EXCELENTÍSSIMO SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAMPOS DOS GOYTACAZES
EXCELENTÍSSIMO SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAMPOS DOS GOYTACAZES
EMENTA: CONSUMIDOR E CIDADANIA. Má prestação dos serviços de água e esgoto. Abusividade no percentual cobrado por estimativa a título de tarifa de esgoto (100%). Omissão quanto à obrigação de fiscalizar ligações clandestinas de esgoto na rede de águas pluviais, acarretando o agravamento de danos ambientais nefastos. Excessiva onerosidade à coletividade ante o formato eleito à concessão por parte do poder público e o montante investido até o momento pela sociedade concessionária, inferior ao previsto.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, por seu
Promotor de Justiça signatário, com fundamento nos arts. 3º, incs. I e IV, 5º, caput e inc. XXXII, 127, 129, inc. III, e 170, inc. V, todos da Constituição Federal; no art. 1º, inc. II, 5º, caput e demais dispositivos da Lei n. 7.347/85; no Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), arts. 81, par. único e seus incs., art. 4º, incs. I, III e IV, art. 6º, incs. II, VI, VII e VIII, art. 39, incs. V e X, e art.51, inc. IV c/c §1º, incs. I e III; nas Leis n.º 8.987/98 e 11.445/07; na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n. 8.625/93); no art. 82, inc. VII, “b”, da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar n. 106, de 03 de janeiro de 2003), e, ainda, sobretudo, com base no Inquérito Civil n. 2014.00769718 (Portaria n.º 173/2014) doc.j.01, que segue anexo e ao qual será feita menção pelo número de folhas, que tramitou na 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Campos dos Goytacazes, com o objetivo de investigar cobrança excessiva de tarifa de esgoto, avaliando, outrossim, a prestação de serviço público nessa área, vem, à presença de Vossa Excelência, propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
com pedido LIMINAR
em face da ÁGUAS DO PARAÍBA S/A, pessoa jurídica de direito privado concessionária do serviço público de água e esgoto, inscrita no CNPJ sob o n. 01.280.003/0001-99, com sede na Xxxxxxx Xx. Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, x. 000, Xxxxxx, Xxxxxx xxx Xxxxxxxxxx-XX, XXX 00.000-000, e o MUNICÍPIO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES, pessoa jurídica de direito público, inscrita no CNPJ de n.º 29.116.894/0001-61, com sede na Xxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx, x.x 00, Xxxxxx Xxxxx Xxxxx, nesta cidade, pelos fatos e fundamentos a seguir expostos:
I – DOS FATOS:
DA COBRANÇA INDEVIDA DA TARIFA DE ESGOTO POR ESTIMATIVA
1. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio de sua 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Campos dos Goytacazes, instaurou o Inquérito Civil n.º 2014.00769718 (Portaria n.º 173/2014) doc.j.01, diante de inúmeras notícias relatando que é prática da concessionária, primeira Ré, promover a COBRANÇA POR ESTIMATIVA DA TARIFA DE ESGOTO, ou seja, no percentual de 100% (cem por cento) do valor total da tarifa de água, em desconformidade com a Norma Técnica NBR-9649 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, que estabelece o "coeficiente de despejo" e demonstra que somente 80% da água consumida é, de fato, devolvida ao meio ambiente em forma de esgoto (coeficiente de despejo igual a 0,8) – doc.j.02
2. É pacífico o entendimento nos estudos sobre o esgotamento sanitário que nem toda água fornecida transforma-se em esgoto. A referida perda de volume é conceituada como coeficiente de retorno, o qual depende de diversos fatores, como a localização da residência, existência de fontes particulares de abastecimento, condições de arruamento, tipo de clima, entre outros, totalizando 0,75 a 0,85, dependendo do caso concreto.
3. Buscando padronizar o tema, a Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, através da Norma Técnica NBR 9649, fixou as condições exigíveis na elaboração de projeto hidráulico-sanitário de redes coletoras de esgoto sanitário, conceituando coeficiente de retorno como “a relação média entre o volume de esgotos produzido e o volume de água efetivamente fornecido à população”, padronizando o coeficiente no patamar 0,8, ou seja, de 80% da água consumida.
4. Como se nota, referido percentual de perda (20%) restou definido e se justifica, uma vez que, invariavelmente, o volume de água e resíduos sólidos que sai pelas vias coletoras de esgoto não é o mesmo daquele que passa pelo hidrômetro e chega às unidades consumidoras; tal perda se deve a diversos fatores, dentre os quais a utilização da água em piscinas, jardins, lavagem de quintais, evaporação, ou mesmo perdas ao longo da tubulação e eventual despejado nas galerias de águas pluviais.
5. A prática abusiva da cobrança por estimativa da tarifa de esgoto restou confirmada, em afronta às normas de defesa ao consumidor que apontam em sentido diametralmente oposto, mormente quanto ao respeito à sua condição de
vulnerabilidade, necessária boa-fé objetiva nas relações de consumo, transparência, confiança e, sobretudo, equidade contratual, segundo a qual o equilíbrio da aludida relação deve ser buscado, inclusive promovendo-se a interpretação mais favorável ao consumidor. In casu, tal interpretação importa em obediência às normas técnicas existentes (NBR9649 – da ABNT) – notadamente diante da inexistência de medidor para aferir o montante de esgoto recolhido das unidades;
6. Assim, em levantamento procedido pelo Parquet, recolhendo-se informações acerca de outros municípios de mesmo porte que Campos dos Goytacazes (cujos respectivos serviços de água e esgoto são prestados, via concessão, pelas empresas CESAN, SANEPAR, COPASA, CORSAN etc.), concluiu-se que o percentual praticado para fixação das tarifas de esgoto giram, em média, na casa dos mencionados 80% do valor cobrado a título de tarifa de água, com arrimo na aludida Norma Técnica NBR-9649 (doc.j.02).
7. Analisando-se as políticas tarifárias praticadas pelas citadas companhias, vê-se que algumas chegam à precisão de diferir entre esgotamento dinâmico com coleta (EDC) e esgotamento dinâmico com coleta e tratamento (EDT), ou seja, cobram de forma diferenciada e adequada os consumidores que tem tratamento do esgoto que é lançado, e os que apenas contam com o serviço de coleta pura e simples. A título de exemplo, vejam-se alguns desses casos pelo país:
COPASA – MG
CORSAN - RS
SANEPAR – PR
8. De outro lado, anexa-se a planilha tarifária praticada pela Ré, indicando a cobrança do valor de 100% da tarifa de água em virtude do serviço de esgoto, sem que haja distinção das unidades que recebem o serviço de tratamento de esgoto, e aquelas em que apenas se tem a coleta. Veja-se:
Águas do Paraíba
9. Ademais, no curso das investigações, aferiu-se a lenta extensão da rede de coleta de esgoto neste município, permanecendo a utilização de fossas sépticas, ou mesmo a existência de ligações clandestinas de esgoto, muitas das quais são interligadas às redes de águas pluviais deste município, que desaguam no Rio Paraíba do Sul (representações variadas, dentre as quais as contidas às fls. 465/470, 474, 477, 481, 484/489 do IC n.º 173/14).
10. Insta asseverar que a empresa concessionária, ora Ré, queda-se inerte no tocante ao auxílio do Poder Público na efetiva fiscalização de ligações clandestinas de esgoto, em completo desacordo com os planos nacional e municipal de Saneamento Básico, afrontando, ainda, as seguintes obrigações constantes do Contrato de
Concessão (fls. 93/104 do IC n.º 173/14), ratificadas no Termo de Reratificação (fls. 57/70 do IC n.º 173/14) e demais termos aditivos constantes dos autos. Veja-se (fl. 98):
agentes de proteção do meio-ambiente
concedidos, respondendo pelo assessoramento à coletividade na preparação dos dossiês exigidos pelos
Zelar pela proteção dos recursos naturais e ecossistemas de qualquer forma envolvidos nos serviços
“2. Realizar os investimentos necessários à manutenção e expansão dos serviços, objeto da presente contratação, nos termos da Proposta por ela ofertada na licitação que antecedeu o presente Contrato; [...]
