AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ____ VARA DE FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, inscrito no CNPJ
sob o nº 28.305.963.0001-40, por intermédio da 6ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Cidadania da Capital, com sede na Xx. Xxxx Xxxxxxx, 00, 0x xxxxx, Xxxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, local onde receberá intimações, no uso de suas atribuições constitucionais e legais previstas no art. 129, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil; art. 173, inciso III da Constituição do Estado do Rio de Janeiro; art. 25, inciso IV da Lei nº 8.625/93; art. 34, inciso VI, alínea “a” da Lei Complementar nº 106/03 e art. 5º da Lei 7347/85, vem propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR
ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
em face de:
1. XXXXXXX XX XXXXX XXXX, brasileiro, prefeito do município do Rio de Janeiro, inscrito no CPF sob o nº 000.000.000-00, com residência profissional na Xxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx, xx 000, Xxxxxx Xxxx, Xxx xx Xxxxxxx.
2. XXXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX, brasileiro, Secretário Chefe da Casa Civil e à época dos fatos Subsecretário de Gestão, inscrito no CPF sob o nº 000.000.000-00, com residência profissional na Xxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx, xx 000, Xxxxxx Xxxx, Xxx xx Xxxxxxx.
3. XXXXX XXXX XXXXXXXX, brasileiro, empresário, inscrito no CPF sob o nº 000.000.000-00, com endereço na Xxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, 00, Xxxxxxx xxx Xxxxxxxxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx.
4. COMERJ – Conselho dos Ministros Evangélicos do Estado do Rio de Janeiro, associação de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 03.002.154/0001-00, com endereço na xxx Xxxxxxx Xxxxxxx, 000, Xxxxx, Xxx xx Xxxxxxx.
5. MUNICIPIO DO RIO DE JANEIRO, pessoa jurídica de direito público interno com sede na Rua Xxxxxx Xxxxxxxxxx, n.º 455, Cidade Nova, nesta Cidade.
- I - DOS FATOS
A presente ação civil pública fundamenta-se em investigação levada a cabo no inquérito civil nº 2013.00340867, iniciado a partir de denúncia dirigida a Ouvidoria deste Ministério Público em que se informou que a Prefeitura do Rio de Janeiro pretendia financiar evento de cunho religioso supostamente organizado pelo Pastor XXXXX XXXXXXXX, tendo sido destinado para tanto, em versão ocorrida no ano anterior, a monta de R$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil reais).
Requereu-se, então, junto à Prefeitura do Rio de Janeiro cópia do processo administrativo pelo qual teria sido financiado o evento religioso denominado “Marcha para Jesus” que revelou as seguintes informações.
No dia 25/05/2013, realizou-se na cidade do Rio de Janeiro evento religioso de grandes proporções denominado “Marcha para Jesus” através de Convênio firmado entre a COMERJ – Conselho de Ministros do Estado do Rio de Janeiro e o Município do Rio de Janeiro1 para o qual se destinou a verba de R$ 1.600.000,00 (hum milhão e seiscentos mil reais). Para tanto, apresentou-se planilha orçamentária detalhada2, descrevendo de modo especificado a aplicação da verba objeto do convênio na aquisição de diversos bens e serviços para a realização
1 Convênio nº 03/2013, fls. 191/197 do Anexo I do IC
2 Fls. 104/106 do Anexo I
do evento, desde o pagamento de Buffet até o mobiliário do camarim dos artistas participantes e da “área VIP”.
Conforme se verá, tal contratação entre o poder público e a COMERJ, por ter como objeto subvenção de culto religioso, viola o artigo 19, inciso I, da Constituição Federal. Subsidiariamente, se demonstrará que caso não houvesse vedação expressa na Constituição à subvenção de atos religiosos, não seria o caso de se afastar a presença obrigatória de procedimento licitatório prévio. Assim, tal ato reveste-se de inconstitucionalidade e improbidade administrativa, conforme se demonstrará nos tópicos que se seguem.
-II-
Dos Fundamentos Jurídicos
II.1. Da violação ao artigo 19, inciso I, da Constituição Federal
Primeiramente, cabe trazer a baila os dispositivos da Constituição Federal implicados nesta demanda, in verbis:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Como se pode perceber da análise dos dois dispositivos constitucionais transcritos e, porque não dizer, também do preâmbulo da Constituição3, o Estado brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu. Trata-se, em verdade, de Estado laico.
A laicidade do Estado não significa inimizade com o exercício da fé, mas sim que o Estado adota uma postura neutra no campo religioso através da imparcialidade em assuntos religiosos sem apoiar ou discriminar nenhuma religião em detrimento de outra. Cuida-se de aplicação direta do princípio da isonomia.
Assim sendo, não é concebível dentro da ordem constitucional vigente que qualquer das esferas de governo atue positivamente a favor de uma entidade religiosa e não o faça de modo análogo com todos os demais grupos religiosos sob o risco de se criar um privilégio indesejado.
Para melhor compreensão acerca das condutas vedadas pelo constituinte, traz-se o magistério de Pontes de Xxxxxxx acerca dos significados dos vocábulos utilizados pelo texto constitucional, verbis:
“estabelecer cultos religiosos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou propaganda. Subvencionar está no sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens de entidade estatal para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material dos atos religiosos” 4 – grifo nosso.
Analisando a conduta do ente estatal na realização do convênio firmado com a COMERJ, verificam-se claramente atos de subvenção proibidos pela Constituição Federal. Senão,
3 “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” - grifo nosso.
