2º lugar – Defesa da Concorrência e Promoção da Concorrência Autor: Patrícia Cristina da Silva Ávila
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2º lugar – Defesa da Concorrência e Promoção da Concorrência Autor: Xxxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx Xxxxx
Belo Horizonte – MG
A ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA DE FIDELIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TELEFONIA CELULAR
A ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA DE FIDELIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TELEFONIA CELULAR
2007
TEMA 1 : DEFESA DA CONCORRÊNCIA E PROMOÇÃO DA CONCORRÊNCIA
A ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA DE FIDELIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TELEFONIA CELULAR
Monografia apresentada ao II Prêmio SEAE de Monografias em Defesa da Concorrência e Regulação Econômica – II Prêmio SEAE 2007.
2007
A presente monografia objetiva analisar a abusividade da cláusula de fidelização dos contratos de prestação de serviço de telefonia celular consoante a teoria do abuso de direito, tendo em vista a finalidade da ordem econômica, qual seja, o asseguramento da existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social, e os seus princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor, o que é previsto no art. 170, caput e incisos IV e V da Constituição da República, e ainda, mais especificamente, tendo em vista as infrações da ordem econômica previstas na Lei 8.884/94 e as cláusulas abusivas previstas na Lei 8.078/90, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor. Considerando-se que essas cláusulas encontram-se presentes atualmente na maioria dos contratos, senão de todos, uma das contribuições do trabalho está em propiciar à sociedade um maior conhecimento sobre o tema, já que existem pouquíssimas produções científicas quanto ao mesmo. Para se alcançar o objetivo, procura-se mostrar, no primeiro capítulo, a evolução conceitual e principiológica do instituto do contrato; no capítulo segundo, busca-se conceituar a cláusula de fidelização dos contratos de prestação de serviço de telefonia celular; no capítulo terceiro, procura-se explicar a teoria do abuso de direito; e, conforme essa teoria, no quarto capítulo busca-se explicar, mais especificamente, o abuso do poder econômico, abrangendo um estudo sobre a finalidade e os princípios constitucionais da ordem econômica, sobre as infrações da ordem econômica e sobre as cláusulas abusivas, apontando-se os princípios e dispositivos legais pertinentes ao tema. Ao final, verificar-se-á que a cláusula de fidelização constitui cláusula abusiva, pois extrapola as finalidades sociais dos direitos de liberdade de concorrência e de liberdade contratual das operadoras,
encaixando-se em várias hipóteses de infração da ordem econômica previstas pela Lei 8.884/94 e de cláusulas abusivas previstas pelo Código de Defesa do Consumidor, contrariando, portanto, e, acima de tudo, a finalidade e princípios da ordem econômica previstos na Constituição da República. A despeito de haver um gradual esforço por parte do Ministério Público e de pequena parcela da sociedade, quando são vistas algumas ações civis públicas e ações individuais em que se pleiteia a nulidade dessa cláusula perante o Judiciário, a grande realidade é que o Legislativo e o Executivo, mais especificamente o Congresso Nacional e a ANATEL
– Agência Nacional de Telecomunicações, têm se mantido quase inertes frente à defesa da concorrência e do consumidor nessa situação. Dessa forma, tendo em vista que a livre concorrência e que milhares de consumidores são lesados diariamente e que muito pouco tem sido feito para que isso seja evitado, a contribuição do trabalho está também em estimular uma maior atuação da sociedade e do Estado em favor da exclusão dessa cláusula dos contratos.
Palavras-chave: Cláusula. Fidelização. Telefonia celular. Abusividade. Consumidor. Concorrência.
ampl. - ampliada art. - artigo
arts. - artigos atual. - atualizada
Coord - Coordenador(a)(es) dez. - dezembro
ed. - edição jul. - julho mar. - março
n. - número
Org. - Organizador(a)(es) out. - outubro
p. - página rev. - revista
set. - setembro
v. - volume
CDC - Código de Defesa do Consumidor
CF - Constituição da República Federativa do Brasil CODECON - Código de Defesa do Consumidor STF - Supremo Tribunal Federal
TJ - Tribunal de Justiça
1 INTRODUÇÃO 1
2 DESENVOLVIMENTO 3
2.1 Contratos: origem e evolução 3
2.1.1 Conceito 3
2.1.2 Princípios informadores 10
2.2 A cláusula de fidelização dos contratos de prestação de serviço
de telefonia celular 16
2.3 A teoria do abuso de direito 18
2.4 O poder econômico e seu exercício abusivo 24
2.4.1 Infrações da ordem econômica 27
2.4.2 Cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor 32
2.4.2.1 Direito de liberdade de escolha do consumidor 39
2.4.2.2 Cláusula penal 40
3 CONCLUSÃO 45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 51
1 INTRODUÇÃO
As operadoras de telefonia celular, procurando alcançar uma maior parcela do mercado e, conseqüentemente, lucros cada vez maiores em um ambiente altamente competitivo, têm oferecido, cada vez mais, benefícios de todo tipo aos consumidores. Dentre esses benefícios encontra-se o de conferir um desconto sobre o preço de aquisição do aparelho celular, desde que o consumidor se mantenha vinculado a um determinado plano ou serviço oferecido pela operadora, por um determinado período de tempo, no qual ele é obrigado a pagar uma tarifa mínima, não podendo se desligar da operadora em qualquer hipótese, sob pena de pagamento de multa. Essa obrigação é inserida em uma das cláusulas do contrato de prestação de serviço de telefonia celular, sendo comumente chamada de cláusula de fidelização. Com essa prática, a operadora espera, ao longo do período em que o usuário permanece vinculado ao plano, lucrar o suficiente para compensar o desconto dado na compra do aparelho celular.
Apesar dessas cláusulas já serem comuns nesses contratos, o presente trabalho pretende demonstrar que elas possuem natureza abusiva. Para tanto, o trabalho está dividido da seguinte forma: no primeiro capítulo, procura-se mostrar o caminho percorrido pelo instituto do contrato, demonstrando-se a sua evolução de uma concepção tradicional, marcada pela prevalência da vontade das partes e pela não interferência do Estado, para a atual concepção, marcada por uma visão mais social, em que a vontade passa a ser limitada por objetivos sociais e submetida a princípios e regras imperativas; no segundo, busca-se conceituar a cláusula de fidelização dos contratos de prestação de serviço de telefonia celular como uma estratégia das operadoras para consolidarem suas posições diante dos concorrentes
ou aumentarem suas participações no mercado; no terceiro, procura-se explicar a teoria do abuso de direito; no quarto, de acordo com a teoria do abuso de direito, pretende-se explicar, mais especificamente, o abuso do poder econômico, abrangendo um estudo sobre a finalidade e os princípios constitucionais da ordem econômica, sobre as infrações da ordem econômica previstas na Lei 8.884/94 e sobre as cláusulas abusivas previstas na Lei 8.078/90 – o Código de Defesa do Consumidor – apontando-se os princípios e dispositivos legais pertinentes ao tema; apresentando-se, por fim, as conclusões.
Considerando-se que essas cláusulas já são comuns nesses contratos e que as produções científicas quanto ao presente tema são bastante escassas, este trabalho apresenta-se relevante não só para o desenvolvimento do conhecimento acerca do tema, mas principalmente para a sua divulgação e, consequentemente, para um incentivo a uma maior atuação da sociedade e do Estado em relação a essas cláusulas.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Contratos: origem e evolução
2.1.1 Conceito
Contrato é um ato jurídico bilateral com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos. Mais sucintamente, segundo Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, contrato é o “acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos.” (2004, p.7)
A concepção que se tem hoje dos contratos não é fruto de um único momento histórico, mas sim de uma grande evolução da realidade social e da ciência do Direito.
Segundo Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
O contrato evoluirá [...] de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas. (2002, p.39)
Apesar das peculiaridades de cada época, observa-se que, indo-se do Direito Romano até o Estado Liberal, fase em que termina de se formar a concepção tradicional dos contratos, uma característica sempre presente é a idéia da autonomia da vontade como elemento principal e legitimador do contrato e de seu poder vinculante e obrigatório. O contrato, dessa forma, é visto como um fenômeno da vontade e, uma vez celebrado, através da vontade livre e autônoma para escolher contratar ou não, para escolher com quem contratar e para escolher o conteúdo do contrato, deveria ser cumprido como se fosse lei, não podendo mais ser modificado, a não ser por acordo das partes. Daí a expressão pacta sunt servanda, que significa “os pactos devem ser cumpridos”.
Segundo Xxxxx Xxxxx (2004), no Direito Romano, os contratos eram marcados por um excessivo formalismo. Nesse sentido, distinguiam-se os acordos de vontades, denominados conventio, em duas espécies, quais sejam, contractus e pactum, de acordo com a forma exigida para sua celebração.
Os contractus, inicialmente, não poderiam existir sem uma exteriorização de forma e somente existiam três categorias: contratos verbis, contratos res e contratos litteris, conforme o elemento formal se ostentasse por palavras sacramentais, pela efetiva entrega do objeto ou pela inscrição material no livro do credor, respectivamente. Para a formação da obrigação contratual, portanto, não bastava o acordo de vontade das partes, sendo imprescindível a observância da forma estabelecida. A justificativa é dada por Fiuza:
A razão do formalismo tinha caráter religioso e prático. Os contratos só seriam abençoados pelos deuses se seguissem os rituais adequados. Na prática, porém, as razões se deviam à pouca e difícil utilização da escrita, o que levava aos extremados rituais orais. [...] (2004, p. 362)
Uma vez celebrado, com estrita observância ao ritual, o contrato gerava obrigações, vinculava as partes e provia o credor da actio, ou seja, do poder de exigir o cumprimento da obrigação através de uma ação judicial.
O pactum, por sua vez, não sendo previsto em lei, por não fazer parte da lista dos contratos, poderia ser celebrado sem qualquer obediência a forma, bastando o acordo de vontades. Por essa razão, a obrigação não poderia ser exigida em juízo, caso não fosse cumprida. Observa-se, então, que os pactos não tinham força cogente, pois não conferiam ao credor a actio, mas somente a exceptio, de forma que, se o credor propusesse ação para cobrar a dívida do devedor, este poderia apenas opor exceção, alegando em sua defesa que se tratava de obrigação natural, caso em que a pretensão do credor não poderia ser reconhecida pelo juiz.
Ainda segundo Fiuza (2004), somente mais tarde, com a atribuição da actio a quatro pactos de utilização freqüente (venda, locação, mandato e sociedade), é que surgiu a categoria dos contratos que se celebravam apenas pelo acordo de vontades. Assim, somente esses quatro contratos consensuais eram reconhecidos como tais. Nos demais, a forma prevalecia sobre a vontade, devendo-se obedecer rigidamente ao ritual consagrado: a inscrição material no livro do credor, a tradição da coisa ou a troca de expressões obrigatórias.
Na Idade Média, entretanto, muitos outros contratos foram perdendo suas formalidades. Num primeiro momento, estas passaram a cair em desuso, fazendo-se apenas menção de que haviam sido cumpridas, ainda que muitas vezes não o tivessem sido. Essa menção acabou tornando-se mais importante que o próprio cumprimento da formalidade. Num segundo momento, até mesmo essa menção caiu e o consensualismo tornou-se regra. O contrato, portanto, começou a se estabelecer como elemento abstrato, pois se passou a conferir força obrigatória às manifestações de vontade, sem os formalismos exagerados do Direito Romano. Isso porque, para os canonistas, a palavra dada conscientemente criava uma obrigação de caráter moral e jurídico para o indivíduo.