5.
;
[...]
8. responder pelo integral cumprimento das regulamentações vigentes no País, em especial quanto às obrigações sociais, trabalhistas, previdenciárias, tributárias, securitárias, fiscais, comerciais, civis e criminais relacionadas, direta ou indiretamente, aos serviços ora concedidos;
9. responsabilizar-se por todos os danos e prejuízos de qualquer natureza causados à CONCEDENTE, e/ou a terceiros, face à sua ação ou omissão, ou de seus empregados, subcontratados e prepostos, decorrentes dos serviços ora concedidos;”
11. O fato é deveras grave, e põe em risco toda a coletividade, sendo certo que a inércia da parte Ré em colaborar com os meios técnicos e sua expertise vem contribuindo decisivamente para tanto, afrontando os ditames contratuais, balizadores da concessão em curso;
12. Vale observar que, ao longo da apuração, diversas diligências foram envidadas pelo Grupo de Apoio aos Promotores – GAP, a demonstrar a inadequação do serviço prestado, o que corrobora com o fato de que a cobrança do valor de 100% da tarifa de água para a tarifa de esgoto não vem se convertendo em efetivas melhorias à população (fls. 493/500, 528/546 do IC n.º 173/14);
13. Requisitadas informações acerca dos fatos noticiados, notadamente quanto ao fundamento legal e ao valor/percentual cobrado a título de tarifa de esgoto, bem como das medidas fiscalizatórias tendentes a coibir a prática de ligações clandestinas de redes de esgoto á rede municipal de águas pluviais, a Concessionária, ora demandada, em síntese informou que:
I) "a) o critério adotado pela Águas do Paraíba para estabelecer as faixas de consumo fixadas na conta do consumidor, é aquele definido pelo Município, na condição de Poder Concedente, no item 12.2.8 desde o Edital de Licitação, conforme cópia anexa, e replicada no Contrato de Concessão, no parágrafo quinto da cláusula quarta, conforme cópia também anexa.
II) "e) O fundamento legal para atribuição de 100% do valor apurado com o fornecimento de água, para a cobrança do esgotamento sanitário, que também é que imprescindível para o equilíbrio
econômico financeiro do objeto concessório, também está estabelecido pelo Poder Concedente nas tabelas descritas no item ‘a’, ora anexadas, e legitimado através do entendimento dos Tribunais sobre a matéria e especificamente no Art. 10 do Decreto Federal n.º 7217, que regulamenta a Lei Federal 11.445, in verbis:
A remuneração pela prestação de serviços públicos de esgotamento sanitário poderá ser fixada com base no volume de água cobrado pelo serviço de abastecimento de água.
Esclarece-se, por oportuno, que os investimentos e manutenção dos serviços de esgotamento sanitário são muito mais onerosos do que os de abastecimento de água, e, o procedimento tarifário para cobrança da tarifa de esgoto tendo como base o volume de água consumido considerado imprescindível ao equilíbrio econômico financeiro do objeto concessório, inclusive para viabilizar que o nosso Município tenha atualmente 100% do esgoto coletado pela Concessionária devidamente tratado;
III) "g) 100% do esgoto coletado pela Concessionária á atualmente devida e respectivamente tratado através de uma das seis Estações existentes; esclarecendo que na assunção da empresa, havida em 09/1999, nenhum esgoto coletado era tratado;
"h) em regra, a cobrança da tarifa de esgoto leva em consideração ao volume de água consumido, tal como acima descrito. "
"Com a devida vênia, é evidente a impropriedade de tal alegação. É que as mais variadas leis, dentre as quais as Leis n. 8.987/95 (lei de concessões) e 11.445/07 (lei do saneamento), que tratam da matéria, são claras em vincular a tarifa aplicável aos serviços ao equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços, ou seja, a aplicação da sugestão trazida pela denúncia só faria sentido se o custo para execução e operação dos serviços de esgotamento sanitário fossem inferiores ou no máximo equivalentes ao abastecimento de água, o que notoriamente não são, como já dito anteriormente.
DO HISTÓRICO QUE JUSTIFICOU A CONCESSÃO DO SERVIÇO
14. Como restará demonstrado, o cenário existente à época da realização do certame licitatório que culminou na concessão, que ora se analisa, não mais subsiste!
15. Á época, em 1999, o Município de Campos dos Goytacazes optou por rescindir a relação contratual outrora havida com a CEDAE (fl. 148 do IC n.º 173/14), a fim de promover referido certame visando a que a iniciativa privada (via sociedade empresária ou grupo de sociedades) se habilitasse a, mediante expressivos investimentos iniciais, implementar e ampliar a insuficiente rede de coleta e tratamento de esgoto, aprimorando a rede de distribuição e fornecimento de água. E, após a adequação e modernização do atendimento, posto que até então prestado de maneira defasada,
pudesse ser indenizada pelos valores investidos, e auferir lucro, dado o extenso prazo de duração previsto: 30 anos!
16. No entanto, O QUE SE VIU NÃO FOI ISSO!
17. Em verdade, o grupo societário que se sagrou vencedor na licitação em comento assumiu a prestação dos serviços de fornecimento de água e esgoto em 14/09/1999 (após conturbado momento inicial, com discussão judicial sobre o tema), porém passou a promover de maneira lenta os investimentos, à medida em que recebia a contraprestação dos consumidores via tarifas pagas, realizando mero gerenciamento dos aportes financeiros decorrentes do contrato;
18. Tal fato se confirma quando, com muita dificuldade, a concessionária buscou se esquivar em responder ofícios encaminhados pelo Parquet (fls. 571, 575 do Inquérito Civil n.º 173/14 anexo), no sentido de que informasse o montante investido pela mesma ao longo de toda a concessão – a qual já conta com cerca de 20 anos!
19. Ao contrário, apenas se limitou a narrar o estado em que assumiu os serviços (cenário, inclusive, que justificou a opção administrativa de promover a entrega da prestação do serviço via concessão), indicando como valor aportado o montante de R$ 257.115.700,00 ao longo de todo o período até o ano de 2017 – ou seja, por significativos 18 anos! (Anexo ao Inquérito Civil 173/14 – ofício n.º 068/2018)
Não foi por outro motivo que a parte Ré não informou o montante auferido via pagamento de tarifas por parte das unidades consumidoras, existentes neste | ||
município (limitando-se a encaminhar relatórios de faturamento genéricos), | notadamente | |
porque de certo supera em muito referida quantia supostamente investida, fazendo face às despesas e aos “investimentos” supostamente procedidos pela | ||
concessionária, com muita folga | . |
20.
Veja-se: a quantia informada revela investimentos inexpressivos, de pouco mais de R$ 14.000.000,00 ao ano, ou seja, pouco mais de R$ 1.000.000,00 ao mês, num município de quase 500 mil habitantes, e 118.616 ligações totais (unidades consumidoras), das quais 115.967 ativas (segundo dados informados pela própria parte Ré – Anexo ao IC 173/14 – ofício n.º 068/2018). Sabendo-se que o valor da taxa mínima gira em torno de R$ 87,26, numa operação aritmética simples chega-se à arrecadação mensal (mínima) de cerca de R$ 10.119.744,29 – ou
seja, mais de 10 (dez) vezes o valor supostamente investido!!!
21.
22. O fato é que o modelo de concessão atualmente adotado pelo Município de Campos dos Goytacazes se mostra extremamente oneroso à coletividade (ferindo a economicidade), já que vem arcando com o ônus de sustentar estrutura administrativa da iniciativa privada, que se restringe, repise-se, a meramente gerenciar os aportes financeiros decorrentes do pagamento das tarifas por parte dos consumidores, compostos em sua esmagadora maioria pelos munícipes.
