TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO | CÍVEL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO | CÍVEL
Acórdão
Processo
942/14.6T2AVR.P1
Data do documento
13 de julho de 2021
Relator
Xxxxxx Xxxxxxx
DESCRITORES
Contrato de mútuo > Nulidade > Obrigação de restituição > Fiador
SUMÁRIO
I - Declarada a nulidade do contrato de mútuo, ficam os mutuários obrigados à restituição de “tudo o que tiver sido prestado”, nos termos do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.
II - A mesma obrigação não será extensiva aos fiadores, considerando que o conceito legal de “restituição” implica que a pessoa obrigada tenha efetivamente recebido, só podendo “restituir”, quem recebeu.
TEXTO INTEGRAL
Processo n.º 942/14.6T2AVR.P1
Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório[1]
Em 14.05.2014 B… intentou ação declarativa com processo comum no Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, contra: C…; D…, por si e na qualidade de herdeira da herança deixada por óbito de seu pai E…; F…, por si e na qualidade de herdeira da herança deixada por óbito de seu marido E…; G…, na qualidade de herdeira da herança deixada por óbito de seu pai E…; H…, na qualidade de herdeiro da herança deixada por óbito de seu pai E…; I…, na qualidade de herdeiro da herança deixada por óbito de seu pai E…; e J…, na qualidade de herdeiro da herança deixada por óbito de seu pai E…, pedindo a condenação dos réus, solidariamente, a restituírem ao autor a importância de €
49.879,79, acrescida de juros, à taxa acordada de 13% ao ano, contados desde 24/03/1997 e até efetivo e integral pagamento, cuja liquidação (dos juros) se relega para incidente de liquidação, ou, assim não se entendendo, no pagamento de juros, à taxa acordada de 13% ao ano, relativamente aos vencidos nos últimos 5 anos, nos termos do art. 310.º, alínea d), do C. Civil, ou, se outro for o entendimento do Tribunal, no pagamento de juros à taxa legal das operações civis dos últimos cinco anos até efetivo e integral pagamento.
Como fundamento da sua pretensão, alegou o autor em síntese: em março de 1997, os ora réus C… e D…, ao tempo casados, que se dedicavam à atividade comercial e industrial, sobretudo no ramo imobiliário, com quem o autor mantinha relações de amizade e boa vizinhança, disseram-lhe que estavam a atravessar algumas dificuldades económicas, que tinham falta de liquidez, pedindo-lhe que lhes fizesse um empréstimo de 10.000.000$00; tal empréstimo foi objeto de um acordo reduzido a escrito e do mesmo constituíram-se fiadores e principais pagadores E… (entretanto falecido) e sua esposa F… (ora ré); os réus C… e D… não cumpriram as cláusulas do acordo e nem estes nem os fiadores restituíram ao autor qualquer quantia do valor objeto do empréstimo; ao fiador E… sucederam a esposa F…, as filhas D… e G…, o filho H… e os netos I… e J…, filhos de K…, filho já falecido do fiador.
O réu C… foi citado editalmente, tendo o Ministério Público, na contestação que apresentou, impugnado todos os factos alegados e os documentos juntos.
A ré F…, na contestação, excecionou: a) a nulidade do contrato de mútuo, por não ter sido celebrado por escritura pública; b) a consequente nulidade da fiança por ser um contrato acessório; defendendo que beneficia da excussão prévia prevista no artigo 638.º do C. Civil e impugnando os factos alegados por apresentar já há vários anos dificuldades na memória a longo prazo.
Na contestação que apresentou, a ré G… excecionou: a) a sua ilegitimidade com o fundamento de que, não tendo o autor alegado sequer que a herança foi aceite, tem de considerar-se jacente, e deveria ter sido demandada a herança jacente; b) a nulidade dos contratos de mútuo e da fiança, por falta de forma legal - a escritura pública, no mais impugnando a genuinidade do “Contrato de Mútuo” de fls. 35/37.
A Herança Aberta por Xxxxx de E…, citada por ter sido introduzida como ré no formulário, e veio: a) defender que não deveria ter sido citada por não constar como ré na petição inicial; b) excecionar a nulidade do contrato de mútuo e da fiança
O autor, na resposta, mantém a versão apresentada na petição inicial.
