Açáo Civil Lública – Revisáo dos Contratos por Nulidade de Claúsula e a Preservação do Equilíbrio Contratual
Açáo Civil Lública – Revisáo dos Contratos por Nulidade de Claúsula e a Preservação do Equilíbrio Contratual
Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx 1
O tema em questão trata da importância da função social do con- trato. Com efeito, a socialidade, hoje presente no direito brasileiro, está bem expressa pelo atual Código Civil ao dispor que a liberdade de con- tratar será exercida em razáo e nos limites da funçáo social do contrato. A função social do contrato amplia a abordagem da liberdade contratual em seus efeitos sobre a sociedade, e não apenas no campo das relações entre as partes contratantes. O elemento justiça é fundamental para se aferir se o contrato está cumprindo sua funçáo social, e respeitando a conciliaçáo do interesse privado com o interesse da coletividade.
Aqui já temos a relevante questáo a ser enfrentada. O contrato que atenta contra a funçáo social pode ser corrigido por revisáo judicial, ou a revisáo é impossibilitada pelo princípio da autonomia de vontade?
De plano, cabe assentar que o aplicador do direito moderno não mais permite que a liberdade contratual seja exercida de forma abusiva, ou que as prestaçóes sejam excessivamente onerosas para uma das partes. A ideia é que o negócio jurídico seja socialmente benéfico e justo, preser- vando o interesse da sociedade. Todo negócio jurídico tem uma funçáo que extrapola a individualidade e que adentra na seara do interesse da co- letividade.
Mas a função social do contrato não deve negar a força obrigatória
1 Juiz de Direito Titular da 3a. Vara de Órfáos e Sucessóes.
do pacto - princípio basilar do direito civil - embora possa atenuar os seus
efeitos, limitando-os aos interesses da coletividade.
A relativização do pacta sunt servanda está bem evidenciada no en- tendimento do Superior Tribunal de Justiça quando, por exemplo, passou a considerar que a cláusula contratual do plano de saúde que limita no tempo a internaçáo hospitalar do segurado é abusiva.
O princípio da dignidade humana é evocado para coibir o vício do contrato no seu nascedouro, por conta do desequilíbrio contratual. O desequilíbrio econômico e social é fruto de um liberalismo extremado, no qual os menos favorecidos têm seus direitos supostamente garantidos e suas obrigações exaustivamente expressadas; em que o liberalismo atropela o interesse da coletividade ao impor obrigações onerosas para aquele que adere ao pacto negocial.
Em um Estado socialmente justo, há intervençáo do ente estatal
para garantir a igualdade das partes contratantes, com a adoçáo dos princí- pios da funçáo social do contrato e da boa-fé objetiva. Para tanto, cabe ao juiz interpretar o caso concreto, utilizando os princípios da proporciona- lidade e da razoabilidade de modo a alcançar o equilíbrio entre as partes e assim fazer justiça.
Náo se pode olvidar que a positivaçáo no Código Civil das cláusulas gerais da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico e financeiro do contra- to e da função social, veio reforçar o Código de Defesa do Consumidor para evitar quaisquer abusividades, iniquidades ou mesmo injustiças nos contratos celebrados. Além dos três princípios positivados, aliados aos já consagrados pela teoria contratual clássica regente da relaçáo contratual, para os fins ora enfocados, considerando-se os interesses comuns, em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a própria existência do contrato e traduz um agir pautado pela ética, igualdade e solidariedade e direcio- nando-os às cláusulas contratuais, tem-se que qualquer abusividade que, via de regra, pudesse ser extirpada ou mesmo ponderada pelo Código de Defesa do Consumidor, destinado a reger situaçóes específicas em que seja identificado a figura do consumidor final, também o será pelo Código Ci- vil, diploma destinado a regulamentar os contratos de forma geral.
É claro que a invocação de resolução por onerosidade excessiva náo é feita sem critérios, na medida em que é necessário que se apure a alteraçáo das condiçóes econômicas objetivas no momento da execuçáo do contrato, em confronto com o ambiente objetivo da celebraçáo con- tratual, bem como que se verifique a onerosidade excessiva para um dos contratantes e o benefício exagerado para o outro, e a imprevisibilidade daquela modificação.
De outra senda, para a revisáo do contrato náo há necessidade de prova da imprevisibilidade, mas somente de mera e simples onerosidade ao vulnerável. A garantia de revisáo das cláusulas contratuais em razáo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas tem funda- mento em outros princípios igualmente adotados pelo CDC, como o da boa-fé e equilíbrio (art. 4◦, III) e o da vulnerabilidade do consumidor, que decorre do princípio maior, constitucional da isonomia (art. 5◦, caput, da CF). O verdadeiro sentido da revisáo consumerista do contrato náo é a previsão dos rebus sic stantibus e, sim de revisão pura decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não a previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos. Para que o consumidor tenha direito à revisáo do contrato basta que haja onerosidade excessiva para este, em decorrência de fato superveniente. Náo há necessidade de que esses fatos sejam extraordinários nem que sejam imprevisíveis.
Se o contrato de plano de saúde permite a substituição unilateral da rede credenciada, por exemplo, temos uma manifesta absusividade contratual, na medida em que o estatuto consumerista veda a estipulação de vantagem desproporcional ao consumidor por violação de expectativa quanto à rede médico-hospitalar contratada, vedando-se a substituiçáo in- condicional por outra de qualidade inferior. Interessa à sociedade como um todo que o Judiciário intervenha para recompor o equilíbrio da relaçáo negocial estabelecida, pois toda a soluçáo de conflito tem a ordem social como pano de fundo.