23. Ora, Excelência, como é cediço inúmeros municípios ao longo de nosso país adotam o chamado sistema SAAE – Serviço Autônomo de Água e Esgoto. Assim, promovem a prestação autônoma e direta do serviço de fornecimento de água e coleta e tratamento de esgoto, gerenciando os recursos provenientes da cobrança das respectivas tarifas. Municípios como Sorocaba (xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx.xx/), Mogimirim (xxx.xxxxxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/), Guarulhos (xxx.xxxxxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/), Aparecida (xxx.xxxxxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/), Aracruz (xxx.xxxxxxx.xxx.xx/) Barramansa (xxx.xxxxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxxx/), Volta Redonda (xxx.xxxxxx.xxx.xx/), dentre muitos outros, adotam referido sistema.
24. Ou seja, se a concessão vem se prestando apenas para o gerenciamento dos aportes financeiros decorrentes do contrato, tal mister pode ser plenamente desempenhado pela própria Administração Pública, sob pena de restar excessivamente onerosa e dispendiosa, da forma como atualmente vem sendo promovida, EM DETRIMENTO DOS INTERESSES DA COLETIVIDADE, que ora se busca tutelar!
25. Inúmeras são as reclamações dos usuários acerca da cobrança da tarifa de esgoto ocorrer na razão de 100% da tarifa de água. A população discorda veementemente da opção adotada pela Administração, que optou por buscar apoio na iniciativa privada, contudo não recebeu os investimentos esperados – o que não restou comprovado pela Concessionária, ora Ré, ao longo de toda a instrução nos autos do Inquérito Civil n.º 173/14, que lastreia a presente demanda judicial.
26. Portanto, de todo apurado e também das informações prestadas pela própria Companhia Ré, constata-se que a cobrança da tarifa de esgoto não ocorre pelo consumo real, medido a partir da quantidade de água individualizada que retorna para a rede de esgoto, mas pelo consumo máximo PRESUMIDO do sistema, acrescido do custo de vários outros fatores.
27. Ora, a forma de cobrança levada a efeito pela concessionária ÁGUAS DO PARAÍBA se apresenta abusiva não somente por estar em contrariedade à norma da XXXX XXX-0000, mas também por faltar amparo probatório em suas alegações, porquanto restringe-se a apresentar justificativas sem, contudo, demonstrar
tecnicamente o alegado, tratando-se, pois, de verdadeiro enriquecimento sem causa – COBRANÇA POR ESTIMATIVA.
28. Desse modo, caracterizado o flagrante desrespeito aos direitos do consumidor, não há outro caminho senão a propositura da presente ação, a fim de que os ideais de justiça sejam concretizados.
DA NULIDADE DAS PRORROGAÇÕES DE PRAZO E DEMAIS ILEGALIDADES DO CONTRATO DE CONCESSÃO EM TELA
29. Não bastassem todas as irregularidades até então narradas, podem-se constatar outras ilegalidades tão graves ou ainda piores, decorrentes da análise das previsões de prorrogação de prazo do contrato de concessão sob exame, previstas em termos aditivos subsequentes ao contrato de concessão original, em cotejo com as previsões constantes do Edital de Licitação (01/96) e respectivo Regulamento da Licitação (cf. fls. 183/230 do Inquérito Civil n.º 173/14, que instrui a presente – doc.j.01).
30. Como já narrado alhures, o Edital de Licitação n.º 01/96, que deflagrou o processo licitatório via Concorrência Pública tendente à escolher a melhor proposta para a celebração do contrato de concessão dos serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto, ora objeto da presente demanda judicial, preconizava o prazo de 30 anos de vigência – contagem essa que se iniciou a partir de 14/09/99.
31. Em dezembro de 2003, termo de re-ratificação foi celebrado, no bojo do qual restou reafirmada referidas balizas temporais, sendo indicado expressamente que, justificadamente, poder-se-ia prorrogar o aludido prazo até o limite máximo de 15 anos (cf. fls. 57/70 – doc.j.01).
32. Celebrado em dezembro de 2006, o primeiro Termo Aditivo ao contrato de concessão promoveu previsões acerca da tarifa residencial social (fls. 71/74 – doc.j.01), sendo certo que em novembro de 2007 um Segundo Termo Aditivo (fls. 75/77 – doc.j.01), no qual restou realizada as seguintes previsões:
“CLÁUSULA PRIMEIRA
O sistema de esgotamento sanitário do bairro Parque Imperial, composto por estação de tratamento de esgoto, elevatórias de esgoto, redes coletoras de esgoto e ligações domiciliares de esgoto, que está sendo implantado pela CONCEDENTE, às suas próprias
expensas, e que terá suas obras concluídas no ano de 2008, deverá ser operado pela CONCESSIONÁRIA a partir da conclusão de suas obras. [...]
CLÁUSULA SEGUNDA
O Contrato de Concessão passa a ter seu prazo extendido por mais 108 (cento e oito)
meses, conforme definido no Processo Administrativo n.º 07089/2007.”
33. Ora, Excelência, como se entender “legal” um termo aditivo criado para ampliar a área de exploração econômica da sociedade empresária Concessionária, a partir de uma obra toda promovida as custas do Erário Municipal (obras de esgotamento sanitário do Parque Imperial), ampliando, assim, sua expectativa de lucros, e ainda a reboque com a ampliação do prazo geral da concessão, por mais 9 (nove) anos?
34. Verdadeira violação aos princípios norteadores da Administração Pública, seja pelo aspecto da LEGALIDADE e MORALIDADE ADMINISTRATIVA, seja pela expressa menção constante do Edital da Concorrência Pública, que prevê exclusivamente como causa à prorrogação dos prazos previstos na concessão hipóteses de excepcional dificuldade, a juízo da Município, relacionadas com aprovação de relatórios e projetos pertinentes junto aos órgãos competentes (item 6.3 do Edital – fls. 190 – doc.j.01).
35. Como se vê, não foi declinada nenhuma causa contratualmente relevante a justificar a prorrogação do contrato de concessão por mais longos 9 anos, do contrário, apenas fato que enseja maior lucratividade para a concessionária, ora Ré, a qual passou a estar autorizada a cobrar a tarifa de esgoto num bairro expressivo da cidade (Parque Imperial), extraindo, portanto, inegável bônus de mais essa parcela da população;
36. Sendo assim, haveria alguma justificativa plausível e contratualmente prevista, capaz de autorizar uma prorrogação de prazo da concessão?
indevidamente.
relação jurídica no âmbito da Administração Municipal, quer pela cobrança irregularmente procedida quanto à estimativa do percentual do esgoto coletado, quer pela violação contratual ante a ausência dos investimentos esperados e prometidos, ou ainda em virtude da inércia e negligência da mesma, haja vista a flagrante falha na prestação do serviço de fiscalização contra danos ao meio ambiente, decorrentes de lançamentos de esgoto na rede de águas pluviais
37. Certamente não houve nem há justificativa plausível para a perpetuação dessa
38. Como se vê, o Edital e o respectivo Regulamento da Concessão estipulam como um dos deveres da Concessionária a preservação e conservação do Meio Ambiente (Art. 6º, X do Regulamento da Concessão – fl. 222 – doc.j.01), além da MODICIDADE da tarifa cobrada à coletividade. No entanto, de acordo com as notícias amealhadas nos autos, conclui-se que a negligência da Concessionária Ré em fiscalizar ligações irregulares de esgoto nas galerias de águas pluviais vem acarretando danos significativos ao meio ambiente, sendo certo que, até o momento, não há um plano de ação que vise ao combate de tal prática.
39. Tal fato restou corroborado em sede deste Órgão Ministerial, por parte do representante da sociedade empresária Ré, em 28/04/2015 (fls. 272/273 do IC n.º 173/14), oportunidade em que afirmou: “em relação ao esgoto, informou que há ligações clandestinas de imóveis, conectadas à rede de águas pluviais e também ligações clandestinas de águas pluviais de imóveis, à rede de esgoto, o que gera derramamentos de esgotos em cursos de água, o que não é da responsabilidade da empresa, já que a rede de águas pluviais é de responsabilidade da Prefeitura”. E concluiu: “que a empresa já verificou ocasionalmente em intervenções realizadas na rede de esgoto, que há redes de águas pluviais assoreadas, o que foi constatado com o uso de robôs, que inspecionaram a rede de águas pluviais, para detectar eventuais despejos indevidos de esgoto; que muitas vezes não é possível o robô passar pela rede de águas pluviais, em razão do assoreamento”.