Por despacho de fls. 239/242, perante as dúvidas que o formulário e o cabeçalho da petição inicial levantavam sobre os sujeitos passivos dos pedidos no respeitante à garantia prestada pelo (ora) falecido E… e levou à citação da herança por óbito deste, foi o autor convidado a esclarecer quem pretendia demandar e efetivamente demandava: a herança ou os herdeiros.
O autor, acedendo ao convite, veio apresentar o requerimento de fls. 247/250, no qual esclarece que nunca teve a intenção de demandar a herança aberta por óbito de E…, mas os sucessores deste: a viúva (também) nesta qualidade, os filhos sobrevivos – D…, G… e H… e os netos I… e J… filhos do filho pré- falecido K…, nesta qualidade e dentro das forças das suas heranças.
E de acordo com esta sua pretensão alterou o formulário e os pedidos.
O teor deste requerimento foi aceite, por despacho proferido a fls. 268/269, e, em resultado disso, decidiu-
se que o formulário e os pedidos passavam a ter o teor de fls. 248/249.
Convocada a audiência prévia para 6.09.2016, nela foi proferido despacho, no qual: foi fixada à ação o valor de € 49.879,79; foram considerados reunidos todos os pressupostos formais que permitem o conhecimento do mérito da ação; foi relegado para a sentença o conhecimento das exceções de nulidade dos contratos de mútuo e da fiança.
Por sentença proferida, a 07/07/2019, na ação de acompanhamento de maior nº 132/19.1T8ALB do Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, já transitada em julgado, foi aplicada à Ré F… a medida de acompanhamento de apresentação geral prevista no artigo 145.º, nº 3, alínea b), 1ª parte, do C. Civil, e nomeada L… como acompanhante da beneficiária.
Realizou-se a audiência de julgamento em 4.12.2020, após o que, em 4.03.2021, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Julgo, pelo exposto, a ação parcialmente procedente e, em resultado disso:
a) declaro nulo o contrato de mútuo entre o ora A. e os RR. C… e D…;
b) condeno os RR. C… e D… a restituírem ao A. a quantia de € 49.879,79, acrescida de juros de mora, à taxa legal para os juros civis, a partir da citação e até integral pagamento;
c) absolvo a Ré F…, na qualidade de fiadora, dos pedidos contra si formulados nestes autos;
d) absolvo os RR. G…, D…, G…, H…, I… e J…, na qualidade de herdeiros do fiador E…, dos pedidos contra os mesmos deduzidos nestes autos.
Custas que se fixam na proporção de 1/2 para o A. e 1/2 para os RR. C… e D….».
Não se conformou o autor, e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
1ª. Não se nega que a característica essencial da fiança reside na acessoriedade da obrigação assumida pelo fiador. Contudo, o alcance dessa acessoriedade difere consoante esteja em causa uma obrigação subsidiária ou solidária do fiador para com o credor.
2ª. Quando o fiador afasta o benefício da excussão prévia, colocando-se nas vestes de pagador principal, não pode valer-se da nulidade do contrato de mútuo (por ausência de forma escrita) para se imiscuir da obrigação de pagamento.
3ª. Os fiadores, no caso dos autos, nem sequer podem negar o conteúdo contratualizado, visto terem estado presentes aquando da assinatura do contrato, o terem assinado e lhes ter sido explicado o seu conteúdo e alcance
4ª. Configura um verdadeiro abuso de direito, na vertente de venire contra factum próprio, virem os fiadores invocar a nulidade da fiança por acessória ao contrato principal, quando os próprios participaram no contrato escrito celebrado; tomaram conhecimento do conteúdo do mesmo; optaram por afastar o regime regra da fiança, responsabilizando-se como principais pagadores, e assinaram-no de livre e consciente vontade.
5ª. Não é defensável que a acessoriedade da fiança tenha o mesmo alcance num contrato que siga o regime regra do artigo 638.º do Código Civil face a um no qual o fiador, intencionalmente, se desvia daquele regime, renunciando ao benefício da excussão prévia (artigo 640.º, al. a) do C.C).
6ª. Neste último caso, a consequência da nulidade deve ter os mesmos efeitos para devedor e fiador, ou
seja, ambos devem ficar obrigados à restituição de tudo o que tiver sido prestado (artigo 289.º, n.º 1 do C.C.).
