AS GARANTIAS CONTRATUAIS NO ÂMBITO DO FINANCIAMENTO DE PROJETOS
AS GARANTIAS CONTRATUAIS NO ÂMBITO DO FINANCIAMENTO DE PROJETOS
INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA - INSPER
LL.M. em Direito dos Contratos
São Paulo 2016
AS GARANTIAS CONTRATUAIS NO ÂMBITO DO FINANCIAMENTO DE PROJETOS
Monografia apresentada ao Curso de Master of Laws (LL.M.) em Direito dos Contratos, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Direito dos Contratos pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER).
Orientador: Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx
São Paulo 2016
AS GARANTIAS CONTRATUAIS NO ÂMBITO DO FINANCIAMENTO DE PROJETOS
Monografia apresentada ao Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), como parte dos requisitos para obtenção do título de Especialista em Direito dos Contratos
Aprovada com média
São Paulo, 05 de junho de 2016.
AGRADECIMENTOS
Xxxxxxxx, primeiramente, à Deus pelo precioso presente que é a vida.
Aos meus pais, Xxxxxx e Xxxxx, pelo amor, carinho, incentivo, paciência, preocupação, dedicação e apoio em todos os momentos de minha vida, principalmente, naqueles em que mais precisei de forças para prosseguir, os amos incondicionalmente.
Ao dedicado professor-orientador, Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx, um exemplo de profissional, em quem me espelho.
A todos os professores e coordenadores do curso de LL.M. em Direito dos Contratos, que dividiram seu conhecimento e nos honraram com tanta dedicação.
E não poderia deixar de agradecer aos meus familiares e amigos, que são tão especiais em minha vida.
Este trabalho tem como escopo o estudo das garantias contratuais no âmbito do financiamento de projetos. Para isso, inicialmente é feito um estudo acerca da diferenciação entre o financiamento de projetos e empréstimos convencionais, bem como sobre o project finance no Brasil. Após estuda-se a limitação de responsabilidade no financiamento de projetos, que representa um importante alicerce nessa modalidade de contratos, além do estudos dos riscos inerentes a essas operações. Além disso, é feita análise minuciosa das garantias contratuais propriamente ditas no financiamento de projetos, bem como a legislação aplicável a tais contratos. E, por fim, são analisadas as garantias que foram concedidas no project finance do Contrato de Parceria Público Privada do Sistema Produtor Alto Tietê.
Palavras-chave: “project finance”; “garantias contratuais”; “alocação de riscos”; “direito dos contratos”.
ABSTRACT
The aim of this work is to study contractual guarantees within the scope of project finance. For this reason, a study was initially made on the differentiation between project financing and conventional loans, as well as on project finance in Brazil. Afterward, the study focuses on the limitation of liability in project finance, which is an important principle for this kind of contracts, in addition to the evaluation of the risks involved in these operations. Moreover, a detailed analysis of the contractual guarantees in project finance is presented, as well as the applicable law to such contracts. Finally, an analysis was conducted on the guarantees granted for the project finance of the Public Private Partnership Contract of the Alto Tietê Production System.
Keywords: "project finance"; "contractual guarantees"; "risk allocation"; "contract law".
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
1. DIFERENCIAÇÃO ENTRE FINANCIAMENTO DE PROJETOS E
EMPRÉSTIMOS CONVENCIONAIS E PROJECT FINANCE NO BRASIL 10
2. LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE NO PROJECT FINANCE 14
3. ALOCAÇÃO DE RISCOS EM UMA OPERAÇÃO DE PROJECT FINANCE 17
4. AS GARANTIAS NO PROJECT FINANCE 22
4.1. Garantias Reais Tradicionais. 23
4.1.1. Hipoteca 24
4.1.2. Penhor. 25
4.1.2.1. Penhor Industrial e Mercantil dos Ativos. 26
4.1.2.2. Penhor de Recebíveis. 27
4.1.2.3. Penhor de Posição Contratual. 27
4.1.2.4. Penhor de Ações de Sociedade de Propósito Específico 28
4.1.2.5.Penhor de Conta Corrente e Contrato de
Administração de Contas. 29
4.1.3. Anticrese 30
4.2. Garantias Reais Fiduciárias. 30
4.2.1. Alienação Fiduciária de Bens e Ativos 30
4.2.2. Alienação Fiduciária de Ações da SPE 31
4.2.3. Cessão Fiduciária de Direitos. 31
4.2.4. Cessão Fiduciária de Créditos no Âmbito
da Concessão de Serviços Públicos 32
4.3. Garantias Pessoais / Fidejussória 33
4.3.1.Fiança do Patrocinador. 33
4.3.2. Fiança Bancária 34
4.3.3. Garantia à Primeira Demanda e Carta de Crédito 34
4.3.4. Seguro Garantia 35
4.3.5. Compromisso de Subscrição e Integralização de Capital. 36
4.4. Instrumentos Atípicos de Garantia 36
4.4.1.Direito de Intervenção / Assunção do Controle (Step-In-Rights). 37
4.4.2. Covenant 38
5. LEI APLICAVEL AOS CONTRATOS DE GARANTIA 39
5.1. Autonomia da Vontade nos Contratos 39
6. CASO CONCRETO – GARANTIAS PRESTADAS NO ÂMBITO
DO PROJECT FINANCE DA PARCERIA PÚBLICO PRIVADA DO
SISTEMA PRODUTOR ALTO TIETÊ – SPAT 42
CONSIDERAÇÕES FINAIS 48
REFERÊNCIAS 49
INTRODUÇÃO
O tema do presente trabalho está a cada dia mais em voga, em razão da busca dos investidores por mercados emergentes, tal como o Brasil.
Em razão da globalização da economia, o Brasil tem sido alvo da atração de grandes investimentos estrangeiros, razão pela qual torna-se sobremaneira relevante a análise dos opções de garantir ao investidor estrangeiro uma maior segurança jurídica, com a finalidade de atrair investimentos para fomentar a economia nacional, de forma que essa matéria assume especial relevância no atual momento de crise.
Nessalinha, uma das possibilidades de angariar investimentos nacionais ou estrangeiros é o Financiamento de Projetos (Project Finance), que consiste em uma modalidade de financiamento que se presta para viabilizar empreendimentos de grande porte.
Dessa forma, no presente trabalho serão analisadas as garantias que podem ser oferecidas, com vistas a viabilizar uma maior credibilidade para os investidores interessados no projeto.
Para tanto, o presente trabalho divide-se em 06 (seis) capítulos, nos quais serão analisados, respectivamente: I)A diferenciação entre o financiamento de projetos e empréstimos convencionais, bem como um breve resumo acerca do project finance no Brasil; II) A questão da limitação de responsabilidade no financiamento de projetos; III) A forma como os riscos podem ser alocados em tal modalidade de financiamento; IV) A análise das garantias que podem ser prestadas no âmbito no project finance, podendo tais garantias serem reais tradicionais, reais fiduciárias, pessoais/fidejussórias ou ainda serem prestados instrumentos atípicos de garantia; V) A questão da lei aplicável aos contratos de garantia, assim como a controvérsia sobre a questão da autonomia da vontade nos contratos e, ainda, a distinção entre a lei aplicável ao contrato e a lei aplicáveis às garantias; e VI) Um caso concreto, onde são analisadas as garantias concedidas pela CAB Sistema
Produtor Alto Tietê S/A no Contrato de Financiamento firmado com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.
Desse modo, com o presente trabalho se pretende demonstrar como as garantias oferecidas no âmbito do financiamento de projetos podem se prestar como meio para a diminuição dos riscosnessa operação a fim de atrair investimentos, sejam eles nacionais ou estrangeiros no país, propiciando segurança jurídica e atraindo investidores ao Brasil.
1.DIFERENCIAÇÃO ENTRE FINANCIAMENTO DE PROJETOS E EMPRÉSTIMOS CONVENCIONAIS E PROJECT FINANCE NO BRASIL
Inicialmente, antes de adentramos à questão do instituto do Project Finance, bem como à sua forma de disseminação no Brasil, mister se diferenciar o financiamento focado no projeto e o empréstimo comumente utilizado por empresas para tornar exequível determinado projeto empresarial.