Na Idade Moderna, de acordo com a concepção do Direito Natural, a vontade interna, manifestada sem vícios, seria a fonte que legitimaria os direitos e obrigações advindos dos contratos. É com os jusnaturalistas modernos, portanto, que se forma a verdadeira base da autonomia da vontade como elemento principal e legitimador do contrato e de seu poder vinculante e obrigatório, conforme se vê através das palavras de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
Efetivamente, é no direito natural que encontramos a base do dogma da liberdade contratual, uma vez que a liberdade de contratar seria uma das liberdades naturais do homem, liberdade esta que só poderia ser restringida pela vontade (Wille) do próprio homem. O próprio Xxxx afirmaria
que as pessoas só podem se submeter às leis que elas mesmas se dão, no caso, o contrato. (2002, p.44-45)
É no século XIX, entretanto, com o liberalismo econômico, que a concepção tradicional dos contratos termina de se formar.
Conforme Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx (2002), o liberalismo é uma corrente de pensamento que nasceu no século XVII, com o filósofo Xxxx Xxxxx, e que privilegia interesses privados, pois seu objetivo maior é proteger o indivíduo contra o Estado. Por isso, apresenta como fundamentos a prevalência dos interesses individuais (individualismo), a capacidade do indivíduo de fazer as suas próprias escolhas (liberdade negativa), a igualdade de todos perante a lei (igualdade jurídica) e o respeito às diferenças (pluralismo).
No plano econômico, o liberalismo é marcado pelo livre mercado, que se caracteriza pela auto-regulação, e pelo Estado mínimo, que estabelece a não intervenção do Estado na economia. O liberalismo econômico nasce como conseqüência do surgimento do sistema capitalista, modo de produção caracterizado principalmente pela propriedade privada e pela constante busca de lucro, e da Revolução Industrial, caracterizada, por sua vez, pela passagem de um sistema principalmente agrário e artesanal para um sistema de produção dominado pelas fábricas e máquinas, que geravam produção em série. Nessa época, acreditava-se que o mercado seria auto-regulável, pois guiar-se-ia por uma força invisível – a lei da oferta e da procura, a qual determinaria o preço de equilíbrio e a garantia da perfeita alocação dos recursos. E, sendo o mercado auto-regulável, não haveria necessidade de o Estado interferir e conduzir a economia, cabendo, na prática, ao Estado, somente cuidar da segurança, da ordem pública e da política externa.
Nesse contexto, o instrumento colocado à disposição pelo Direito para a movimentação das riquezas na sociedade foi o contrato, tendo a lei apenas a função de proteger a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes, sem qualquer interesse pela situação social e econômica destas, pressupondo-se a existência de uma igualdade e liberdade no momento de contratar.
Assim, no auge do liberalismo está formada a concepção clássica dos contratos, a qual se caracteriza pelos princípios da autonomia da vontade, da obrigatoriedade e do consensualismo.
Essa concepção tradicional dos contratos, entretanto, sofreu grande evolução diante do desenvolvimento da Revolução Industrial e do surgimento da globalização e das sociedades de massa.
De acordo com Xxxxxxxxx xx Xxxx e Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx (1998), com o desenvolvimento da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, no século XVIII, a sociedade se transformou, pois surgiram os fenômenos da urbanização e da concentração capitalista, ou seja, da concentração de capital nas mãos de poucos, que passaram a dominar o mercado.
A globalização, que se inicia no período pós-guerra e nada mais é do que a recente fase do capitalismo, baseia-se na propriedade privada dos meios de produção, na produção industrial em massa e na busca incessante da obtenção de lucros. Trata-se de uma expansão que visa a aumentar os mercados e, portanto, os lucros.
A globalização apresenta várias dimensões: econômica, social, política e cultural. Assim, pode ser entendida como uma intensificação dos fluxos de mercadorias e serviços, capitais e tecnologia, informações e pessoas. Do ponto de
vista econômico, pode-se dizer que a globalização corresponde a uma invasão de mercadorias em todos os países. Como resultado de tudo isso, houve uma transnacionalização da economia, ou seja, uma expansão de empresas multinacionais pelo mundo todo.
Todo esse processo de globalização levou ao desenvolvimento da chamada sociedade de massa ou sociedade de consumo. Nesse tipo de sociedade, as pessoas passam a consumir como parte do hábito cotidiano e o uso de produtos decorre mais da influência dos comerciais, do status, do que da verdadeira necessidade.
A massificação da sociedade e a crescente globalização tornaram mais acirrados a concorrência e o consumo, o que obrigou as empresas a racionalizarem para reduzirem custos e acelerarem seus negócios, surgindo, assim, uma nova técnica contratual: as contratações em massa, que se caracterizam por uma homogeneidade de conteúdo dos contratos e sua conclusão com uma série indefinida de contratantes.
Dentre as formas de contratação em massa destacam-se os contratos de adesão. Muito comuns nas relações de consumo, consistem em um esquema contratual elaborado unilateralmente por uma das partes e oferecido à simples adesão da outra, que não poderá discutir ou modificar substancialmente o conteúdo desse contrato.
Essa técnica contratual apresenta muitas vantagens para ambos os contratantes, como a rapidez nas contratações, mas pode apresentar também efeitos perversos, como a facilidade de inclusão de cláusulas abusivas. Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx faz importantes considerações sobre essa técnica:
Este método de contratação obteve sucesso pelas vantagens que sua utilização traz aos fornecedores e mesmo aos consumidores. A
contratação é mais rápida e facilitada, não se faz uma diferenciação entre os consumidores desta ou de outra classe social, o método racionaliza a transferência de bens de consumo na sociedade, possibilitando também a previsão dos riscos por parte dos fornecedores. Entre as vantagens que apresenta está a rapidez de sua adaptação a novas situações, bastando elaborar um novo contrato modelo e imprimi-lo em um novo formulário. De outro lado a sua elaboração prévia e unilateral como que facilita a inclusão de cláusulas abusivas, cláusulas que asseguram vantagens unilaterais e excessivas para o fornecedor que as elabora. (2002, p. 64-65)
Com a massificação das relações contratuais, especialmente através dos contratos de adesão, ficou claro que a concepção tradicional dos contratos não se adaptava mais à realidade, já que não havia mais uma ampla autonomia da vontade nem mesmo a igualdade jurídica, ou seja, a igualdade no momento de contratar, tão defendida pelos liberais.
Além disso, verificou-se, na prática, também, a existência de uma desigualdade material, com grande desproporção entre as prestações das partes no contrato. Esse desnível entre os contratantes verificou-se principalmente nas relações de consumo, nas quais o consumidor sempre aparecia em posição de desvantagem, precisamente por ser o último elo da cadeia de consumo, não tendo a quem transferir seus ônus, e por não possuir conhecimentos técnicos sobre o produto ou serviço e conhecimentos jurídicos sobre a contratação. Nesse sentido, fala-se em vulnerabilidade do consumidor.
Segundo Xxxxxxx Xxxxxxx:
A adoção dessa técnica – dos contratos de adesão [...] – tornou ainda mais penoso o processo decisório do consumidor. Ao simplificar o modo de formação do vínculo, deixou o contratante mais exposto a riscos, pois muitas vezes ele sequer tem conhecimento dos reais efeitos jurídicos do acordo. A vulnerabilidade do consumidor, que fundamenta e justifica o sistema de proteção instituído pelo Código de Defesa do Consumidor, no tocante ao contrato, se expressa precisamente na dificuldade de reunir elementos que lhe permitam aderir de forma consciente às ofertas que se apresentam no mercado. Sua posição é, à evidência, inferior ao contratante que, individual e pessoalmente, encontra seu parceiro contratual, discute condições, negocia o acordo e, de posse das informações necessárias, dá o seu consentimento para criar o vínculo. (2004, p.155)
É dentro desse contexto que começa a surgir uma preocupação com as condições econômicas e sociais dos contratantes, o que dá origem a uma nova visão dos princípios contratuais (agora muito mais influenciada pelo Direito Público e pelo respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos) e, conseqüentemente, à intervenção do Estado nos contratos. É o início do chamado dirigismo contratual.
Nesse novo cenário, os princípios tradicionais da autonomia da vontade, da obrigatoriedade e do consensualismo são mantidos, porém com nova roupagem, mas surgem também novos princípios, como o da boa-fé e o da justiça contratual ou eqüidade.
2.1.2 Princípios informadores
Princípios informadores, segundo Xxxxx Xxxxx,
[...] são normas gerais e fundantes que fornecem os pilares de determinado ramo do pensamento científico. Informam, portanto, o cientista. Daí o nome, princípios informadores, porque informam os fundamentos dos quais devemos partir. São gerais porque se aplicam a uma série de hipóteses, e são fundantes, na medida em que deles se pode extrair um conjunto de regras, que deles decorrem por lógica. (2004, p.372)
Os princípios informadores dos contratos se modificaram ao longo da história para atender às mudanças de paradigma dos contratos, que evoluiu de uma concepção mais individualista para uma concepção mais social. A doutrina teve, então, que adaptar os princípios clássicos aos novos tempos, criando uma nova principiologia para o Direito Contratual.
Na principiologia clássica, são três os princípios mais relevantes: princípio da autonomia da vontade, princípio da obrigatoriedade e princípio do consensualismo.
A autonomia da vontade, legitimadora dos contratos e fonte das obrigações, funda-se na vontade livre, na liberdade de contratar, exercendo-se, segundo Xxxxx, em quatro planos, a saber:
1º) Contratar ou não contratar. Ninguém pode ser obrigado a contratar, apesar de ser impossível uma pessoa viver sem celebrar contratos.
2º) Com quem e o que contratar. As pessoas devem ser livres para escolher seu parceiro contratual e o objeto do contrato.
3º) Estabelecer as cláusulas contratuais, respeitados os limites da Lei.
4º) Mobilizar ou não o Poder Judiciário para fazer respeitar o contrato, que, uma vez celebrado, torna-se fonte formal de Direito. (2004, p.373)
Na concepção clássica, portanto, as normas contratuais são raras, tendo como função apenas proteger a vontade livre dos indivíduos, restringindo-se a fornecer parâmetros para a interpretação correta da vontade das partes e a oferecer regras supletivas para o caso de os contratantes não desejarem regular eles mesmos determinados pontos da obrigação assumida.
O princípio da obrigatoriedade, nas palavras de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, significa que
[...] uma vez manifestada a vontade, as partes estão ligadas por um contrato, têm direitos e obrigações e não poderão se desvincular, a não ser através de outro acordo de vontade ou pelas figuras da força maior e do caso fortuito (acontecimentos fáticos externos e incontroláveis pela vontade do homem). Esta força obrigatória vai ser reconhecida pelo direito e vai se impor ante a tutela jurisdicional. Ao juiz não cabe modificar e adequar à eqüidade a vontade das partes, manifestada no contrato, ao contrário, na visão tradicional, cabe-lhe respeitá-la e assegurar que as partes atinjam os efeitos queridos pelos seus atos. Lembre-se, por último que, como corolário da liberdade e da autonomia da vontade, a força obrigatória dos contratos fica limitada às pessoas que dele participaram, manifestando sua vontade (inter partes). (2002, p.50)
O princípio do consensualismo significa que os contratos obrigam as partes no momento em que estas cheguem a um consenso, em conformidade com a lei, sendo dispensada qualquer formalidade adicional, diferentemente da concepção romana. Essa regra geral, entretanto, é limitada por exceções, quando a lei exige certas formalidades para alguns contratos.