40. Ante todo o exposto, vejam-se as razões de Direito, que fundamentam a presente.
II – DIREITO
II.I - A LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A legitimidade ativa do Ministério Público para tutelar os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos é amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência, especialmente devido ao perfil do Órgão delineado pela Carta Maior de 1988, que ampliou suas funções e o fez, nos dizeres de Xxxxxxxxx xx Xxxxxx0, assumir o papel de defensor da sociedade:
A Constituição da República de 1988 incrementou sobremaneira as funções do Ministério Público, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade, tanto no campo penal, com a titularidade exclusiva da ação penal pública (art. 5º, LIX), quanto no
1 XXXXXX, Xxxxxxxxx xx. Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 479.
campo cível, como fiscal dos demais Poderes Públicos e defensor da legalidade e moralidade administrativa, inclusive com a titularidade do inquérito civil e da ação civil pública.
O Ministério Público é instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, CRFB/1988), bem como o zelo pelo efetivo respeito aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (art. 129, II, CRFB/1988).
Além disso, a Lei Federal n. 7.347/85 conferiu legitimidade ao Ministério Público para intentar a Ação Civil Pública, ferramenta valiosa na defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
No mesmo sentido, a Lei n. 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), buscou dar maior efetividade às ações ministeriais, atribuindo ao Ministério Público a defesa dos consumidores por meio do mesmo instrumento, em perfeita sintonia com a Carta Magna e com a Lei da Ação Civil Pública (LACP).
Nesse contexto, a LACP e o CDC são bastante claros acerca da possibilidade de ajuizamento de ações condenatórias visando à reparação de danos morais e materiais causados aos consumidores (art. 1º, inc. II, da Lei n. 7.347/85, e art. 6º, incs. VI e VII, da Lei n. 8.078/90).
Ainda, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público n. 8.625/93, em seu artigo 25, inc. IV, "a", determina ser função do Ministério Público promover a ação civil pública para a "proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos".
Inconteste, deste modo, a legitimidade do Ministério Público na propositura da presente ação civil pública, que defende os direitos e interesses de milhares de consumidores campistas que obrigatoriamente se utilizam dos serviços prestados pela empresa requerida e que, consequentemente, estão expostos à cobrança abusiva da tarifa de esgoto no patamar de 100% da tarifa de água, bem como daqueles que futuramente também utilizarão tais serviços.
Portanto, buscam-se tutelarem direitos e interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos dos consumidores, individuais na essência e coletivos na forma de serem tutela. A doutrina e a jurisprudência reconheceram a legitimidade do Ministério Público para atuar na defesa de interesses individuais homogêneos que demonstrem a conveniência coletiva da atuação devido à natureza do interesse, sua abrangência social
(determinada pela dispersão dos lesados) e o interesse social no funcionamento de determinado sistema econômico, social ou jurídico atingido pela tutela do interesse individual homogêneo, sendo tal legitimação amplamente assegurada, pois, para a defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, mormente se evidenciada a relevância social na sua proteção, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ):
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA DE ESPECIFICAÇÃO DOS VÍCIOS DO ART. 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SÚMULA Nº 284/STF. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. RELEVÂNCIA SOCIAL EVIDENCIADA.
LEGITIMIDADE CONFIGURADA. PRECEDENTES. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. DISPOSITIVOS APONTADOS COMO VIOLADOS DESTITUÍDOS DE COMANDO NORMATIVO SUFICIENTE PARA AMPARAR A PRETENSÃO DA RECORRENTE. SÚMULA Nº 284/STF. "FACTORING". DESCARACTERIZAÇÃO. FINANCIAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES. REEXAME DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 5/STJ. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INCIDÊNCIA. PRECEDENTE DA TERCEIRA TURMA. EMPRESA DE "FACTORING". TAXA DE JUROS REMUNERATÓRIOS. LIMITAÇÃO. REPETIÇÃO EM DOBRO. ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ.
2. O Ministério Público tem legitimidade processual para a propositura de ação civil pública objetivando a defesa de direitos individuais homogêneos, mormente se evidenciada a relevância social na sua proteção. (Terceira Turma - Recurso Especial nº 726975/RJ - Rel. Min. XXXXXXX XXXXXX XXXX XXXXX - Data de Julgamento: 20/11/2012).
Saliente-se que, embora haja possibilidade de cada consumidor lesado ingressar individualmente em Juízo, os aventados interesses assumem tamanha repercussão que permitem o ajuizamento desta ação coletiva, tendo em vista a importância social.
Na espécie, busca-se, também, a tutela dos interesses difusos, na medida em que se pretende defender não só os atuais contratantes dos serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto, mas, ainda, os potenciais consumidores, que futuramente venham a contratar com a Companhia, além dos eventuais danos ambientais e lesão à economicidade, em afronta ao interesse público.
Pertinente aos direitos difusos, Xxxx Xxxxx Xxxxxxxx0 os conceitua como "um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por pessoas
2 A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 27ª Ed. Rev. Ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
indetermináveis, que se encontrem unidas por circunstâncias de fato conexas" sendo, assim, todos os possíveis contratantes do fornecimento de água/esgoto.
Já sobre os direitos coletivos, Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx0 explica que são diretos "transindividuais, de natureza indivisível, pertencentes a um grupo determinável de pessoas (categoria de pessoas), ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base".
Assim, no caso, todos os consumidores que já firmaram contrato de fornecimento de água e coleta de esgoto com a Companhia requerida e que estão expostos, portanto, à cobrança abusiva aqui questionada.
No que tange à defesa coletiva dos interesses e direitos dos consumidores, estabelece o CDC em seu art. 81, par. único, que será exercida quando se tratar de: I) interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II) interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; e III) interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Destarte, irrefutável a legitimação do Ministério Público para figurar no polo ativo desta ação, em defesa de todos os consumidores que já contrataram, bem como dos que ainda virão a contratar com a Águas do Paraíba, sujeitando-se, em consequência, à abusividade ora combatida, além da defesa dos interesses difusos envolvidos.
Ainda, não custa lembrar que a presente demanda beneficia a própria prestação jurisdicional, na medida em que dispensa o Poder Judiciário de julgar inúmeras ações individuais sobre a mesma matéria.
Passa-se à análise da defesa do consumidor como direito fundamental.
II.II – A DEFESA DO CONSUMIDOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao cuidar dos direitos e garantias fundamentais, estabeleceu, no art. 5º, inc. XXXII, que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor", e, quando tratou dos princípios norteadores da
3 Direito do Consumidor: Tutela Coletiva. Organizado por Aurisvaldo Sampaio e Xxxxxxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro/RJ: Lumen Juris, 2005, p. 343.
ordem econômica e financeira, previu no art. 170, V, a defesa do consumidor, como balizadora e limitadora da livre iniciativa.
A defesa do consumidor afigura-se, portanto, direito e garantia fundamental, bem assim previsto como princípio da Ordem Econômica de Defesa do Consumidor. Nesse passo, tem o Estado, pois, o dever de promover esse direito na forma da lei, imperativo esse expresso na Constituição da República. E, portanto, inquestionável a aplicabilidade da EFICÁCIA HORIZONTAL DO DIREITO FUNDAMENTAL, a ser aplicado não só em face do Estado, como também na ordem privada – conforme amplamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Impõe-se, por conseguinte, ao legislador ordinário e ao Poder Judiciário, conectarem-se a esse direito fundamental, de modo a particularizar efetivamente a proteção constitucional por meio da elaboração e da aplicação de normas jurídicas consentâneas com a defesa do consumidor, enquanto DIREITO FUNDAMENTAL.