No caso do empréstimo convencional, a sociedade empreendedora buscará junto aos banco mutuante ou outro financiador o valor necessário, de forma que serão realizadas diversas avaliações, dentre elas quanto ao patrimônio da sociedade, o seu histórico como credor em outros financiamentos, suas projeções futuras e, ainda, quanto ao seu atual nível de endividamento.
Assim, o banco mutuante analisará a sociedade empreendedora como um todo, partindo daí a decisão de oferecer ou não a sua melhor taxa de juros, caso o entendimento seja de que a sociedade apresenta risco de crédito menor.
Por outro lado, no que se refere à sociedade empreendedora, esta ficará obrigada a efetuar o pagamento do empréstimo e respectivos juros, independentemente do êxito obtido no projeto, ficando o seu patrimônio geral como objeto para cumprimento dessa obrigação.
Em contrapartida, na hipótese de a sociedade empreendedora escolher a captação de recursos sob a sistemática do financiamento de projetos, a sociedade em análise, agora denominada de patrocinadora, formará uma sociedade de propósito específico (SPE), que será por ela controlada, a fim de que essa SPE desenvolva e explore o projeto, segredando-o das demais atividades da controladora.
Deste modo, a sociedade controladora aportará somente o capital necessário para a realização do projeto, ficando a SPE responsável pela captação do restante dos recursos em seu próprio nome.
Assim, levando-se em consideração que não terá conhecimento da cronologia da operação e do crédito da sociedade controladora, a decisão do banco mutuário será fundamentada na probabilidade de êxito do projeto, isto é, na sua capacidade de gerar receitas para que assim sejam pagos o financiamento e respectivos juros, depois de deduzidas os valores dos custos e despesas operacionais.
Logo, em virtude dos riscos atrelados ao financiamento de projetos, comumente o banco mutuário - além de oferecer taxa de juros superior se comparada à taxa de clientes com menor risco de crédito – também exigirá que a SPE assuma uma série de obrigações como forma de reduzir o risco do negócio.
Outrossim, importante se torna dizer que, de acordo com as garantias concedidas, poderemos ter três modalidades de financiamento, quais sejam: (i) non- recourse: nessa modalidade o financiamento é baseado unicamente no fluxo de caixa do projeto, não sendo constituídas outras garantias, de forma que, por conseguinte, os credores não podem acionar o patrimônio do acionista patrocinador;
(ii) full-recourse: são constituídas garantias convencionais, além de haver a garantia do fluxo de caixa do projeto, cobrindo as obrigações do acionista patrocinador, resguardando ainda o direito de o financiador ingressar judicialmente com ações, com vistas a atingir o patrimônio dos devedores; (iii) limited-recourse: esse sistema é um meio termo entre os dois primeiros, no qual há são concedidas garantias convencionais, dando um certo grau de proteção contra insurgências dos financiadores, mas permite ainda que o acionista-patrocinador seja responsabilizado quando do inadimplemento de obrigações contratuais relativas ao desenvolvimento e exploração do projeto. No financiamento de projetos, esse é o sistema mais usual.
Feita essa diferenciação inicial, partimos para a contextualização acerca do Project Financeno Brasil.
Como mencionado acima, muito embora existam as figuras dos empréstimos convencionais, ao longo do tempo ocorreu o exaurimento desses modelos tradicionais de financiamentos, implicando na necessidade de se buscar
novas formas de financiar os projetos, inclusive otimizando a participação de agentes tradicionais do Estado nesse setor, tais como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.
É nesse contexto que,a partir de meados da década de noventa, surge no Brasil a figura relevante e lucrativa do Project Finance, que nas palavras de Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx e Oscar Malvessi consiste em um exercício de engenharia financeira que permite que as partes envolvidas em um empreendimento possam realiza-lo, assumindo diferentes responsabilidades, ou diferentes combinações de risco e retorno, de acordo com as suas respectivas preferências.1
Nessa vereda, o instituto doProject Finance tem no setor de infraestrutura o seu ambiente natural2, daí porque nas lições de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei a justificativa para que tal figura fosse difundida tardiamenteno Brasil, uma vez que até o início do processo de privatização, o setor de infraestrutura brasileiro encontrava- se há muito sob exploração direta do Estado brasileiro, seja por intermédio de seus entes políticos – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – seja por meio de empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista).3
Outra característica do financiamento de projetos consiste em estar calcado preponderantemente em uma rede de contratos coligados, que são aqueles que um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria desinteressante, mas não se fundem, conversam a individualidade própria.4
Por outro lado, como já discutido, ao analisarmos a estrutura de um Project Financeverificamos que todas as questões a ele relacionadas estão centradas no próprio projeto, ocorrendo a clara segregaçãodos ativos e recebíveis dos demais riscos do empreendedor, isto é, as obrigações são adimplidas por meio
1 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; MALVESSI, Oscar. Project finance no Brasil: fundamentos e estudo de casos. Rio de Janeiro: Atlas, 2002, p. 20.
2ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Project Finance: Financiamento Com Foco Em Empreendimentos - Parcerias Público Privadas. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 97.
3 XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 98.
4 MIRANDA, Pontes de. Contratos. São Paulo: Forense, 2008, p. 126.
do fluxo de caixa do projeto, de modo que se prestam como garantia os seus ativos e recebíveis.
Nessa linha, a formação de SPEs constituem-secomo importante medida para separar os riscos e ativos de forma mais consistente dentro de uma determinada operação para que com isso a assunção dos riscos pelos possíveis investidores e/ou bancos mutuáriosseja apenas àqueles relacionados ao projeto financiado.
Face as considerações acima explicitadas, é possível identificar, em síntese, as seguintes fases em um Project Finance:
(i) Identificação e concepção do projeto - fase de idealização e design do projeto, onde se realizam testes de viabilidade, estudos e análises, e celebração de negociações e acordos com todas as partes futuramente envolvidas na operação;
(ii) Implementação- fase onde celebra-se contratos de financiamento, construção, monitorização e fiscalização da obra e, se for o caso, aceitação provisória da mesma; e
(iii) Gestão e exploração - fase objeto do projeto, onde temos a gestão ou exploração da obra e o encaminhamento e encaixe das receitas para solver o débito.5
Destarte, embora no Project Finance as obrigações e riscos devam ser suportadas integralmente pelo próprio projeto, a estruturação de instrumentos tradicionais de garantia, sejam de natureza real ou pessoal, figuram-se como importante figura para fomentar a utilização desse instituto por possíveis investidores e/ou bancos mutuários, e é acerca de tais instrumentos de garantia que trataremos nos capítulos a seguir.
5DIAS,GabrielaFigueiredo,Project Finance- PrimeirasNotas, Coimbra: Xxxxxxxx, 0000,x. 130.
2. LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE NO PROJECT FINANCE
É cediço que o financiamento de projetos é atualmente o instrumento de limitação de responsabilidade do empresário mais evoluído. Isso porque cada participante assume uma parcela de risco do empreendimento, isto é, osconstrutoresassumemosriscosdeengenharia, ao passo que osfornecedoresassumemosriscosdosequipamentoseosacionistasnormalmenteassum emoriscodaadministraçãoedaoperaçãodoempreendimento.6
Nesse passo, no que pertine ao investidor patrocinador, os riscos inerentes à atividade ficam totalmente segregados, não respondendo o investidor por montante superior ao capital investido.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei7 comenta o assunto, trazendo as características que limitam a responsabilidade do empresário:
Podemos compreender o financiamento de projetos como um tipo negocial (ou plurinegocial, para ser mais preciso), ainda não reconhecido pelo direito positivo brasileiro, mas amplamente aceito pela prática comercial, caracterizado por quatro principais traços distintivos, unidos entre si pela finalidade comum de assegurar a captação de grandes somas de recursos para a implementação e desenvolvimento de empreendimento delimitado, com limitação máxima de responsabilidade do empresário patrocinador, a saber: (i) isolamento do empreendimento financiado ou, em termos mais jurídicos, separação patrimonial; (ii) alavancagem financeira (isto é, prevalência de captação de recursos na forma de endividamento e não- emissão de ações); (iii) responsabilidade perante o financiador externo limitado às receitas e bens associados ao empreendimento; e (iv) alocação de riscos mediante rede contratual.
Como se nota, para determinados tipos de empreendimentos, o financiamento de projetos constitui-se como o mais avançado mecanismo de limitação de responsabilidade do empresário, vez que, nessa sistemática, há clara
0XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx, Op. cit., p. 22.
7ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 151.
separação dos resultados, receitas e ativos do projeto financiado com os demais negócios do investidor patrocinador, não permitindo a ocorrência de confusão entre tais patrimônios, denotando-se a separaçãodo projeto financiado para que este forme um patrimônio separado e independente, isto é, uma universalidade formada em prol do patrocinador, do financiador e das demais partes envolvidas no financiamento de projetos.
Reforce-se ainda que a limitação de responsabilidade decorrente do financiamento de projetos resulta usualmente na constituição de uma nova sociedade com personalidade jurídica, denominada Sociedade de Propósito Específico (SPE), cuja finalidade é de implementar e colocar em prática o projeto financiado, bem como centralizar as dívidas e obrigações assumidas pelo empreendimento.
Assim, a constituição dessa nova sociedade acaba por isolar a responsabilidade do(s) acionista(s), vez que o devedor não será o acionista que patrocina o investimento, cabendo esse papel à SPE, de modo que os resultados e receitas do projeto financiado não interferem nos demais empreendimentos do investidor patrocinador e vice versa.
Importa também mencionar a particularidade trazida relativamente ao patrimônio de afetação.
Com efeito, o direito reconhece o princípio geral segundo o qual toda pessoa, física ou jurídica, tem apenas um patrimônio, reunindo todos os seus bens. Nessa linha, os artigos 591 do Código de Processo Civil e 391 do Código Civil estabelecem a regra geral de que o devedor responde por suas dívidas com todos os bens presentes e futuros, sendo esse mesmo patrimônio a garantia comum dos credores.
Ainda nessa linha, consoante os ensinamentos de Xxxxxx Xxxxxxxxx0:
8MARCONDES,Sylvio, Problemas de Direito Mercantil,São Paulo:Xxx Xxxxxxx, 1970,p. 90.
O patrimônio é mais do que mera universalidade de fato, constituindo verdadeira universalidade de direito na medida em que, por força de lei, compreende todas as relações jurídicas, direitos e obrigações de determinada pessoa, sendo, dotado de valor econômico tanto para o seu detentor, a pessoa que lhe dá unidade, como para os credores deste que nele encontram garantia comum para seus créditos.
No entanto, o referido princípio geral no financiamento de projetos não é considerado absoluto, vez que essa modalidade possibilita ao investidor patrocinador a oportunidade para que este separe uma parte de seu patrimônio com a finalidade que colocar em prática o empreendimento financiado.
Em regra, no financiamento de projetos, a autonomia patrimonial é atingida pela constituição da sociedade de propósito específico, que busca segregar o patrimônio destinado ao empreendimento, garantindo a incomunicabilidade em relação aos demais bens do empresário patrocinador, com a consequente limitação de sua responsabilidade.
Xxxx Xxxxxx Xxxx xx Xxxxxx Xxxxx0, tendo por base a questão da constituição da sociedade de propósito específico e a rede contratual própria do financiamento de projetos examina que o efeito produzido é de:
Um verdadeiro patrimônio de afetação, destacado dos patrimônios individuais dos empreendedores, para servir de respaldo ao investimento (colateral security), no qual a coesão dos bens é obtida objetivamente mercê a unidade de fim do projeto (project assets). Forma-se, desse modo, um “patrimônio separado”, destacado dos patrimônios dos empreendedores”.
Verifica-se, portanto, que a constituição da SPE e toda a rede contratual própria do financiamento de projetos produz o efeito de constituir um patrimônio de afetação, segregando o patrimônio do projeto financiado dos demais bens do investidor patrocinador.
9 Projeto de Financiamento. Parecer lavrado em 24.12.2003, in: Pareceres, São Paulo: Singular, 2004, v.2, p. 1447
3. ALOCAÇÃO DE RISCOS EM UMA OPERAÇÃO DE PROJECT FINANCE
O financiamento de projetos, muito embora não tenha legislação que o regula, é totalmente aceito na prática empresarial, sendo, conforme já mencionado, fundado essencialmente em uma rede de contratos coligados.
Neste passo, uma das características que distingue o financiamento de projetos e da rede de contratos coligados por ele formada está fundada na distribuição de riscos entre os participantes do negócio e demais interessados no empreendimento.
Para tanto, mostra-se imprescindível levantar e definir os riscos e alocar todos os participantes com suas expectativas de retorno dentro do empreendimento financiado. Referida alocação de riscos também demonstra ser relevantepara que seja atraído um financiador externo, na medida em que seria pouco provável que o financiador aceitasse patrocinar uma sociedade de propósito específicoconstituída há pouco tempo e sem qualquer histórico de crédito e ainda, cujas garantias são limitadas às receitas e bens desse empreendimento.
Assim, ressalvados os casos de hipossuficiência ou demais impedimentos à autonomia da vontade, mostra-se de suma importância que o financiamento de projetos seja difundido no Brasil, com a aplicação de mecanismos do direito positivo e jurisdicionais que garantam a execução dos contratos, com a efetividade de alocação de riscos distribuída pelas partes, assegurando sua liberdade contratual.
A fim de exemplificar os principais riscos inerentes ao financiamento de projetos, a tabela ilustrativa abaixo elenca os principais riscos que devem ser considerados:10
Conforme ilustrado na tabela acima, Xxxxxx e Mavessi têm o entendimento de que no financiamento de projetos os riscos podem ser divididos em financeiros, ambientais de patrimônio e de responsabilidade civil, riscos operacionais e riscos político, legal e regulatório.
Dentro do rol dos operacionais, também podemos incluir o risco de construção como um dos principais, que é aquele associado à construção, bem como à conclusão das obras, de forma a tornar o empreendimento financiado hábil a operar.
Na prática, o risco de construção tem sido mitigado por meio da celebração de um contrato denominado de EPC (de Engineering, Procurement and Construction Contract), em regime de turn-key (chave na mão, conforme o jargão), que é o contrato no qual a empreiteira contratada assume a obrigação de elaborar o projeto de engenharia, executar as tarefas de construção civil, fornecer todos os materiais e equipamentos do empreendimento, assim como instalar, montar, testar e comissionar tais equipamentos a fim de que a obra seja concluída no prazo
10 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx, Op. cit., p. 127.
estipulado para que a sociedade financiada possa iniciar a operação. Assim, esse contrato tem o efeito de transferir a maior parte dos riscos à empreiteira.
Na gama de risco sistêmico e/ou institucional estão os de natureza econômica, política e social, que estão atrelados a quaisquer operações de créditos e são mais verificados em países emergentes mais suscetíveis a crises econômicas. No referido grupo, podemos incluir os riscos políticos, legais ou regulatórios.
A título exemplificativo, a lentidão do Poder Judiciário tem provocado a percepção de risco institucional que afugenta possíveis investidores. Por outro lado, a disseminação da arbitragem vem contribuindo para diminuir esse risco, inclusive em razão da alteração trazida pela Lei nº 13.129/2015, que incluiu a administração pública direta e indireta na relação de quem pode se valer da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, suprimindo discussões travadas no passado acerca dessa possibilidade.
Igualmente, apresenta-se de suma importância o risco de mudança de lei, especialmente quando tais alterações possam ensejar a mudança do que foi inicialmente pactuado, como por exemplo, onerando substancialmente a carga fiscal aplicável ao empreendimento. Não obstante o direito adquirido e o ato jurídico perfeito possam trazer alguma proteção, em alguns casos não serão aplicáveis a uma mudança de legislativa.
Da mesma sorte, é motivo de grande preocupação o risco regulatório, que abrange a possibilidade de mudança das normas regulatório de responsabilidade das agências reguladoras. Nesse caso, apesar de o princípio da legalidade conferir certa proteção, não resolve todas as dificuldades, em virtude da discricionariedade das próprias leis setoriais que estipuladas às autoridades reguladoras.
Xxxxx esteira, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei11 esclarece que:
Investidores têm julgado conveniente financiar seus empreendimentos junto a organismos multilaterais como o Banco Mundial ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, ainda que estes atuem na qualidade
11ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 209.
de líderes de consórcios ou sindicatos de bancos privados, com o objetivo de reduzir esse risco institucional. O racional por trás disso é a crença de que o governo brasileiro relutará mais para tomar ações que possam causar desgastes junto a esses órgãos do que para impor medidas circunscritas a investidores estritamente privados.
