As Vantagens da Instituição do Direito de Superfície em Substituição aos Contratos de Locação Comercial na Modalidade “Built to Suit”
As Vantagens da Instituição do Direito de Superfície em Substituição aos Contratos de Locação Comercial na Modalidade “Built to Suit”
Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx 1
Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx 2
Resumo
Neste artigo, pretende-se demonstrar as vantagens de se instituir direito real de superfície em substituição ao contrato de locação comercial na modalidade built to suit, tendo em vista os benefícios que se apresentam ao titular de direitos reais, que exercem diretamente seu poder sobre a coisa, sem a necessidade de intermediação pelo sujeito passivo devedor da obrigação. Para tanto, iniciamos conceituando direitos reais e direitos obrigacionais, de forma a apresentar ao leitor as características próprias de cada espécie, bem como as possíveis vantagens que os direitos reais apresentam sobre os obrigacionais. Em seguida, apresentamos as características e efeitos do contrato de locação comercial na modalidade built to suit, com o escopo de demonstrar os problemas a ela relacionados e de que forma a instituição do direito real de superfície poderia superá-los. Por fim, conceituamos o direito de superfície, com suas características e efeitos, predominantemente aqueles que nos permitiram concluir pela vantajosidade de instituição do direito real em lugar da realização de contrato obrigacional.
Palavras-chave: Locação. Direitos Reais. Direitos Obrigacionais. Superfície.
1 Introdução
Com o avanço das relações imobiliárias, e a necessidade cada vez mais premente de se conseguir estabelecimentos comerciais em boas localizações, com redução de custos de imobilização de ativos, assistimos ao surgimento dos contratos de locação sob medida, comumente denominados como built to suit, que se pode traduzir como “construído para servir”.
Apesar de seu surgimento na década de 1950, nos Estados Unidos, foi utilizado pela primeira vez no Brasil na década de 1990, vindo a ser regulamentado pela legislação pátria apenas no ano de 2012, com a inclusão do artigo 54-A na Lei nº 8.245/1991.
1 Mestrando em Direito pela FADISP/UniAlfa. Especialista em Direito e Processo Penal pela FMU. Docente do Curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Pindamonhangaba/SP.
2 Especialista em Processo Civil pela Universidade de Taubaté – UNITAU. Especialista em Direito Público pela Universidade Braz Cubas. Docente do Curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Pindamonhangaba.
Todavia, verifica-se que a regulamentação é insuficiente e frágil, deixando pontos da relação obrigacional que surge do contrato built to suit a descoberto, especialmente no que se refere aos direitos do locatário, que não tem como garantir a eficácia da cláusula de vigência, tendo em vista que o contrato built to suit tem sido classificado pela literatura e pela jurisprudência como contrato atípico misto, impossibilitando, desta forma, o seu registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Por outro lado, no ano de 2002, com a aprovação do Código Civil (que entrou em vigor em janeiro de 2003), foi inserido em nosso ordenamento o direito real de superfície, que possibilita ao superficiário o exercício direto dos poderes de uso, gozo/fruição, disposição e reivindicação sobre as construções e plantações erguidas sobre o solo cuja superfície lhe tenha sido concedida.
Com isto, demonstramos a possibilidade de se alternar a realização de contratos de locação na modalidade built to suit pela instituição do direito real de superfície, dando maiores garantias ao superficiário, que além de poder se valer das ações petitórias para defender a sua propriedade poderá gravar de ônus as acessões.
2 Conceituando Direitos Reais e Direitos Obrigacionais
O estudo das relações privadas pressupõe que se estabeleça a distinção entre direitos reais e direitos obrigacionais. De acordo com Xxxxx (1999), a delimitação destes conceitos é peça fundamental para a adequada compreensão do direito privado.
Todavia, tal conceituação não é tarefa simples, e vem sendo objeto de ampla disputa pela doutrina. Neste sentido, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx (2022) aponta para a existência de duas principais correntes que tratam da distinção entre direitos reais e direitos de crédito: a teoria realista e a teoria personalista.
A doutrina realista, que Xxxxxxx (2022) aponta como sendo mais pragmática, apresenta os direitos reais como aqueles que se exercem diretamente pelo indivíduo sobre a coisa, sem a necessidade de qualquer intermediário. Seria, a grosso modo, uma relação jurídica entre um sujeito e a coisa da qual aquele é senhor. Por outro lado, os direitos creditórios dependeriam sempre da interposição de um sujeito passivo a possibilitar o exercício do poder pelo sujeito ativo sobre a coisa, ou seja, seria imprescindível a existência de um devedor da prestação.