No que toca à caracterização da defesa do consumidor como Direito Fundamental, destaca Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Miragem:
Assim, o direito do consumidor, enquanto direito subjetivo, tem sede constitucional e caracteriza-se ontologicamente como direito humano fundamental, tomado o sujeito titular do direito na sua compreensão finalista, vinculada a uma dimensão própria da pessoa humana e de sua necessidade de consumo.
Essa compreensão do fenômeno, todavia, só é possível se tomarmos a figura do consumidor, em sua perspectiva existencial, como um sujeito próprio com necessidades fundamentais.
Daí por que necessário tomarem-se as determinações legais de uma política nacional das relações de consumo (arts. 4º e 5º, do CDC) como uma política de defesa dos direitos da própria pessoa, uma vez tutelando – no âmbito próprio das relações de consumo – bens jurídicos universais, como a dignidade, a vida, a saúde e segurança. (...) Nesse sentido, o ser humano consumidor será, antes de tudo, tomado como pessoa humana, tendo esta uma dimensão juridicamente protegida no que diz na sua condição de vulnerabilidade em dada relação – a relação de consumo.
[...] E o Código de Defesa do Consumidor, como iniciativa legislativa de realização daquele direito humano fundamental, uma prestação legislativa do Estado por expressa determinação constitucional, deve ser observado, inclusive no seu caráter expresso de lei de ordem pública, nessa mesma perspectiva, que determina – necessariamente – a ótima efetivação dos seus preceitos protetivos e promocionais.
Enfim, a defesa do consumidor é um dos valores para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e para o exercício da atividade profissional. Portanto, a necessidade de obediência e de respeito aos direitos humanos fundamentais, dentre os quais se insere a defesa do consumidor, constitui alicerce indispensável à construção de um autêntico Estado Democrático de Direito, elencado no rol das cláusulas pétreas (CRFB/1988, art. 60, §4º).
E, para regulamentar o preceito constitucional da defesa do consumidor, o Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal n. 8.078/90) estabelece regras de ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC) de proteção das relações jurídicas de consumo e do próprio consumidor.
Diante de tais considerações, impõe-se analisar, na sequência, os preceitos aplicados à presente ação.
II.III – DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Inicialmente, importante tecer algumas considerações sobre os serviços públicos. De acordo com Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx0, "serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado".
A Constituição da República dispõe expressamente, em seu art. 175, que "incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".
No caso sob análise, verifica-se que a demandada, na condição de sociedade empresária integrante de grupo de sociedades privadas, por meio de contrato de concessão de serviço público com este Município de Campos dos Goytacazes, é fornecedora dos serviços de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto sanitário.
Ressalte-se que o contrato de concessão de serviço público é aquele "que tem por objeto a transferência da execução de um serviço do Poder Público ao particular, que se remunerará dos gastos com o empreendimento, aí incluídos os ganhos normais do negócio, através de uma tarifa cobrada aos usuários5".
4 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. Atualizada por Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx e Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxx. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 320.
5 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. Atualizada por Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx e Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxx. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 257.
Sabe-se que para existir uma relação de consumo, é necessário o envolvimento de dois sujeitos: fornecedor e consumidor, e, ainda, um objeto, que poderá se constituir da aquisição ou da utilização de um produto ou serviço.
O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 3º, estabelece o conceito de fornecedor:
Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeiro, bem como os entes despersonalizados que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Da análise do conceito legal de fornecedor, observa-se sua abrangência ou amplitude, considerando fornecedor ou vendedor: a) o industrial que fabrica o produto; b) o comerciante que põe em circulação e vende-o à clientela; c) aquele que exporta para outros países produtos aqui fabricados ou aquele que importa do estrangeiro bens para vendê-los no território nacional; d) o prestador de serviços.6 Ademais, tem-se que o Código de Defesa do Consumidor não excluiu qualquer tipo de pessoa jurídica, ou seja, também considera fornecedor as pessoas jurídicas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, com sede ou não no país, as sociedades anônimas, as por quotas de responsabilidade limitada, as sociedades civis, com ou sem fins lucrativos, as fundações, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as autarquias, os órgãos da Administração direta, etc.7
Já o conceito geral de consumidor está definido no art. 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor, como sendo "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".
Assim, são consumidores todas as pessoas físicas ou jurídicas que utilizam dos serviços prestados pela requerida mediante remuneração, isto é, aqueles beneficiados pelas atividades de fornecimento de água/capitação de esgoto. Segundo Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx0, consumidor é:
[...] qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviço. Além disso, há que se equiparar o consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário se deixaria
6 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; SAAD, José Eduardo Duarte; BRANCO, Xxx Xxxxx Xxxx Xxxxxxx. Código de Defesa do Consumidor Comentado. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2006 SAAD; SAAD; BRANCO, 2006, p. 77.
7 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 86.
8 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx. Manual de direitos do consumidor.7ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 39
à própria sorte, por exemplo, o público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivo à sua saúde ou segurança.
Assim, inconteste que a relação existente entre a demandada e os consumidores que se utilizam dos serviços de abastecimento de água e de captação de esgoto, caracteriza- se, claramente, como uma relação de consumo, resguardada, pois, pelas regras do Código de Defesa do Consumidor.
Além disso, o Código consumerista elencou como direito básico do consumidor, em seu art. 6º, inciso X, "a adequação e eficaz prestação dos serviços públicos em geral".
E, especialmente quanto à prestação de serviços públicos, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 22, determina que as concessionárias desses serviços devem prestá- los com eficiência, segurança e de modo contínuo.
II.IV – DA ABUSIVIDADE DA COBRANÇA DA TARIFA DE ESGOTO EM 100% DO VALOR DA TARIFA DE ÁGUA
A sociedade Ré Águas do Paraíba, instada a prestar informações no Inquérito Civil que tramitou nesta Promotoria, argumentou, em síntese, sobre as razões pelas quais promove a cobrança da tarifa de esgoto na proporção de 100% do valor da tarifa de água, no sentido de que: i) existe autorização legal e contratual para a cobrança da tarifa de esgoto no valor de até 100% do valor da tarifa de água; ii) o serviço de coleta de esgoto é muito mais oneroso que o de fornecimento de água, motivo pela qual tal medida se faz necessária ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato; iii) e, a tarifa de esgoto serve para amortizar os custos dos investimentos do sistema.
Pois bem. Das alegações da Companhia, verifica-se que não só a cobrança da tarifa de esgoto ocorre com base no valor presumido de retorno da água para o sistema de captação, no patamar máximo legalmente e administrativamente autorizado, sem qualquer comprovação de que haja necessidade da cobrança de tal modo, apenas baseada em meras justificativas, como se apresenta em clara contrariedade à norma da ABNT NBR-9649, que determina que a cobrança ocorra no valor de 80% da tarifa de água.
Ora, a empresa requerida não apenas contraria regulamento da Associação Brasileira de Normas Técnicas, como ainda alega que tal cobrança deveria ser inclusive superior à tarifa de água, o que certamente aconteceria se não fosse o limite máximo estipulado legal e contratualmente.
A Lei n. 11.445/07, em seu art. 29, estabelece que a remuneração dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário serão, preferencialmente, remunerados por tarifa ou preço público para cada um dos serviços ou para ambos conjuntamente. Veja-se:
Art. 29. Os serviços públicos de saneamento básico terão a sustentabilidade econômico-financeira assegurada, sempre que possível, mediante remuneração pela cobrança dos serviços:
I - de abastecimento de água e esgotamento sanitário: preferencialmente na forma de tarifas e outros preços públicos, que poderão ser estabelecidos para cada um dos serviços ou para ambos conjuntamente;
Na prestação, por exemplo, do serviço de esgotamento sanitário neste município, a empresa Águas do Paraíba realiza a tarifação com base na tarifa de água consumida, prevendo um custo para os serviços de esgotamento equivalente a 100% (cem por cento) sobre a tarifa do consumo de água.
Em decorrência da Concorrência Pública n.º 001/96, em que a Concessionária Ré sagrou-se vitoriosa, celebrando contrato administrativo com a municipalidade, no bojo do qual restaram previstos os valores tarifários a serem cobrados aos consumidores, conforme tabela (fls. 93/108, 54/55, 60/62, dentre outros termos aditivos ao contrato, constantes do IC n.º 173/14).