Na seara dos riscos financeiros, se inclui o risco cambial, o qual pode ser verificado na hipótese de financiadores estrangeiros investirem em sua moeda de origem, sendo esta levada como referência para apuração de eventuais prejuízos ou lucros. Assim, sendo o investimento realizado no Brasil, a moeda de origem será convertida para o real, para, após isso, ser entregue à sociedade financiada.
No entanto, as receitas apuradas pela sociedade financiada, as quais serão utilizadas para pagamento do financiamento e distribuição de dividendos aos acionistas, serão auferidas em reais, de forma que os financiadores estrangeiros se defrontarão com o risco de desvalorização cambial. Vale lembrar que, em princípio, os acionistas patrocinadores arcam com essas perdas, que somente terão os dividendos apurados após o pagamento de despesas com o valor principal e juros do financiamento, mas podem levar a problemas de caixa que, em último caso, levará a problemas para pagamento do financiamento.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei12 explica que a mitigação do risco de desvalorização cambial é mais complexa. Vejamos:
O princípio básico para tanto é buscar atrelar à evolução da moeda estrangeira o reajustamento ou a revisão de uma parcela do preço dos produtos e serviços vendidos no longo prazo para os clientes da sociedade financiada, de modo que a parcela da receita do empreendimento indexada à moeda estrangeira seja, ao longo de todo o empreendimento, suficiente para fazer frente aos compromissos da sociedade na mesma moeda, sobretudo os compromissos associados ao financiamento.
Nesse contexto, em alguns setores, como no de infraestrutura, por exemplo, podem ocorrer dificuldade para indexar parte dos preços à moeda estrangeira, em razão das leis que referem-se ao Plano Real, quais sejam Leis nº 10.192/2001, 9.069/95 e 8.880/94.
Contudo, como medida para mitigar o risco cambial a fim de atrair investimentos estrangeiros, algumas leis diminuíram referida vedação em certos
12ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 210.
setores beneficiados por transações vinculadas ao financiamento de projetos, sendo o caso da Medida Provisória nº 2.209/2011, instituída em resposta à crise energética, que permitiu expressamente a indexação ao dólar de parte do preço da energia fornecida e capacidade disponibilizada pelas usinas integrantes do programa à Companhia Brasileira de Energia Emergencial – CBEE.
Por fim, pode-se elencar ainda o risco de integração dos contratos, devendo a sociedade financiada se precaver para que a rede de contratos coligados inerente ao financiamento de projetos seja harmônica entre si, afastando, dessa maneira, riscos associados a eventuais divergências.
Desta forma, conclui-se que independentemente dos riscos levantados pelas partes e da forma como estejam divididos, é possível verificar instrumentos para mitigar cada um deles, seja por meio de celebração de contratos e/ou seguros, instrumentos de mercado ou legislativo, sendo cada um em conformidade com o risco que se visa evitar.
4. AS GARANTIAS NO PROJECT FINANCE
Levando-se em consideração que, em regra, o financiador externo não tem acesso ao patrimônio do patrocinador, torna-se de grande relevância as garantias prestadas pela Sociedade de Propósito Específico (SPE) criada para implementar o empreendimento.
Como mencionado no capítulo 1.1, a segregação das demais atividades da controladora é a razão de se formar uma sociedade de propósito específico (SPE), que explorará o projeto, de sorte que figura-se como principal garantia àquela incidente sobre a receita (recebíveis) do empreendimento. De igual forma, o financiador comumente exige que sejam instituídas garantias reais sobre todos os demais ativos e direitos atrelados ao empreendimento, além de ações e quotas da SPE.
Em decorrência de tais exigências exaradas pelo financiador, as operações de financiamento de projetos contemplam a estipulação de uma série de garantias, denominadas “pacote de garantias” (security package).
Nessa linha, importante se torna dizer a menção feita por Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei13, no sentido de que embora reduzidas a instrumentos próprio e apartados, as garantias guardam forte conexão entre si, estando ainda intimamente vinculadas ao contrato de financiamento.
13ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 353.
Como se observa, torna-se relevante que os instrumentos de garantia não estejam em dissonância com o contrato de financiamento como medida para evitar possíveis contradições ou erros de interpretação entre cada um dos contratos.
Assim, dentre as diversas garantias que podem ser prestadas pela Sociedade de Propósito Específico (SPE) incluem-se as garantias reais e pessoais, típicas e atípicas.
Inclusive, é sobremodo importante assinalar o aumento na instituição de garantias atípicas, cujo uso é justificado pela complexidade do financiamento de projetos e, decorrente impossibilidade de adaptar algumas garantias típicas às particularidades e necessidades dos empreendimentos.
Como exemplo de garantia desenvolvida sem qualquer disciplina legal,temos a cessão fiduciária em garantia, que, em regra, cede um direito de crédito delimitado, mas nesse caso apresenta como escopo uma posição contratual.
Por sua vez, destaco, pela pertinência, os ensinamentos de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx,14que trazas vedações para a instituição de garantias atípicas. Confira- se:
A nosso ver, a criatividade empresarial em matéria de garantias deve encontrar seus limites apenas nas normas cogentes e princípios de ordem pública que não podem ser afastados pelo mero emprego da técnica do contrato atípico.
Desta forma, embora a velocidade propiciada pelo fenômeno da globalização tenha contemplado a tipificação de certas garantias - noutro tempo atípicas, como por exemplo, o step-in rights previsto nos artigos 5º, parágrafo 2º, I, da Lei nº 11.079/2004 e 27, parágrafo 2º da Lei nº 8.987/95, com redação da lei nº 11.196/2005 - a limitação para instituição de tais garantias atípicas está nas normas cogentes e princípios de ordem pública, que não podem, em nenhuma hipótese, ser afastados.
4.1. GARANTIAS REAIS TRADICIONAIS
14ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 356.
As garantias reais classificam-se de acordo com o bem dado em garantia para o credor, podendo ser móvel ou imóvel. No que se referem às principais modalidades de garantias reais, temos as seguintes: (i) penhor; (ii) hipoteca; (iii) alienação fiduciária; e (iv) anticrese.
A propósito, no contexto do financiamento de projetos, ao contrário do que ocorre no direito civil tradicional, as garantias reais e fiduciárias têm como fundamento que os bens e direitos gravados sejam mantidos em posse da sociedade devedora, para que com tal medida seja mantido o curso normal da atividade empresarial e, assim, o empreendimento financiado possa ser executado e produza receitas sem obstáculos à continuidade da sociedade devedora.
Assim, com essa medida resta mantida a função econômico-empresarial da atividade exercida pelo empresário.
Vale lembrar ainda que o bem oferecido ao credor somente poderá ser levado à execução no caso de não pagamento da dívida, ou seja, o bem responderá pela obrigação garantida, de modo que para que a garantia tenha validade é imprescindível que atenda aos requisitos de forma, registro e publicidade.
Tecidas essas considerações, partimos para a análise das garantias em
espécie.
4.1.1. HIPOTECA
A hipoteca consiste em um direito real de garantia sobre um bem imóvel oferecido pelo devedor (ou por terceiro em seu benefício) ao credor com a finalidade de assegurar o pagamento da dívida.
A posse do bem oferecido em hipoteca permanece com o proprietário, devendo o credor requerer em juízo a venda do bem hipotecado, caso a dívida não seja paga, para que com essa medida obtenha o pagamento da quantia devida.
Inclusive, diferentemente de outros países e do próprio penhor, a hipoteca somente pode ser executada em juízo, o que representa certo desconforto para os financiadores internacionais na seara do financiamento de projetos.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei15 reforça esse entendimento, esclarecendo que:
A execução da hipoteca mediante a venda judicial, embora possa ter o aspecto positivo de, sob certa ótica, dar maior proteção ao devedor, adiciona embaraços à execução em bloco dos bens e direitos que compõem o estabelecimento comercial e, sob essa perspectiva, é prejudicial ao financiamento de projetos e seus partícipes.
Outro óbice verificado na hipoteca no âmbito do financiamento de projetos e em se tratando de concessão, permissão ou autorização governamental, refere-se à necessidade de obter a aprovação prévia do poder concedente para que seja alienado o estabelecimento comercial ou a sociedade como um todo, devendo o adquirente comprovar as suas capacidades técnica, jurídica e financeira.