Mas, diante do surgimento de uma nova realidade, marcada pela concentração capitalista e pelas contratações em massa, decorrentes principalmente do desenvolvimento da Revolução Industrial e do surgimento da globalização e das sociedades de massa, verificou-se que a principiologia contratual
clássica não era mais adequada. Constrói-se, então, dentro de uma concepção mais social dos contratos, uma nova principiologia, que modifica a noção de autonomia da vontade como legitimadora dos contratos e fonte das obrigações, que mantém os princípios da obrigatoriedade e do consensualismo - os quais apresentam, porém, novos aspectos - e que inclui novos princípios, como os da boa-fé e da eqüidade ou justiça contratual.
Nessa nova fase, o princípio da autonomia da vontade recebe o nome de princípio da autonomia privada. Para a concepção clássica, o contrato é entendido como um fenômeno exclusivamente volitivo, que depende apenas da vontade para ser formado. Mas, na concepção atual, o contrato é entendido como decorrente, em primeiro lugar, de necessidades, pois se entende que ninguém contrata apenas porque deseja, mas sim porque tem uma necessidade, que antecede e condiciona a vontade. A expressão autonomia privada, portanto, foi um termo mais adequado encontrado para expressar essa nova concepção.
Nas palavras de Xxxxx Xxxxx,
[...] a simples vontade não gera nada. A vontade é o motor que nos impulsiona para a realização de uma necessidade, seja real ou fictícia (influenciada por marketing, por exemplo). Assim, quando um indivíduo celebra contrato, não o faz simplesmente porque deseja, mas porque tem uma necessidade, ainda que seja produto de sua fantasia, influenciada por propaganda. Não compro um livro porque quero puramente, mas porque necessito dele, mesmo que para me divertir.
Posto isso, pode-se afirmar que a fonte de uma obrigação contratual não será a vontade, mas um fato derivado da necessidade, movida pela vontade. É evidente que o ser humano possui livre arbítrio, até mesmo para distinguir o que é necessidade real do que é fictício. Não se diga o contrário. Mas nossa vontade é condicionada por necessidades das mais diversas. [...] (2004, p.380)
Além disso, a autonomia do indivíduo, que era extremamente ampla na concepção clássica, passa a ser limitada pela lei, que, por vezes, impõe determinadas contratações ou impõe ou proíbe determinadas cláusulas contratuais, a exemplo das cláusulas abusivas.
O consensualismo ainda é mantido como princípio geral, mas surge um número cada vez maior de contratos aos quais a lei impõe a forma escrita.
O princípio da obrigatoriedade, por sua vez, é relativizado, permitindo-se a uma das partes, em casos excepcionais, descumprir, rever ou extinguir o contrato. Um exemplo é a resolução por onerosidade excessiva, que permite a revisão ou a resolução judicial do contrato de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
O princípio da boa-fé requer que as partes ajam de acordo com padrões de honestidade e lealdade, correspondendo à confiança, reciprocamente depositada por uma parte na outra, de que não serão lesadas ou prejudicadas. O princípio está ligado à boa-fé objetiva, que corresponde ao dever de se observar esse padrão de comportamento, não se confundindo, portanto, com a boa-fé subjetiva, que corresponde à convicção interna de que se está agindo corretamente, com lealdade e honestidade, sem se lesar a outra parte.
De acordo com Xxxxx (2004), esse princípio possui três funções, quais sejam: função interpretativa, função integrativa e função de controle.
Na função interpretativa, o princípio diz que os contratos devem ser interpretados de acordo com o seu sentido objetivo aparente, exceto quando o destinatário conhece a vontade real do declarante. Porém, quando o próprio sentido objetivo suscitar dúvidas, deve ser preferido o significado que a boa-fé apontar como o mais razoável.
Em sua função integrativa, o princípio integra ao contrato deveres para ambas as partes, chamados de secundários ou involuntários, em decorrência desse padrão de honestidade e lealdade. Um exemplo desses deveres é o dever de
informação ou transparência, que muitos doutrinadores consideram até mesmo um princípio, segundo o qual as partes têm o dever de informar uma à outra tudo o que julgarem importante para a boa execução do contrato, desde a celebração até a execução.
Na função de controle, o princípio controla, limita a atuação das partes para que uma não lese a outra. O princípio, nessa função, diz que as partes, no exercício de seus direitos, não podem exceder os limites impostos pela boa-fé, sob pena de proceder abusivamente, configurando, assim, as chamadas cláusulas e condutas abusivas.
Por fim, o princípio da justiça contratual estabelece que as partes devem estar em plano de igualdade, tanto formal quanto material, o que conduzirá à justiça contratual. A justiça formal, herança do liberalismo, preocupa-se com a igualdade de oportunidades no momento da contratação, enquanto que a justiça material se preocupa com o efetivo equilíbrio do contrato, ou seja, com a equivalência entre prestação e contraprestação e com a distribuição eqüitativa de ônus e riscos. A justiça contratual, portanto, é modalidade de justiça corretiva, que procura corrigir eventual desequilíbrio do contrato, e não de justiça social (ou distributiva), que busca a distribuição de riquezas.
No liberalismo, a noção de justiça formal se confunde com a noção de justiça material. Isso porque, nessa época, entendia-se que, se o indivíduo celebrou o contrato livremente, cabe a ele assegurar o equilíbrio material, e não ao Estado. Para o liberalismo, portanto, presente a justiça formal, presume-se a justiça material.
Todavia, havia casos em que o desequilíbrio era manifesto, como no caso dos contratos de adesão, nos quais faltava inclusive a justiça formal. Nesses casos, portanto, tal presunção não poderia prevalecer. É nesse sentido que surge o
princípio da eqüidade ou justiça contratual, como meio de intervenção do Estado nos contratos para a garantia do equilíbrio contratual.
Um subprincípio da justiça contratual é o princípio da proteção ao hipossuficiente, à parte mais fraca, o que constitui substrato, por exemplo, à proteção do consumidor e, conseqüentemente, à criação do Código de Defesa do Consumidor. Na relação de consumo, presume-se a ausência das justiças formal e material, pois é flagrante o desequilíbrio contratual que existe entre o consumidor e o fornecedor, devido principalmente à vulnerabilidade do consumidor e ao fato de que os contratos de consumo, em sua quase totalidade, são contratos de adesão.
Essa nova e mais recente concepção contratual é muito bem sintetizada por Xxxxx Xxxxx:
Tais inovações levaram os juristas a um estado de perplexidade. O modelo tradicional de contrato estava morrendo para ceder lugar às novas formas: contratos de adesão; contratos regulados, cujo conteúdo é dado pelo legislador; contratos necessários, etc.
Em outras palavras, as pessoas já não contratam como antes. Não há mais lugar para negociações e discussões acerca das cláusulas contratuais. Os contratos são celebrados em massa, já vindo escritos em formulários impressos.
Toda essa revolução, mexe com a principiologia do Direito contratual. Os fundamentos da vinculatividade dos contratos não podem mais se centrar exclusivamente na vontade, segundo o paradigma liberal individualista. Os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos e sociais. Nasce a teoria preceptiva. Segundo esta teoria, as obrigações oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por suas conseqüências econômicas e sociais. [...]
Vive-se hoje no Brasil os alvores do Estado Democrático de Direito. Este é o momento da conscientização desse novo paradigma. Só agora assumem a devida importância os princípios e os valores constitucionais por que se deve pautar todo o sistema jurídico. Constitucionalização ou publicização do Direito Civil entram na temática do dia. O Código Civil não seria mais o centro do ordenamento civil. Seu lugar ocupa a Constituição, seus princípios e valores. Diz-se que os pilares de sustentação do Direito civil, família, propriedade e autonomia da vontade, deixaram de sê-lo. O único pilar que sustenta toda a estrutura é o ser humano, a dignidade da pessoa, sua promoção espiritual, social e econômica. Este pilar está, por sua vez, enraizado na Constituição. Tudo isso, não há dúvidas, há o que pensar” (2003, p.26-27 e 29)
2.2 A cláusula de fidelização dos contratos de prestação de serviço de telefonia celular
Com o desenvolvimento do capitalismo e o conseqüente surgimento da globalização e das sociedades de massa, a preocupação das empresas voltou-se principalmente para a produção em grande escala. A livre concorrência fez com que os empresários buscassem novas técnicas para fornecer produtos e serviços em um ambiente marcado por altíssima competitividade.
Dessa forma, a busca por ofertar qualidade nos produtos ou nos serviços prestados e por garantir a satisfação dos consumidores tem orientado muitas empresas a criarem estratégias no intuito de consolidarem suas posições diante dos concorrentes ou crescerem suas participações no mercado.
A prestação de serviço de telefonia celular é um setor em que a concorrência acirrada fez com que as operadoras se tornassem cada dia mais agressivas em suas estratégias, na tentativa de reter o maior número possível de clientes em sua base de usuários, visando a alcançar uma maior parcela do mercado e, conseqüentemente, lucros cada vez maiores. Nesse jogo de sedução, as operadoras de telefonia celular oferecem benefícios de todo tipo aos consumidores, tais como, aparelhos a preços baixos, tarifas reduzidas, pacotes com diversos serviços inclusos, descontos em shows, brindes, dentre outros.
Uma das principais estratégias utilizadas pelas operadoras é a de conferir um desconto sobre o preço de aquisição do aparelho celular, devendo o consumidor, em troca, manter-se vinculado a um determinado plano ou serviço oferecido por aquela, por um determinado período de tempo, que varia, em geral, de doze a dezoito meses, no qual deverá pagar uma tarifa mensal mínima e não poderá rescindir o
contrato, independente de qualquer motivo, sob pena de pagamento de multa. Esse benefício está contido na chamada cláusula de fidelização, que é inserida nos contratos de prestação de serviço de telefonia celular, os quais são, em regra, contratos de adesão, sendo assim definida por Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx:
A cláusula [...], em síntese, proíbe que o contratante se desligue de plano de tarifa especial (em mínimo de reais) antes de expirado o prazo de permanência mínima, seja qual for o motivo do desligamento. A cláusula consagra uma espécie de prazo de carência ("período de permanência mínima") dentro do qual o usuário do serviço de telefonia móvel não pode trocar de plano ou cancelar o contrato, seja por qual motivo for, sem antes pagar a multa contratual prevista. O valor da multa é proporcional ao número de meses faltantes para o término do prazo de permanência, ou seja, a multa é menor quanto mais se aproximar o ato do cancelamento (desativação dos serviços) da data prevista para o final do "prazo de permanência". (2005)
Com essa prática, a operadora espera, ao longo do período em que o usuário permanecer vinculado ao plano, lucrar o suficiente para compensar o desconto dado na compra do aparelho celular.