4 XXXXXXX, Pontes de, apud, XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2000, p. 253-254.
veja-se tabela apresentada no processo administrativo de contratação em que se discriminam os bens e serviços remunerados com a verba disponibilizada no convênio:
PLANILHA ORÇAMENTÁRIA MARCHA PARA JESUS 2013 | |
ESTRUTURA DE PALCO | R$ 130.000,00 |
ESTRUTURA DE SONORIZAÇÃO | R$ 110.000,00 |
ESTRUTURA DE ILUMINAÇÃO | R$ 75.000,00 |
200 PAINEIS DE LED P6 | R$ 80.000,00 |
50 PAINEIS DE LED P20 | R$10.000,00 |
2 GERADORES DE 400KWA | R$ 20.000,00 |
1 GERADOR DE 360 KWA | R$ 8.000,00 |
2 GERADORES DE 100 KWA | R$ 12.000,00 |
96 SANITÁRIOS BÁSICOS | R$ 7.680,00 |
4 SANITÁRIOS QUÍMICOS | R$ 320,00 |
ESTRUTURA DE TENDAS | R$ 20.000,00 |
3 TRIOS ELÉTRICOS DE 24M | R$ 60.000,00 |
1 TRIO ELÉTRICO DE 22M | R$ 15.000,00 |
2 TRIOS ELÉTRICOS DE 19M | R$ 25.000,00 |
350 SEGURANÇAS | R$ 56.000,00 |
BUFFET | R$ 40.000,00 |
GRAVAÇÃO DE VÍDEO | R$ 96.000,00 |
32.800 CAMISETAS | R$ 246.000,00 |
298 ÔNIBUS – EMPRESA 1 | R$ 238.400,00 |
122 ÔNIBUS – EMPRESA 2 | R$ 97.600,00 |
10 VANS | R$ 8.000,00 |
AGENTES DE TRÂNSITO | R$ 16.200,00 |
CACHETS DE CANTORES E BANDA | R$ 160.000,00 |
AMBULÂNCIAS | R$ 8.000,00 |
CENÁRIO | R$ 40.000,00 |
20 TVS DE LCD | R$ 4.000,00 |
MOBILIÁRIO | R$ 8.800,00 |
EFETIOS ESPECIAIS – CHUVA DE PRATA | R$ 4.000,00 |
SINCROLITE | R$ 4.000,00 |
SALDO | R$ 1.600.000,00 |
Ora, a atividade por um todo foi custeada pelo dinheiro público repassado à COMERJ por meio do convênio firmado com o Município do Rio de Janeiro, cuja principal
finalidade era disseminar os valores e ideias próprios da doutrina evangélica. Resta clara a subvenção.
De outro giro, também é importante pontuar que o direito à liberdade de culto e de exercício da fé não se prende apenas à 1ª geração de direitos fundamentais, ou seja, concernente aos direitos a que o Estado deve limitar-se a se abster de exercer ingerências na esfera privada dos indivíduos.
A liberdade religiosa também apresenta aspecto de direito a uma prestação positiva do ente estatal. Os exemplos se espraiam por todo o texto constitucional, como a obrigação de prestação de assistência religiosa nas entidades militares de internação coletiva presente no artigo 5º, VII, da Lex mater. Contudo, há um limite a esta atuação positiva estatal que é a precisa situação trazida pelo artigo 19, inciso I.
No que toca a esta face prestacional do Estado em relação ao direito ao exercício da fé religiosa, expressa no artigo 19, o constituinte originário optou por não conferir eficácia plena ao dispositivo, exigindo a existência de lei autorizativa e conformativa da ideia de colaboração de interesse público.
Portanto, inexistindo lei que discipline a participação do Estado na realização de cultos religiosos, subvenções para a prática religiosa ou qualquer relação de aliança ou dependência com entidade religiosa, não pode o mesmo realizar tais atos por expresso impedimento constitucional.
Ocorre que não há lei vigente neste sentido que permita ao ente estatal, como no caso em questão, promover evento com fins religiosos como a “Marcha para Jesus”.
Corroborando e exemplificando tudo o que se afirma, traz-se a baila decisão do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, em tomada de contas ex officio, que julgou
irregulares as despesas custeadas com recursos públicos do mesmo evento – “Marcha para Jesus”
- realizado no Município de Teresópolis5. Eis trecho da decisão, verbis:
“I – Pela IRREGULARIDADE DAS CONTAS da presente Tomada de Contas de responsabilidade do Sr. Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, ex- prefeito do Município de Teresópolis, com fucro na alínea “b”, inciso “iii”, do art. 20, c/c o art. 23 da Lei Complementar Estadual nº 63, de 01/08/1990, o CONDENANDO EM DÉBITO, para que no prazo de 30 (trinta) dias recolha aos cofres municipais, com recursos próprios, o débito que lhe foi imputado no presente processo, equivalente a 59.024,25 UFIR- RJ, correspondente ao pagamento de despesas reputadas por ilegítimas e inconstitucionais, vez que direcionadas à realização de evento religioso, em afronta ao disposto no inciso I do artigo 19 da Constituição Federal, conforme apurado na presente Tomada de Xxxxxx, comprovando em 10 (dez) dias o seu recolhimento perante este Tribunal, autorizando-se desde já a COBRANÇA EXECUTIVA no caso de não-recolhimento, nos termos da Deliberação TCE nº 166/92”
Cita-se também recente decisão da lavra do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em que se manteve decisão de 1º grau que havia condenado ex-prefeito do Município do Rio de Janeiro por ato de improbidade pública semelhante ao que se ataca nesta inicial, ou seja, a subvenção de entidade religiosa por ter construído igreja com recursos públicos, a saber:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONSTRUÇÃO DE TEMPLO RELIGIOSO. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. IGREJA DE SÃO JORGE. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 19, INCISO I, DA CRFB. SUBVENÇÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.