Assim, diante dos embaraços acima levantados, quando possível, a instituição de penhor sobre as ações da SPE ou sobre bens e direitos pode representar a solução para tais dificuldades.
4.1.2. PENHOR
No âmbito do financiamento de projetos podem ser constituídos diversas modalidades de penhor, quais sejam: (i) penhor industrial e mercantil dos ativos; (ii) penhor de recebíveis; (iii) penhor de posição contratual e acordos diretos com as contrapartes; (iv) penhor de ações da sociedade de propósito específico e usufruto condicional; e (v) penhor de conta corrente e contrato de administração de contas.
15ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 359.
4.1.2.1. PENHOR INDUSTRIAL E MERCANTIL DOS ATIVOS
O penhor industrial e mercantil dos ativos está regulado pelos artigos 1447 e seguintes do Código Civil, e representa o penhor sobre todos os bens passíveis de qualificação como móveis, tais como maquinário e equipamentos que possam ser removidos.
Além de garantir o possível inadimplemento das prestações do financiamento, o penhor sobre todos os bens móveis tem a finalidade de impedir que tais bens sejam onerados em favor de terceiros.
Igualmente, como já mencionado, diante da premissa erigida no financiamento de projetos de manter o empreendimento como unidade produtiva, o penhor industrial e mercantil apresenta o mecanismo de constituto possessório, previsto no artigo 1431, do Código Civil, de forma que os bens continuam na posse da sociedade devedora para que seja exercida sua atividade empresarial.
Mister se faz ressaltar ainda que, no que se referem aos empreendimentos sob o regime de concessão, regulados por meio da Lei de Concessões de Serviços Público (Lei nº 8987/95), embora não haja esclarecimento quanto à possibilidade de constituir penhor sobre os bens vinculados à prestação do serviço, dependendo de autorização prévia do poder concedente para sua outorga, o artigo 28, por sua vez, prevê que a execução da garantia não pode comprometer “a operacionalização e continuidade da prestação do serviço, o que acaba limitando o alcance de um penhor de ativos outorgado por uma concessionária de serviços públicos no financiamento de projetos.
4.1.2.2. PENHOR DE RECEBÍVEIS
Com fundamento nos artigos 1451 e seguintes do Código Civil, o penhor de recebíveis demonstra-se como a garantia mais relevante no financiamento de projetos, vez que as receitas constituem a principal fonte de crédito do financiador externo.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei16elucida que:
As receitas empenhadas compreendem, via de regra, não só os créditos já originados – ou seja, aqueles incorporados definitivamente ao patrimônio da sociedade devedora e, portanto, passíveis de contabilização embora ainda não recebidos – como também os créditos futuros, a serem apropriados à medida que os bens ou serviços de que se originam forem prestados no curso normal das atividades da sociedade do projeto.
Nessa linha, embora na seção referente ao penhor de direitos no Código Civil não haja previsão expressa quanto à possibilidade de concessão do penhor quanto a créditos futuros, a seção referente a contratos aleatórios (artigo 458 e seguintes, do Código Civil) legitima a alienação de direitos futuros, o que viabiliza o penhor de direitos futuros17.
4.1.2.3. PENHOR DE POSIÇÃO CONTRATUAL
00XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 364.
17ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 364.
Além dos bens e receitas, os contratos de longo prazo firmados com fornecedores, empreiteiros e clientes também assumem relevante importância no financiamento de projetos, visto que tais contratos tem como finalidade mitigar os riscos inerentes à operação, repassando para as partes que melhor podem assumi- los.
Assim, diante do princípio de que tudo aquilo que pode ser cedido também pode ser objeto de penhor, os contratos, em regra, podem ser cedidos, exceto proibição expressa em suas disposições ou, quando pela sua natureza, não for viável a cessão.
Todavia, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei18esclarece que:
Como a legislação limita-se a regular o penhor de direitos, não oferecendo uma mecânica de execução adequada às particularidades do penhor de posição contratual, tal regulação é confiada ao contrato de penhor, que, nesse aspecto, precisa ser bastante criativo e meticuloso para alcançar seu intento.
Por conseguinte, o penhor de posição contratual pode ser considerado como o contrato de garantia que apresenta maiores dificuldades no âmbito do financiamento de projetos.
4.1.2.4. PENHOR DE AÇÕES DA SOCIEDADE DE PROPÓSITO ESPECÍFICO
Em caso de inadimplemento das obrigações estabelecidas, o financiador tem duas opções, quais sejam: I) Executar as garantias incidentes sobre o estabelecimento comercial, seus bens e demais direitos, transmitindo ao patrimônio de uma outra sociedade que tenha oferecido a melhor oferta, e que, se exigido, tenha sido previamente aceita pelo órgão regulador ou poder concedente; II) Executar o penhor sobre as ações da SPE, transferindo a totalidade da sociedade
00XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 366.
ao novo controlador que tenha dado o melhor lance, com a posterior anuência do órgão regulador e/ou poder concedente.
Logo, é inegável que a penhor das ações da sociedade de propósito específico apresenta-se como solução mais fácil que a execução do penhor dos bens e ativos, visto que com a alienação das ações viabiliza-se a transferência de todo o empreendimento, bastando apenas que o poder concedente e órgão regulador anuam à referida troca de controle acionário.
Outrossim, no âmbito do financiamento de projetos, o penhor de ações é comumente negociado de modo a contemplar também o direito de exigir em garantia os dividendos, bonificações, juros sobre capital próprio e demais frutos e direitos econômicos decorrentes das ações empenhadas.
4.1.2.5. PENHOR DE CONTA CORRENTE E CONTRATO DE ADMINISTRAÇÃO DE CONTAS
O penhor de conta corrente, o qual normalmente está integrado com o contrato de administração de contas, consiste na garantia pela qual é aberta uma conta centralizadora em nome da sociedade do projeto, em banco de confiança tanto da sociedade quanto do financiador.
Assim, com a abertura da referida conta, os clientes e contrapartes da sociedade do projeto comprometem-se a realizar os pagamentos devidos à sociedade em seus contratos por meio de depósito nessa conta corrente bancária.
Desta maneira, o financiador terá a garantia de que todas as receitas oriundas da sociedade do projeto circularão pelaconta por ele monitorada.
Como condição de eficácia desse contrato de administração de contas, o artigo 1453, do Código Civil, estabelece a obrigação de notificar a instituição financeira, de forma que, após esse trâmite, a instituição ficará responsável pelo
recebimento, em depósito, dos recursos arrecadados dos clientes e contrapartes do projeto, e a entrega-los somente para o cumprimento de finalidades específicas, isto é, a instituição depositária somente liberará à sociedade o saldo remanescente recebido, após os pagamentos dos custos e despesas necessários à continuidade da operação, bem como depois de efetuado o pagamento ao credor pignoratício (financiador) da parcela da dívida com vencimento naquele período.
4.1.3. ANTICRESE
A anticrese está prevista no artigo 1506 e seguintes, do Código Civil, e resume-se na garantia que viabiliza a entrega do imóvel onde fica a sede do empreendimento ao financiador, podendo este aplicar os frutos correspondentes (receita oriunda da exploração do imóvel) no pagamento de seu crédito (principal e juros), conforme estabelece o artigo 1506, do Código Civil.
Interessante frisar ainda uma importante característica da anticrese, prevista no artigo 1423, do Código Civil, faculta ao credor anticrético a possibilidade de usufruir do estabelecimento comercial pelo prazo de até 15 anos, enquanto não for quitado integralmente o seu crédito.
Destarte, temos que o credor anticrético encarrega-se apenas da fruição do bem imóvel e suas respectivas benfeitorias, sem assumir qualquer responsabilidade quanto à administração da sociedade.
4.2. GARANTIAS REAIS FIDUCIÁRIAS
4.2.1. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS E ATIVOS
Nas operações de financiamento de projetos, a alienação fiduciária dos bens móveis e/ou imóveis que integram o estabelecimento comercial demonstra-se como uma interessante opção em substituição ao penhor de ativos ou hipoteca.
Tal garantia está prevista no artigo 66-B, da Lei nº 4.728/65, artigos 17, IV, 22 e seguintes, da Lei nº 9.514/97 c/c artigo 51, da Lei nº 10.931/04, e artigos
1.361 e seguintes do Código Civil.
Da mesma forma que o penhor mercantil e industrial e hipoteca, os bens continuam na possa da sociedade do projeto.