Outrossim, decretos municiais sucederam-se no tempo, fixando “valores da cota mínima de água, da tarifa referencial de água (TRA) e da tarifa referencial de esgoto (TRE)”, sendo certo que a denominada taxa mínima baseia-se no volume de 10m³, estabelecendo-se a paridade entre a TRA e a TRE (vide fls. 78/85 do IC n.º 173/14).
Dessa feita, a política municipal da concessionária, considerando a dificuldade técnica de mensurar o volume de esgoto recebido, busca equiparar as tarifas de esgotamento sanitário e de água.
já que é impossível o retorno total da água consumida como esgoto
consumidor deve ser a contraprestação pelo serviço público individual realizado. Assim,
mensurando-se o patamar de pagamento do esgotamento sanitário pela entrada da água consumida, é inviável a cobrança no montante de 100% do valor de fornecimento desta,
Contudo, tratando-se de remuneração por preço público, o valor pago pelo
.
Como dito alhures, a doutrina sobre o esgotamento sanitário informa que nem toda água fornecida transforma-se em esgoto. A referida perda de volume é conceituada como coeficiente de retorno, o qual depende de diversos fatores, como a localização da
residência, existência de fontes particulares de abastecimento, condições de arruamento, tipo de clima, entre outros, totalizando 0,75 a 0,85, dependendo do caso concreto.
E, buscando padronizar o tema, a Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, através da Norma Técnica NBR 9649, fixou as condições exigíveis na elaboração de projeto hidráulico-sanitário de redes coletoras de esgoto sanitário, conceituando coeficiente de retorno como “a relação média entre o volume de esgotos produzido e o volume de água efetivamente fornecido à população”, padronizando o coeficiente no patamar 0,8, ou seja, de 80% da água consumida.
Xxxxxx Xxxxxxxxx, em sua obra Esgotos Sanitários, ensina:
É natural que parcela da água fornecida pelo sistema público de abastecimento de água não seja transformada em vazão de esgotos, como, por exemplo, a água utilizada na rega de jardins, lavagens de pisos externos e de automóveis, etc. Em compensação, na rede coletora poderão chegar vazões procedentes de outras fontes de abastecimento, como do consumo de água de chuva acumulada em cisternas e de poços particulares.
Essas considerações implicam que, embora haja uma nítida correlação entre o consumo do sistema público de água e a contribuição de esgotos, alguns fatores poderão tornar esta correlação maior ou menor, conforme a circunstância.
De acordo com a frequência e intensidade da ocorrência desses fatores de desequilíbrio, a relação entre o volume de esgotos recolhido e o de água consumido pode oscilar entre 0,60 a 1,30, segundo a literatura conhecida. Esta fração é conhecida como relação esgoto/água ou coeficiente de retorno e é representada pela letra “c”. De um modo geral, estima-se que 70 a 90% da água consumida nas edificações residenciais retorna à rede coletora pública, na forma de despejos domésticos. No Brasil, é usual a adoção de valores na faixa de 0,75 a 0,85, caso não haja informações claras que indiquem um outro valor para “c”. (XXXXXXXXX, Xxxxxx - Xxxxxxx Sanitários, Ed. Univ./UFPB, João Pessoa, 1997, 435p. Reimpressão Jan/2000).
Observe-se, que a prestadora do serviço tem a possibilidade de optar pela cobrança individualizada e independente do serviço de esgotamento sanitário, por meio dos custos realizados para a sua prestação (Lei n. 11.445/07).
Porém, quando a concessionária vincula a prestação do serviço de recebimento de esgoto (volume de saída de líquido) à quantidade objetiva de água consumida (volume de entrada), esta equação não pode ser prejudicial ao consumidor. Merecem, no caso, ser abatidas as perdas de líquido, nos termos da norma técnica da ABNT, ou comprovado, pela empresa, que o volume líquido recebido corresponde a 100% da água fornecida, invertendo- se o ônus da prova.
Com efeito, ainda que as normas técnicas da ABNT não possuam força de lei, é de sabença geral que são emitidas após vasto estudo acerca da matéria tratada, servindo sempre como parâmetro mínimo de atuação.
Nesse sentido, colhe-se da doutrina9:
“A bem da verdade, não existe, em termos jurídicos, norma inteiramente facultativa, pois mesmo aquelas assim denominadas podem ser utilizadas pelo administrador e pelo magistrado no julgamento da adequação técnica do comportamento do fornecedor. Se é certo que a norma dita facultativa indica uma meta a ser alcançada, nem por isso deixa de afirmar um patamar de qualidade que, no estado de arte do momento, é considerado alcançável e adequado”.
Por conseguinte, as normas técnicas, principalmente aquelas que têm a ver com a proteção do consumidor, apresentam-se como critério de conformidade mínima, como forma de orientar a Administração Pública e o próprio Judiciário.
SEGURO E RAZOÁVEL, QUE NÃO A ESTIMATIVA!
norma editada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, órgão responsável pela normalização técnica do país – DADA A AUSÊNCIA DE OUTRO PARÂMETRO
A questão central, portanto, diz respeito à obrigatoriedade de cumprimento de
A ABNT é entidade privada, sem fins lucrativos, responsável pela normalização técnica e pelo desenvolvimento tecnológico no país, provendo a sociedade de meios eficazes para comprovar a qualidade, a segurança e a saúde.
As normas da ABNT, assim, se consideradas na sua essência, realmente não são normas jurídicas ou legais e, por isso, em tese, não teriam efeito vinculante. Todavia, com a publicação do Código de Defesa do Consumidor, as normas técnicas da ABNT passaram a ter referência e exigência legal, ex vi do art. 39, inc. VIII, do referido Diploma Legal:
"Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos e serviços, dentre outras práticas abusivas:
[...] VIII - colocar no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – Conmetro".
9 Código de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Xxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx... [et al]. – 10. ed. Revista, atualizada e reformulada – Rio de Janeiro: Forense, 2011, vol. I, Direito Material (arts. 1º a 80 e 105 a 108) – pg. 390.
Com efeito, a padronização foi uma das formas encontradas pelo legislador consumerista para garantir maior qualidade e segurança ao consumidor, e por isso devem ser atendidas as normas técnicas da ABNT, sob pena de configuração de prática abusiva.
Assim, equiparadas as tarifas de água e esgoto, não se pode realizar a cobrança desta última em patamar superior ao limite de saída da água consumida, sob pena de ser o consumidor cobrado por valor acima do volume de serviço efetivamente prestado, com a exigência de vantagem manifestamente excessiva.
Nos termos do artigo 39, inc. V, do CDC, é vedado ao fornecedor de produtos e serviços: “V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”.
E o próprio Código de Defesa do Consumidor explica o que seria a vantagem manifestamente abusiva, trazendo a seguinte disposição que, dentre outras cláusulas contratuais, considera nula de pleno direito:
Art. 51 – São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
§1º - Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
III - Se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
Não poderia ser de outra forma o tratamento legal, bem como o entendimento doutrinário, uma vez que as cláusulas de um contrato – seja ele qual for – subordinam-se ao princípio da boa-fé objetiva.
Assim, no presente caso, a disposição dos Decretos Municipais que vêm se sucedendo no tempo, no ponto em que equipara a TRE à TRA, fere o direito do consumidor, restando nula a vinculação da tarifa de esgoto em 100% da tarifa de água. A cobrança, por parte do fornecedor, de valores sem a respectiva contraprestação do serviço, viceja, nas palavras da melhor doutrina, lesão enorme à economia popular dos consumidores.
Dessa forma, clara se mostra a obtenção de lucro exorbitante, engendrando, via de consequência, enriquecimento sem causa por parte da fornecedora.