IRRESIGNAÇÃO DOS RÉUS. Dois réus que interpuseram apelações na pendência do julgamento dos embargos de declaração contra a sentença. Necessidade de ratificação, consoante o disposto na Súmula nº 418 do C. STJ, ressalvado o entendimento pessoal desta Relatoria, que restou vencido. Não conhecimento dos apelos da MITRA e do STUDIO G. Preliminar de ilegitimidade passiva da MITRA ARQUIEPISCOPAL. Conhecimento de ofício. Pedido do autor neste sentido. Terreno que não é da propriedade da ré. Templo que foi entregue à Irmandade de São Jorge. Mero exercício de atividades eclesiásticas, sem ter ciência acerca da origem do bem. Acolhimento da preliminar, vencida a i. Des. Revisora. Conhecido o agravo retido interposto por um dos réus, pois reiterado no apelo. Defesa prévia. Emenda da inicial. Possibilidade. Rejeição do agravo
5 Proc. TCE-RJ nº 224.793-2/11, fls 84/86 do IC
retido. Preliminares. Aplicação da Teoria da Asserção. Pertinência subjetiva, conforme narrativa exposta na exordial. Questões que se confundem com o mérito. Preclusa a decisão que admitiu a inicial. RIO URBE. Personalidade jurídica própria. Celebração do contrato. Pleito de anulação. Aplicabilidade da Lei nº 8.429/92 aos agentes políticos. Jurisprudência consolidada nas Cortes Superiores. Não se trata de controle de constitucionalidade, mas apenas análise da conduta dos réus. Nulidade da sentença de fls. 982/983. Magistrado de 1º Grau, após o término do seu ofício judicante, proferiu nova sentença, alterando o dispositivo. Publicação da sentença que se consuma com a entrega da mesma subscrita pelo Juiz ao escrivão. Inexistência de erro material. Omissão. Ausência de litisconsórcio passivo necessário com todos os fieis que frequentam a igreja. No mérito, cinge-se a controvérsia em verificar se a construção da Igreja de São Jorge, no bairro de Santa Cruz, configura ato de improbidade administrativa, a ensejar a anulação do contrato, bem como a condenação dos réus - excetuando-se a RIO URBE - a restituir ao erário o valor gasto, além das demais sanções previstas na Lei nº 8.429/92. Consoante entendimento consolidado no C. STJ, para a configuração de ato de improbidade é imprescindível a demonstração do elemento subjetivo. Alegada violação ao artigo 19, I, da CRFB. No caso, entendeu a d. maioria que a construção da Igreja configurou ato de improbidade administrativa, restando vencida esta Relatoria. Neste ponto, conforme o Voto Condutor da e. Des. XXXXX XXXXXX DO PASSO, o Brasil é um Estado laico, não adotando qualquer religião oficial, no qual razões de ordem religiosa não podem afetar os rumos políticos e jurídicos do Poder Público, entendendo que houve subvenção na hipótese, diante da concessão de auxílio pecuniário pelo Poder Público, sendo esta a finalidade do contrato objeto da lide. Entendendo-se pela existência de ato de improbidade administrativa, o Chefe do Poder Executivo à época deve responder pela construção da igreja, vislumbrando-se em relação a este réu o elemento subjetivo, consistente na consciência e voluntariedade quanto à realização do ato impugnado. Agente político e, portanto, titular do poder discricionário. Decisão de determinar a realização da obra impugnada, autorizando às despesas relativas ao ato objeto da presente ação. Assessor. Parecer. Ausência de dolo ou má-fé. Demais réus que não tiveram qualquer participação ao ato impugnado, tampouco figurando como beneficiários. NÃO CONHECIDOS OS RECURSOS DA MITRA E DO STUDIO G. ACOLHIDA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DA MITRA, DE OFÍCIO. PROVIMENTO DOS RECURSOS INTERPOSTOS POR XXXXX XXXXXXX XXXXXX, XXXXXXXX XX XXXXXXXX XXXXX, RIO URBE E XXXXXXXX XXXXX XXXX. DESPROVIMENTO DO APELO DE XXXXX X. MAIA”.
(proc. 0165281-88.2009.8.19.0001. Rel. Des. Xxxxx Xxxxxxx. 21ª Câmara
Cível do TJ/RJ, julg. 27/05/2014) – grifo nosso.
Entretanto, como se pode verificar ao longo do processo de contratação, tentam os contratantes, a fim de justificar juridicamente o ato que será firmado ao final do procedimento, descaracterizar o notório teor religioso do evento, classificando-o como “cultural”. Dessa forma, acabam por criar subterfúgio legal para a realização da marcha, pois erigem o artigo 215 da Constituição como base legal para a contratação realizada. Eis o dispositivo:
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Ao se utilizar de tal subterfúgio, acabam os contratantes por fazer tábula rasa da proibição erigida pelo constituinte no artigo 19 da Constituição muito em razão da natureza abrangente e plurissignificativa do conceito de cultura. De fato, cabe pontuar que é de saber incontestável que a religião constitui uma parcela integrante do conceito de cultura.
Contudo, partindo dessa premissa e dos princípios da unidade da Constituição e da exegese que lhe dê maior efetividade, não soa razoável que o constituinte tenha previsto os dois dispositivos no texto constitucional de modo que não se pudessem conciliar as duas normas. Logo, mesmo que o Estado tenha o dever de apoiar e incentivar a difusão das manifestações culturais, tal imperativo não constitui azo para que o mesmo subvencione qualquer entidade religiosa, seja na construção de templos, seja na promoção de festas ou eventos.
Tal raciocínio também é aquele que melhor se coaduna com o sobreprincípio da isonomia. Permitir que o Estado concorresse financeiramente para a realização de eventos religiosos em virtude de sua natureza cultural acarretaria, inexoravelmente, à conclusão de que sua atuação positiva teria que se direcionar para toda e qualquer manifestação religiosa existente no seio da comunidade. Ocorre que a prática e a teoria inviabilizam a máxima extraível do conceito material de isonomia.