No entanto, uma vantagem dessa garantia em comparação com a hipoteca, consiste na possibilidade de realizar o leilão extrajudicial do bem, consoante o previsto no artigo 27, da Lei nº 9.517/97, trazendo mais certeza ao financiador quanto à liquidez da garantia oferecida pelo devedor.
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DAS AÇÕES DA SPE
As ações da SPE constituída para explorar o projeto podem ser oferecidas em alienação fiduciária, com supedâneo nos artigos 40 e 113, parágrafo único, da Lei de Sociedade por Ações.
Semelhante ao penhor de ações, a alienação fiduciária das ações tem como vantagem o fato de as ações alienadas não integrarem a massa falida dos acionistas fiduciantes.
4.2.2. CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS
Consoante o disposto nos artigos 1361 e seguintes, do Código Civil, 17, II, 18 e seguintes, da Lei nº 9.514/97, 51, da Lei nº 10.931/2004 e 66-B, da Lei nº
4.728/65, com as alterações trazidas pela Lei nº 10.931/2004, é possível a sociedade do projeto financiado oferecer ao financiador a cessão fiduciária de direitos, em substituição ao penhor de direitos ou posições contratuais.
Nesse diapasão, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx00 faz explanação de forma esclarecedora acerca do advento de tal garantia:
Embora os arts. 1361 e seguintes do Código Civil somente aludam à constituição de propriedade fiduciária em garantia sobre coisa móvel e não sobre direito, e não obstante a Lei nº 9.514/97 (assim como o art. 51 da Lei nº 10.931/2004) só se refletir à cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, o art. 66-B, § 3 º, da Lei nº 4.728/65, com redação que lhe foi dada pela Lei nº 10.931/2004, acabou por admitir a cessão fiduciária em garantia de direitos sobre bens móveis. Xxxxx, a jurisprudência já vinha reconhecendo a validade desses negócios judiciários antes mesmo de lei autorizadora.
Não obstante exista atualmente regulamentação específica autorizando a possibilidade de ceder fiduciariamente os direitos, no financiamento de projetos há o inconveniente de transferir de imediato o direito à cobrança e retenção do crédito ao credor fiduciário, e não somente no caso de ocorrência de inadimplemento do devedor fiduciante, vez que é do interesse do próprio credor que o devedor continue arrecadando seus créditos e os utilize na continuidade do empreendimento.
Assim, como forma de obstar o problema acima mencionado, há a possibilidade de ceder os diretos sob condição suspensiva de eficácia, sendo a garantia acionada somente na ocorrência de inadimplemento, bem como na hipótese de o credor manifestara sua vontade optando por se valer de seus privilégios.
4.2.3. CESSÃO FIDUCIÁRIA DE CRÉDITOS NO ÂMBITO DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
Com a finalidade de garantir maior confiança aos investidores, o legislador brasileiro disciplinou por meio da Lei nº 11.196/2005, que introduziu o
00XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 381.
artigo 28-A à Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões de Serviços Públicos), a cessão fiduciária de créditos no âmbito de concessões de serviços públicos.
Referido artigo estabelece que o contrato de cessão fiduciária de créditos deve obrigatoriamente e como condição de eficácia ser registrado no Registro de Títulos e Documentos competente. Ainda nesse sentido, o Poder Público deve ser notificado para que esteja vinculado a tal cessão.
Todavia, o inciso III desse mesmo dispositivo deixou de estabelecer a exigência de que os usuários do serviço público sejam notificados, nos casos onde o serviço é prestado para uma coletividade, visto que a notificação de um significativo número de pessoas representaria obstáculo difícil de ser superado para que o referido contrato alcançasse a sua eficácia.
4.3. GARANTIAS PESSOAIS/FIDEJUSSÓRIAS
4.3.1. FIANÇA AO PATROCINADOR
Como anteriormente mencionado, o financiamento de projetos contempla duas modalidades, quais sejam: (i) non-recourse: que é aquela sem qualquer recurso dos acionistas; (ii) limited recourse: com recurso limitado dos acionistas.
Desta forma, o acionista patrocinador poderá outorgar fiança, de modo que, nesse caso, a referida garantia deverá ter escopo ou recurso limitado, cobrindo riscos bem delimitados, que não tenham sido assumidos pelo financiador do projeto.
Nessa guisa de entendimento, importante se faz salientar que a fiança não cobrirá qualquer inadimplemento da sociedade do projeto, mas tão somente os inadimplementos expressamente descritos na fiança.
No que pertine à denominação de valor limitado, entende-se que tal garantia se presta para fortalecer o pacote total de garantias, de forma que a fiança prestada pelo acionista patrocinador é inferior ao valor total do financiamento concedido pelo financiador.
4.3.2. FIANÇA BANCÁRIA
Também poderá ser prestada pela sociedade do projeto uma fiança bancária, a qual, assim como a fiança prestada pelo acionista, é regida pelos artigos 818 e seguintes do Código Civil, denotando-se quem tem natureza acessória, ou seja, sua validade está condicionada à obrigação principal.
Igualmente, importante se torna dizer que, em virtude do alto custo que envolve a contratação desta garantia, as fianças bancárias são utilizadas para garantir obrigações relevantes e específicas.
4.3.3. GARANTIA À PRIMEIRA DEMANDA E CARTA DE CRÉDITO
A natureza acessória da fiança traz óbices para o credor, vez que comumente o fiador suscita argumentos em relação à obrigação principal a fim retardar o pagamento da fiança. Assim, em razão da morosidade da Justiça brasileira, essa natureza acessória traz elevados custos ao credor.
Desta forma, com a finalidade de afastar referido risco, a prática empresarial passou a utilizar garantias menos concretas, cuja finalidade é de garantir ao credor a sua exigência à primeira demanda, sem que o garantidor tenha
o direito de opor qualquer exceção, tampouco o direito de questionar a exigibilidade da obrigação principal.
No entanto, por ser recente, não houve posicionamento do Judiciário da garantia em tela, restando saber se haveria respaldo a esses compromissos, no caso de eventual resistência da instituição garantidora.
Em prol da garantia à primeira demanda há o princípio da autonomia da vontade, bem como a relevância dos contratos atípicos no Código Civil vigente; por sua vez, contra há o argumento segundo o qual de que o caráter acessório da fiança é de direito público, não podendo ser alterado por deliberação das partes.
Face às dúvidas acima levantadas, é relevante que a evolução das necessidades empresariais confirmem a licitude da referida garantia.
4.3.4. SEGURO GARANTIA
Em resumo, o seguro-garantia tem como finalidade garantir determinadas obrigações de responsabilidade do segurado, em prol de um beneficiário descrito na apólice.
Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx00 ensina que existem diversas modalidades do referido seguro, quais sejam: (i) seguro-garantia para garantir a conclusão de obra (performance bond); (ii) seguro-garantia para garantir propostas em licitação (bid bonds); (iii) seguro-garantia para garantir a devolução de pagamentos antecipados a empreiteiros; (iv) seguro-garantia para substituir a retenção de pagamentos; (v) seguro-garantia para garantir tributos questionados em juízo.
20FILIPPOZZI, Xxxxxx Xxxxx, Direito Bancário Internacional, São Paulo: Observador Legal, 2001, p. 136-138.
Dentre os listados acima, no financiamento de projetos o principal é aquele que visa garantir a obrigação do empreiteiro de concluir as obras relativas ao empreendimento.
Na prática, se comparado à fiança bancária, o seguro-garantia traz menos custos para as partes.
Contudo, tem o inconveniente de ter maior prazo para a sua liquidação, vez que o seguro-garantia exige a notificação prévia ao empreiteiro, assim como um procedimento para apuração do sinistro e verificação de sua cobertura na apólice pelo segurador, para que, por fim, seja realizado o pagamento da indenização.
4.3.5. COMPROMISSO DE SUBSCRIÇÃO E INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL
No compromisso de subscrição e integralização de capital, o acionista patrocinador obriga-se a subscrever e integralizar capital na sociedade em um determinado montante, em período de tempo que seja condizente com as necessidades do projeto.
A integralização do capital social acaba por beneficiar o financiador, visto que o aumento do capital social acaba por melhorar a saúde financeira da sociedade.