Em caso semelhante, que serve de paradigma para o presente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo analisou a cobrança de “tarifa de esgoto” em patamar de 100% da tarifa de água e decidiu:
“Prestação de serviços - Água e esgoto - Ação declaratória - Nem toda água se converte em esgoto - Só se paga por serviço prestado e não por serviço não prestado - Procedência do pedido declaratório de inexigibilidade dos valores cobrados pela ré a título de coleta e tratamento de esgoto, e que superem o volume coletado, segundo o percentual apurado na prova pericial - Repetição de indébito de forma simples, desde a citação até a cessação da cobrança em excesso” - Recurso parcialmente provido (APELAÇÃO COM REVISÃO: 990.10.269413-5, COMARCA: SÃO PAULO, APTE.: BRAZIL REALTY S/A EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇÕES APDA.: COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO – SABESP)
Ainda:
“1. Nem toda água se converte em esgoto, pouco importa que mero decreto diga o contrário, porque à regra alguma, nem à lei, tolera-se desconsiderar a natureza. 2. Só se paga por serviço prestado e não se paga por serviço não prestado.” (TJSP - Apelações com revisão n. 914.738-0/8 e 924.222-0/1, julgadas em 16.12.2008 e 26.08.2008).
Por todo exposto, resta evidente a ilegalidade e a abusividade na cobrança da tarifa de esgoto em valor correspondente a 100% da tarifa de água.
Registre-se, por oportuno, apenas para fins de comparação, que várias concessionárias brasileiras já praticam, na cobrança da denominada tarifa de esgoto, valores iguais e até mesmo inferiores àquele estabelecido pela norma ABNT, podendo- se citar, dentre outras, os casos das empresas SANEPAR (PR), que atende a mais de 7 (sete) milhões de consumidores e cobra tarifa de esgoto no valor de 80% da tarifa de água (disponível em xxx.xxxxxxx.xxx.xx), e o da CORSAN (RS), que utiliza o percentual de cobrança de 70% sobre o volume faturado do consumo de água (disponível em xxx.xxxxx.xxx.xx).
III – DA COMPETÊNCIA
Referente à competência, o CDC dispõe, em seu art. 93:
Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a Justiça local:
II- no foro da Capital do Estado ou no distrito federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.
No caso em pauta, não há dúvida de que se está diante de dano de âmbito local, na medida em que o critério de cobrança da tarifa de esgoto utilizado pela Águas do Paraíba, conforme suas próprias informações prestadas nos autos do Inquérito Civil que acompanha a presente ação, é único e válido para todos os munícipes de Campos dos Goytacazes onde atua, com percentual de cobrança, aliás, fixado em Decreto municipal.
IV – DO ALCANCE DA COISA JULGADA ERGA OMNES E ULTRA PARTES
Com esta Ação Civil Pública, o Ministério Público almeja alcançar todos os consumidores lesados pela requerida no município de Campos dos Goytacazes, tendo em vista que a abusiva cobrança da tarifa de esgoto, como dito, atinge os usuários deste Município, onde a empresa demandada atua.
Neste contexto, dispõe o art. 103, do CDC:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
Ressalte-se que, nos termos do artigo 16, da Lei Federal n.º 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública –, com sua nova redação dada pela Lei n.º 9.494/97, a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator. Como o dano é de âmbito local, abrangendo consumidores residentes em todo o território municipal, é competente para a causa a justiça local no foro dessa Comarca de Campos dos Goytacazes, e a decisão nesta ação terá, por consequência, eficácia em todo o território do Município citado.
V – DA TUTELA ANTECIPADA (DE URGÊNCIA)
A pretensão deduzida na presente ação coletiva de consumo encontra guarida no Código de Defesa do Consumidor, cujas normas são de ordem pública e interesse social, com forte base constitucional, e concomitantemente no Código de Processo Civil vigente.
O instituto da antecipação dos efeitos da tutela está previsto no CDC e na Lei n. 7.347/85, respectivamente, nos arts. 84, § 3º, e 12, caput, cuja aplicação é de suma importância para a salvaguarda dos direitos fundamentais dos consumidores.
Estabelece o Código de Defesa do Consumidor:
Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento.
§ 3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o Réu.
Ainda, registra-se que o art. 6º, inc. VI, do CDC, prevê como direito básico dos consumidores a efetiva prevenção de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
A relevância do fundamento da presente ação é inquestionável, pois está em discussão a proteção de milhares de consumidores que se encontram, e os que poderão vir a se encontrar, submetidos à prática abusiva de cobrança da tarifa de esgoto no patamar de 100% da tarifa de água, tendo, pois, seus direitos claramente desrespeitados pela Companhia requerida.
Com efeito, a documentação acostada nos autos do Inquérito Civil n. 173/2014 (doc.j.01), que inclui os argumentos da própria Ré e os dados coletados pelo Ministério Público, bem demonstram os abusos praticados pela demandada, em detrimento dos direitos dos consumidores.
Já o periculum in mora reside na necessidade de se inibir, o quanto antes, a prática abusiva de aplicação do referido método de cobrança da tarifa de esgoto, que gera indiscutível prejuízo e dano aos consumidores, de modo a não se poder aguardar pelo julgamento definitivo da lide.
Assim, a tutela pretendida destina-se à proteção dos consumidores, não sendo lícito que a prática abusiva perdure enquanto durar a regular tramitação do processo.
Com efeito, o ônus da demora do processo – e, por evidente, da não concessão da tutela antecipada em caráter antecedente – atende somente aos interesses da Concessionária Águas do Paraíba, e prejudica, de maneira irreversível, o direito dos consumidores.
Com a introdução no ordenamento jurídico da possibilidade da chamada tutela antecipada, buscou-se, preponderantemente, distribuir-se o ônus do tempo do processo, de modo a alcançar ao autor, imediatamente, o bem da vida perseguido.
No entanto, a efetividade da antecipação dos efeitos daquela tutela que seria prestada ao autor em momento longínquo, somente será alcançada mediante o correto uso de seus instrumentos, entre os quais se destaca a imposição de multa diária pelo descumprimento de decisão antecipatória (astreintes), tal qual prevista, v.g., no art. 536/537, do Código de Processo Civil (CPC), ou §§ 3º e 4º do art. 84 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Nesse contexto, os entendimentos jurisprudenciais passaram a sofrer natural modificação, balizados pelo norte calcado na celeridade processual e efetividade do processo, sem perder de vista, por evidente, a distribuição do ônus referente ao tempo do processo. E alcançou o novo diploma processual civil, em seus artigos 294 e seguintes.
Os excertos doutrinários abaixo expressam bem a “nova ordem”.
[...] o processo deve amoldar-se aos desígnios do direito material, de sorte a não simplesmente assegurar a composição do litígio e a reparação do dano que o titular do direito lesado suportou, mas a proporcionar a melhor e mais rápida e objetiva concretização do direito da parte que tem razão.
O processo deve estar voltado para a efetividade, evitando, quando possível, o dano ou o agravamento do dano ao direito subjetivo (XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. Curso de direito processual civil. v. 2. 45ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 653).
[...] nas antecipatórias de tutela de mérito, o que está em jogo é a garantia de efetivo acesso à Justiça, que figura entre as garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito. [...] Deixar que um direito subjetivo pereça no aguardo do provimento jurisdicional definitivo é, sem dúvida, negar a tutela jurídica que o Estado garantiu, é vetar, praticamente, ao lesado o acesso à Justiça (op. cit., p. 701-702).
Assim, passaram a ganhar corpo e solidez os instrumentos que asseguram a mencionada efetividade, entre os quais a astreinte.
A propósito, o objetivo das astreintes não é obrigar o réu a pagar o valor da multa, mas obrigá-lo a cumprir a obrigação na forma específica. A multa é apenas inibitória (XXXX XX., Xxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 588).
Presentes, pois, os requisitos da probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, não há como se afastar a necessidade de, desde logo, impedir que a Concessionária demandada continue a realizar a cobrança da tarifa de esgoto em valor correspondente a 100% da tarifa de água.
Ademais, não há risco de irreversibilidade da medida, posto que possível sua recomposição, caso ao final o entendimento seja em sentido contrário ao que ora se postula.