Ocorre que, apesar de demonstrar – no que se refere aos direitos reais – o que se verifica em termos práticos no dia-a-dia, de forma bastante clara (um sujeito que exerce poder diretamente sobre a coisa de que é dono), os adeptos da teoria personalista, alicerçados na ideia expressada por Xxxx de que não pode ser aceita uma relação jurídica diretamente entre a pessoa do sujeito e a própria coisa, especificam que – em decorrência da necessária relação entre pessoas – a distinção entre direitos reais e direitos creditórios reside no fato de que aqueles são oponíveis erga omnes enquanto estes só podem ser exigidos do sujeito passivo devedor da obrigação (PEREIRA, 2022).
Por estes aspectos, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx (2022) afirma que “a teoria realista seria então mais pragmática. Mas encarada a distinção em termos de pura ciência, a teoria personalista é mais exata”.
Neste sentido, Xxxxx (1999) conclui que:
Isso significa que, na relação real, o titular se acha vinculado diretamente à coisa podendo exercer imediatamente o seu direito real sem dependência da prestação de outra pessoa. [...] Diferente é a situação do credor de uma obrigação [...]. Ele apenas crê ou confia na honestidade e solvabilidade do devedor, que poderá decepcioná-lo, descumprindo a obrigação e frustrando-lhe a expectativa de atingir o direito.
Assim, no que concerne aos direitos reais, pode-se concluir, conforme bem sintetizado por Xxxx (1962), que “seus elementos são um titular e uma coisa corpórea e suas características principais consistem em ser a ação do titular exercida sobre a coisa e erga omnes”.
2.1. Obrigações com eficácia real
Contudo, não obstante as obrigações sejam oponíveis apenas aos sujeitos que tenham participado da avença (credor e devedor), há situações muito específicas em que as obrigações gozam de eficácia real. Isto é, mesmo sem perder o seu caráter essencial de direitos a uma prestação, podem ser opostas a terceiros que eventualmente tenham adquirido direitos sobre a coisa objeto da relação jurídica obrigacional. (BRANDÃO, 2009)
Tal situação ocorre, por exemplo, nos casos de estipulação de cláusula de vigência nos contratos de locação e nas situações em que seja inserida cláusula especial de retrovenda nos contratos de compra e venda de bem imóvel.
Nos contratos de locação, quando entabulados por prazo determinado, é possível que se estipule cláusula de vigência, determinando que nos casos de alienação do imóvel para terceiro não integrante da relação locatícia, o contrato deverá ser cumprido até o seu termo. Nestes casos, e desde que o contrato tenha sido averbado na matrícula do imóvel, nos termos do art. 8º, da Lei 8.245/1991, a sua continuidade poderá ser oposta ao terceiro adquirente.
Situação semelhante ocorre nos casos de retrovenda de bem imóvel. Uma vez que tenha sido averbado o contrato em que tal cláusula tenha sido acordada entre vendedor e comprador, o alienante poderá exercer o seu direito de recompra, ainda que o imóvel tenha sido vendido a terceiro não participante da compra e venda.
Percebe-se, portanto, que nestes casos, apesar de estarmos diante de hipóteses bem definidas de direitos obrigacionais, a elas se empresta eficácia real, em razão das situações específicas a que estão submetidos.
Portanto, conforme bem observa Brandão (2009), trata-se de exceção à regra da relatividade dos contratos, uma vez que o terceiro estranho à avença deverá respeitar as cláusulas contratadas, ainda que não tenha feito parte do acordo original. Ou seja, as obrigações com eficácia real “consistem em uma obrigação como outra qualquer, com a peculiaridade de que seus efeitos são estendidos a terceiros, por uma opção legislativa”. (BRANDÃO, 2009)
A eficácia real emprestada a determinadas obrigações, todavia, só é possível nos casos em que haja previsão legal para tanto, e desde que os respectivos contratos tenham sido regularmente registrados no Registro de Imóveis. Isto porque as obrigações assumidas pelo sujeito passivo só podem ser opostas a terceiros estranhos ao contrato se a ele houver sido dada a devida publicidade. Neste sentido, são importantes os esclarecimentos dados por Xxxxxxxxxx (2012), informando que
A obrigação com eficácia real consubstancia-se na oponibilidade a terceiros, a qual deriva da publicidade que àquela é conferida pelo registro. De fato, a publicidade, que é específica e, em muitos casos, constitutiva de direito, é pressuposto da eficácia erga omnes dos direitos reais. Em se tratando de direito dito pessoal, a eficácia real (oponibilidade contra terceiros) dependerá, igualmente, da publicidade que a tal obrigação será dada. Contudo, em face dos princípios apontados, esta publicidade só poderá ser alcançada quando admitida em lei. É o que ocorre no caso do contrato de locação, quanto à cláusula de vigência e quanto ao direito de preferência (respectivamente, arts. 8.º e 33 da Lei 8.245/1991, e art. 167, I, n. 3, e II, n. 16, da Lei 6.015/1973).