4.4. INSTRUMENTOS ATÍPICOS DE GARANTIA
4.4.1. DIREITO DE INTERVENÇÃO/ASSUNÇÃO DO CONTROLE (STEP-IN- RIGHTS)
O denominado step-in-right consiste no direito do credor do projeto de intervir no controle e administração da sociedade, com a finalidade de resolver determinados inadimplementos e/ou falhas da sociedade do projeto, regularizando
as atividades do empreendimento, além de preservar as garantias e contratos do projeto.
Em resumo, essa garantia tem como finalidade que o financiador possa garantir a integridade do empreendimento como um todo, podendo, inclusive, em situações extremas, preparar o empreendimento para a sua venda por meio da excussão das garantias oferecidas pelo devedor.
4.4.2. COVENANTS
As obrigações de fazer e não fazer, também intituladas de covenants fornecem importante garantia ao financiador, haja vista que impõem uma disciplina exigente à sociedade do projeto, podendo o financiador monitorá-la detalhadamente.
5. LEI APLICÁVEL AOS CONTRATOS DE GARANTIA
Tendo em vista que as operações de financiamento de projetos com pouca freqüência restringem-se a um único país, a escolha da lei aplicável aos contratos, em especial os contratos de garantia,assume especial relevância na hipótese de ocorrência de litígios entre as partes.
Isso porque a lei elegida pelas partes durante a negociação será a aplicável na interpretação dos termos e condições dos contratos, bem como às eventuais penalidades e suas formas de aplicação.
Inclusive, a legislação pátria faculta às sociedades brasileiras a possibilidade que sejam parte de contratos regidos por leis de outros países, com exceção dos contratos de penhor que devem necessariamente ser regidos pela lei brasileira, na hipótese de os bens dados em garantia estarem fisicamente no Brasil.
Outrossim, importante se torna destacar que as legislações de direito internacional têm se inclinado na adoção de regras de conexão bastante flexíveis, sendo possível uma escolha expressa ou tácita da lei aplicável aos contratos.
5.1. AUTONOMIA DA VONTADE NOS CONTRATOS
O artigo 9º do Decreto-Lei nº 4.657/42, denominado Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, estabelece que deve ser aplicada às obrigações a lei do lugar onde estas se constituíram, de tal sorte que nos contratos será o lugar de sua conclusão, isto é, o local de assinatura do contrato.
Por sua vez, em 1994, a Organização dos Estados Americanos (OEA) realizou a V Conferência Especializada sobre Direito Internacional Privado, tendo sido aprovada a Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais, sancionando expressamente o princípio da autonomia da vontade. No entanto, tal convenção não foi ratificada até a presente data pelo Brasil.
Assim, é divergente no direito pátrio a questão acerca da possiblidade de ser aplicada a autonomia da vontade das partes em matéria de foro de eleição da lei aplicável aos contratos nacionais ou internacionais.
Pontes de Miranda21 entendia que no que se refere à eleição de lei aplicável não abarcaria o princípio da autonomia da vontade. Consoante os ensinamentos do autor:
A autonomia da vontade não existe, no direito internacional, nem como princípio, nem como teoria aceitável. Porque: a) na parte de cogência, há uma lei aplicável, que poderá conferir à vontade, por estranha demissão de si mesma, o poder de desfazer tal imperatividade, que dizer – um imperativo que se nega a si mesmo, que se faz dispositivo; b) fixados pela lei aplicável os limites da autonomia, dentro deles não há escolha de lei, há “lei” (ou outra coisa, lei revogada, página do livro, memorando, cartas), que constitui conteúdo, citação, parte integrante de um querer.
Nessa linha, Xxxxxx xx Xxxxx Batalha22 tem o mesmo entendimento, discorrendo que “inaceitável é a autonomia da vontade para a indicação da lei aplicável. A autonomia da vontade só pode exercer-se no âmbito das normas dispositivas do direito reputado aplicável”.
21MIRANDA, Pontes de, Tratado de Direito Privado, São Paulo: Bookseller, 2000, p. 156.
22 BATALHA, Xxxxxx xx Xxxxx, Tratado Elementar de Direito Internacional Privado, São Paulo: RT , 1981, p. 180.
De modo diverso dos entendimentos acima expostos, trazemos à baila os ensinamentos de Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx Cinta e Xxxxxx Xxxxxx,23que se filiam à corrente de que o princípio da autonomia da vontade é soberano, razão pela qual as partes podem eleger contratualmente a lei aplicável:
Não há porque supor que, contrariando a regra geral da autonomia da vontade em matéria contratual, as partes fossem impedidas de escolher a lei mais adequada para reger seu contrato internacional. Ao contrário do que afirmam alguns, isso não representa qualquer ofensa à ordem pública brasileira. Naturalmente, a escolha da lei aplicável possui limitações, mas a própria lei brasileira se encarrega disso ao afirmar que não prevalecerão as disposições da lei estrangeira que contrariem a ordem pública brasileira, os bons costumes ou a soberania nacional.
Como se nota, essa discussão entre os doutrinadores brasileiros está longe de acabar, havendo necessidade de que os tribunais superiores posicionem- se a respeito ou, ainda, que haja a modernização da Lei de Introdução ao Código Civil, com a finalidade de contemplar o princípio da autonomia da vontade.
00XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx. Lei Aplicável: Uma questão de Escolha. e-juridico, [on line], [09.03.2004], disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxXxxx/00,XX0000,00000-XxxxXxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, acesso em 30.04.2016.
6. CASO CONCRETO – GARANTIAS PRESTADAS NO ÂMBITO DO PROJECT FINANCE DA PARCERIA PÚBLICO PRIVADA DO SISTEMA PRODUTOR ALTO TIETÊ – SPAT
Com a finalidade de ilustrar a relevância das garantias contratuais no financiamento de projetos, no presente capítulo será analisado o caso da sociedade de propósito específico CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A, que foi constituída para a consecução do Contrato de Parceria Público Privada firmado com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp para ampliação da capacidade de tratamento de água da Estação de Tratamento de Água de Taiaçupeba.
Assim, a fim de viabilizar os investimentos necessários ao projeto, foi modelada estrutura de Project Finance, tendo sido firmado contrato de financiamento com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, de tal sorte que listamos abaixo as principais garantias deste projeto.
Contrato de Penhor de Ações
Partes:
(a) Xxxxxx Xxxxxxxxxx S/A e Companhia de Águas do Brasil – CAB Ambiental – Acionistas Devedoras;
(b) Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES - Credora;
(c) CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A – Interveniente-Anuente.
Ativos Empenhados:
Para assegurar o pagamento das obrigações pecuniárias assumidas pela Interveniente-Anuente, CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A, no Contrato de Financiamento, como o principal da dívida, juros, comissões, pena convencional, multas e despesas, bem como o ressarcimento de toda e qualquer importância que o BNDES precise desembolsar em virtude da manutenção e/ou excussão do penhor constituído, as Acionistas, deram em penhor, em primeiro grau, ao BNDES, em conformidade com os artigos 1.431 e seguintes do Código Civil e 39, da Lei nº 6.404/1976, os bens e direitos abaixo descritos:
(a) Todas as ações representativas do capital social da Interveniente- Anuente, de titularidade das Acionistas, que representam a totalidade do capital social da Interveniente-Anuente;
(b) Todas as novas ações de emissão da Interveniente-Anuente que qualquer das Acionistas venha a adquirir no futuro, durante a vigência do Contrato de Penhor, seja na forma dos artigos 167, 169 e 170, da Lei nº 6.404/1976, seja por força de desmembramentos ou grupamentos das ações, seja por consolidação, fusão, permuta de ações, divisão de ações, reorganização societária ou sob qualquer outra forma, quer substituam ou não as ações originalmente empenhadas, às quais, uma vez adquiridas por qualquer das Acionistas, ficará automaticamente estendido o penhor, aplicando-se a estas todos os termos e condições do Contrato, passando as mesmas a integrar a definição de ações e bens empenhados para todos os fins e efeitos do Contrato;
(c) Todos os frutos, lucros, rendimentos, bonificações, juros, distribuições e demais direitos, inclusive dividendos e juros sobre capital próprio (em dinheiro ou mediante distribuição de novas ações) e direitos de subscrição, que venham a ser apurados, declarados, creditados ou pagos pela Interveniente-Anuente em relação às ações, bem como debêntures conversíveis, partes beneficiárias ou outros valores mobiliários conversíveis em ações, relacionados à sua participação no capital social da Interveniente-Anuente, além de direitos de preferência e opções, que venham a ser subscritos ou adquiridos pelas Acionistas até a liquidação do Contrato de Financiamento;
(d) Todos os valores recebidos ou de qualquer forma distribuídos às Acionistas a título de qualquer cobrança, permuta, venda ou outra forma de disposição de qualquer das ações e quaisquer bens ou títulos nos quais as ações sejam convertidas (incluindo qualquer depósito, valor mobiliário ou título negociável); e
(e) Todos os títulos, valores mobiliários, respectivos rendimentos e quaisquer outros bens e direitos eventualmente adquiridos com o produto da realização da garantia mencionada nos itens (a) a (d) acima.