Em outro exemplo, pergunta-se se a operadora do plano de saú- de pode se recusar a reembolsar despesas arcadas pelo usuário decorrentes de internação em hospital não conveniado. Parece-nos que, à luz da pre-
servaçáo do equilíbrio contratual, é razoável admitir o reembolso parcial das despesas no montante equivalente ao que a operadora despenderia em um hospital conveniado de padrão equivalente. Cuida-se de exemplo elo- quente de respeito ao princípio da dignidade humana em que se busca o reconhecimento do direito dos menos favorecidos de rever obrigações que oneram e inviabilizam a execução do contrato.
Já o direito de plena informaçáo merece especial destaque.
Trata-se de um direito valioso a ser amparado, pois somente pela informação poderão as partes menos esclarecidas satisfazer de modo pleno suas necessidades, especialmente porque é uma forma de se favorecer o exercício de suas escolhas de modo livre e consciente. Se a Constituiçáo Federal reconhece a importância do respeito aos direitos dos consumido- res, é no Código de Defesa do Consumidor que a informaçáo é delineada. De fato, o exame do CDC pontua a informaçáo ora como princípio (art. 4◦, IV), ora como direito básico do consumidor (arts. 6◦, III e 43), como dever do fornecedor (arts. 8◦, f único, 31 e 52) e também do Estado e seus órgáos (arts. 10, f 3◦, 55, ff 1◦ e 4◦ e 106, IV).
Todos esses dispositivos têm um conteúdo finalístico, qual seja, o de permitir que os consumidores possam fazer suas opções de consumo, especialmente quando se apresentam em situação de hipossuficiência. Des- respeitando o direito básico de informaçáo e olvidando-se do seu próprio dever de informar - notadamente após o famigerado plano de incentivo à adaptação dos contratos aos ditames da lei reguladora -, a operadora afronta o princípio da dignidade da pessoa humana. Aquele que adere a um contrato de plano de saúde deve ter plenamente preservado o direito de conhecimento e informaçáo de todos os aspectos e consectários contra- tuais, até porque a empresa contratada tem a experiência prática de todas as vicissitudes contratuais.
Enfim, para que o julgador interfira na realidade social em prol da sociedade, a função extremamente legalista e engessada impede a efetiva aplicaçáo dos princípios do direito. O magistrado, como agente político, tem o dever de decidir de acordo com os valores mais relevantes para a so- ciedade, em conformidade com os objetivos traçados constitucionalmente
na República Federativa, entre eles a dignidade da pessoa humana.
Nesse passo, a ação civil pública atua no campo de reivindicações sociais e da concretização de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, bem como na ordem infraconstitucional. O amparo aos direitos difusos e coletivos, como o direito do consumidor, se efetiva através de açóes transindividuais propostas pelos entes legitimados em lei.
Trata-se de uma conquista dentro de um Estado democrático, no qual impera a responsabilização transparente dos causadores de danos à comunidade. O avanço social de uma democracia passa, necessariamente, por mobilizaçóes sociais ou pelas vias judiciais, pois muitas vezes náo se tem a menor chance de alterar situaçóes que afrontam princípios éticos e valores consagrados pela via tradicional dos ditos representantes eleitos, notadamente quando estes invertem seus papéis de servidores públicos e passam a se servir do poder outorgado pelo povo.
A açáo civil pública é, sim, um meio hábil de exercício político do
poder que emana do povo, e seu maior obstáculo é de natureza ideológi- ca, ou seja,decorre de um esquema mental preso às tradiçóes do processo individual e, acima de tudo, de uma compreensão positivista e legalista do Direito, como se o magistrado fosse um servidor automatizado e indife- rente à realidade social.
í inegável que a ACP se constitui numa alavanca valiosa para des-
congestionar o Judiciário brasileiro, que, ao invés de ter de julgar milhares ou milhões de ações de consumidores que questionam o descompasso de um reajuste de contrato de plano de saúde, por exemplo, pode por fim ao litígio com uma só decisáo.
Na área da saúde, a natureza do contrato tem por objeto bem pro- tegido constitucionalmente, pois a saúde é direito fundamental, cujas expectativas não podem ser frustradas pela parte contratada. O interesse dos consumidores contratantes é o de garantir para si e para sua família o acesso à saúde, assegurando-se contra eventuais riscos. Por seu turno,
o interesse da operadora deveria ser o de prestar os serviços contratados com eficiência, mas sem desequilibrar o contrato até o ponto de torná-lo impossível aos consumidores.
É no contexto dessa relação, marcada pelo trato sucessivo de suas prestações, dependência e expectativa quanto à segurança de determina- do plano de assistência médico-hospitalar, que a açáo judicial deve evitar surpresa aos consumidores, obrigando-os a adotar soluções que invaria- velmente chegarão a desistência do contrato, ou de conformismo, para os poucos que ainda podem arcar com as mensalidades.
Conclusão
Um Estado Democrático tem o dever de viabilizar a intervençáo de um de seus Poderes para garantir a igualdade das partes contratantes, com a adoçáo dos princípios da funçáo social do contrato e da boa-fé objetiva, em absoluta conformidade com o regramento constitucional. E é o juiz, seu agente estatal legitimado, que tem a missão, dentro das regras de razoa- bilidade e proporcionalidade, de reconstruir a essência do negócio jurídico, de modo a alcançar o equilíbrio entre todos os intervenientes, garantindo a ordem social. Portanto, a açáo civil pública é, efetivamente, um instru- mento hábil para a revisáo de contratos de plano de saúde por nulidade de cláusula, com o objetivo de garantir o equilíbrio do pacto negocial. ◆