Pretende-se demonstrar, todavia, que essas cláusulas possuem natureza abusiva, o que será feito adiante, ao se estudar a teoria do abuso de direito e, com base nessa teoria, o poder econômico e seu exercício abusivo, bem como a finalidade e princípios constitucionais da ordem econômica, as infrações da ordem econômica e as cláusulas abusivas previstas no Código de Defesa do Consumidor.
2.3 A teoria do abuso de direito
O instituto do abuso de direito é construção doutrinária e jurisprudencial do século XX, embora sejam encontrados vestígios no Direito Romano, que já não previa mais o direito absoluto, tendo surgido como resultado da análise de casos concretos que não encontrava, na doutrina do ato ilícito, solução satisfatória.
A conceituação do instituto e os critérios de aferição da abusividade são, até hoje, entretanto, bastante controversos, havendo opiniões das mais diversas.
Segundo Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx xx Xxxxxxx:
Do ponto de vista etimológico, a expressão latina abusus tem o significado de “consumir, destruir, usar intensamente”; neste sentido é que se compreende a expressão jus utendi et abutendi (relativa ao pleno direito que tinha o proprietário de tirar de sua coisa toda a vantagem que esta pudesse proporcionar-lhe). Na linguagem jurídica atual, contudo, está o termo carregado com a conotação de “excesso, desvio”. No contexto lingüístico do direito atual, quando se fala em abuso de direito pretende-se significar um uso mau, reprovável ou reprovado, ilegítimo ou tido como tal, de um direito de que alguém é titular. (1995, p.111)
Basicamente, duas teorias procuram explicar o instituto do abuso de direito, quais sejam, as teorias subjetiva e objetiva (ou finalista), as quais são explicadas por Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx:
Segundo os adeptos da teoria subjetiva, o abuso do direito se verificaria quando o titular de um direito subjetivo, muito embora o exercendo dentro de seus limites formais, fizesse-o imbuído de intenção de prejudicar terceiro. Aqui, o abuso de direito seria uma modalidade de culpa delitual. Quando ausente essa intenção de prejudicar, o exercício do direito seria regular. Todavia, ainda quando desprovido de tal intenção, o titular de um direito subjetivo seria civilmente responsável quando o exercesse de forma negligente ou imprudente (hipótese em que se configuraria um quase- delito). Já segundo os objetivistas, o relevante seria considerar o caráter anti-social do exercício do direito, não sendo preciso “deter-se no duro e penoso exame dos motivos íntimos que teriam presidido à deliberação do agente”. (1997, p. 158-159)
Apesar de alguns doutrinadores, como o civilista francês Xxxxxxx, não aceitarem a existência do uso abusivo de um direito, alegando que um ato não pode ser ao mesmo tempo conforme e contrário ao direito, e outros, como Rotondi, dizerem que ato abusivo não é um conceito jurídico, mas sim um fenômeno social,
vários autores tentam explicar o instituto, dentre os quais prevalece a corrente objetivista.
Diante dos principais doutrinadores que procuram explicar objetivamente o abuso de direito, destacam-se Saleilles e Josserand.
Para Saleilles, abuso de direito seria um
[...] exercício anormal do direito, exercício contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, exercício reprovado pela consciência pública e ultrapassando por conseguinte o conteúdo direito; pois todo direito, do ponto de vista social, é relativo, não havendo direitos absolutos, nem mesmo o de propriedade. (FONSECA, 1995, p.112-113)
No pensamento de Josserand, abuso de direito seria o uso de um direito desconforme à sua finalidade.
Através da análise da jurisprudência, verifica Josserand que os tribunais, ao decidir sobre questões relativas a abuso de direito, discriminam quatro critérios, o intencional, caracterizado pela utilização de um direito com a intenção de causar dano a outrem, o técnico, que se fundamenta no emprego correto do direito assegurado por lei independentemente do ânimo de que está movido o titular, o econômico, que se prende à verificação da utilização de um direito para consecução de interesses legítimos, e, por último, o critério funcional ou finalista, que, segundo o autor, é o “último e verdadeiro critério do abuso, aquele que é extraído do desvio do direito de sua função social, qualquer que seja ela, econômica ou moral, egoísta ou desinteressada”, para concluir que a disciplina total relativa ao abuso dos direitos “não é outra senão a da finalidade dos direitos, de sua relatividade em consideração e em função de sua finalidade”. (FONSECA, 1995, p.118)
O art. 160, I, do Código Civil de 1916, reconhecia apenas indiretamente a teoria do abuso de direito:
Art. 160. Não constituem atos ilícitos:
I- Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; [...] (BRASIL, 1916, grifo nosso)
A doutrina, interpretando a xxxxx, admitia que o exercício irregular de um direito reconhecido seria considerado ato ilícito e abusivo, consagrando, assim, implicitamente, nesse dispositivo, a idéia de abuso de direito.
O Código Civil de 2002, entretanto, previu expressamente o abuso de direito em seu art. 187:
Art.187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê- lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (BRASIL, 2002)
Apesar de a doutrina tradicional entender que ato ilícito é ato antijurídico, ou seja, contrário ao Direito, culpável, lesivo e que gera obrigação de indenizar (conceito esse contido no art. 186 cumulado com art. 927, ambos do Código Civil de 2002), cumpre notar que o novo Código Civil, consoante a mais moderna doutrina, colocou o abuso de direito na categoria de ato ilícito. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx (2003) é um expoente nessa moderna concepção de ato ilícito. Segundo ele, os ilícitos civis não se esgotam na visão tradicional de que são atos contrários ao Direito, culposos, danosos e que geram dever de indenizar, pois há atos ilícitos que se configuram sem que haja contrariedade direta ao Direito, culpa, dano ou dever de indenizar, podendo ocorrer outros tipos de sanções, já que, em Direito Civil, as sanções não se resumem ao ressarcimento, à reparação ou à indenização. Nesse sentido, o autor coloca o abuso de direito como espécie de ato ilícito, classificando-o como ilícito funcional.
Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxx:
A doutrina tradicional [...] mostrou-se, por vezes, refratária à caracterização do abuso de direito como ato ilícito. Ponderava-se que o abuso de direito não seria uma agressão frontal ao direito, e portanto não seria um ato ilícito. Não cremos, presentes as premissas que vimos desenvolvendo, que a agressão frontal – talvez queira-se dizer literal – seja uma característica dos ilícitos civis.
Tudo depende, com efeito, dos paradigmas teóricos adotados. Se se afasta, do campo da ilicitude civil, as espécies que não se amoldam a certos padrões previamente definidos (culpa, dano, dever de indenizar, além de previsão expressa), a discussão como que se encerra, porquanto é impossível dialogar com dogmas.
Se, por outro lado, abrem-se janelas para uma percepção mais arejada da ilicitude, sem os rígidos espartilhos formalistas, é possível a análise dos ilícitos a partir do sistema em que eles se inserem, iluminados pelos valores e princípios que os circundam. Essa nova atitude, despida de padrões prévios de aferição, possibilita que novos conteúdos semânticos sejam forjados, sem a inflexibilidade sacra da concepção clássica. (2003, p. 121-122)
E continua o autor:
Denominamos ilícito funcional o ilícito que surge do exercício dos direitos. Não haveria, aqui, a princípio, contrariedade ao direito, porquanto o ato não figura entre aqueles vedados pelo ordenamento. A contrariedade surge quando há uma distorção funcional, ou seja, o direito é exercido de maneira desconforme com os padrões aceitos como razoáveis para a utilização de uma faculdade jurídica.
A cada direito, conferido pelo sistema, corresponde um perfil, mais ou menos nítido, que fornece as proporções de sua utilização. Se ocorre um desvio no perfil objetivo do direito, cessa a tutela e passa a haver uma situação contrária ao direito. [...]
Não há, ontologicamente, distinção entre essa espécie e o chamado abuso de direito. Todavia, o termo ilícito funcional traduz melhor o que se passa, por duas razões: primeiro, sempre se hesitou na categorização do abuso de direito. Onde incluí-lo? Qual a sua natureza jurídica? Assim, com semelhante expressão, a terminologia estaria conforme sua essência. Segundo, porque o vocábulo funcional é rico em significação. Expressa, com rigor,o caráter peculiar dessa espécie de contrariedade ao direito, que não surge de uma disposição abstrata do ordenamento, mas sim do indevido funcionamento de um direito a princípio legítimo.
É um ilícito que nasce da função dos direitos. Ou, melhor dizendo, da disfunção dos direitos. [...]
Trata-se de um ato que, conquanto contrário ao direito, não estava previamente previsto, como proibido, pelo sistema. Sua nota de contrariedade resultou da forma como ele se insere na cadeia de condutas, sua desproporção com os deveres de lealdade e cooperação que deverão, a teor da boa-fé objetiva, inspirar todo o desenvolvimento da relação contratual. [...]
O ilícito funcional opera como uma cláusula geral da ilicitude, destinada a manter o exercício do direito nos limites socialmente toleráveis. Defendemos, assim, a existência, no sistema do direito civil, de uma espécie ilícita cuja configuração não depende de previsão expressa, e se manifesta no exercício dos direitos. (2003, p. 118-120)
Sobre o referido art. 187, Xxxxx Xxxxx faz suas considerações, falando em ato intrinsecamente ilícito e abuso de direito para distinguir ambas as espécies de ato ilícito:
A redação do artigo, numa leitura desatenta, confunde abuso de direito com ato ilícito, dando àquele tratamento de delito, quando, segundo a doutrina mais moderna, seriam institutos diferentes. A crítica que se faz é no sentido de que o legislador mistura os dois institutos, analisando-os apenas pelos efeitos, o que poderia tornar insuficiente a sanção atribuída aos casos de abuso de direito.
O abuso de direito ocorre, quando uma pessoa, ao exercer direito legítimo, excede os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Na verdade, é mesmo ato ilícito, não ato intrinsecamente ilícito, como o homicídio, ou um avanço de sinal de trânsito, mas ilícito funcional, nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx.
As conseqüências do abuso de direito, enquanto ilícito funcional, podem ser as mais diversas, variando da simples indenização à anulação do ato, dentre outras muitas. [...]
É óbvio que no ato intrinsecamente ilícito, o agente pratica ato contrário ao Direito, que, nem na aparência, se pode confundir com o exercício legítimo de direito subjetivo. Se mato alguém, se bato o carro, não estou exercendo nenhum direito fora dos limites; estou agindo contra o Direito, pura e simplesmente. Se tanto no abuso de direito, que é ato ilícito funcional, quanto no ato intrinsecamente ilícito, o agente pratica ato antijurídico, no abuso de direito, há o exercício legítimo de um direito subjetivo, que ultrapassa certos limites, enquanto no ato intrinsecamente ilícito, tal não se dá. Em outras palavras, o ato intrinsecamente ilícito nada tem de exercício legítimo de direito. [...]
As conseqüências do ato abusivo podem ser diferentes das do ato intrinsecamente ilícito.
A prática do ato intrinsecamente ilícito, como vimos acima, gera, como regra, o dever de indenizar o dano causado. Já o abuso de direito, pode gerar obrigação de indenizar, como pode gerar outra espécie de sanção. Tudo dependerá do caso concreto. [...]