No que toca ao plano da teoria, cabe ao Estado garantir o livre exercício de todos os credos, atuando como parceiro das entidades religiosas, mas não como provedor de suas atividades. Mesmo que esta postura acabe por resultar em proveito econômico para a sociedade ou em geração de empregos, conforme se narrou na justificativa para a assinatura do convênio em parecer da Subsecretaria de Assuntos Jurídicos, tais posicionamentos não devem ser levados em conta por este órgão jurisdicional em razão de norma expressa que os proíbe.
Não cabe ao poder judiciário exercer juízo de valor acerca de questões eminentemente políticas e governamentais, sendo o seu campo próprio a legalidade dos atos e a ponderação de normas.
É exatamente o que se reclama da atuação do órgão judicante, uma vez que não se verifica a edição de lei regulamentando a colaboração de interesse público com entidades religiosas. A não concretização da reserva legal erigida pelo constituinte tem o condão de afastar qualquer discussão que possa vir a ser travada acerca dos benefícios que a realização de evento desta monta possa vir a trazer, uma vez que a confluência do interesse público com o interesse privado presente na propagação de uma doutrina foi a priori repelida.
Já no que tange à prática, mostra-se financeiramente inviável que o Estado custeie a realização de atos para todas as diversas doutrinas religiosas existentes no seio da sociedade brasileira. Neste sentido, a postura que mais se coaduna com o espírito da Constituição é que o Estado se abstenha de agir positivamente em benefício de uma doutrina, devendo agir positivamente apenas no que concerne à garantia de que iniciativas dos cidadãos não sejam inibidas.
II.2. Da ausência de prévia licitação
Primeiramente, é mister destacar que a presença deste tópico na argumentação erigida nesta exordial se dá por amor ao debate com o fito de se demonstrar que ainda que não fosse inconstitucional a prática de subvencionar evento de caráter religioso, haveria o
cometimento de ato de improbidade por violação à obrigatoriedade de realização de procedimento licitatório prévio à contratação realizada.
Contudo, de acordo com o processo administrativo que culminou na celebração de convênio entre o Município do Rio de Janeiro e a COMERJ, tal contratação não se sujeitaria à obrigação constitucional do procedimento licitatório prévio, uma vez que se encaixaria na previsão do caput do artigo 25 da lei 8.666/93, ou seja, tratar-se-ia de hipótese de inexigibilidade de licitação.
Nesse sentido, manifesta-se parecer presente nos autos do processo administrativo: “É cabível destacar que, se trata de Projeto único e exclusivo elaborado e apresentado pelo COMERJ, o que torna clara a incidência do caput do artigo 25, da lei 8.666/93, o que caracteriza como inviável qualquer tipo de licitação” 6.
Ocorre que, posteriormente, em manifestação da Subsecretaria de Assuntos Jurídicos, a posição exarada é completamente oposta àquela aludida, a saber:
“Vale destacar que o ajuste em comento trata-se de convênio com fundamento jurídico no art. 116 da lei 8.666/93. O uso do art. 25, caput, da mesma Lei nas autorizações orçamentárias só se justifica em razão da não aceitação do sistema FINCON para a despesa com amparo somente no art. 116, logo, a base legal que deve constar na minuta de convênio, fls. 61/72, refere-se somente ao artigo 116, em nada modificando a natureza do convênio” 7.
Primeiramente, é importante pontuar que o fato de se ter celebrado convênio ao invés de contrato, como havia sido feito na edição de 2012 do evento, não descaracteriza a obrigação de se realizar procedimento licitatório prévio, uma vez que o convênio cuida de espécie do gênero contrato. Assim, a priori, não se pode rechaçar a realização de licitação com base neste argumento, sendo, inclusive, tal raciocínio extraível do seguinte dispositivo da lei 8.666/93, verbis:
6 Fls. 108/109 do Anexo I do IC
7 Fl. 146 do Anexo I do IC
Art. 116. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração.
Assim, também se posiciona a jurisprudência:
“ADMINISTRATIVO. CONVÊNIO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. AUSÊNCIA DE PRÉVIA LICITAÇÃO NA EXECUÇÃO DO CONVÊNIO. REJEIÇÃO DAS CONTAS. INSCRIÇÃO CADASTROS INADIMPLENTES.
I Pretendeu a Parte Autora, com o ajuizamento da presente demanda, em síntese, o cancelamento de sua inscrição no CADIN e SIAFI em razão da rejeição das contas por ela prestadas referentes ao Convênio firmado com o Ministério do Turismo Convênio MTUR 044/2005. II Assevera que firmou o referido Convênio com o
Ministério do Turismo para a realização de programa denominado Programa de Regionalização do Turismo Roteiros do Brasil. Em seguida, para a concretização do mesmo, realizou novo convênio com o Sindicato dos Hotéis, restaurantes, Bares e similares do Município do Rio de Janeiro sem prévia licitação, fato este que acabou por redundar na rejeição da prestação de contas e posterior inscrição no SIAFI e CADIN. III Dispõe o art. 116 da Lei n.º 8.666/93 que se aplicam as suas disposições aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. Outrossim, é cediço que a Lei de Licitações tem observância obrigatória na Administração Indireta, consoante previsão, inclusive, de seu art. 1º, parágrafo único. IV Ademais, o próprio convênio firmado entre as Partes MTUR 044/2005 é expresso ao demonstrar a necessidade de prévio procedimento licitatório quando da execução de despesas na execução do mesmo (Cláusula 12ª, alínea g). V Destarte, em tendo sido verificada burla à legislação de regência, bem como às próprias normas expressas do Convênio celebrado, não se configura abusiva ou arbitrária a inscrição da Autora em cadastros de inadimplência. VI Apelação da Parte Autora improvida.
