álea normal do contrato. É preciso que o desequilíbrio determinado entre a prestação e contraprestação supere a medida que corresponda às normais oscilações do mercado dos valores orçados; se permanece dentro delas, não há razão para libertar de seu compromisso a parte que sofre um agravamento eco- nômico que podia muito bem ser previsto e prevenido”.60
O art. 478 do Código Civil, conquanto deixe claro que o ônus gerado para a parte deva ser aquele suficiente para causar “extrema desvantagem”, não apresenta qualquer dado objetivo ou
para tanto, afastando, inclusive, a necessidade da imprevisibilidade. Não é por outro motivo que se considera que o art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor encontra substrato na teoria da base do negócio, e na teoria da onerosidade excessiva, que inspira o art. 478 do Código Civil.
59 XXXX XXXXX XXXXXX XX XXXXX XXXXX, “Curso de Direito Civil”, vol. III, 4ª edição, Rio de Janeiro, Xxxxxxx Xxxxxx, p. 104.
60 XXXX XXXXXXXXX XXXXXXXX, Contratos no Novo Código Civil”, 2ª edição, Método, 2004, p. 268.
parâmetro concreto, a fim de que se possa mensurar a onerosi- dade excessiva. Portanto, os conceitos de “onerosidade excessiva” e de “extrema desvantagem” precisam ser preenchidos e sopesa- dos em cada caso concreto, com base em dados reais e objetivos, levando-se em conta, dentre os fatores, a magnitude do fardo da prestação antes e depois do evento superveniente. Ou seja, é pre- ciso que “seja excessiva a diferença de valor do objeto da prestação entre o momento de sua perfeição e o da execução”.61
Também é preciso examinar a alocação de riscos traçada pelos contratantes, de modo a averiguar se o fato superveniente suposta- mente justificador do pedido de aplicação da teoria da onerosidade excessiva não estava na álea do negócio de quem a alegou. Relem- bre-se que “[o] contrato serve justamente ao propósito de afastar os riscos, fazendo-os incidir sobre uma das partes ou repartindo entre elas. Cada um dos contratantes pode assumir o risco, afastá-lo ou partilhá-lo, de acordo com os interesses em comum. E não apenas o próprio risco é suscetível de previsão. Também as próprias consequências dos fatos que integram o risco contratual podem ser dimensionadas pelas partes.”62 Por essa razão, “Não se deve admitir a resolução ou a revisão do contrato por onerosidade excessiva superveniente quando a modificação das bases contratuais estiver coberta pelos próprios riscos do contrato”63 64.
Neste sentido, é o enunciado 438 do Conselho da Justiça Fe- deral - CJF, segundo o qual “A revisão dos contratos por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, observar-se-á a sofisticação dos con- tratantes e a alocação dos riscos por eles assumidos com o contrato”.
Não é por outro motivo que parte significativa da doutrina entende que é descabida aplicação da teoria da onerosidade ex- cessiva nos contratos aleatórios.65
61 XXXXXXX XXXXX (Ob. cit.; P. 209)
62 ATIYAH apud. XXXXXX XXXXX XXXXX (“Alargamento do conceito de impossibilidade no Direito das Obrigações: a inexigibilidade e a frustração do fim do contrato” in. “Transformações Contemporâneas do Direito das Obrigações”, Xxxxxxxx Xxxx e Xxxxxxx Xxxx (org), Campus Jurídico, Rio de Janeiro, 2011, p. 283).
63 XXXXX XXXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Curso de Direito Civil, vol. III (Direito dos Contratos), Tomo I, Atlas, São Paulo, 2015, p. 38
64 Na mesma linha, o Enunciado nº 366 da IV Jornada de Direito Civil da CJF/STJ, segundo o qual “o fato extraordinário e imprevisível causador da onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos do contrato”.
65 Bem examinada a questão, verificar-se-á a existência de três correntes (a) os apoiadores da possibi-
A jurisprudência examina a aplicação da teoria da onero- sidade excessiva com olhos para repartição de riscos acordada pelas partes ou determinada pela natureza do negócio. Muito são os exemplos. Veja-se que “A jurisprudência do STJ é no sentido de que, nos casos de frustração da safra decorrente da estiagem, é ina- plicável a teoria da onerosidade excessiva, por não se tratar de evento imprevisível ou extraordinário, mas sim, risco inerente ao negócio”66. Os efeitos das chuvas excessivas prejudicando a safra também foram reputados pelo Superior Tribunal de Justiça como risco do negócio67. Também não são considerados os efeitos de crises eco- nômicas mundiais e nacionais.68
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça também entendeu que a variação do preço de merca- do do produto no contrato de compra e venda de safra futura não caracteriza onerosidade excessiva, por integrar o risco do negócio “A variação do preço da saca da soja ocorrida após a celebra- ção do contrato não evidencia acontecimento extraordinário e impre- visível apto a propiciar a revisão da obrigação com alteração das bases contratuais”.69 O mesmo Superior Tribunal de Justiça considerou que o crescimento do roubo de cabos de telefonia também estava dentro do risco do contrato de manutenção, afirmando que, “Em relação à onerosidade excessiva alegada, verifica-se que a teoria da im- previsão autoriza a revisão das obrigações contratuais apenas quando há onerosidade excessiva decorrente da superveniência de um evento imprevisível, alterador da base econômica objetiva do contrato.”70.