7ª. A restituição da quantia mutuada visa colocar as partes na situação que seencontravam caso não tivesse sido celebrado o contrato. Contudo, em muitas situações esse efeito só é possível se credor mutuário e o fiador ficarem ambos obrigados a restituírem, já que, como ocorre no caso dos autos, o mutuário pode aproveitar-se da nulidade do mútuo para dissipar todo o seu património.
8ª. A celebração de negócios que vêm a ser declarados nulos revela-os existentes como eventos e, por isso, não está ao alcance da ordem jurídica tratar esses actos realizados como se estes não houvessem realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhes a produção dos efeitos jurídicos que lhes vão implicados.
9ª. Ainda que nulos, os contratos não deixaram, apesar de tudo, de produzir efeitos fácticos, tornando-se assim necessário, na decorrência desse vício inquinador, repor a situação fáctica de acordo com a situação jurídica (ineficácia originária desses negócios).
10ª. A decisão do tribunal “a quo”, ao absolver os fiadores, violou o disposto nos artigos 289.º, n.º 1; 334.º e 640.º, al. a), todos do Código Civil.
NESTES TERMOS, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, julgando a acção totalmente procedente, e condenando todos os RR (incluindo os fiadores), solidariamente, a restituírem ao Autor a quantia de €49.879,79, acrescida de juros de mora, à taxa legal para juros civis, a partir da citação até integral pagamento, Vªs. Exªs. farão, como sempre, a habitual
J U S T I Ç A!
A ré F… apresentou resposta às alegações de recurso, concluindo:
A. Alega o Recorrente que deve ser dado como provado que a consequência da nulidade de um contrato de mútuo deve ter os mesmos efeitos para devedor e fiador, não devendo a acessoriedade da fiança ter o mesmo alcance num contrato que siga o regime do artigo 638º CC e num em que o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia, tendo assim a Decisão do Tribunal a quo violado o disposto nos artigos 289º n.º 1, 334º e 640º al. a) do Código Civil, ao absolver, entre outros, a Ré.
B. Não pode a Recorrida concordar com tal posição.
C. O contrato em causa é nulo por vício de forma.
D. O mútuo foi realizado meramente por documento ou escrito particular.
E. Constam dos factos provados que foi condição do empréstimo ser reduzido a escrito e garantido por fiança (facto provado n.º 16); e na fundamentação da Decisão refere-se que “A Ré D… reconheceu (…) ter celebrado o contrato dos autos (…). E no seu depoimento de parte que prestou confessou que o ora A. lhe emprestou e ao seu ex-marido 10.000.000$00 a 24/03/1997 com entrega do cheque junto a fls. 353 dos autos. O contrato foi assinado no escritório da empresa que a ora Ré D… tinha na altura.(…)”.
F. Ora, o que ficou demonstrado nos autos foi que o Autor é que exigiu que a Ré e o seu marido fossem fiadores dos Réus D… e C…, tendo sido condição celebrar o contrato por escrito (nada se referindo quando a escritura pública) e com a ora Recorrida e o seu marido como fiadores.
G. Assim, a Ré D…a falou com o pai, explicou-lhe a situação – mas não lhe exibiu o contrato de mútuo.
H. No dia combinado, todos estavam presentes, mas a Ré não se recorda se leu o contrato aos fiadores apesar de se lembrar que lhes explicou qual o valor e o prazo combinado para o seu cumprimento.
I. Os fiadores não tiveram pleno conhecimento dos termos da fiança estipulada, dado que não lhes foi lido o contrato (não foi produzida prova), nem lhes foi entregue uma cópia. Apenas, na verdade, lhes foi explicado qual era o valor em causa e o prazo para os devedores cumprirem. Ora, quanto à renúncia do benefício da excussão prévia, tal especificidade não lhes foi explicada, apesar dos mesmos terem subscrito o contrato.
J. Sendo o contrato de mútuo nulo por vício de forma, será obrigatoriamente a fiança igualmente nula, pois, nos termos do disposto no artigo 628º n.º 1 do Código Civil, a fiança também teria de ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal – neste caso, por escritura pública – o que, já sabemos, não sucedeu.
K. Ademais, o artigo 824º do Código Civil é claro quando estipula que as obrigações nulas não são suscetíveis de fiança.
L. E o fiador pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as extintivas da obrigação que competiam ao devedor principal, nos termos do artigo 837º do mesmo dispositivo legal.