(AC 419288 RJ 2007.51.01.022214-9, Des. Rel. Reis Friede, 7ª Turma
Especializada. TRF 2ª Região. Julg. em 01/04/2009)
Firmada essa premissa, cabe analisar a hipótese de inexigibilidade de licitação arguida no processo administrativo.
Como se verifica, a inexigibilidade de licitação se sustenta no aspecto da singularidade e exclusividade do projeto apresentado ao poder municipal. Contudo, não é essa a
conclusão que se chega após uma análise dos documentos acostados ao inquérito que acompanha esta demanda.
Tratar-se-ia o objeto do convênio celebrado de evento denominado “Marcha para Jesus” de realização internacional e interdenominacional (realizado por diversas denominações evangélicas) que aconteceria em milhares de cidades do mundo, conforme relata parecer da Subsecretaria de Assuntos Jurídicos8.
Por outro lado, haveria uma marca denominada “Marcha para Jesus”, registrada no INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial, pertencente à EDITORA CENTRAL GOSPEL LTDA., representada por XXXXX XXXXXXXX, que também é presidente da COMERJ, cujo uso seria licenciado à mesma COMERJ de modo não exclusivo, nos termos do contrato de uso acostado aos autos do anexo que acompanha o Inquérito Civil9.
Percebe-se, portanto, a existência de incongruência entre a tese defendida no parecer jurídico que embasa a contratação da COMERJ e a realidade veiculada pelos documentos acostados aos autos de inquérito.
Como se falar em exclusividade e singularidade no evento realizado se a detentora do domínio da marca possui a faculdade contratual de poder licenciar o seu uso a terceiros que não o convenente? Não soa coerente...
Além de não haver qualquer causa que justifique a inexigibilidade de licitação quanto à natureza do evento, a obrigatoriedade da sua realização se impõe ante a relação de itens descritos na planilha orçamentária que instruiu o processo de contratação, os quais não possuem natureza singular ou única, deveria a prestação de serviços e o fornecimento de bens para tal evento, caso fossem permitidos pela Constituição Federal, serem precedidos de certame próprio entre eventuais interessados que se habilitassem para tanto.
8 Fls. 143/148 do Anexo I do IC
9 Fls. 75/78 do Anexo I do IC
Se está falando de itens tais como aquisição de painéis de LED (R$ 80.000,00), Buffet completo para 1.000 pessoas (cerca de R$ 40.000,00), aquisição de aparelhos de televisão de LCD (R$ 4.000,00), mobiliário (R$ 8.000,00), chuva de prata (R$ 4.000,00) e gravação de vídeo (R$ 96.000,00).
A justificativa apresentada pela COMERJ para a inclusão desses itens não elidem de modo algum o que aqui se questiona, apenas aborda a relevância dos mesmos para a realização do evento sem comentar a questão da necessidade de licitação ou embasar a dispensa do procedimento. Eis a justificativa apresentada:
“Tomando como parâmetro as edições dos anos anteriores, é esperado o comparecimento de 200 mil pessoas.
A estrutura de LED montada no palco, esse ano, assim como nos anos anteriores, é necessária para a visibilidade do grande público, além da exposição da logomarca do patrocinador e dos apoiadores.
A chuva de prata e o sincrolite, também utilizada nas edições anteriores, ajudam a compor um espetáculo cultural de tamanha magnitude.
O Buffet, as TVs de LCD e o Mobiliário são destinados aos camarins dos artistas e à área VIP para autoridades, equipe dos artistas e equipe do evento – montado no Hall da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, da mesma maneira que foi feita nas edições anteriores.
Os lanches que constam no item do Buffet, são destinados a equipe de apoio e organização do evento e da Prefeitura – segurança pública, organização de trânsito, CET RIO, GM, Bombeiros, equipe da SEOP e equipe médica.
A gravação de vídeo, no valor de R$ 96.000,00, não utilizará a estrutura aérea, com a locação do helicóptero. A aeronave foi contratada na edição anterior, mas foi devidamente substituída por uma maior estrutura de filmagem e edição”10
Há aqui um paradoxo. A juntada de planilha de preços colhidas de outras instituição demonstram que a hipótese não poderia ser de contratação direta. Por outro lado, a pesquisa de preço foi realizada junto a duas instituições civis sem finalidade lucrativa, quais
10 Fl. 170 do Anexo I do IC
sejam, a SOLAZER – O CLUBE DOS EXCEPCIONAIS11 e a MIRAGEM CLUB12 e não demonstram a competitividade existente no mercado, não podendo, portanto, servir de parâmetro para justificar a contratação sem a realização de licitação prévia. Cabe a ressalva que esta argumentação está apenas no plano da demonstração das irregularidades que vão além da violação direta ao artigo da Constituição Federal que proíbe ao poder público subvencionar eventos religiosos.
Tratam-se, as aludidas instituições, de associações privadas que prestam serviços de assistência e defesa dos direitos sociais. Como podem as mesmas fornecer planilhas orçamentárias, a título de pesquisa de preço no mercado, se não possuem qualquer atividade sequer indiretamente ligada aos itens pesquisados?
Curiosamente, as planilhas apresentadas não possuem nenhum item que possua preço inferior aos fornecidos pela planilha da COMERJ...
Portanto, fica nítido que os itens relacionados pela COMERJ para justificar a realização do convênio com o Município do Rio de Janeiro com o repasse de R$ 1.600.000,00 não poderia ter se dado sem prévia licitação, desde que se afastasse hipoteticamente o prévio impedimento constitucional à subvenção de eventos religiosos conforme abordado no tópico anterior.