lidade de aplicação da onerosidade excessiva nos contratos aleatórios (Cf. XXXXXX XXXXXX, “A Te- oria da Imprevisão e os Contratos Aleatórios”, RT. Vol. 782, São Paulo, 1989, p. 78) (b) os negadores de tal possibilidade (XXXXX XXXXX, ob. cit; p. 104; XXXX XXXXX XX XXXXX XXXXXXX, “Instituições de Direito Civil”, vol. III, 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2003, p. 167; e XXXX XXXXXX DE XXXXXXX XXXXX, em “Contrato” Xxxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, 0000, p. 161) e (c) aqueles que entendem ser cabível desde que o evento causador do desequilíbrio não tenha ligação com os riscos assumidos no contrato (cf. XXXXX XXXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Ob. cit.; p. 390).
66 AgInt no AREsp 1352761/PR, Rel. Ministro XXXXX XXXXX, QUARTA TURMA, julgado em 21.11.2019, DJe 27.11.2019.
67 AgRg no AREsp 711.391/MT, Rel. Ministro XXXX XXXXXX XX XXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 01.12.2015, DJe 14.12.2015.
68 AgInt no REsp 1316595/SP, Rel. Ministro XXXX XXXXXX XXXXXXX, QUARTA TURMA, julgado em 07.03.2017, DJe 20.03.2017; e AgInt no AREsp 646.945/SP, Rel. Ministro XXXXX XX XXXXX XXX- XXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 18.08.2016, DJe 26.08.2016.
69 AgInt nos EDcl no AREsp 784.056/SP, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 15.09.2016, DJe 22.09.2016.
70 REsp 1632842/RS, Rel. Ministro XXXXX XX XXXXX XXXXXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em
É efetiva a tendência da jurisprudência do Superior Tribu- nal de Justiça de prestigiar a alocação de riscos dos contratos, como visto nos julgados acima indicados e como se verifica no julgamento do Recurso Especial nº1.689.225/SP, que considerou inaplicável a teoria da onerosidade excessiva nos contratos de derivativos, já que tais negócios “são dotados de álea normal ilimi- tada, a afastar a aplicabilidade da teoria da imprevisão e impedir a sua revisão judicial por onerosidade excessiva”.71
Portanto, os efeitos da pandemia não deverão ser examina- dos de forma igualitária para todos os contratos. Será fundamen- tal examinar caso a caso, verificando os efeitos do fato superve- niente sobre os riscos incorridos por cada uma das partes.
Xxxxxxxxx, ainda, lembrar que a teoria da onerosidade ex- cessiva somente é aplicável sobre riscos que não foram causados pela parte que pretende invocá-la. “São descartados os desequilí- brios imputáveis ao próprio devedor, já que lhe cumpre arcar com os efeitos de sua culpa, bem como aqueles incorridos quando ele já se en- contrava em mora ...”72. Assim, se a prestação devida sofreu os efei- tos da pandemia em virtude da mora do devedor, que deveria tê
-la cumprido anteriormente e não o fez, os efeitos revisionais ou liberatórios da teoria da onerosidade excessiva não o protegerão. É importante também observar que o desequilíbrio super- veniente da equação contratual seja decorrente de fatores extra- ordinários e imprevisíveis. “A lei não tutela o contratante que não usou da normal prudência necessária para xxxxxxx e compreender as consequências do contrato. Portanto, é justo e racional que o risco das circunstâncias ordinárias seja suportado pelos contraentes. Apenas os riscos absolutamente anômalos, como tais subtraídos à possibilidade de razoável previsão e controle dos contratantes é que podem dar ensejo à resolução do contrato, quando ocasionarem a excessiva onerosidade da prestação de uma das partes, com extrema vantagem para a outra”.73
12.09.2017, DJe 15.09.2017.
71 REsp 1689225/SP, Rel. Ministro XXXXXXX XXXXXX XXXX XXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em
21.05.2019, DJe 29.05.2019.
72 XXXXXXX XXXXXXXX, XXXXXX XXXXXX XXXXXX e XXXXX XXXXX, “Fundamentos do Direito
Civil”, vol. 3, Forense, Rio de Janeiro, 2020, p. 138. 73 XXXX XXXXXXXXX XXXXXXXX, Ob. cit.; p. 267.