M. Assim, quando a Xxxxxxxxx defende que a fiança é, tal como o mútuo, nula, nada tendo, na qualidade de fiadora, a restituir, a sua atitude não configura um abuso de direito na vertente de venire contra factum próprio.
N. Estando assente que a fiança é uma obrigação acessória, havendo nulidade da obrigação principal, aquela também será nula, deixando de existir.
O. A restituição, no caso de um contrato nulo por vício de forma, visa colocar as partes na situação em que se encontravam no caso em que não se tivesse celebrado o contrato. Ora, os fiadores nada receberam.
P. Daí, se tivessem de entregar uma quantia igual à mutuada aos devedores, ficariam sem o seu dinheiro, os devedores ficariam com a quantia que receberam e não restituíram e o credor receberia uma quantia igual à que entregou mas não aos fiadores. Não se vislumbra como esta forma de “restituição” colocaria as partes na situação em que se encontravam caso não tivessem celebrado o contrato.
Q. Atendendo à prova produzida, sabemos que o Recorrente teve apoio jurídico na elaboração do contrato aqui em causa, não tendo ficado o mesmo a cargo dos devedores ou fiadores, não lhes podendo ser assacada qualquer culpa pelo vício de forma ocorrido.
R. A fiança tem como características principais a acessoriedade e a subsidiariedade, sendo que a acessoriedade significa que a obrigação do fiador se encontra na dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor, ficando a fiança subordinada a acompanhar a obrigação afiançada. Portanto, se a obrigação principal se extingue, acarreta a extinção da fiança.
S. Conclui-se assim que a fiança prestada em contrato que se revela nulo por vício de forma é, consequente e forçosamente, também nula. A consequência da nulidade do contrato de mútuo é os devedores serem obrigados a restituir o que receberam. Quanto aos fiadores, tal não se lhes aplica, porque nada receberam, então, nada têm a restituir. Seja qual for o regime estipulado para a fiança – note-se, regime esse que nunca se aplicaria porque foi estipulado num contrato nulo por vício de forma…
T. Efetivamente, a matéria de facto não foi impugnada. E o facto provado n.º 16 indica que “Foi condição do empréstimo ser reduzido a escrito e garantido por fiança.”
U. Não foi considerado provado que tenha sido condição do empréstimo ser celebrado por escritura pública
e garantido por fiança com renúncia ao benefício da excussão prévia.
V. Não corresponde de todo à verdade que o alcance da acessoriedade da fiança difere consoante esteja em causa uma obrigação subsidiária ou solidária do fiador.
W. Ademais, não se pode tirar a ilação de que os fiadores pretendiam ser considerados como devedores principais, mesmo numa situação de nulidade do contrato. Se nem os devedores principais têm de cumprir pontualmente o estipulado no contrato em caso de nulidade do mesmo (vejamos a questão dos juros convencionais), quanto mais os fiadores que não são na verdade devedores nem receberam nada…
Termos em que não deve ser concedido provimento ao recurso, em conformidade com o acima alegado e, consequentemente, deve ser mantida a Douta Sentença recorrida, assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA!
Também a ré G… apresentou resposta às alegações de recurso, concluindo:
A posição da Ré /Recorrida, G…, acima explicitada (como na sua contestação), encontra fundamento e base de sustentação em diversa jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, a saber e transcreve-se:
A/- “- Há nulidade, por falta de forma legal, no contrato de mútuo e respetiva fiança constantes de documento particular
- Nada tendo recebido, o fiador nada tem a restituir na sequência da declaração de nulidade desse contrato de mútuo afiançado.”