Por outro lado, trata-se de evento internacional não restrito a um segmento religioso apenas, mas comum a diversos segmentos de vertente evangélica, havendo inclusive lei federal que disciplina a sua data de comemoração – lei 12.025/09. Não há como se restringir o exercício da fé, tratando-a como um bem exposto no mercado econômico e pertencente a um único fornecedor, em virtude da incompatibilidade lógica desse raciocínio com o direito constitucional à livre manifestação religiosa.
11 Fls. 163/165 do Anexo I do IC
12 Fls. 166/168 do Anexo I do IC
Dessa forma, embora o uso da marca e seus sinais característicos possam ser restringidos e disponibilizados pelo licenciante, o direito à realização do evento religioso não integra a sua esfera patrimonial. Pauta-se o evento tanto no direito fundamental à livre manifestação religiosa como no direito de reunião, os quais não podem ser apropriados e serem objeto de trânsito jurídico.
Portanto, caso não houvesse a proibição expressa no texto constitucional à subvenção, haveria tanto violação ao disposto na Constituição, como ao disposto na lei 8.666/93 em virtude da não realização de procedimento licitatório prévio à contratação realizada pelo Poder Público para realização de evento que envolve a realização de um serviço, a saber, a realização de evento religioso e cultural.
Em corroboração ao que se afirma, mostra-se interessante voto condutor de decisão proferida no Tribunal de Justiça do Distrito Federal em que se julgou inconstitucional lei distrital que previa a subvenção de eventos religiosos, cujos dispositivos traçavam minúcias que em muito se assemelham ao do caso em questão, obrigando, por exemplo, o Estado a arcar com fornecimento de acomodação e refeição, a saber:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL N.º 4.876/12. CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO. SUBVENÇÃO A CULTOS RELIGIOSOS. DISPENSA DE LICITAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
O fato de as matérias impugnadas estarem previstas, também, na Constituição Federal não obsta o controle abstrato de constitucionalidade por suposta ofensa de Lei Distrital às normas correspondentes da Lei Orgânica do Distrito Federal.
Deve ser declarada inconstitucional Lei Distrital que viola frontalmente a Lei Orgânica do Distrito Federal, ao ampliar o conceito de interesse público, bem assim ao possibilitar a concessão de subvenção a cultos religiosos ou igrejas pelo Poder Público, sem prévio procedimento licitatório.
Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
Voto da Relatora:
(...) De uma análise detida das normas transcritas, pode-se observar que a lei impugnada viola frontalmente a Lei Orgânica do Distrito Federal, ao
ampliar o conceito de interesse público, bem assim ao possibilitar, de forma velada, a concessão de subvenção a cultos religiosos ou igrejas pelo Poder Público, sem prévio procedimento licitatório.
Com efeito, diante da autorização ao Poder Público, perante instituições religiosas, de proporcionar infraestrutura e equipamentos, dar suporte para a prestação de serviços artísticos e culturais, e fornecer acomodação e refeição, mediante fornecimento de bens ou prestação de serviços, diretamente ou por empresa contratada, ou por repasse, mediante convênio público, de recursos públicos (arts. 2º e 3º), resta patente a autorização legal de subvenção, com a possibilidade de dispensa de licitação, em total afronta a vedação expressa constante na LODF, em seus arts. 18, 19 e 26, já que não impõe a licitação prévia, como requisito obrigatório.
Dispõe o art. 17, § 1º, da LODF que “O Distrito Federal, no exercício de sua competência suplementar, observará as normas gerais estabelecidas pela União”. Lado outro, “Compete privativamente à União legislar sobre: organização judiciária, do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e da Defensoria Pública dos Territórios, bem como organização administrativa destes”, nos termos do art. 22, XXVII, da Constituição Federal.
Nesse passo, mostra-se claramente inconstitucional norma que possibilita a ampliação dos casos de dispensa de licitação para fornecimento de bens ou prestação de serviços públicos, previstos na norma geral, cuja observância é obrigatória, de acordo com a LODF.
Acerca do interesse público, destaco, por oportuno, trecho da manifestação elaborada pela d. Procuradora de Justiça:
“No caso dos autos, é patente que a norma sob análise está em desacordo com as disposições da Lei Orgânica distrital sobre o tema, estabelecidas nos seus artigos 00, § 0x, 00, xxxxxx X, x 00, xxxxx 00 e28, pois amplia novamente o conceito de ‘colaboração de interesse público’, permitindo que simples ‘eventos’ religiosos possam vir a ser custeados pelo Poder Público.
Sabe-se que a baliza fundamental para concessão de benefícios da espécie, adotada pela Lei Orgânica, é o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Em razão desse princípio, o Estado não pode conceder benefícios a entes privados, ainda que não possuam fins lucrativos, graciosamente, por mera liberalidade. Esses benefícios devem objetivar, sempre, uma contraprestação de interesse público. Desta forma, o interesse público deve estar assegurado em garantias legais e contratuais oferecidas pelo beneficiário.
É que, para a caracterização do interesse público também é necessário que exista equivalência entre benefícios concedidos e a contraprestação oferecida pelo beneficiário, o que se evidencia pelos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da economicidade.
Assim, o enquadramento artificioso de meros ‘eventos’, religiosos
como eventos artísticos ou culturais, para fins de colaboração de
interesse público, feito pelos dispositivos impugnados para fins de repasse de recursos públicos, contraria à toda evidência os objetivos do legislador.”
Ante o exposto, julgo procedente o pedido deduzido na presente ação direta para declarar, com efeito ex tunc e eficácia erga omnes, a inconstitucionalidade dos artigos 2º, incisos II, III e IV, 3º, 4º, parágrafo único, 8º, 9º, 10 e 12 da Lei Distrital n.º 4.876, de 09 de julho de 2012.