No caso da pandemia, esse requisito parece ser o menos polê- mico, pois, antes do início deste ano, ninguém poderia antever a tragédia que hoje assola todo o mundo.
O requisito para a aplicação da teoria da onerosidade ex- cessiva mais controvertido na doutrina é certamente a existência de “extrema vantagem para a outra” parte. Corrente significativa da doutrina considera que tal exigência é equivocada, pois nada justificaria obrigar um contratante a prosseguir na execução de um contrato ruinoso para ele, apenas porque a outra parte não obteve vantagens desmesuradas. “Exigir que a alteração das cir- cunstâncias atinja apenas uma das partes em benefício da outras impli- ca em esvaziar significativamente este modelo jurídico, vedando ao con- tratante fragilizado, por acontecimento superveniente extraordinário e imprevisível, o recurso ao remédio resolutório, apenas por não provar o enriquecimento sem causa provado pelo parceiro contratual.”74
Xxxxx se discutiu acerca dos efeitos decorrentes da aplica- ção do art. 478 do Código Civil, uma vez que a literalidade da norma impediria a revisão dos contratos, possibilitando apenas a resolução deles. Isso porque a norma estipula que a parte poderá “pedir a resolução do contrato”. Além disso, o art. 479 do Código Civil permite que a revisão ocorra, mas somente se a outra parte, desejosa de manter vivo o negócio, se disponha a concedê-la.
Após acesos debates na doutrina, com posicionamentos pró75
74 XXXXXXXXX XXXXXX XX XXXXXX e XXXXXX XXXXXXXXX, “Curso de Direito Civil”, vol. 4, 5ª edição, Atlas, São Paulo, 2015, p. 564.
75 XXXXX XXXXX XXXXXX defendendo a possibilidade de revisão do contrato por considerar ser a melhor solução em termos práticos, afirmando que “Tem-se entendido, porém, que a estreiteza do di- tame legal não basta para excluir a revisão judicial do contrato, quando fora esta a pretensão do contratante surpreendido pelas mudanças nas condições econômicas. A parte com dificuldades para cumprir a obrigação considerada excessivamente onerosa pode optar pela revisão judicial do contrato. Se suas cláusulas puderem ser equitativamente redefinidas pelo juiz, isso tende a ser melhor e mais eficiente para os dois contratantes. A resolução só deve ser decretada se a revisão não se mostrar capaz de restaurar a justa distribuição de proveitos entre eles” (“Curso de Direito Civil”, volume 3, Saraiva, São Paulo, 2005, p. 105/106.. Na mesma linha, XXXXXXX XXXXX XXXXXX afirma que a revisão não é só possível, como também é a melhor solução na maioria dos casos concretos, afinal “O prejudicado é senhor de sua vontade, pois pode pedir a resolução ou a revisão do contrato, segundo o que entenda melhor convenha a seus interesses pessoais e econômicos. A revisão oferece maior possibilidade de solução, tomando como base a justiça contratual, a equidade sobretudo, a gama de dificuldades que são despejadas pela excessiva onerosidade” (“Função Social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos”, Método, São Paulo, 2002, p. 252/253). Outros doutrinadores, levando em considera- ção a firmeza quase inflexível do texto do art. 478 do Código Civil, tentam justificar a possibilidade da revisão do contrato com base no art. 317 daquele mesmo diploma, que segundo eles possibilitaria a almejada revisão. Neste sentido, é a lição de RUY ROSADO DE AGUIAR, que considera que o art. 478 diria respeito única e exclusivamente à resolução, sendo que a revisão dos contratos seria permitida
e contra76 a possibilidade de revisão, a maioria da doutrina se colo- cou em defesa da possibilidade de revisão, levando-se em conside- ração que as normas jurídicas devem ser interpretadas sistematica- mente e de acordo com o seu espírito. Assim, o referido dispositivo legal deve ser interpretado em consonância com os princípios que norteiam Código Civil, dentre os quais os princípios da conservação dos contratos e da boa-fé. Portanto, a melhor interpretação do art. 478 Código Civil é a que possibilita também a revisão dos contratos, pois ainda que isso possa soar um pouco artificial, ante a literalida- de do dispositivo, trata-se da única hipótese interpretativa que se harmoniza com os referidos princípios e com os anseios de justiça e equidade do Código Civil.
Veja-se ainda que os princípios do UNIDROIT, referentes aos contratos internacionais, apontam no mesmo sentido da con- clusão acima referida. Os referidos princípios indicam que, diante de uma alteração significativa da equação do contrato gerada por eventos supervenientes não considerados pelas partes, pode o jul- gador optar entre a extinção do contrato ou a adaptação das pres- tações visando ao retorno do equilíbrio da equação contratual77.