Cumpre, assim, não confundir os dois institutos. (2004, p.243-244)
Uma outra questão importante que surge em relação ao art. 187 do novo Código Civil é se haveria necessidade do animus, da intenção de prejudicar para se configurar o ato abusivo.
A maior parte da doutrina adota a corrente objetivista, para a qual o abuso de direito prescinde de culpa, configurando o abuso por si só, ainda que o dano concreto não tenha sido causado. Nesse sentido é, por exemplo, Sílvio de Salvo Venosa:
Preferimos concluir, aderindo a parte da doutrina, que o melhor critério é o finalístico adotado pelo direito pátrio. O exercício abusivo de um direito não se restringe aos casos de intenção de prejudicar. Será abusivo o exercício do direito fora dos limites da satisfação do interesse lícito, fora dos fins sociais pretendidos pela lei, fora, enfim, da normalidade.
Assim, o abuso de direito não se circunscreve às noções de dolo e culpa, como pretendem alguns. Se isso fosse de se admitir, a teoria nada mais seria do que um capítulo da responsabilidade civil, ficando em âmbito mais restrito. Se, por outro lado, fosse essa a intenção do legislador, o princípio genérico do art. 186 (antigo, art.159) seria suficiente, não tendo porque a lei falar em “exercício regular de um direito” no artigo seguinte. Portanto, se, de um lado, a culpa e o dolo podem integrar a noção, tal não é
essencial para a configuração do abuso, uma vez que o proposto é o exame, em cada caso, do desvio finalístico do exercício do direito. Daí sustentarmos que a transgressão de um dever legal preexistente, no abuso de direito, é acidental e não essencial para configurá-lo. Essa também parece ser a conclusão de Xxxxxx Xxxxxxxxx [...]: “O exercício anormal de um direito é abusivo. A consciência pública reprova o exercício do direito do indivíduo, quando contrário ao destino econômico e social do direito, em geral.” (2003, p.608)
Assim, o abuso de direito consiste no exercício de um direito além dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, não requerendo, segundo entendimento majoritário, culpa nem dano para a sua configuração, nem sendo o dever de indenizar a sua conseqüência necessária, pois pode haver outras conseqüências, outros tipos de sanção, tal como a nulidade do ato.
2.4 O poder econômico e seu exercício abusivo
O Estado Liberal adotava a liberdade individual como seu princípio basilar, significando ela o direito do cidadão de atuar sem interferência do Estado. Essa era a dimensão moderna da liberdade, diferente dos povos da Antiguidade, para os quais a liberdade representava a capacidade ou o direito de participar do processo político.
Segundo Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx:
O modelo teórico que serviu de paradigma à implementação do novo Estado Liberal, como é sabido, pressupunha completa separação entre o campo da atividade econômica e o plano político. O Estado teria suas funções restritas às atividades fundamentais, como defesa externa, manutenção da ordem interna, edição de leis e administração da justiça. Já as decisões econômicas seriam deixadas aos particulares, que atuariam sem qualquer ingerência estatal, limitados e orientados apenas pelos mecanismos auto-regulatórios do mercado. O domínio econômico caberia aos particulares, sem qualquer sorte de intervenção dos poderes públicos. (1997, p.132)
Dentro dessa dimensão moderna da liberdade, o desenvolvimento do Estado Liberal trouxe à luz os princípios da liberdade de iniciativa econômica e da livre concorrência.
A princípio, livre iniciativa e livre concorrência podem parecer sinônimos, mas Xxxxxx Xxxxx, citado por Xxxx Xxxxxxx Xxxx, xxxxxx que são conceitos distintos, porém complementares.
O primeiro não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio de livre iniciativa [...]. Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o “princípio econômico” segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado. (1998, p. 204)
A livre concorrência, portanto, denota uma liberdade para disputar mercados e, conseqüentemente, conquistar clientela e maiores lucros.
É nesse sentido que se fala em poder econômico, entendido esse como o poder das empresas de, no exercício do direito de liberdade de concorrência, conquistar clientela e, conseqüentemente, exercer maior influência no mercado e auferir maiores lucros, em detrimento de outros concorrentes, o que pode gerar controle de oferta e de preços. Segundo Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx,
[...] o poder econômico é a capacidade de determinar comportamentos econômicos alheios, em condições diversas daquilo que ocorreria em regime concorrencial puro, que se expressa não só, mas fundamentalmente, através da capacidade de controlar os preços de mercado, não necessariamente em termos absolutos. O detentor de quantidade relevante de poder econômico é capaz de, maximizando seus lucros, apropriar-se de parcela da renda social superior à que legitimamente lhe tocaria, se fosse desprovido desse poder. (1997, p.171)
O poder econômico, portanto, é um dado estrutural inerente ao livre mercado, pois é instrumento natural de produção e circulação de riquezas na sociedade.
Entretanto, ao contrário do que os liberais esperavam, o mercado não foi capaz de se auto-regular, pois essa economia desregrada gerou instabilidade econômica e concentração capitalista, levando ao fim o próprio princípio da livre concorrência, gerando também, conseqüentemente, grandes desigualdades sociais.
Assim, tornou-se necessária a intervenção do Estado na economia para minimizar esses efeitos perversos gerados pelo liberalismo, deixando a liberdade de ser absoluta para ser limitada por objetivos sociais. O Estado Liberal, então, foi substituído pelo Estado Social e, posteriormente, pelo Estado Democrático de Direito.
Ao explicar a construção da cidadania moderna, formada pelos direitos de primeira, segunda e terceira gerações, Vilani (2002) declara que o Estado Liberal deu origem aos direitos civis e políticos (chamados direitos de primeira geração), os quais dependem de uma atuação negativa do Estado, ou seja, de um não agir do Estado diante dos direitos individuais do cidadão; o Estado Social deu origem aos
direitos sociais (chamados de direitos de segunda geração), que dependem de uma atuação positiva do Estado, ou seja, de provimento de bens e serviços para a população, tendo em vista a justiça social; e o Estado Democrático de Direito deu origem aos direitos metaindividuais (chamados de direitos de terceira geração), assim conhecidos por se referirem a direitos dos indivíduos enquanto seres humanos (parte da humanidade) ou dos indivíduos enquanto membros de uma categoria ou grupo social específico, direitos esses que requerem um respeito ao pluralismo e uma cidadania ativa (bem como garantias ao seu exercício). A previsão e garantia dessas três gerações de direitos é característica marcante do Estado Democrático de Direito, o qual foi implantado no Brasil com o advento da Constituição da República de 1988.
É dentro dessa concepção moderna de cidadania que a Constituição da República define, no art. 170, o seu modelo econômico, que se baseia na livre iniciativa, na livre concorrência e na propriedade privada dos meios de produção, portanto, na economia de mercado, mas estabelece como finalidade da ordem econômica o asseguramento da existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social, devendo ser observados princípios como os da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, dentre outros. Destaque-se que a dignidade humana e a justiça social constituem não só finalidade da ordem econômica, mas também, respectivamente, fundamento e objetivo da República Federativa do Brasil, conforme previsto nos arts. 1º, III e 3º, I, da Constituição.
De acordo com Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx:
A justiça social só se realiza mediante eqüitativa distribuição da riqueza. Um regime de acumulação ou concentração de capital e da renda nacional, que resulta da apropriação privada dos meios de produção, não propicia efetiva justiça social, porque nele sempre se manifesta grande diversidade
de classe social, com amplas camadas de população carente ao lado da minoria afortunada. [...]
Um regime de justiça social será aquele em que cada um deve dispor dos meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria. (1996, p. 721)
Dessa forma, o uso do poder econômico que realize apenas interesses particulares, contrariando a finalidade e os princípios da ordem econômica estabelecidos pela Constituição, será considerado abuso de direito ou, mais especificamente, abuso de poder econômico, sendo duramente reprimido pelo Direito, a exemplo do Direito Econômico e do Direito do Consumidor, que prevêem, respectivamente, nesse sentido, infrações da ordem econômica e cláusulas abusivas. Nas palavras de Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx,
[...] a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição, preocupada com a realização de justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que “liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo”. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí por que a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. (1996, p.726)
Tanto é assim que a Constituição da República prevê como fundamento da República Federativa do Brasil, em seu art. 1º, IV, o valor social da livre iniciativa e como princípio da ordem econômica, em seu art. 170, III, a função social da propriedade, entendida esta, no caso de atividades econômicas, como o exercício do direito de propriedade dos meios de produção orientado para o atendimento de valores sociais, e não somente para os interesses particulares do empresário, titular do direito.
2.4.1 Infrações da ordem econômica
A Constituição da República, em seu art. 173, §4º, prevê como abusivo o uso de poder econômico que “vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. (BRASIL, 1988)
Essa idéia do uso do poder econômico e seu abuso é muito bem sintetizada por Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, segundo o qual:
Se o empresário titular de poder econômico exerce-o ao competir com os demais agentes atuantes no mesmo mercado, e lucra ou tira vantagens de sua posição destacada, nada há de irregular nisso. É apenas o jogo competitivo característico do regime capitalista, em que os mais fortes, economicamente falando, se valem desse fator de supremacia para ampliar a participação no mercado, evidentemente em detrimento da de outros empresários. O exercício do poder econômico que não tenha e não possa ter o efeito de dominância de mercado, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário dos lucros insere-se nesse jogo e não pode ser, sob o ponto de vista constitucional, considerado abusivo; e, consequentemente, não pode ser objeto de repressão legal. A Constituição Federal, ao estruturar a economia brasileira pelo princípio da livre concorrência, admite a generalidade das práticas empresariais voltadas à conquista de mercados, ainda que derivadas do exercício do poder econômico. Somente quando a própria competição está em risco, a Constituição, para a assegurar, reputa abusivo o seu exercício e autoriza a lei à repressão. (2003, p.201)
Assegurar a livre concorrência significa assegurar a disputa entre os fornecedores – tanto os de pequeno quanto os de grande porte – o que possibilita a estes a conquista de mercado e, conseqüentemente, o auferimento de lucro. A disputa entre os fornecedores, por sua vez, assegura uma diversidade de quantidade, qualidade e preço de produtos e serviços no mercado, o que possibilita uma melhor satisfação das necessidades dos consumidores. Assim, a garantia da livre concorrência torna-se extremamente importante não só para a garantia da economia de mercado, mas também para a consecução dos ideais da dignidade humana, segundo os ditames da justiça social. Daí a razão da abusividade prevista pela Constituição, como bem explica Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, citado por Xxxx Xxxxxxx Xxxx:
A livre concorrência de que fala a atual Constituição com um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns
sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que a competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada. (2004, p.194)
A Lei 8.884/94, que desce em minúcias o dispositivo constitucional, denominou essas condutas como infrações da ordem econômica, prevendo, inclusive, penalidades.
O art. 21 dessa lei apresenta um rol exemplificativo de condutas que caracterizam infrações da ordem econômica. A interpretação desse artigo, todavia, não pode ser feita de forma isolada, pois as condutas descritas não caracterizam, por si só, a infração. Conforme prevê o caput do art. 21, para a configuração da abusividade, é necessário que essas condutas configurem hipótese prevista nos incisos do art. 20 da mesma lei, os quais praticamente reproduzem o §4º do art. 173 da Constituição da República.
Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I- limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II- dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III- aumentar arbitrariamente os lucros;
IV- exercer de forma abusiva posição dominante. (BRASIL, 1994)
Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: [...] (BRASIL, 1994)
Importante notar, consoante a noção de abuso de direito, que a lei reprime tanto a efetiva geração de tais efeitos quanto apenas a possibilidade de geração deles quando o § 0x xx xxx.000 xx Xxxxxxxxxxxx estabelece que “a lei reprimirá o
abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (BRASIL, 1988, grifo nosso), assim como quando o caput do art.20 da Lei 8.884/94 diz que constituem infração da ordem econômica, “independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda
que não sejam alcançados”. (BRASIL, 1994, grifo nosso)
Cumpre notar, também, que, para se caracterizar a infração da ordem econômica, é irrelevante que o empresário tenha agido ou não com culpa. A responsabilidade, como se verifica do caput do art.20 da Lei 8.884/94, decorre da análise objetiva dos efeitos da conduta, não importando se o agente pretendeu causar os efeitos, ou, não os pretendendo, se agiu com imprudência, imperícia ou negligência. A razão disso é dada por Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx:
[...] a exemplo do que ocorre com o abuso do direito, não se explica o fenômeno do abuso do poder econômico com a concepção clássica de culpa, no sentido lato, que inclui o dolo. Em primeiro lugar, porque, como decorrência da análise econômica teórica, que pressupõe a inteligência e a racionalidade dos agentes econômicos, não se pode admitir que um dado titular de poder econômico dele abuse sem saber que o faz. Já por isso a investigação dos desígnios do agente é de importância secundária. Por outro lado, até por ser o poder econômico uma função, tal qual ocorre com o abuso de direito e o desvio de poder, não é importante examinar o desvio de função segundo critérios subjetivistas, que tenha em conta a intenção do agente, mas apenas objetivamente, tendo-se em vista a eventual diversidade entre o resultado obtido e aquele para o qual a função foi estabelecida, independentemente da intenção que presidiu a atividade. (1997, p.179)
A inclusão da chamada cláusula de fidelização nos contratos tipifica a conduta prevista no art. 21, V, da Lei 8.884/94, gerando, claramente, prejuízo à livre concorrência e aumento arbitrário dos lucros, efeitos esses previstos no art. 20, I e III, da mesma lei.
O art. 21, V, prevê como possivelmente abusiva a conduta que possa “criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa
concorrente ou fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços.” (BRASIL, 1994)
Quanto a prejuízo à livre concorrência e a aumento arbitrário dos lucros, Xxxxx Xxxxx Xxxxxx explica:
Limitar a livre concorrência ou a livre iniciativa é barrar, total ou parcialmente, mediante determinadas práticas empresariais, a possibilidade de acesso de outros empreendedores à atividade produtiva em questão. Em geral, a obstacularização do acesso decorre do aumento dos custos para novos estabelecimentos, provocado com vistas a desencorajar eventuais interessados. [...]
Falsear a livre concorrência ou iniciativa significa ocultar a prática restritiva, através de atos e contratos aparentemente compatíveis com as regras de estruturação do livre mercado. [...]
Prejudicar a livre concorrência ou iniciativa, por fim, significa incorrer em qualquer prática empresarial lesiva às estruturas do mercado, ainda que não limitativas ou falseadoras dessas estruturas.
[...] arbitrário é o lucro obtido por práticas anticoncorrenciais, não explicável por nenhuma outra razão econômica. Grosso modo, portanto, o lucro que não se justifica, sob o ponto de vista tecnológico, administrativo, econômico ou financeiro, foi produzido de modo arbitrário, por uma prática empresarial irregular. (2003, p. 212-213 e 216)
A cláusula de fidelização, ao vincular o consumidor ao uso exclusivo de serviços por determinado período de tempo, não sendo dado a ele o direito de rescindir o contrato dentro desse período, independente de qualquer causa, elimina os riscos comerciais da operadora, como, por exemplo, o risco dele se desligar e migrar para outra empresa concorrente, o que cria dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento desses concorrentes, que terão dificuldades de crescer sua participação no mercado, por mais que invistam na conquista de novos usuários, claramente prejudicando a livre concorrência.
Além disso, observa-se que, mais do que fidelizar o cliente e garantir o pagamento do preço integral do aparelho, não cobrado por ocasião da assinatura em razão do desconto, a cláusula estabelece uma forma de potencializar os ganhos da operadora, que, de outra forma, talvez não fosse possível. Isso porque, embora
os planos prevejam a cobrança de um valor mínimo mensal, os usuários sempre terminam excedendo esse valor, não somente cobrindo as perdas iniciais na venda do aparelho celular, resultantes do desconto, mas gerando lucro para a operadora. Vê-se, portanto, que essa é uma forma de aumento arbitrário dos lucros por parte da empresa, pois o lucro é obtido por práticas anticoncorrenciais, não explicável por nenhuma outra razão econômica, como investimentos, política de marketing, desenvolvimento tecnológico, oferecimento de promoções e brindes, etc, e sim por uma imposição de exclusividade que, muitas vezes, vai até contra a vontade do consumidor, que, ao não ter outra opção, acaba celebrando o contrato.
2.4.2 Cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor
A massificação dos contratos na sociedade atual permitiu e mesmo incentivou a inclusão de cláusulas abusivas nos contratos, já que esse tipo de contrato não comporta discussão sobre seu conteúdo, o qual é pré-determinado unilateralmente pelo fornecedor.
A expressão “cláusulas abusivas” é muito utilizada na doutrina e na jurisprudência atual, porém é poucas vezes definida.
Xxxxxx Xxxxxx, citada por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, na tentativa de formular uma definição, mostra os pontos comuns apresentados por essas cláusulas:
Todas as cláusulas abusivas apresentam como características ou pontos em comum justamente o seu fim, que seria melhorar a situação contratual daquele que redige o contrato ou detém posição preponderante, o fornecedor, transferindo riscos ao consumidor, e seu efeito, que é o desequilíbrio do contrato em razão da falta de reciprocidade e unilateralidade dos direitos assegurados ao fornecedor. (2002, p.774)
O próprio Código de Defesa do Consumidor absteve-se de uma definição, preferindo apresentar, em seu art. 51, hipóteses de cláusulas contratuais que considera abusivas.
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I- impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor - pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
II- subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste Código;
III- transfiram responsabilidades a terceiros;
IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
V- VETADO;
VI- estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
VII- determinem a utilização compulsória de arbitragem;
VIII- imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;
IX- deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;
X- permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
XI- autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;
XII- obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;
XIII- autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;
XIV- infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;
XV- estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor;
XVI- possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias. [...] (BRASIL, 1990)
Todavia, o inciso IV do referido dispositivo apresenta uma norma geral, ao prever que se consideram abusivas as cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade” (BRASIL, 1990), presumindo exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
Art.51. [...]
§1º [...]
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando- se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. (BRASIL, 1990)
Importante notar que, assim como nas infrações da ordem econômica, as cláusulas abusivas são aferidas objetivamente, como bem salienta Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
[...] a abusividade da cláusula não depende de boa ou má-fé subjetiva do fornecedor que a impôs ao consumidor. Talvez o fornecedor nem soubesse que tal cláusula é contrária ao espírito do CDC ou mesmo expressamente proibida na lista do art.51, talvez nem tenha ele redigido o contrato, cujo conteúdo pode até ser determinado por outra norma de hierarquia inferior (portaria, medida provisória, etc.), mesmo assim permanece o caráter abusivo da cláusula. (2002, p.773)
Para que se aplique o Código de Defesa do Consumidor e suas disposições sobre as cláusulas abusivas, entretanto, é necessário, primeiramente, que se identifique uma relação de consumo.
Relação de consumo é, basicamente, aquela em que esteja presente um consumidor diante de um fornecedor de produtos ou serviços. A razão da tutela especial é explicada por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
Atualmente, denomina-se contratos de consumo todas aquelas relações contratuais ligando um consumidor a um profissional, fornecedor de bens ou serviços. Esta nova terminologia tem como mérito englobar a todos os contratos civis e mesmo mercantis, nos quais, por estar presente em um dos pólos da relação um consumidor, existe um provável desequilíbrio entre os contratantes. Este desequilíbrio teria reflexos no conteúdo do contrato, daí nascendo a necessidade do direito regular estas relações contratuais de maneira a assegurar o justo equilíbrio dos direitos e obrigações das partes, harmonizando as forças do contrato através de uma regulamentação especial. (2002, p.252)
Em seu art. 2º, caput, o CDC conceitua consumidor como sendo “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. (BRASIL, 1990)
O dispositivo deixa em aberto, entretanto, o conceito de destinatário final, no que a doutrina diverge, havendo duas teorias que tentam explicar a expressão: a teoria minimalista e a teoria maximalista.
Segundo a teoria minimalista, destinatário final é o destinatário fático e econômico do produto ou serviço, ou seja, é aquele que retira o bem do mercado e o
utiliza sem finalidade de revenda ou de incorporação em cadeia produtiva, sem finalidade de lucro, sem finalidade profissional.
Já para a teoria maximalista, destinatário final é apenas o destinatário fático, ou seja, é aquele que retira o bem do mercado, não importando se há finalidade lucrativa ou profissional.
No art. 3º, por sua vez, o CDC apresenta o conceito de fornecedor:
Art.3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (BRASIL, 1990)
A prestação de serviço de telefonia celular, a despeito de ser serviço público concedido, constitui claramente uma relação de consumo.
Conforme o art. 175, caput, da Constituição da República, os serviços públicos, apesar de serem de titularidade do Estado, podem ser prestados sob forma de concessão ou permissão:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. [...] (BRASIL, 1988)
Serviço público, nas palavras de Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx,
[...] é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo. (2006, p.634)
O art. 2º, II, da Lei 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, conceitua concessão de serviço público:
Art. 2º. [...]
II- concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado; [...] (BRASIL, 1995)
Além da disposição geral do art. 175 da Constituição da República, que permite a concessão ou permissão do serviço público, o seu art.21,XI, prevê essa mesma possibilidade especificamente para a exploração do serviço de telecomunicações, o qual é de competência privativa da União.
Art. 21. Compete à União: [...]
XI – Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; [...] (BRASIL, 1988)
Apesar de o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor não falar expressamente na possibilidade de o prestador de serviço público concedido ser fornecedor, é inegável o reconhecimento da aplicabilidade das normas consumeiristas, sendo clara a identificação das figuras do fornecedor e do consumidor nessa relação.
O concessionário, por ser pessoa jurídica privada que fornece, no mercado de consumo, atividade, mediante remuneração, sendo esta entendida pela doutrina como qualquer ganho, direito ou indireto, para o fornecedor, adequa-se perfeitamente ao conceito de fornecedor contido no Código de Defesa do Consumidor.
Quanto à configuração do usuário como consumidor, a mesma também é clara, pois o usuário é pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza serviço como destinatário final, sendo a abrangência mais ou menos ampla, dependendo da teoria adotada para o conceito de destinatário final.