(ADI 2012 00 2 017245-5, rel: Xxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, Conselho Especial do TJ/DF, publ. em 19/08/2013) – grifo nosso.
II.3. Da Violação aos Princípios da Administração Pública
Os fatos narrados acima representam inegável violação aos princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, culminando na caracterização de improbidade administrativa nos termos do art. 37, § 4º CRFB/1988.
O princípio da legalidade, princípio mais basilar do Estado Democrático de Direito, foi patentemente violado, pois a contratação encetada entre o Município do Rio de Janeiro e a COMERJ viola frontalmente a obrigação de base constitucional e infralegal a realizar prévio procedimento licitatório ante a realização de compra de bens e serviços, além de promover a subvenção de evento religioso que é terminantemente vedado no ordenamento jurídico nacional, exceto nos casos expressos em lei que disponha sobre a colaboração de interesse público, a qual ainda não sobreveio.
Já o princípio da moralidade constitui pressuposto de validade de todo e qualquer ato administrativo, devendo sua preservação ser perseguida a todo momento, sob o risco de ruína da organização estatal democrática. A respeito do alcance da moralidade administrativa, e citando a lição de Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx assinala-se que:
“A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, artigo 37, caput). Não se trata – diz Xxxxxxx, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como ‘o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração’ (...). O certo é que a moralidade do ato administrativo, juntamente com sua legalidade e
finalidade, constituem pressupostos de validade sem os quais toda a atividade pública será ilegítima”.13
O exame da moralidade do ato, outrossim, contém um decisivo componente ético. O administrador não deve cingir-se apenas à legalidade ou ilegalidade, justiça ou injustiça e à conveniência e oportunidade do ato. Xxxxxx, também, ajustar a sua conduta aos parâmetros da moralidade.
E se o princípio da legalidade impõe ao administrador a submissão à lei, o princípio da moralidade exige que a ação administrativa tenha como motor o dever de exercer uma boa administração. Mais que obediência à fórmula legal, exige-se que a Administração observe “princípios que conduzam à valorização da dignidade humana, ao respeito à cidadania e à construção de uma sociedade justa e solidária”, no dizer de Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx.14
Na 10ª edição da obra de Xxxxxxx Xxxxxxx, “Précis de Droit Administratif”, o citado autor conceituou moralidade administrativa como sendo: “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração, implica saber distinguir não só o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente; mas também entre o honesto e o desonesto; há uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo,” e há a moral administrativa, que “é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo discricionário.”
Ao estatuir, expressamente, os princípios da legalidade e da moralidade, na Administração Pública, constata-se, a toda evidência, que a Carta Magna emprestou aos mesmos conceitos distintos.
Desde logo deve ser rechaçada a ultrapassada idéia de que a moral pertence à esfera íntima, enquanto o direito ao aspecto exterior. O princípio da moralidade encontra-se na
13 Direito Administrativo Brasileiro. 38ª edição. Xxxxxxxxx, São Paulo, 2012, p.88/89;
14 Princípio da Moralidade Administrativa e a Constituição Federal de 1988. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, Junho, Ano 81, Vol. 680, pp 34/46;
Lei Maior e, também, na Lei de Improbidade Administrativa. Cumpre, agora, aos operadores do direito, dar-lhe o verdadeiro significado e efetividade.
Vê-se, portanto que é dever do Ministério Público, por expresso mandamento constitucional e segundo imposição do artigo 25, inciso IV, letra “b” da Lei 8.625/93, velar fiel obediência às normas constantes do ordenamento jurídico e pela guarda do patrimônio público, buscando, por intermédio de ação civil pública, a declaração de nulidade dos atos lesivos ao património público e à moralidade administrativa.
Segundo entendimento de Xxxxx Xxxxxx Xx Xxxxxx, relacionar a moralidade com a intenção do agente significa colocar a questão em termos de legalidade e esvaziar, por conseguinte, o sentido dos dispositivos constitucionais. Para a autora, “a sua presença há de ser mais objetiva do que subjetiva”. E, ainda, “...a moral é identificável no seu objetivo ou conteúdo, ou seja, no efeito jurídico imediato que o ato produz e que, na realidade, expressa o meio de atuação pelo qual opta a Administração para atingir cada uma de suas finalidades”.
“(...) Não é preciso penetrar na intenção do agente, porque o próprio objetivo resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos.
(...) o constituinte deixou abertas as portas para o controle e, portanto, para a invalidação de determinados tipos de atos imorais”. (grifos aduzidos)
Estabelecidas tais premissas, conclui-se, por óbvio, que os atos inquinados na presente ação são, todos, violadores da moralidade administrativa, já que violam princípio basilar de laicidade do Estado brasileiro, presente desde a primeira Constituição republicana, além de dispensar de modo ilícito a realização de procedimento licitatório.
O princípio da impessoalidade também restou violado, pois é decorrência lógica da violação ao procedimento prévio obrigatório de licitação, já que a Administração deve dispensar o mesmo tratamento a todos os administrados que estejam na mesma situação jurídica, mesmo que não sejam, a priori, todos determinados, bastando que sejam determináveis.
Sobre os princípios da Administração Pública, merece destaque o art. 4º da LIA (os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos), onde resta elucidado que pratica ato de improbidade administrativa o agente público que transgride os princípios explicitados no art. 37 CRFB/1988, sujeitando-o às sanções previstas no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa.
Justifica-se a posição do legislador ao tipificar a violação aos princípios que regem a Administração Pública, na medida em que referidos princípios apresentam-se na condição de mandamentos normativos nucleares e superiores do sistema jurídico que orientam e direcionam a elaboração das regras jurídicas.
A doutrina, em especial Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, ressalta a sua importância basilar ao asseverar que:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.