Observa-se, desta forma, que não é suficiente, para a eficácia real de uma obrigação, que a ela seja dada publicidade através do registro do contrato. É necessário que haja expressa autorização legal para tanto. Neste particular, acompanhamos a opinião de Xxxxxxx (2009), no sentido de que da mesma forma que não se admite a criação, por vontade das partes, de novos direitos reais além daqueles expressamente previstos em lei, igualmente não é aceita a eficácia real de obrigações sem que haja previsão legal.
O motivo para tal conclusão reside no fato de que “não seria razoável admitir que a autonomia da vontade gerasse vínculos que atingissem situações jurídicas de terceiros”. (BRANDÃO, 2009)
2.2. Vantagens na instituição de direitos reais
Considerando-se, portanto, o que foi exposto até o momento, podemos observar que há evidentes vantagens na instituição, sempre que possível de direitos reais, em contraposição aos direitos creditórios, claramente mais frágeis, uma vez que admitem apenas sua oposição a quem seja parte na relação jurídica obrigacional.
Mesmo quando estamos diante da possibilidade de se atribuir efeitos reais à obrigação, percebemos que tais efeitos se apresentam de maneira pontual, a situações especificamente previstas em lei, e não ao objeto contratado como um todo.
Verificamos, desta forma, o exercício de poder diretamente sobre a coisa (característica básica dos direitos reais), sem a necessidade da existência de um sujeito atuando como intermediário a possibilitar o domínio. Trata-se do exercício dos atributos indicados no caput do artigo 1.228, do Código Civil: uso, fruição/gozo e disposição. (COSTA, 1999)
Outra vantagem alcançada pela instituição de direito real sobre a coisa, também presente no já mencionado artigo 1.228, caput, do Código Civil, e corretamente apontada por Xxxxx (1999), é o poder absoluto, a possibilidade de oposição do direito real erga omnes, que tem como efeito prático o direito de sequela, ou seja, a possibilidade de reivindicar o objeto do poder de quem o possua injustamente.
3 Locação Comercial e o contrato “Built to Suit”
Neste sentido, propõem-se neste artigo, uma análise das características do contrato de locação comercial na modalidade built to suit, a fim de verificar a possibilidade de que seja substituído pela instituição do direito real de superfície, possibilitando, deste forma, o exercício direto de poder sobre a coisa (superfície do solo, suas construções e plantações), tornando-se, desta maneira, uma relação mais robusta entre o locatário (que assumiria a posição de superficiário) e o prédio locado (sobre o qual passaria a exercer o direito real de superfície).
Para tanto, analisamos as principais características e efeitos do contrato de locação sob medida, ao qual se dá comumente o nome de built to suit (que pode ser traduzido livremente como “construído para servir”).
3.1. Breve histórico
Segundo Xxxxxx e Tartaglia (2018), os contratos de locação sob medida surgiram na década de 1950, nos Estados Unidos, como forma de atender uma forte demanda imobiliária, tendo sido posteriormente difundido de maneira mais ampla aos continentes Europeu e Asiático, tendo demorado a aportar em terras brasileiras.
A primeira ocorrência de um contrato na modalidade built to suit de que se tem registo no Brasil, deu-se na década de 1990, no Rio de Janeiro, quando o modelo foi aplicado para a construção de uma indústria para a Gilette. Já em São Paulo, a primeira notícia de uma construção sob medida para locação aparece em 2005, por ocasião da construção da sede da instituição educacional IBMEC (HIRATA; TARTAGLIA, 2018).
Anote-se que tanto na primeira ocorrência no Rio de Janeiro, na década de 1990, quanto na sua utilização em São Paulo, já em meados dos anos 2000, não havia em nosso ordenamento jurídico regulamentação específica para esse tipo de contrato, que pressupunha, então, a celebração de acordo complexo, envolvendo cláusulas referentes a compra e venda, empreitada e locação, gerando um verdadeiro contrato atípico (ou inominado).