VI - DOS PEDIDOS E REQUERIMENTOS
Pelo exposto, demonstrados o direito alegado e os fundamentos que embasam a presente pretensão, requer o Ministério Público:
famigerada cobrança por estimativa
o fim de determinar que a Concessionária ora requerida, neste município de Campos dos Goytacazes onde presta seus serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto, efetue a cobrança da tarifa de esgoto no limite máximo de 0,8, ou seja, 80% da tarifa de água consumida, com comprovação nos autos mediante apresentação de faturas – dada a ausência de outro parâmetro justificador, objetivamente estipulado, afastando-se a
para
A) que seja concedida a TUTELA DE URGÊNCIA DE NATUREZA ANTECIPADA, ora pretendida, em caráter liminar e inaudita altera parte, posto que presentes os pressupostos da probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo,
;
B) a publicação, em jornais locais (jornais de grande circulação Municipal), no prazo de até quinze dias contados da data da publicação do decisum, da decisão concedida em caráter liminar, por duas vezes, com intervalo de 15 (quinze) dias e em dimensões que possibilitem a fácil identificação e leitura, a fim de viabilizar a ciência da medida pelos consumidores, de modo a contribuir com a fiscalização de seu cumprimento; e
C) concedida a requerida tutela liminarmente, com base no art. 12, § 2º, da Lei Federal n.º 7.347/85, seja fixada multa para o caso de descumprimento da obrigação, no valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), por dia de descumprimento, com o montante sendo revertido ao Fundo de Defesa do Consumidor do Município de Campos dos Goytacazes ou equivalente, no referido município, já que o suposto dano foi local;
Ao final, o Ministério Público pugna pela confirmação dos efeitos da medida de urgência antecipatória, tornando definitiva a decisão que a concedeu, ou concedendo as pretensões, na hipótese de ainda não terem sido alcançadas, inclusive a multa pelo descumprimento, com a procedência dos demais pedidos abaixo deduzidos e o deferimento dos requerimentos que seguem:
1) seja a presente ação recebida, autuada e processada no rito ordinário, com a citação da parte Ré, por meio de seu representante, para apresentar contestação no prazo legal, sob pena de se reputarem inteiramente verdadeiros os fatos articulados nesta inicial;
2) a intimação do Município de Campos dos Goytacazes, por intermédio dos Órgãos que gozem de personalidade judiciária, a fim de que se manifeste na presente, quer para figurar como litisconsorte ativo, endossando as razões ora expostas pelo Parquet, quer para rebater os argumentos aqui ventilados, oportunidade em que deverá ser instado a se colocar no polo passivo da demanda, ao lado da concessionária do serviço público em debate;
3) desde logo, a INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA, na forma do art. 6º, VIII c/c art. 2º, par. único, do Código de Defesa do Consumidor, tanto pela verossimilhança dos fatos alegados, como pela hipossuficiência dos consumidores na relação de consumo, ora tratada;
4) diante dos argumentos de fato e de direito, expostos na presente, seja judicialmente compelida a Concessionária, ora Ré, a efetuar a cobrança da tarifa de esgoto no limite máximo de 0,8, ou seja, 80% da tarifa de água consumida, dada a ausência de outro parâmetro justificador, objetivamente estipulado, afastando-se a famigerada cobrança por estimativa;
5) a condenação genérica da requerida à obrigação de indenizar, da forma mais ampla e completa possível, os danos ocasionados aos consumidores individualmente considerados, decorrentes da prática abusiva mencionada nesta ação (cobrança de tarifa de esgoto em montante superior a 80% da tarifa de água), conforme determina o art. 6º, VI, e arts. 91 e 95, todos do CDC;
6) a condenação em fazer publicar, em jornais de grande circulação local, no prazo de quinze dias do trânsito em julgado da sentença, por quatro vezes, com intervalo de 15 (quinze) dias, a parte dispositiva de eventual sentença de procedência, para que os consumidores tomem ciência da mesma (arts. 95, 97, 103 e seguintes do CDC), a qual deve ser introduzida com a seguinte mensagem: “Acolhendo pedido veiculado em ação coletiva de consumo ajuizada pela 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Campos dos Goytacazes - Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o juízo da [ ]ª Vara Cível da Comarca de Campos dos Goytacazes condenou a concessionária Águas do Paraíba, nos seguintes termos: [ ]”. O pedido tem como finalidade a recomposição dos danos material e moral ocasionados aos consumidores, previsto no artigo 6º, inc. VI, do CDC, além de servir como mecanismo de educação e informação aos
consumidores e fornecedores quanto aos direitos e deveres, em atenção ao princípio do art. 4º, inc. IV, do mesmo diploma legal;
7) a fixação de multa diária no valor mínimo de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), por dia de descumprimento da decisão que determinar a publicação da sentença de procedência do pedido, na forma pugnada no item “5” supra, a ser revertido ao Fundo de Defesa do Consumidor do Município de Campos dos Goytacazes ou equivalente, no referido município, já que o suposto dano foi local;
8) a condenação da demandada na obrigação de fiscalizar de maneira ostensiva as ligações clandestinas da rede de esgoto, que direcionam os dejetos ao Rio Paraíba, à rede de águas pluviais ou ainda aos canais existentes nessa cidade, como forma de proteger o meio ambiente, devendo apresentar projeto de trabalho nesse sentido, que contemple objetivamente a metodologia a ser aplicada, sob pena de multa diária no valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) por dia de atraso na referida apresentação e efetiva ação;
9) SUBSIDIARIAMENTE, acaso a parte Ré não adéque sua conduta, e permaneça imputando ônus excessivo à coletividade – conforme ora narrado na presente –, pugna desde já decretação da rescisão do contrato de concessão do serviço público de fornecimento de água e esgoto, atualmente vigente neste município de Campos dos Goytacazes, em que pese a completa ausência de economicidade e os enormes prejuízos acarretados à coletividade.
Caso assim não entenda esse D. Juízo, pede que ao menos seja declarada a nulidade de todo e qualquer termo aditivo, tendente à prorrogação do prazo da concessão, com arrimo na ausência de justa causa para tanto, em afronta ao Edital e Regulamento da Concessão.
10) a imposição do ônus da sucumbência, com a condenação da demandada ao pagamento das despesas processuais e, se for o caso, honorários advocatícios (art. 18 da Lei nº 7.347/85), a serem revertidos ao Fundo Especial do Ministério Público (CNPJ n.º 02.551.088/0001-65, Banco Itaú, Agência: 6002, Conta Corrente: 02550-7);
11) a dispensa do Autor ao pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, tendo em vista o disposto no art. 18 da Lei 7.347/85; e
12) a aplicação, na sentença, dos efeitos previstos no art. 16 da Lei n.º 7.437/85, com eficácia em âmbito local.
VII - DAS PROVAS
Protesta o Autor por provar o alegado por todos os meios de prova em Direito admitidos, notadamente a pericial, observado, ainda, o disposto no art. 6°, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor, no que toca a já citada INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA em favor da coletividade de consumidores substituída processualmente pelo Autor (Art. 2ª, Par. Único, CDC).
Em anexo, segue a íntegra do Inquérito Civil Público autuado sob o n.º 173/14 (MPRJ n.º 2014.00769718), instaurado no âmbito desta 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva – Núcleo Campos dos Goytacazes, com vistas a investigar a cobrança excessiva de tarifa de esgoto por parte da concessionária Águas do Paraíba, contendo 4 (quatro) volumes e 1 (um) apenso.
A presente petição inicial e os documentos que a instruem são transmitidos por meio eletrônico, na forma da Lei Federal n. 11.419/06, sendo que permanecerão preservados nesta Promotoria de Justiça os originais dos documentos digitalizados, pelo prazo previsto no art. 11, § 3º, do referido Diploma Legal.
V - DO VALOR DA CAUSA
Apenas para efeito de alçada, atribui-se à causa o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).
Campos dos Goytacazes, 19 de julho de 2019.
XXXXXXX XXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX
Promotor de Justiça