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-02-1996, sendo relator o Senhor Xxxx Xxxxxxxxxxxxx, Dr. Xxxxx Xxxxxxx, disponível para consulta em xxx.xxxx.xx;
B/- “- O recorrente entende que tal condenação se não justifica, já que tendo-se limitado a servir de fiador, e havendo o mútuo (obrigação principal) sido declarado nulo, também o seria a fiança, que é uma obrigação meramente acessória (art. 627º, nº 2 do C. Civil); de resto, o empréstimo foi apenas feito ao 2º Réu que não também a si recorrente, pelo que só sobre aquele real mutuário impenderá a obrigação de restituir a respetiva importância ao credor”;
“Na esteira do Ac. do STJ de 23-11-99, in Proc.897/99-1ª Sec., declarado nulo um contrato de mútuo por falta de forma, porque tal nulidade opera retroativamente (ex-tunc), deve ser restituído tudo o que houver sido prestado, isto é o capital mutuado – art. 289º, nº 1 do C. Civil…”;
- “Tendo o mútuo sido declarado nulo, resta apenas a obrigação de restituição da quantia mutuada e respetivos frutos civis, unicamente a cargo de quem recebeu a quantia mutuada…”;
Excertos retirados do corpo do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-01-2002, sendo relator o Senhor Xxxx Xxxxxxxxxxx. Dr. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, na parte em que faz a apreciação do Direito aplicável in casu, disponível para consulta em xxx.xxxx.xx;
C/- “- Estabelece o artigo 289º, nº 1 do Código Civil que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Os contratos de mútuo aqui invocados foram declarados nulos por falta de forma.
A simples leitura daquele normativo vincula desde logo que a única consequência da declaração de nulidade ou anulação daqueles negócios jurídicos consiste no dever de restituir o que tiver sido prestado”. Excertos retirados do corpo do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de março de 1998, sendo
relator o Senhor Xxxx Xxxxxxxxxxx, Dr. Xxxxx Xxxxxxxx, na parte em que faz a apreciação do Direito aplicável in casu, disponível para consulta no BMJ, nº 475, fls.616 a 620;
D/- “- A obrigação de restituição terá de recair sobre quem beneficiou da transferência patrimonial operada por efeito do mútuo…”
- “Na repristinação /liquidação da relação existente entre as partes e resultante de declaração de nulidade negocial, deve, em primeiro lugar, ser restituído tudo o que tiver sido prestado…”;
- “A obrigação de restituição terá de recair sobre quem beneficiou da transferência patrimonial operada por efeito do mútuo…”;
Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 17-05-2018, sendo relator o Senhor Xxxx Xxxxxxxxxxx, Dr. Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, sendo a primeira transcrição do sumário desse Acórdão e as demais do corpo do mesmo na parte da fundamentação do Direito, disponível para consulta em xxx.xxxx.xx;
Termos em que,
Deve negar-se provimento ao recurso do Autor, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo, com todas as demais consequências legais,
Como é de JUSTIÇA!
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se na apreciação das seguintes questões:
i) saber se, declarada a nulidade do contrato de mútuo e a consequente obrigação de restituição do que foi prestado, decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, tal obrigação abrange também os fiadores;
ii) saber se a não vinculação dos fiadores à obrigação de restituição se traduz em abuso do direito.
2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante provada, para além da que consta do relatório que antecede: 1 - No dia 25/08/2006, faleceu E…, no estado de casado com F… – fls. 21 (A).
2 – E… e F… contraíram casamento católico, a 30/11/1985, sem convenção antenupcial – fls. 23 (B). 3 – H… nasceu a 22/03/1952 e foi registado como filho de E… e de M…, casados – fls. 29 (C).
4 - No dia 01/04/1956, nasceu G… que foi registada como filha de E… e de M…, casados – fls. 27 (D). 5 - No dia 18/03/1964, nasceu D… que foi registada como filha de E… e de M…, casados – fls. 25 (E). 6 - Casou (a D…), catolicamente, a 07/12/1985, com C… – fls. 26 (F).
7 - O casamento foi dissolvido, por divórcio, por mútuo consentimento, decretado a 27/03/2008 – fls. 26 (G).
8 – I… nasceu a 24/11/1984, foi registado como filho de K… e de N… e neto paterno de E… e de M… – fls. 31 (H).
9 – J… nasceu a 09/07/1979 e foi registado como filho de K… e de N… e neto paterno de E… e de M… – fls.
33 (I).
10 - Os RR. C… e a então sua esposa D… subscreveram, a 24/03/1997, na qualidade de mutuários, o “Contrato de Mútuo” de fls. 35/37.
11 - Declararam, no mesmo, ter recebido e receberam os 10.000.000$00 do empréstimo e assumiram a obrigação do seu pagamento nos termos das respetivas Cláusulas Segunda e Sétima.