Insta salientar, contudo, que, no tocante às cláusulas abusivas, o usuário será considerado consumidor por equiparação em função da sua vulnerabilidade, ainda que ele não seja considerado destinatário final, conforme prevê o art. 29 do CDC:
Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. (BRASIL, 1990)
O art. acima referido inclui o capítulo “Da proteção Contratual”, no qual consta a seção “Das cláusulas abusivas”. Assim, o usuário da telefonia celular será sempre protegido contra cláusulas abusivas inseridas no seu contrato de prestação de serviço realizado com a operadora.
Ademais, o Código de Defesa do Consumidor faz expressa referência às empresas concessionárias em seu art. 22:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. [...] (BRASIL, 1990)
Nesse sentido é o entendimento de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
Uma das grandes novidades do sistema do CDC é incluir as pessoas jurídicas de direito público entre os fornecedores, no caso de serviços públicos que a elas competem (art.175,CF), prevendo expressamente, no art.22 do CDC, um dever dos órgãos públicos, de suas empresas, concessionárias ou permissionárias de fornecer “serviços adequados, eficientes, seguros e quanto aos essenciais, contínuos”. (2002, p.484)
Do mesmo entendimento comunga Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxx, que ainda acrescenta outros argumentos:
Cumpre, inicialmente, destacar a indubitável incidência de relação de consumo no uso dos serviços públicos prestados no regime de concessão. A simples análise dos conceitos de consumidor, fornecedor e serviço, estabelecidos nos arts. 2º e 3º já imporia tal conclusão. No entanto, a fim de não deixar qualquer dúvida, cuidou o Código de Defesa do Consumidor de ser enfático nesse aspecto, estabelecendo, em seu art. 22, caput: “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. [...]
Não obstante isso, temos que em diversas leis que regulam serviços específicos, há expressa menção à proteção do consumidor e em muitas delas a expressa ressalva quanto à aplicação das normas de proteção ao consumidor.
Iniciamos destacando a Lei 8.987, de 13.02.1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, estabelecendo em seu art.7º o seguinte elenco de direitos do usuário: [...]
O caput do referido art.7º estabelece que tais direitos são exercidos sem prejuízo do disposto na Lei 8.078, de 11.09.1990, ou seja, o Código de Defesa do Consumidor. Tal ressalva, de suma importância, reforça o acerto da conclusão quanto à plena aplicabilidade da lei de defesa dos consumidores aos serviços públicos concedidos, e demonstra a intercambialidade entre o sistema do Código e o das legislações específicas que regem o regime de concessão, no que concerne à proteção dos consumidores. [...]
Por seu turno, a Lei das telecomunicações (Lei 9.472/97), em seu art.5º, estabelece os princípios a serem observados na disciplina das relações econômicas no setor de telecomunicações, salientando, dentre eles, a defesa do consumidor. (2000, p.164)
Muitas decisões judiciais também caminham nessa direção:
RECURSO. EXTRAORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. SERVIÇ O D E TELEFONIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. APLICAÇÃO D O CÓDIG O D E DEFES A D O CONSUMIDOR. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTS. 5º, II, X, LIV, E 93, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 279. JURISPRUDÊNCIA ASSENTADA. AUSÊNCIA DE RAZÕES NOVAS. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. Nega-se
provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. (BRASIL, STF. Agravo regimental no agravo de instrumento nº 558656 , grifo nosso)
EXIBIÇÃO DOCUMENTO - PRESCRIÇÃO AFASTADA - EMPRES A CONCESSIONARIA TELEFONIA - RELAÇÃO
CONSUMO - DEVER DE EXIBIR. - Tratando-se de documentos comuns, estes devem ficar guardados até a ocorrência da prescrição de eventual ação sobre eles, não havendo na legislação civil qualquer previsão legal deste instituto com relação a exibição de documentos.
- A empres a concessionári a d e serviço d e telefoni a está sujeit a às regras d o CDC , como dispõ e o se u art . 3º , § 2º, assegurando este diploma de forma expressa ao consumidor o direito à informação correta, clara e precisa dos produtos, segundo seus arts. 6 º , III, e 31.
- Prejudicial rejeitada e apelação não provida.
(MINAS GERAIS, TJ. Apelação cível nº 2.0000.00.507295-
7/000, grifo nosso)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – CONTRAT O D E PRESTAÇÃO D E SERVIÇ O D E TELEFONIA – APLICABILIDAD E D O CDC – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – POSSIBILIDADE
- Manifest a a aplicabilidad e d o Códig o de Defes a do Consumidor aos contratos de prestaçã o d e serviço de telefonia.
- A inversão do ônus da prova preconizada pelo inciso VIII, art. 6º, da Lei 8078/90 fica submetida à análise do
magistrado, mediante a existência dos pressupostos, que são a hipossuficiência ou a verossimilhança das alegações do consumidor. (MINAS GERAIS, TJ. Agravo de instrumento nº 1.0145.05 .280058-1/001,grifo nosso)
AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL.
1. Serviço de telefonia móvel. Relação de consumo. Aplicação do CODECON. Verificada a vulnerabilidade e a hipossuficiência do consumidor.
2. Cancelado o serviço de assinatura mensal de telefonia celular, indevidas as cobranças posteriores de mensalidades. Ausente o débito, inexiste justa causa à cobrança e à inscrição do nome do apelante em cadastro negativo de crédito.
3 . RESPONSABILIDADE CIVIL DA APELADA. DANO MORAL PURO. QUANTUM INDENIZATÓRIO FIXADO EM 30 (TRINTA) SALÁRIOS-MÍNIMOS. OBSERVÂNCIA DO BINÔMIO REPROVAÇÃO- REPARAÇÃO.
(RIO GRANDE DO SUL. TJ. Apelação cível nº 70012662698, grifo nosso)
Assim, clara é a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à prestação de serviço de telefonia celular, de forma que se configura abusiva, conforme o referido diploma, a chamada cláusula de fidelização inserida nos contratos realizados entre usuário e operadora ante ao direito de liberdade de escolha do consumidor e à cláusula penal, conforme se verá a seguir.
2.4.2.1 Direito de liberdade de escolha do consumidor
O consumidor, para satisfazer plenamente suas necessidades, precisa ter direito a uma diversidade de qualidade, quantidade e preço de produtos e serviços no mercado, assim como do direito de livremente escolher entre essas opções, ou seja, de livremente escolher o fornecedor que achar mais vantajoso ou conveniente. A diversidade de opções é assegurada principalmente pelas normas de defesa da concorrência e a liberdade de escolha pelas normas protetivas do consumidor.
Esse direito de escolha está previsto expressamente no art. 6º, II, do Código de Defesa do Consumidor, o qual prevê que são direitos básicos do consumidor, “a educação e a divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”. (BRASIL, 1990, grifo nosso)
No caso da cláusula de fidelização, apesar de o oferecimento do desconto na compra do aparelho ser vantajoso ao consumidor, pois torna a aquisição do mesmo mais acessível, o direito de liberdade de escolha do consumidor é ferido, uma vez que a cláusula, ao exigir prazo de permanência mínima e multa no caso de rescisão antes do fim desse prazo, obriga o usuário, de certa forma, a manter-se vinculado à operadora contratada, mesmo que outros concorrentes ofereçam melhores condições de serviço, tais como, planos mais vantajosos, tarifas mais baratas, etc.
Essa supressão do direito de liberdade de escolha do consumidor configura cláusula abusiva segundo o art. 51, I, do Código de Defesa do Consumidor, que prevê que são abusivas as cláusulas que “[...] impliquem renúncia ou disposição de direitos [...]” (BRASIL, 1990). Isso, conseqüentemente, coloca o usuário em desvantagem exagerada e contraria os princípios da boa-fé e da eqüidade, porque quebra o padrão de honestidade e lealdade que se espera da operadora e gera desequilíbrio contratual, pois, em geral, não há, nos contratos de prestação de serviço de telefonia celular, restrições ou obrigações semelhantes impostas à operadora, além da prestação do usuário ser bastante onerosa em relação aos benefícios que ele aufere com o contrato.
Por tudo isso, a cláusula encontra-se em desacordo com o sistema de proteção do consumidor.
Assim, abusiva configura-se a cláusula de fidelização de acordo com os incisos I, IV e XV do art. 51 do CDC.
2.4.2.2 Cláusula penal
A cláusula penal, também denominada pena convencional, é um pacto acessório através do qual as partes fixam, previamente, quantia que deverá ser
paga a título de ressarcimento, caso ocorra o descumprimento da obrigação principal, de alguma cláusula do contrato ou em caso de mora.
Segundo Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, a cláusula penal possui, basicamente, duas funções: pré-liquidação de danos e intimidação. Em relação a essas duas funções, os autores esclarecem:
A primeira decorre de sua própria estipulação: a pena convencionada pretende indenizar previamente a parte prejudicada pelo inadimplemento obrigacional. A segunda função, não menos importante, atua muito mais no âmbito psicológico do devedor, influindo para que ele não deixe de solver o débito, no tempo e na forma estipulados. (2003, p.342)
Sua cobrança independe de prejuízo efetivo, conforme o próprio Código Civil preceitua, em seu art. 416, caput, segundo o qual “para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo”. (BRASIL, 2002)
A cláusula penal é, por natureza, acessória, porque sua existência depende da existência de outra obrigação, em função da qual é estipulada. Não existe cláusula penal que não seja dentro do contexto contratual.
Normalmente, a cláusula penal é pactuada no instrumento do contrato, como uma de suas cláusulas, mas pode, entretanto, ser pactuada em documento separado, desde que faça referência ao contrato ao qual diz respeito.
O valor da pena, em geral, é livremente fixado pelas partes. A única restrição imposta às partes, quanto ao montante da cláusula penal, é prevista no art. 412 do novo Código Civil, que limita seu valor ao da obrigação principal. O Código de Defesa do Consumidor não menciona qualquer restrição ao valor da cláusula penal.
Se a obrigação já foi cumprida em parte pelo devedor e não houve, na multa, abatimento proporcional à parcela da prestação já adimplida ou se houve manifesto excesso de penalidade, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio, a penalidade deverá ser reduzida equitativamente pelo juiz, conforme dispõe o art. 413 do novo Código Civil. O preceito se inspira em anseio de eqüidade, ou seja, no
equilíbrio das prestações, e no propósito de repelir o enriquecimento sem causa, ou seja, impedir o enriquecimento do credor sem justa causa, sem causa jurídica.
Apesar de não conceituar o instituto, o Código Civil, em seu art. 408, estabelece que “incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora” (BRASIL, 2002). Assim, não pode o credor exigir o cumprimento da cláusula penal em hipóteses de descumprimento por caso fortuito ou força maior.
Discute-se, entretanto, se não estaria havendo um desvirtuamento do sentido da cláusula penal, que passaria a apresentar características de abusividade, principalmente em contratos de adesão, e especialmente nos de consumo, tendo em vista que, na prática, a parte que elabora o contrato muitas vezes utiliza-se da cláusula penal para transferir à outra os riscos profissionais. Essa possível abusividade é muito bem explicada por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
[...] a experiência demonstrou que a aplicação pura e simples das cláusulas penais assim como previstas nos contratos de consumo, uma vez que frutos da liberdade contratual e da posição dominante do fornecedor, conduziria a abusos. Abusos, principalmente, em razão do caráter especialmente elevado das penas estipuladas, da falta de relação do valor da multa com os danos realmente causados ao parceiro, da pouca transparência destas cláusulas, as quais para melhor garantir a posição do fornecedor, transferem para o consumidor os riscos tipicamente profissionais, como o da escolha do parceiro contratual ou do advento de novas circunstâncias impossibilitadoras do normal cumprimento da obrigação.
