O ACORDO COM VISTA À PRÁTICA DE GENOCÍDIO. O CONCEITO, OS REQUISITOS E O FUNDAMENTO DA PUNIÇÃO DO «CONTRATO CRIMINAL»
O ACORDO COM VISTA À PRÁTICA DE GENOCÍDIO O CONCEITO, OS REQUISITOS E O FUNDAMENTO DA PUNIÇÃO DO «CONTRATO CRIMINAL»
XXX XXXXXX XXXXXXX
O ACORDO COM VISTA À PRÁTICA DE GENOCÍDIO. O CONCEITO, OS REQUISITOS E O FUNDAMENTO DA PUNIÇÃO DO «CONTRATO CRIMINAL»
XXX XXXXXX XXXXXXX*
SUMÁRIO: Introdução. PRIMEIRA PARTE. ESTRUTURA DO TIPO DO ACORDO COM VISTA À PRÁTICA DE GENOCÍDIO. § 1.ª Preliminares. 1.
Filiação na teoria jurídico-penal — crimes plurissubjectivos ou de participação necessária § 2.ª Fontes. 1. Fontes internacionais 1.1 Julgamentos de Nuremberga. Primeira expressão em Direito Penal internacional da “conspiracy”, com vista a iniciar uma guerra de agressão 1.2 Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio 2. Fonte nacional § 3.ª O bem jurídico protegido. 1.1 Um crime de perigo abstracto 1.2. O bem jurídico concretamente protegido § 4.ª Conceito de conspiração. 1. Generalidades. Noção de conspiração 2. Distinções conceptuais em relação ao acordo com vista à prática de genocídio. 2.1 Figuras próximas 2.1.1 Conspiração, proposta, provocação, constando na Parte Geral 2.2 Figuras afins 2.2.1 Punição de actos preparatórios 2.2.2 Situações de comparticipação criminosa § 5.ª Tipo de ilícito §§ 1.ª Tipo objectivo. 1. Sujeitos. Requisito quantitativo 3. A acção típica 3.1 “Acordo”, “acordar” 3.3 Os meios de chegar a acordo 3.3.1 A possibilidade de acordo tácito 4. Os requisitos do acordo 4.2 O conteúdo do acordo. “com vista à prática de genocídio” 4.2.1 O acordo implica necessariamente a realização de actos executivos de genocídio? 4.2.2. Acordo condicionado §§ 2.ª Tipo subjectivo 1. Não coincidência total entre os tipos subjectivos do acordo e do genocídio. 2. O dolo na conspiração 2.1.1 A possibilidade de dolo eventual. 3. “com a intenção de destruir...” 3.1 Ordenação dos elementos subjectivos especiais 3.2 Dificuldade de prova § 6.ª § 7.ª Formas especiais de aparecimento do crime §§ 1.ª Outras condições de punibilidade 3. Desistência §§ 2.ª Participação na acção de conspiração §§ 3.ª Relação de concurso §§§ 1.ª Dinâmica
§§§ 2.ª Concurso. 1. Concurso efectivo — Common Law 2. Concurso aparente 2.2 Subsidiariedade 2.3 Consumpção § 8.ª Moldura penal § 9.ª Especificidades processuais penais. SEGUNDA PARTE. ENQUADRAMENTO TEORÉTICO-
CONSTRUTIVO. § 1.ª Os obstáculos à incriminação e a sua superação. 2. Premissas
3. A impunidade geral das fases anteriores à tentativa 4. Direito Penal simbólico 5. O perigo de execução do facto e a sua prevenção 6. Vinculação conspiracional 7. Resposta a outras objecções 8. Justificação da “law of conspiracy” 9. A inserção da conspiração no mecanismo complexo de repressão 10. As cautelas na utilização pelo legislador da incriminação 10.1 A pontualidade da incriminação da conspiração § 2.ª A fundamentação material da proibição. 1. A gravidade do crime de genocídio 2. A intolerabilidade dos crimes contra a humanidade 3. Perspectiva filosófica. O Mal 4.
Publicado in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, volume V, Direito Público e Vária, Estudos organizados pelos Professores Doutores XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX / LUÍS MENEZES LEITÃO / XXXXXXXX XX XXXXX
XXXXX, Xxxxxxxx, Coimbra, 2003, pgs. 215-338 (339-423).
* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Memória histórica. Lastro histórico jusinternacional 5. A afirmação preventiva de um princípio de autolimitação estatal ou para-estatal 6. A salvaguarda da dignidade da pessoa humana, no “crime dos crimes” 7. A violação dos limites últimos da justiça § 3.ª Proposta “de jure condendo” de incriminação de actos preparatórios com vista à prática de genocídio. Conclusões. ANEXOS. ANEXO I. EXEMPLOS DE GENOCÍDIO. 1. Genocídio dos Hebreus no Egipto. 2. Genocídio dos Arménios no Império Otomano. 3. Genocídio nazi. 3.3 Os passos iniciais. 3.5 O extermínio dos judeus. 3.5.1 Os campos de concentração e os campos de extermínio. 3.5.2 A “vida” quotidiana. 3.5.2.1 O “muçulmanismo” 3.7 Reflexão. 3.7.1 Sistema totalitário. 3.7.2 A ausência de necessidade militar. 4. Genocídio no Ruanda ANEXO II. GENOCÍDIO 1. Origem contemporânea. 2. Fontes. 2.1 Fontes internacionais 2.2 Fontes nacionais. 2.3 Comparação entre as fontes. 3. Carácter “iuris cogentis” 4. A admissibilidade da protecção da Humanidade como bem jurídico 4.4 O bem jurídico protegido pela incriminação do genocídio 4. Tipo legal de crime 4.1 Tipo objectivo de ilícito 5.1.1 Sujeito passivo. Grupos protegidos 5.1.1.1 Exclusão de outros conceitos de genocídio
5.1.1.1.1 Genocídio político 5.1.2 No todo ou em parte 5.1.3 Genocídio físico e genocídio biológico 5.1.4 Actos das alíneas 5.1.4.2 Relação entre os actos 5.2.1 Elemento subjectivo especial de ilicitude. “Com intenção de destruir...” 5.2.1.1 Ordenação dos elementos subjectivos especiais de ilicitude 4.2.2 Dificuldade de prova. Caso Alcindo Monteiro e outros 6. Especificidades comparticipativas ANEXO III. TODESFUGE, DE XXXX XXXXX. 2. Todesfuge. 3. Tradução. Fuga de morte 4. XXXX XXXXX. O coração em cinza.
INTRODUÇÃO
O genocídio é o “crime dos crimes” 1-2, “a negação do direito à existência de grupos humanos inteiros”; “tal negação do direito à existência comove a consciência humana, causa grandes perdas à humanidade, na forma de contribuições culturais e de outro tipo representadas por esses grupos humanos e é contrária à lei moral e ao espírito e aos objectivos das Nações Unidas e é condenado por todo o mundo civilizado”. As afirmações estão contida na R-96 da ONU.
O acordo com vista ao genocídio é um tema de intersecção entre os crimes contra a Humanidade e a comparticipação criminosa.
Com efeito, a planificação comum, o “complot” de pessoas com vista à comissão de um de determinado crime pertence a um universo constituído por comportamentos impunes.
Incriminar o mero acordo conspiratório é uma excepção ao princípio “cogitationes poenam nemo patitur”, mediante a criação de crimes especiais na Parte Especial, por via de uma extensão de punibilidade correlativamente aos princípios gerais.