Por fim, em se tratando das hipóteses de atos de improbidade que importam violação aos princípios da Administração Pública, acrescenta o art. 11, caput:
“Art. 11 - Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente (...).
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso
daquele previsto, na regra de competência.”
II.4. Do Prejuízo ao Erário
O art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa explicita os casos em que a conduta do agente, comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa, acarreta prejuízo ao erário.
A sistemática da Lei é permitir que nesses casos possa haver o ressarcimento ao erário, recompondo-se o status quo patrimonial, diminuído com o ato ímprobo de forma solidária. Não é por outra razão que o art. 12 da Lei determina o ressarcimento integral do dano e a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio do particular.
De fato o art. 10, caput, conceitua o prejuízo patrimonial, enquanto seus incisos indicam situações ilícitas em que a lesão é elementar e decorrente indissociável. A exposição fática desta exordial não deixa dúvida acerca da conduta lesiva ao erário praticada pelos réus. Eis o texto legal:
“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades definidas no art. 1º do mesmo diploma legal, e notadamente:
I – facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei;
II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;
VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente; (...)- grifo nosso
Como se pode observar, os incisos grifados, incisos II e VIII, caracterizam a conduta dos demandados, nos termos da narrativa e exposição teórica formulada ao longo desta peça.
II.5. Da conduta dos demandados
Quanto ao elemento subjetivo direcionado à realização dos atos ímprobos descritos nesta exordial, a consciência e voluntariedade para a realização do evento em face da flagrante inconstitucionalidade por caracterizar violação à laicidade presente no ordenamento jurídico brasileiro desde a primeira Constituição republicana demonstra, de modo cabal, a presença de requisito a ensejar a condenação que ora se pleiteia nesta demanda.
Nesse sentido, devem integrar o polo passivo desta demanda a COMERJ e SILAS LIMA MALAFAIA por força do artigo 3º da lei de improbidade administrativa. Eis o seu teor:
“Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta” – grifo nosso.
A COMERJ se beneficia do ato ímprobo ao celebrar convênio com a Administração Pública municipal a fim de que se subvencione evento religioso por ela organizado, ao passo que XXXXX XXXXXXXX, por ser, concomitantemente, presidente da aludida associação e representante legal da empresa que repassa de modo não exclusivo o direito de uso da marca “Marcha para Jesus” para a COMERJ, demonstrando notória violação à alegada inexigibilidade de licitação que fundamenta juridicamente a contratação levada a cabo, também acaba por se beneficiar e concorrer para o cometimento de ato ímprobo.
De outro giro, também devem compor a lide XXXXXXX XX XXXXX XXXX, prefeito do Município do Rio de Janeiro à época da contratação, e XXXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX, Subsecretário de Gestão, por serem os agentes públicos diretamente envolvidos na concretização do convênio.
Enquanto XXXXXXX XXXX deve ser responsabilizado por ser o representante legal do Município do Rio de Janeiro que autorizou a realização da despesa com o evento15, XXXXXXXXX XXXXXXXX deve ser responsabilizado por ter sido o representante legal do Município na assinatura do referido convênio16.
A conduta de ambos denota elemento subjetivo, consistente na consciência e voluntariedade quanto à realização do ato impugnado.
Já o MUNICIPIO deve figurar na lide por ser o órgão público cujo ato se reputa
nulo.
-III- Dos Pedidos
Ante o exposto, o Ministério Público requer a Vossa Excelência:
15 Fl. 190 do Anexo I do IC
16 Fls. 191/197 do Anexo I do IC
1) A notificação dos demandados para que se manifestem, na forma do art. 17, § 7º, da Lei n.º 8.429/92, com a redação dada pela Medida Provisória n.º 2225-45/01;
2) A intimação do Município do Rio de Janeiro, por seu representante legal, nos termos do art. 17, § 3.º, da Lei n.º 8.429/92, para integrar a lide, se desejar;
3) Em seguida, recebida a inicial, a citação dos Réus para, querendo, contestar a presente ação, que deverá seguir o rito ordinário, no prazo legal e sob pena de revelia e confissão;
4) A procedência do pedido para:
i. anular o CONVÊNIO nº 3/2013 posto que inconstitucional e ilegal;
ii. condenar os Réus à recomposição do dano ao patrimônio público;
iii. condenar os Réus nas sanções do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, dentre elas a suspensão dos direitos políticos e ao pagamento de multa a ser arbitrada pelo juízo;
5) Xxxxx as intimações do autor feitas por meio eletrônico ou pessoalmente, mediante entrega e vista dos autos, com os benefícios inerentes aos prazos processuais ministeriais.
6) A condenação dos Réus nos ônus da sucumbência, os quais deverão ser revertidos para o Fundo Especial do Ministério Público, criado pela Lei Estadual n° 2.819, de 07.11.97, e regulamentado pela Resolução GPGJ n° 801, de 19.03.98.
7) A dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, à vista do disposto nos artigo 18 da lei 7.347/1985 e do artigo 87 da lei 8.078/90.
Para a comprovação dos fatos aqui narrados, protesta-se, desde logo, pela produção de todas as provas em Direito admitidas e que se fizerem pertinentes, notadamente a testemunhal, a documental e pericial, além do depoimento pessoal dos Réus e bem assim a
juntada de documentos novos e tudo o mais que se fizer necessário à completa elucidação e demonstração cabal dos fatos articulados na presente petição inicial.
Diante dos mandamentos estabelecidos pela legislação processual, dá-se à causa o valor de R$ 1.600.000,00 (hum milhão e seiscentos mil reais).
Rio de Janeiro, 31 de julho de 2014.
GLÁUCIA XXXXX XX XXXXX XXXXXXX
Promotora de Justiça