3.2. Incorporação da locação sob medida na legislação nacional
O contrato de locação sob medida foi incorporado ao nosso sistema jurídico de maneira bastante tardia, no ano de 2012, com a edição da lei nº 12.744, que incluiu o artigo 54-A na lei nº 8.245/1991 e alterou a redação do seu artigo 4º.
Desta forma, o contrato de locação não residencial passou a prever a seguinte possibilidade:
Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei.
§ 1º. Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação.
§ 2º. Em caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.
Na mesma oportunidade, o legislador ordinário alterou a redação do artigo 4º, da Lei de Locação, garantindo ao locador o recebimento do total dos aluguéis convencionados até o termo final da locação, em caso de entrega antecipada do imóvel pelo locatário, passando a ter a seguinte redação:
Art. 4º. Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2º. do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.
Observa-se, desta forma, que cuidou o legislador ordinário de estipular condições de proteção ao locador, não havendo previsão legal de proteção específica ao locatário.
3.3. Características e efeitos do contrato de locação na modalidade “built to suit”
A caracterização do contrato na modalidade built to suit como contrato de locação não é pacífica na literatura nacional, apesar de sua inserção no ordenamento jurídico ter se dado por inclusão de norma específica na Lei nº 8.245/1991, que trata exclusivamente das locações de imóveis urbanos.
A posição topográfica do contrato de locação sob medida, na opinião de Xxxxxx (2014), é claro indicativo de que o contrato built to suit tenha sido legalmente qualificado como locação, o que parece ser uma decisão acertada, tendo em vista que a partir de seus elementos essenciais, pode-se facilmente reconduzi-lo ao contrato de locação.
No mesmo sentido, a importante conclusão de Xxxxxxxxxx (2020), que identifica no built to suit um contrato complexo mas que, apesar de englobar compra e venda e empreitada, não perde a sua característica principal de contrato de locação, assim consignando:
É inegável que se trata de um contrato complexo, composto por múltiplas obrigações e estruturado financeiramente para ser de longo prazo, esculpido através da fusão de diversos tipos contratuais, tais como a empreitada e a venda e compra. Contudo, entendemos veementemente que tais contratos são ‘meios’ que visam a um único contrato fim: a locação – razão pela qual seria um contrato típico. Em outras palavras, a essência do built to suit, não é a empreitada (seja via construção ou reforma substancial), tampouco a compra do imóvel, isoladamente, mas sim sua junção à locação por tempo determinado de referido imóvel que atenderá às necessidades impostas pelo locatário.
Todavia, apesar de nos filiarmos a esta corrente que expressa a tipicidade do contrato built to suit como espécie do gênero locação, é certo que se trata de posição minoritária na literatura e na jurisprudência nacional, que tendem a compreendê-lo como um contrato atípico.
Tal compreensão tem como efeito a ineficácia da cláusula de vigência, prevista de forma específica na Lei nº 8.245/1991 (em seu artigo 8º) e de forma geral no artigo 576, do Código Civil (aplicando-se a todos os contratos de locação).
Portanto, uma vez que a garantia da cláusula de vigência é válida apenas para contratos de locação, a caracterização do built to suit como contrato atípico implica na ineficácia de tal previsão.
Desta forma, apesar de haver entendimento consolidado no sentido de que o empreendedor (dono do terreno em que foi construído o edifício sob medida) possa exigir antecipadamente o total contratado (art. 4º da Lei de Locação), o contratante fica exposto aos riscos de eventual alienação do prédio, não sendo a ele aplicados os dispositivos garantidores da locação (NASCIMENTO, 2020).