12 – Do referido contrato constam (além do mais que não interessa reproduzir) as seguintes cláusulas: Cláusula Segunda: Este empréstimo é concedido pelo prazo de 12 meses a começar a 24/03/1997, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos de 6 meses, e nas mesmas condições, enquanto não for denunciado por qualquer das partes.
Cláusula Terceira: A quantia mutuada vencerá juros à taxa de 13% ao ano, pagáveis no fim de cada semestre e, caso os mutuários assim o entendam, poderá o seu montante ser capitalizado à taxa de juro acordada.
Cláusula Oitava: Ficam por fiadores e principais pagadores dos segundos outorgantes (C… e D…) e entre si e com eles mesmos se obrigam ao pagamento da quantia mutuada e dos juros vencidos, E… e sua esposa F… (…), residentes na freguesia …, concelho de Sever do Vouga.
13 - Os mutuários C… e D… dedicavam-se a atividade comercial e industrial, sobretudo no ramo imobiliário.
14 - A quantia emprestada que receberam destinou-se a prover a gastos do seu giro comercial, por atravessarem, na altura, falta de liquidez financeira.
15 - Nem eles nem os fiadores cumpriram as obrigações de pagamento de capital e juros. 16 - Foi condição do empréstimo ser reduzido a escrito e garantido por fiança.
17 – E… e esposa F… aceitaram ser fiadores dos mutuários, genro e filha daquele.
18 – Obrigaram-se, voluntária, livre e conscientemente, nos termos da Cláusula Oitava do “Contrato de Mútuo” e, por isso, subscreveram este contrato.
19 - Os demandados como herdeiros de E… entraram na posse e fruição dos bens que ficaram por óbito deste, por terem aceitado a sua herança.
3. Fundamentos de direito
Em causa, na apreciação do recurso, está apenas a questão de saber se, declarada a nulidade do contrato de mútuo e a consequente obrigação de restituição do que foi prestado, decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 289.º do Código de Processo Civil, tal obrigação abrange também os fiadores.
Transcreve-se a fundamentação jurídica da sentença, na qual se conclui pela resposta negativa à questão enunciada:
«[…]
O contrato de mútuo está ou não sujeito a forma conforme o respetivo valor.
O art. 1143.º, nº 1, do C. Civil, na redação do D.L. nº 163/95, de 13/07, em vigor à data em que celebrado o contrato de mútuo, estabelecia o seguinte: “o contrato de mútuo de valor superior a 3.000.000$00 só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 200.000$00 se o for por documento assinado pelo mutuário”.
O contrato de mútuo deveria, pois, ter sido celebrado por escritura pública. Mas, não foi. É, portanto, de considerar nulo por falta da forma legal – art. 220º do C. Civil.
Consequência da nulidade é a restituição de “tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” - segunda parte do nº 1 do art. 289º do C. Civil.
[…]
III - Pedido formulado contra os fiadores.
“Na fiança, alguém – o fiador – obriga-se a cumprir uma obrigação alheia caso o devedor, o afiançado, não o faça. O fiador fica pessoalmente obrigado perante o credor, consistindo esta sua obrigação em cumprir a mesma do devedor/afiançado (art. 627.º, nº 1, do C. Civil). O terceiro assume, pois, uma obrigação perante o credor a qual se apresenta numa relação de dependência ou de subordinação em relação à obrigação do devedor. Depende dela geneticamente – a invalidade do negócio principal acarreta a invalidade da fiança – depende dela funcionalmente – o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor
– e depende dela também na sua dimensão extintiva, já que uma vez finda a obrigação principal igualmente desaparece a fiança. A característica essencial da fiança reside, portanto, na acessoriedade da obrigação assumida pelo fiador (arts. 627.º, nº 2, 632.º e 651.º do C. Civil)”.
Provou-se, nestes autos, que a Ré F… e o seu ora falecido marido E… aceitaram ser fiadores dos mutuários, genro e filha deste e que se obrigaram, voluntária, livre e conscientemente, nos termos da Cláusula Oitava do “Contrato de Mútuo” e, por isso, subscreveram este contrato – nºs. 17 e 18 dos FP.
Da referida Cláusula Oitava consta que “Ficam por fiadores e principais pagadores dos segundos outorgantes (C… e D…) e entre si e com eles mesmos se obrigam ao pagamento da quantia mutuada e dos juros vencidos, E… e sua esposa F…”.