A grande pergunta para o aplicador da lei é se estes abusos transformaram o instrumento, isto é, esta espécie de cláusula em abusiva ou se é o modo de seu exercício, no caso o valor desta “pena contratual” ou as hipóteses em que é prevista, que pode ser abusivo, a depender de um estudo casuístico de uma cláusula penal in concreto. (2002, p.871)
Assim, é de se entender que a cláusula penal pode existir nos contratos, mas será proibida na medida em que configure alguma hipótese de abusividade.
A cláusula de fidelização estabelece que o usuário do serviço de telefonia celular está obrigado a pagar uma multa por rescisão contratual antecipada, seja por qual motivo for. Essa multa, sendo estabelecida em contrapartida ao desconto
oferecido ao usuário na compra do aparelho, nitidamente possui caráter de cláusula penal, que, nesse caso, mostra-se abusiva por várias razões, sendo claramente utilizada pela operadora para transferir ao usuário seus riscos profissionais.
Inicialmente, a multa não pode ser exigida nos casos de rescisão do contrato em que não há culpa do usuário (como nos casos de roubo, de furto, de defeito definitivo do aparelho por culpa do fabricante, etc.), pois, como visto, a exigência de multa constitui cláusula penal e o art. 408 do novo Código Civil deixa claro que a multa só pode ser exigida nos casos em que há culpa do devedor.
Essa supressão do direito do usuário de resolver o contrato sem qualquer obrigatoriedade de pagamento de multa, no caso de não haver culpa sua pelo inadimplemento, configura cláusula abusiva segundo o art. 51, I, do Código de Defesa do Consumidor, que prevê que são abusivas as cláusulas que “impliquem em renúncia ou disposição de direitos” (BRASIL, 1990).
Ademais, as multas fixadas pela cláusula geralmente são excessivas e desproporcionais ao número de meses faltantes para o término do prazo de carência, o que, juntamente com a supressão do direito do consumidor de rescindir o contrato quando inexistir culpa sua, coloca o usuário em desvantagem exagerada e contraria os princípios da boa-fé e da eqüidade, já que quebra o padrão de honestidade e lealdade que se espera da operadora e gera desequilíbrio contratual, pois, em geral, não há, nos contratos de prestação de serviço de telefonia celular, limitações ou obrigações semelhantes impostas à operadora, além da prestação do usuário ser bastante onerosa em relação aos benefícios que ele aufere com o contrato.
Por tudo isso, a cláusula encontra-se em desacordo com o sistema de proteção do consumidor.
Assim, abusiva configura-se a cláusula de fidelização de acordo com os incisos I, IV e XV do art. 51 do CDC.
3 CONCLUSÃO
O desenvolvimento do capitalismo e o conseqüente surgimento da globalização e das sociedades de massa fizeram com que a produção se desse em grande escala e o liberalismo, ao introduzir os princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da propriedade privada dos meios de produção, fez com que o indivíduo, pelo menos teoricamente, pudesse empreender livremente suas atividades produtivas no mercado, sem interferência do Estado, o que contribuiu para que o mercado se caracterizasse por uma altíssima competitividade.
Nesse ambiente surge a noção de poder econômico, o qual é entendido como o poder que os agentes econômicos têm de, ao atuar no mercado, conquistar a preferência dos consumidores e, assim, exercer maior influência no mercado, gerando aumento dos seus lucros. O poder econômico é instrumento natural de produção e circulação de riquezas na sociedade, é a finalidade própria da livre concorrência, é, portanto, um dado estrutural do livre mercado.
Todavia, diante da instabilidade e das desigualdades sociais geradas por esse mercado livre de regulamentação, o Estado passou a ter um papel mais intervencionista na economia, limitando a liberdade dos indivíduos a objetivos sociais.
É nesse sentido que os contratos passam de um espaço reservado e protegido pelo Direito, tendo em vista a livre e soberana manifestação de vontade das partes, para ser um instrumento mais social, orientado por princípios como os da boa-fé e da eqüidade ou justiça contratual e controlado por uma série de regras imperativas que muitas vezes impõem determinadas contratações ou impõem ou proíbem determinados conteúdos contratuais.
É nesse sentido, também, que a Constituição da República estabeleceu, no art. 170, o seu modelo econômico, baseado na livre iniciativa, na livre concorrência e na propriedade privada, portanto, na economia de mercado, mas estabeleceu também que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados princípios como os da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades sociais e regionais, dentre outros.
Conforme o art. 187 do novo Código Civil, que define o abuso de direito como exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes, o poder econômico exercido contrariamente à finalidade e a princípios da ordem econômica estabelecidos pela Constituição, ou seja, orientado apenas à consecução de interesses individuais, será considerado abusivo.
Seguindo essa orientação, a Constituição da República, em seu art. 170, §4º, prevê como abusivo o uso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros, já que práticas com tais efeitos põem em risco a própria competição, restringindo ou eliminando o direito de livre iniciativa e de livre concorrência dos outros agentes econômicos, assim como prejudicam o consumidor, que não terá à sua disposição diversidade de qualidade, quantidade e preço de produtos e serviços para satisfazer suas necessidades da melhor forma possível. Isso tudo contraria a finalidade e princípios da ordem econômica previstos no caput do art.170 da Constituição.
O referido § 4º é pormenorizado pela Lei 8.884/94, destinada à prevenção e repressão ao abuso do poder econômico, a qual denomina aquelas condutas como infrações da ordem econômica, prevendo, inclusive, penalidades ao infrator.
Seguindo essa orientação, ainda, a Lei 8.078/90, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, prevê um rol exemplificativo de cláusulas consideradas abusivas, no qual se encontra uma cláusula geral que prevê serem abusivas as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade, o que também contraria a finalidade e princípios da ordem econômica previstos constitucionalmente. Constatadas tais cláusulas, o CDC as considera nulas de pleno direito.
Para reaver o valor correspondente ao que deixou de ganhar em razão do desconto dado sobre o preço de aquisição do aparelho celular pelo usuário, a cláusula de fidelização apresenta-se como uma fórmula para eliminar todo e qualquer risco do negócio para a operadora de telefonia não sofrer prejuízo em razão do desconto. É o tipo de cláusula que, para melhor garantir a posição e a certeza de lucro ao fornecedor, transfere para o consumidor os riscos tipicamente profissionais. Para tanto, a cláusula estabelece prazo de permanência mínima e pagamento de multa por rescisão antecipada em qualquer hipótese.
Sob a ótica concorrencial, a cláusula, ao vincular o consumidor à utilização exclusiva dos serviços por determinado período de tempo, não sendo dado a ele o direito de rescindir o contrato dentro desse prazo, independente de qual seja a causa, sob pena de pagamento de multa, impedindo, por exemplo, que o usuário se desligue e mude para outra operadora que esteja prestando serviços de forma mais satisfatória, claramente cria barreiras à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento dos concorrentes, que terão dificuldade de crescer sua participação no mercado, por mais que invistam na conquista de novos usuários, o que claramente prejudica a livre concorrência, configurando, assim, infração da
ordem econômica, conforme art. 173, §4º, da Constituição da República e art. 21, V c/c art. 20, I, ambos da Lei 8.884/94.
Além disso, mais do que garantir o pagamento do preço integral do aparelho, não cobrado por ocasião da assinatura em razão do desconto, a cláusula estabelece uma forma de aumentar os ganhos da operadora que, de outra forma, talvez não fosse possível. Isso porque, embora os planos prevejam a cobrança de um valor mínimo mensal, os usuários sempre terminam excedendo esse valor, não somente cobrindo as perdas iniciais na venda do aparelho celular, resultantes do desconto, mas gerando lucro para a operadora, aumento de lucro esse que é arbitrário, pois obtido por práticas anticoncorrenciais, não explicável por nenhuma outra razão econômica, como investimentos, política de marketing, desenvolvimento tecnológico, oferecimento de promoções e brindes, etc., mas sim por uma imposição de exclusividade que, muitas vezes, vai contra a vontade do consumidor que, ao não ter outra opção, acaba celebrando o contrato. Configurada, portanto, infração à ordem econômica, conforme art. 173, §4º, da Constituição da República e art. 20, III, da Lei 8.884/94.
Sob a ótica do Direito do Consumidor, a cláusula mostra-se abusiva face ao direito de escolha do consumidor e à cláusula penal.
Apesar de o oferecimento do desconto na compra do aparelho celular trazer vantagens ao consumidor por tornar a aquisição do aparelho mais acessível, o direito de liberdade de escolha do consumidor é ferido, pois mesmo se o usuário estiver insatisfeito com os serviços da sua operadora atual e outro concorrente estiver oferecendo melhores condições de prestação do serviço, ele ficará inibido a mudar de operadora em razão do pagamento da multa. Além disso, exigir a multa em qualquer hipótese de desligamento antecipado contraria o art. 408 do novo
Código Civil, que exige culpa no inadimplemento para que a cláusula penal possa ser exigida.
Essa supressão do direito de liberdade de escolha do consumidor e do seu direito de resolver o contrato sem qualquer obrigatoriedade de pagamento de multa, no caso de não haver culpa sua pelo inadimplemento, torna a cláusula abusiva, segundo o art. 51, I, do Código de Defesa do Consumidor, que prevê que são abusivas as cláusulas que impliquem em renúncia ou disposição de direitos.
Além disso, é importante salientar que essa multa, em geral, é excessiva e desproporcional ao número de meses faltantes para o término do prazo de carência, o que, juntamente com a supressão dos direitos acima citados, coloca o usuário em desvantagem exagerada e contraria os princípios da boa-fé e da eqüidade, uma vez que quebra o padrão de honestidade e lealdade que se espera da operadora e gera desequilíbrio contratual, pois, em geral, não há, nos contratos de prestação de serviço de telefonia celular, limitações ou obrigações semelhantes impostas à operadora, além da prestação do usuário ser bastante onerosa em relação aos benefícios que ele recebe com o contrato.
Tudo isso se encontra em desacordo com o sistema de proteção do consumidor.
Dessa forma, abusiva configura-se a cláusula de fidelização de acordo com o art. 51, I, IV e XV, do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, resta claramente demonstrado que a cláusula de fidelização dos contratos de prestação de serviço de telefonia celular constitui abuso de direito, mais especificamente, abuso de poder econômico por parte da operadora, já que se enquadra em hipóteses de abuso previstas pela Lei 8.884/94 e pela Lei 8.078/90. Mas, acima do simples argumento de que ela se enquadra em casos tipificados em
lei, a cláusula é abusiva porque constitui extrapolação das finalidades sociais dos direito de livre concorrência e de liberdade contratual das operadoras, pois fere a finalidade da ordem econômica, qual seja, o asseguramento de uma existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social, bem como os princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor, previstos no art. 170 da Constituição da República, não havendo que se cogitar da existência de dano efetivo e de culpa por parte da operadora, já que o abuso é aferido objetivamente, ou seja, tão só pelos efeitos anti-sociais gerados pela conduta.
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