Contrato de Cessão Fiduciária de Direitos Creditórios
Partes:
(a) CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A – Devedora;
(b) Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES - Credora;
(c) Banco Itaú S/A – Banco Depositário.
Ativos Cedidos Fiduciariamente:
Em garantia do cumprimento integral das obras presentes e futuras do Contrato de Financiamento, incluindo o pagamento integral e pontual do valor de
principal da dívida, juros compensatórios e moratórios, comissões, multas, tributos, tarifas, outros encargos, judiciais ou não, e honorários advocatícios, bem como o ressarcimento de toda e qualquer importância desembolsada por conta da constituição, do aperfeiçoamento e do exercício de direitos e da execução de garantias prestadas e quaisquer encargos e outros acréscimos devidos ao BNDES por força do Contrato de Financiamento, a CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A, cedeu fiduciariamente, nos termos do artigo 28-A, da Lei nº 8.987/1995, do artigo 66- B, da Lei nº 4.728/1965, os seguintes direitos:
(a) O direito ao recebimento da integralidade da receita Devedora proveniente do pagamento da remuneração pelo Poder Concedente, entendida como a contraprestação pecuniária devida pela Sabesp à Devedora pela execução do objeto do Contrato de Concessão, que abrange o principal, bem como os acessórios eventualmente devidos pela Sabesp à CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A, tais como juros e multas;
(b) Todos os demais direitos da Devedora emergentes do Contrato de Concessão, incluindo, mas não se limitando a:
(i) O direito de receber todos e quaisquer valores que, efetiva ou potencialmente, sejam ou venham a se tornar exigíveis e pendentes de pagamento à CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A, incluindo, mas não se limitando a, todas as indenizações cabíveis que lhe forem devidas, nos casos previstos em lei e no Contrato de Concessão;
(ii) O direito exclusivo de exploração dos serviços concedidos pela Sabesp à CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A no Contrato de Concessão;
(iv) Todos os demais direitos, corpóreos ou incorpóreos, potenciais ou não, que possam ser objeto de cessão, de acordo com as normas legais e regulamentares aplicáveis; e
(c) A totalidade dos direitos creditórios detidos pela CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A contra o Banco Depositário;
(d) A totalidade dos direitos creditórios detidos pela Devedora contra quaisquer bancos, relativos aos depósitos realizados nas contas correntes destinadas a receber o pagamento da remuneração mensal devida pela Sabesp.
Covenants
Para proteger o interesse do BNDES, foram estabelecidos os seguintes índices econômico-financeiros, apurados com base em demonstrações financeiras trimestrais:
Índice | Meta |
Índice de Cobertura do Serviço da Dívida | Maior ou Igual a 1,3 |
Margem EBITDA | Maior ou Igual a 55% |
Na hipótese de a CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A deixar de alcançar tais índices, terá o prazo de 6 (seis) meses para comprovar o restabelecimento dos referidos limites e índices, mediante apresentação das próximas demonstrações financeiras auditadas e/ou revisadas, sob pena de ter de aportar, mediante aumento de capital ou adiantamento para futuro aumento de capital (AFAC), recursos em montante suficiente para o restabelecimento dos índices acima explicitados.
Transferência de Controle da SPE aos Financiadores (Step-in-Rights)
O Contrato de Parceria Público Privada firmado com a Sabesp autoriza a transferência do controle da CAB Sistema Produtor Alto Tietê S/A para o BNDES com o objetivo de promover sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da exploração do objeto da Concessão Administrativa, nas condições
pactuadas. Para tanto, deverá a Sabesp ser comunicada previamente sobre tal intenção.
Demais Mecanismos que Resguardam o Direito do Credor
As garantias acima descritas têm o condão de proteger o Banco Credor, no caso o BNDES, inclusive vedando que, sem a sua prévia autorização, não haja cessão ou seja constituído penhor ou gravame sobre os direitos cedidos fiduciariamente, sob pena de vencimento antecipado do Contrato de Financiamento.
Ademais, além das garantias supracitadas, o Contrato de Financiamento prevê outras formas de controlar o bom andamento das atividades da SPE, como por exemplo proibindo que sem a prévia e expressa anuência do BNDES não seja efetuada a distribuição de quaisquer recursos aos acionistas, seja sob a forma de dividendos, juros sobre o capital próprio, pagamento de juros, amortização de dívida subordinada, resgate, reembolso, amortização ou recompra de ações, participação nos resultados ou honorários a qualquer título.
Desta forma, as garantias acima explicitadas, tem o condão de resguardar os interesses do BNDES, na hipótese de a SPE tornar-se inadimplente com as suas obrigações.
CONCLUSÃO
O Financiamento de Projetos demonstra-se como relevante medida para tornar exeqüíveis e seguros os financiamentos de grandes obras de infra-estrutura, com a concessão de garantias, cuja principal finalidade e mitigar e compartilhar os riscos oriundos de tais projetos.
O financiamento de projetos é fruto da crescente complexidade das operações econômicas, as quais não mais se satisfazem com contratos singulares e formulas contratuais tradicionais, reclamando redes de contratos condizentes com a moderna realidade empresarial.24
Na atualidade, está em andamento uma relevante mudança no que pertine aos contratos de financiamento de projetos, que consistem em uma rede de
00XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 423.
contratos coligados, mas que, embora esse mecanismo esteja disseminado na prática empresarial, ainda está pendente de regulação na legislação pátria. Nesta esteira, as garantias concedidas demonstram-se como importante mecanismo para assegurar o interesse das partes.
Assim, as garantias concedidas no âmbito do financiamento de projetos, que contempla grandes variações e modalidades atípicas, têm de um lado a preocupação de preservar, enquanto não ocorrido um inadimplemento de maior gravidade, a sociedade devedora na posse de seus bens e no exercício regular de seus direitos, de forma a assegurar a continuidade do empreendimento e a sua constante geração de receitas. Em contrapartida, em caso de inadimplemento que não seja possível sanar, as garantias buscam propiciar ao financiador flexibilidade quanto à sua execução.
Nessa linha, o financiamento de projetos e derivações são instrumentos potencialmente úteis para viabilizar a captação de grandes volumes de recursos e seu investimento em empreendimentos socialmente relevantes. O encorajamento dessas iniciativas apresenta-se, portanto, como uma medida louvável e deve ser buscado, mas não a qualquer custo.25
Infelizmente, a legislação pátria não prevê determinadas inovações que são de suma importância, cabendo ao Poder Público regular o financiamento de projetos, de modo a estabelecer regras para que o Brasil não fique fora do contexto internacional, sem, no entanto, ferir os princípios fundamentais do sistema legislativo brasileiro.
Ademais, levando-se em consideração que os project finances hoje são uma realidade no Brasil, é imprescindível que sejam apaziguadas determinadas questões, como medida para reduzir a instabilidade jurídica do país e, por conseguinte, o risco daqueles que tem a intenção de investir vultosas quantias em setores determinantes do país.
25PÉDAMON, Xxxxxxxxx. How is convergence best achieved in international project finance? Forhem International Law Journal, Abril:2001, p.1272-1318
Inclusive, insta salienta que a jurisprudência pátria ainda não enfrentou determinadas questões atinentes ao financiamento de projetos.
Por esse motivo, o nosso entendimento é no sentido de que a crescente disseminação de novas estruturas de financiamento parte do princípio que o direito positivo e o sistema jurisdicionalresguardará o cumprimento das disposições contratuais adotadas e, mais que isso, a efetividade da alocação de riscos contemplada pelas partes, respeitando sua liberdade contratual, com exceção daquilo que seja norma de direito público, ou ainda, atinja os direitos de terceiros.
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