Vale lembrar que tanto o artigo 8º, da Lei nº 8.245/1991 quanto o artigo 576, do Código Civil, exigem, para que se atribuam efeitos reais à obrigação
locatícia, que os respectivos contratos sejam registrados no Cartório de Registro de Imóveis competente. Assim, “por se tratar, ao menos segundo a doutrina majoritária, de contrato atípico misto, o built to suit não poderá ser registrado na matrícula do imóvel na medida em que não consta no rol taxativo da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/197323) ” (NASCIMENTO, 2020)
Não obstante, tendo em conta as peculiaridades que o contrato built to suit encerra, como prazo de vigência, “afetação” construtiva do imóvel, eventual direito de preferência na aquisição, de renovação etc., a possibilidade de registro ou averbação deveria ser acolhida pela legislação. Com efeito, se há vontade lícita das partes, o registro deste tipo de avença encontra fundamento nas mesmas razões que autorizam o acesso do contrato de locação ao Registro de Imóveis. Aliás, é possível que a atribuição de eficácia real, pelo registro, a tal relação contratual contribua para a realização de sua função social, uma vez que, ao impor a terceiros seus termos, acabaria por fortalecer uma relação jurídica marcada, na maioria das vezes, por um forte traço de pessoalidade. Todavia, diante do conteúdo expresso pelos princípios acima invocados e das considerações até aqui tecidas, cremos não ser, atualmente, admissível o registro ou a averbação, perante o Registro de Imóveis, do contrato built to suit. (FIGUEIREDO, 2012)
Portanto, considerando-se o princípio da taxatividade, que orienta a disciplina dos direitos reais, e que deve, consequentemente, ser aplicado à eficácia real das obrigações, e considerando o entendimento majoritário da literatura e da jurisprudência no sentido de considerar o built to suit como contrato atípico misto, seria necessária uma alteração legislativa a fim de possibilitar o registro da cláusula de vigência, e por consequência a garantia de oposição do contrato contra terceiro adquirente do imóvel.
4 Direito de Superfície
Coloca-se como alternativa ao contrato built to suit a constituição do direito real de superfície, permitindo ao contratante a construção de edifício sobre o solo do fundeiro, o que garantiria a possibilidade de registro, uma vez que os direitos reais “só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis” (Código Civil, artigo 1.227).
4.1 Conceito
O direito de superfície é direito real, nos termos do art. 1.225, II, do Código Civil, e consiste na concessão a terceiro do direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado.
Sendo direito real, não se confunde com a locação ou arrendamento, e só será adquirido após o registro no Cartório de Registro de Imóveis, nos termos do artigo 1.227, do Código Civil.
Na compreensão de Marquesi e Amaral (2016), é uma “figura jurídica peculiar, [que] suspende a eficácia do princípio de que o domínio das plantações e construções incorporam-se ao domínio do proprietário do solo”.
Vale ressaltar que, juridicamente, o termo superfície não deve ser confundido com o vocábulo “superfície” conforme utilizado na linguagem cotidiana. Não se trata da crosta terrestre (PACANARO; XXXXXXXXX, 2022), ou da face exterior do solo enquanto coisa corpórea (XXXXX, 2000).
De acordo com Xxxxx (2000), “a palavra indica, no sentido lato, tudo o que se eleva acima do solo (super faciem soli) e no sentido estrito, uma construção qualquer (superficiare oedes, superficiaria aedificia)”. Segundo Xxxxxxxx e Xxxxxxxxx (2022) “é o que emerge do solo: é o sobre solo (superficiem)”.
Verifica-se, desta forma, que o direito de superfície representa uma quebra do princípio da acessão, segundo o qual tudo o que se fixa ao solo pertence ao seu dono (superfícies solo cedit). Ao ser instituído, dá origem a “duas titularidades inconfundíveis, cada uma delas gerando direitos e obrigações ao respectivo titular” (MARQUESI; AMARAL, 2016), a que se denomina propriedade separada superficiária.
Xxxxx (2000) resume esta situação da seguinte forma:
A sistemática da propriedade superficiária é a possibilidade de ter coisa própria, a construção ou a plantação, incorporada sobre terreno alheio, no que confronta com a acessão. Assim, a ideia básica do direito superficiário é substancialmente a suspensão do efeito aquisitivo da acessão, pelo tempo que durar a propriedade superficiária.
A existência de duas propriedades distintas (do fundeiro sobre o solo e do superficiário sobre as construções/plantações), foi também reconhecida pela IV Jornada de Direito Civil, em que foi aprovado o Enunciado nº 321 do CJF:
“Os direitos e obrigações vinculados ao terreno e, bem assim, aqueles vinculados à construção ou à plantação formam patrimônios distintos e autônomos, respondendo cada um de seus titulares exclusivamente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as fiscais decorrentes do imóvel”.
Ressalte-se que a suspensão do princípio da acessão é temporária. Nos termos do artigo 1.369, do Código Civil, “o proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis” (g.n.).
Diante disso, segundo Marquesi e Amaral (2016)
pode a superfície ser conceituada como o direito real de plantar ou construir em terreno alheio, que concede ao seu titular, o superficiário, a propriedade resolúvel da plantação ou construção, temporariamente destacadas da domínio do solo.