Tendo-se responsabilizado como fiadores e principais pagadores, tem de se entender que renunciaram ao benefício de excussão prévia previsto no art. 638.º do C. Civil Os RR. contestantes defendem todos que sendo o contrato de mútuo, por falta de forma, nula é também a fiança.
O art. 632.º, nº 1, do C. Civil, estabelece que a fiança não é válida se o não for a obrigação principal. “Assim, a validade da obrigação principal é um pressuposto da eficácia da fiança, já que não faria sentido que, por um lado, o ordenamento jurídico sancionasse com a nulidade a ocorrência de um determinado vício e, por outro, permitisse a operatividade de uma garantia ligada ao crédito, em total contradição com a sanção estabelecida; no entanto, a invalidade da obrigação principal já não poderá determinar recta via a invalidade da obrigação do fiador que, quando muito, passa a ser inidónea à produção dos seus efeitos típicos. Não havendo, assim, um vício genético da própria fiança que determine a sua invalidade, mas um obstáculo exterior que se opõe à produção dos efeitos jurídicos, podemos dizer que o art. 632.º/1 dita a ineficácia stricto sensu da fiança em caso de nulidade da obrigação principal”.
Ora, sendo a fiança ineficaz a Ré F… e os herdeiros do ora falecido E… têm de ser absolvidos dos pedidos.».
Insurge-se o recorrente, alegando que a consequência da nulidade deve ter os mesmos efeitos para devedor e fiador, ou seja, ambos devem ficar obrigados à restituição de tudo o que tiver sido prestado, e que solução diversa configura um verdadeiro abuso de direito, na vertente de venire contra factum próprio. Vejamos.
A fiança insere-se nas garantias pessoais das obrigações e, através dela, o obrigado (fiador) garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente vinculado perante o credor (art.º 627.º/1 CC), sendo a obrigação por ele assumida acessória da que recai sobre o principal devedor (art.º 627.º/2 CC).
Decorre como consequência da característica da acessoriedade da fiança, que, extinguindo-se a obrigação principal, não subsiste a fiança (art.º 651.º do CC).
Como se refere na sentença recorrida, a acessoriedade comporta duas vertentes: genética (respeitante à fase da constituição da fiança) e funcional (respeitante à ‘vida’ e ‘exteinção’ da fiança).
São manifestações da acessoriedade genética as regras respeitantes à forma (art.º 628/1 CC), à validade (art.º 632.º do CC) e ao conteúdo (art.ºs 634.º e 631.º do CC)[2].
Face ao disposto no artigo 632.º do Código Civil, a nulidade do negócio principal (in casu, do contrato de mútuo) tem como consequência a invalidade da fiança, admitindo a lei uma única exceção à regra imperativa enunciada: sendo a dívida principal anulada por incapacidade ou por falta ou vício da vontade do devedor, a fiança não deixará de ser válida, contanto que o fiador conheça, ao tempo em que prestou a fiança, essa causa de anulabilidade[3].
Na situação em debate nos autos, face à imperatividade do citado artigo 632.º do Código Civil, considerando que não se verifica a única exceção prevista na norma em apreço, não podem restar dúvidas quanto à invalidade da fiança prestada.
A questão fulcral, como atrás se referiu, consiste em saber se, uma vez declarada a nulidade do negócio principal (contrato de mútuo), para além dos mutuários, também os fiadores ficarão obrigados à restituição de “tudo o que tiver sido prestado”, nos termos do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.
Desde logo, o conceito de “restituição” implica que a pessoa obrigada tenha efetivamente recebido, porque só pode restituir, quem recebeu.
É esta verdade elementar que proclama o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.2002 [processo n.º 02B3454][4]: «Tendo o mútuo sido declarado nulo, resta apenas a obrigação de restituição da quantia mutuada e respectivos frutos civis, unicamente a cargo de quem efectivamente recebeu a quantia mutuada…».
No mesmo sentido, lapidarmente, se decidiu nesta Relação, no acórdão de 26.02.1996 [processo n.º 9550880], parcialmente sumariado nestes termos: «[…] III - Há nulidade, por falta de forma legal, no contrato de mútuo e respectiva fiança constantes de documento particular. IV - Nada tendo recebido, o fiador nada tem a restituir na sequência da declaração de nulidade desse contrato de mútuo afiançado.».