É preciso, ainda, verificar qual é o momento da extinção do contrato ou de sua adaptação. O art. 478 do Código Civil, em sua parte final, explicita que “os efeitos da sentença que a [a resolu- ção ou a revisão] decretar retroagirão à data da citação”. Assim, “As
com base no referido art. 317. Assevera, ainda, que, embora este último dispositivo aparente cuidar de questões relativas à manutenção do valor da moeda diante do fenômeno inflacionário (correção monetária), ele serviria, na realidade, como fundamento legal da possibilidade de revisão dos contra- tos. Adverte apenas que é preciso atentar para o fato de que os requisitos impostos pelo art. 478 para a resolução do contrato seriam muito mais rígidos do que os indicados pelo art. 317 para a revisão. Segundo afirma, a extraordinariedade do evento e a vantagem excessiva do credor seriam requisitos apenas para a resolução do contrato (Ob. cit., pp. 152/153).
76 Veja-se, por exemplo, que XXXX XXXXX XX XXXXX XXXXXXX declara, sem hesitações, não existir espaço para a revisão do contrato diante do texto legal, afirmando que “O que a lei concede ao con- tratante é a resolução. A alteração das cláusulas de cumprimento será iniciativa do credor, que vo- luntariamente aquiesce em oferecer oportunidade de solução menos onerosa ao devedor, como meio de salvar a avença” (Ob. cit.; p. 167) No mesmo sentido, XXXXXX XXXXXXXXX é claro ao ensinar que “permite o legislador que, a pedido do interessado o juiz determine a rescisão do contrato” (“Direito Civil”, vol. 3, 28ª edição, Saraiva, 2002, São Paulo, p. 132).
77 Com efeito, orienta o art. 6.2.3 (4) dos princípios do UNIDROIT que: “4) O tribunal que conclua pela existência de um caso de hardship pode, caso considere razoável: a) colocar fim ao contrato na data e condições por ele fixadas; ou, b) adaptar o contrato em vistas de reestabelecer o equilíbrio das prestações” (tradução livre; no original:“4) Le tribunal qui conclut à l´existence d´un cas de hardship peut, s´il l´estime raisonable: a) mettre fin au contrat à la date et aux conditions qu´il fixe; ou, b) adap- ter le contrat en vue de rétablir l´equilibre des prestations).”
prestações efetuadas antes do ingresso em juízo não podem ser revistas, mesmo comprovada a alteração no quadro econômico ...”.78 Trata-se de regra visando à segurança jurídica, já que a citação é um marco certo e bem determinado.
4. CONCLUSÃO
Este pequeno estudo não tem a pretensão de esgotar o de- bate, que é tormentoso e profundo. Tem ele o objetivo de chamar a atenção para a dificuldade dos diversos problemas, absolu- tamente multifacetados, que a pandemia poderá causar nos contratos e nas obrigações e para a ampla diversidade das situações que surgirão. A complexidade e a disparidade dos problemas não permitirão a aplicação de soluções simplórias, como a incidência direta e irrefletida do art. 393 do Código Civil a diversos casos independentemente de suas peculiari- dades. A adoção de saídas fáceis somente causará novos de- sequilíbrios e injustiças.
É preciso, por tudo o que foi dito, que as soluções passem pelo detido e atento exame das nuances e peculiaridades de to- das as obrigações e contratos, buscando soluções equilibradas que respeitem as justas expectativas das partes e a alocação de riscos por elas definida, sempre inspiradas pela boa-fé.
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ACÓRDÃOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AgInt no AREsp 1352761/PR, Rel. Ministro XXXXX XX- ZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21.11.2019, DJe 27.11.2019.
AgRg no AREsp 711.391/MT, Rel. Ministro XXXX XXXXXX XX XXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 01.12.2015, DJe 14.12.2015.
AgInt no REsp 1316595/SP, Rel. Ministro XXXX XXXXXX XXXXXXX, QUARTA TURMA, julgado em 07.03.2017, DJe 20.03.2017;
AgInt no AREsp 646.945/SP, Rel. Ministro XXXXX XX XXXXX XXXXXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 18.08.2016, DJe 26.08.2016.
AgInt nos EDcl no AREsp 784.056/SP, Rel. Ministro MAR- CO XXXXXXX XXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 15.09.2016, DJe 22.09.2016.
REsp 1632842/RS, Rel. Ministro XXXXX XX XXXXX XXX- XXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 12.09.2017, DJe 15.09.2017.
REsp 1689225/SP, Rel. Ministro XXXXXXX XXXXXX XXXX XXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 21.05.2019, DJe 29.05.2019.