4.2. Efeitos da superfície
O primeiro e mais imediato efeito da constituição do direito de superfície é a aquisição, pelo superficiário, dos atributos inerentes aos direitos reais, de uso, gozo/fruição, disposição e reivindicação da coisa.
Vale destacar, conforme bem observou Pinto (2000), que uma vez que tenha sido aperfeiçoada a concessão do direito de superfície, os atributos de uso, gozo/fruição, disposição e reivindicação adquiridos pelo superficiário referem-se exclusivamente ao edifício construído ou à plantação feita, “continuando o solo a pertencer ao dono da propriedade, enquanto durar o prazo da concessão da propriedade resolutiva da superfície”.
É evidente que, sendo titular de direitos reais, o superficiário tem também a posse sobre a superfície (construção/plantação), de modo que a ele é garantido o manejo dos interditos para defendê-la, inclusive contra o dono do solo (MARQUESI; AMARAL, 2016).
Todavia, além das ações possessórias, a que tem igual direito o locatário na condição de possuidor direto da coisa, ao superficiário
na condição de proprietário da construção ou da plantação cabe-lhe o uso das ações petitórias, isto é, da ação reivindicatória, contra quem quer que o prive da posse da construção ou da plantação, da ação negatória, contra quem pretenda direitos sobre a construção ou a plantação e da ação confessória, para que se declare o seu direito. Por ter a posse do bem e ser
proprietário, assiste-lhe o direito de beneficiar-se das ações de embargos de terceiro, de nunciação de obra e de dano infecto. (PINTO, 2000)
Além das ações petitórias, importante instrumento que proporciona ao titular de direitos reais melhores condições de defender a coisa do que aquelas que competem ao titular de direitos creditórios, apresenta-se mais vantajosa a instituição do direito de superfície pois “é lícito ao superficiário, por outro lado, gravar de ônus as acessões. Em razão disso, poderá hipotecar a edificação, empenhar a plantação e dar em penhora uma e outra”. (MARQUESI; AMARAL, 2016).
5 Conclusão
Não temos a pretensão de esgotar o tema, com estas breves linhas aqui escritas, mas trazer à reflexão a possibilidade de utilização do direito real de superfície como substituto do contrato de locação comercial na modalidade built to suit.
É evidente que a locação sob medida, por se tratar de direito obrigacional, é mais frágil do que a instituição de direito real sobre a coisa. Das vantagens observadas neste artigo, destacamos:
a) possibilidade de exercício direito dos atributos de uso, gozo/fruição e disposição da construção ou da plantação erguidos sobre o solo;
b) direito de sequela, garantindo ao superficiário a possibilidade de opor seu direito erga omnes, enquanto no contrato de locação seus direitos são oponíveis apenas ao contratado;
c) uso das ações petitórias para reivindicar a coisa de quem quer que seja (inclusive do dono do solo); e
d) possibilidade de gravar de ônus as acessões.
Desta forma, propõe-se com este estudo a viabilidade de realizar-se negócios jurídicos tendentes à instituição do direito real de superfície em substituição da realização de contratos de locação comercial na modalidade built to suit.
Referências
XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx de. Contratos built to suit: qualificação e regime jurídico. São Paulo: Faculdade de Direito do Largo São Francisco, 2014.
XXXXXXX, Xxx Xxxxxxxxx. Contribuição ao estudo das obrigações propter rem e institutos correlatos. São Paulo: Faculdade de Direito do Largo São Francisco, 2009.
XXXXX, Xxxxxxxx Xxxx. O conceito de direito real. Revista de Informação Legislativa, v.36, n.144, 1999.
XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Built to suit. RDI, v.72, p.161-187, 2012.
XXXXXX, Xxxxxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Built to suit: dos aspectos contratuais ao direito de superfície. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, v.4, n.1, p.145-165, 2018.
XXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Obrigações propter rem. Revista dos Tribunais, p.315-455, 1962.
XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Mattos do. O direito de superfície na promoção da reforma agrária brasileira (possibilidades e vantagens). Conpedi Law Review, v.1, n.12, p.93-112, 2016.
XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. O built to suit e a eficácia relativa da cláusula de vigência. São Paulo: Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, 2020.
XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxx Xxxxxxxx. Função Social da Propriedade e Direito de Superfície. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxx.xx/xxxxxxxx/0/00000.xxx. Acesso em 11.dez.2022.
XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. O Direito Real de Superfície e a Sistemática do Novo Código Civil Brasileiro. Revista dos Tribunais, n.775, p.79-95, 2000.