A obrigação “de restituição” decorrente do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil tem, claramente, natureza diversa da obrigação inicial assumida no contrato nulo, tudo se passando, face à retroatividade da declaração de nulidade, como se o negócio não tivesse sido realizado[5], não vinculando da mesma forma todos os contraentes, até porque, como refere Xxxxx Xxxxxxxxx[6], a fiança, muito embora tenha o mesmo conteúdo da obrigação garantida (art.º 634.º), é uma obrigação distinta desta, trata-se de duas obrigações, com dois sujeitos diferentes, devedor e fiador.
Numa situação em tudo semelhante à que se debate nos autos, decidiu a Relação de Lisboa, absolvendo o fiador do pedido, em acórdão de 21.04.2016 [processo n.º 187/14.5TBTVD.L1-2]: «[…] a coligação de contratos não apaga a individualidade de cada um deles e a sujeição às regras que lhe são inerentes, sem
prejuízo da interferência que incidências como a invalidação ou resolução de um deles possa implicar no outro. Assim, decretada a nulidade do mútuo, a obrigação de restituição do que foi prestado recairá sobre as partes do contrato nulo, ou seja, sobre o mutuante e o mutuário […] Recairá, assim, sobre o mutuário a obrigação de restituir ao mutuante aquilo que este prestou em virtude do contrato de mútuo declarado nulo (neste sentido, acórdão do STJ, de 02.6.1999, processo 99B387, in xxx.xxxx.xx; acórdão do STJ, de 22.6.2005, in Col. de Jurisp., STJ, ano XIII, tomo II, páginas 134 a 140; acórdão da Relação de Lisboa, de 06.6.2014, processo 574/11.0TJLSB.L1-2).».
Em suma, declarada a nulidade do contrato de mútuo, deixaram de vigorar as cláusulas do mesmo, com efeito retroativo, passando a vincular as partes uma outra obrigação – a da restituição do que receberam – estando as mesmas obrigadas a restituir, na medida em que tenham recebido.
Não tendo o fiador recebido qualquer quantia, face à acessoriedade da garantia prestada (art.º 627.º do CC), e à invalidade da fiança decorrente da nulidade da obrigação principal (mútuo), tendo em conta que a situação dos autos não se enquadra na única exceção à regra imperativa enunciada no n.º 2 do artigo 632.º do Código Civil, haverá que concluir que os fiadores não se encontram vinculados à restituição (do valor que não receberam)[7].
Alega o recorrente que configura um verdadeiro abuso de direito, na vertente de venire contra factum próprio, o facto de os fiadores invocarem a nulidade da fiança por acessória ao contrato principal.
Como se refere no acórdão do STJ, de 5.11.2014 [processo n.º 3220/07.3TBGDM-B.P1.S1], na caracterização do venire contra factum proprium – que a tutela da confiança proíbe – evidenciam-se quatro elementos: (i) comportamento; (ii) geração de expectativa; (iii) investimento na expectativa gerada; e (iv) comportamento contraditório.
O abuso do direito na modalidade referida traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo titular do direito, e a sua proibição radica no princípio da confiança, sendo seus pressupostos:
a) uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
b) uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível;
c) um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; d) uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.
Pensamos, com o devido respeito, que não se verificam os pressupostos do instituto invocado, ou, pelo menos, não se provou a factualidade integrante, não tendo a mesma sido, sequer, alegada pelo ora recorrente.
Os fiadores garantiram uma obrigação emergente dum negócio que veio a ser declarado nulo, não constando dos autos, no tendo, sequer, sido alegado, que tivessem prestado a garantia com conhecimento da nulidade do negócio, aproveitando-se de uma situação de confiança, traída posteriormente com a
exclusão das suas responsabilidades, num resultado que previamente conheciam.
Decorre imperativamente da lei a invalidade da fiança prestada (art.ºs 627.º e 632.º do CC), não podendo tal imperatividade ser contornada apenas com a vaga alegação do instituto do abuso do direito, sem que ocorram os respetivos pressupostos.
Face ao exposto, terá de naufragar a pretensão recursória.
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III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente.
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Porto, 13.07.2021
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxx Igreja Matos Xxx Xxxxxxx