1 ABREVIATURAS
ABREVIATURAS DE ACTOS NORMATIVOS E JURISPRUDENCIAIS: CC=Código Civil
(Português) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, com alterações posteriores; C.P.=Código Penal (Português) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, com alterações posteriores; CPRCG=Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, adoptada em 1948; entrou em vigor em 1951; ER=Estatuto de Roma; ETCR=Estatuto do Tribunal Criminal Internacional “ad hoc” para o Ruanda (criado pela Resolução n.º 955, de 8 de Novembro de 1994, do Conselho de Segurança da ONU, após a violenta guerra inter-étnica entre Hutus e Tutsis, e a pedido do Governo Ruandês); ETCJ=Estatuto do Tribunal Criminal Internacional para julgar as Pessoas Responsáveis por Violações Graves ao Direito Internacional Humanitário Cometidas no Território da Ex- Jugoslávia desde 1991 (a criação do Tribunal foi aprovada pela Resolução do Conselho de Segurança n.º 808, de 23 de Fevereiro de 1993, nos termos que constavam do anexo do Relatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas; a Resolução n.º 827, de 25 de Março de 1993, adoptou o Estatuto do Tribunal); em Portugal, foi tornada pública através do Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 100/ 95, publicado no Diário da República n.º 109/95, Série A, de 11-5-1995. R96=Resolução da ONU n.º 96 (I), de 11 de Dezembro de 1946. ABREVIATURAS DE ÓRGÃOS E INSTITUIÇÕES:
AAFDL=Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa; CEJ=Centro de Estudos Judiciários; FCG=Fundação Calouste Gulbenkian; ONU=Organização das Nações Unidas; PGR=Procuradoria-Geral da República; TC=Tribunal Constitucional (português); TCIR=Tribunal Criminal Internacional “ad hoc” para o Ruanda; TCIJ=Tribunal Criminal Internacional “ad hoc” para a ex-Jugoslávia; TPI=Tribunal Penal Internacional. ABREVIATURAS DE PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS, REVISTAS, ENCICLOPÉDIAS, COLECTÂNEAS, OBRAS COLECTIVAS E RECOLHAS DE
JURISPRUDÊNCIA: AA.VV.=Autores vários (obra colectiva); ADPCP=Anuario de Derecho penal y Ciencias penales; ATC=Acórdãos do Tribunal Constitucional; BFDUC=Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; BMJ=Boletim do Ministério da Justiça; DJ=Revista Direito e Justiça; Dpen=Doctrina Penal; ED=Enciclopedia dell Diritto; EHCR, I=Estudos em Homenagem a Xxxxx Xxxxxxxxx, vol. 1, Homenagens pessoais. Penal. Processo Penal. Organização Judiciária, org. de Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Xxxxxx XXXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxx Xxx Xxxxxxxx, Coimbra Ed., 2001; OD=O Direito; RDPSP=Revue de Droit Public et de la Science Politique (en France et à l’étranger);RFDUL=Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; RICR=Revue Internationale de la Croux-Rouge; RIDP=Revue Internationale de Droit Pénal; RIDPP=Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale; RJ=Revista Jurídica, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa; RLJ=Revista de Legislação e Jurisprudência; RMP=Revista do Ministério Público; RPCC=Revista Portuguesa de Ciência Criminal. OUTRAS ABREVIATURAS: al.=alínea; apud=segundo; D.L.=Decreto-Lei; ed.=edição; ed. lit.=editor literário; ID.=o mesmo autor; int.=introdução; trad.=tradução.
2 Sentença “KAMBANDA” do Tribunal Criminal Internacional “ad hoc” para o Ruanda (fonte:
site da Internet xxx.xxxx.xxx/XXXXXXX/xxxxx/).
Neste ponto, o Legislador preocupou-se em dar um conteúdo material às figuras reguladas, renunciando a utilizar o conceito de participação criminosa. Existe, pois, um “nomen juris” próprio3, um conceito material de conspiração, com inspiração noutros ordenamentos jurídicos.
O acordo é uma conduta desunida, dada a fraccionabilidade do “iter criminis”, antecipando a coloração do facto criminoso. A conspiração vive como potência, não como resultado; ela é imaterial. O acordo, no seu núcleo originário, comprimido, é uma fusão de algo secreto e impuro; destinado, todavia, a expandir-se, agilizando-se, abandonando, desse modo, a forma estilizada que habita inicialmente.
Enunciando as questões juridicamente relevantes, importa saber:
— qual a genealogia do tipo4;
— qual a estrutura típica do acordo, qual o âmbito de aplicação, quais as actividades proibidas;
— quais os requisitos para o acordo ser punível;
— quais as especificidades do tipo;
— quais os obstáculos dogmáticos à positivação do acordo;
— quais as razões que presidem à incriminação do acordo e, em caso afirmativo, indagar se são admissíveis correlativamente aos princípios do Direito Penal, nomeadamente em relação à sua vocação para a protecção de bens jurídicos. Será a antecipação do momento consumativo compensada pela estrutura finalística do acordo?
PRIMEIRA PARTE
ESTRUTURA DO TIPO DO ACORDO COM VISTA À PRÁTICA DE GENOCÍDIO
O método a utilizar é o de analisar a letra da lei, os elementos históricos, a experiência do direito estrangeiro, pressupostos metodológicos de co-implicação entre o tipo e os seus elementos (HASSEMER); a orientação metodológica e a pré-compreensão hermenêutica sugerem claramente o primado dos sentidos
3 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración para cometer el delito: interpretación del art. 4, I, CP (los actos preparatorios de la participación), Bosch, Barcelona, 1978, pg. 19.
4 Genealogia, segundo XXXXXXXX consiste numa história, mas não uma história do passado: uma história do presente, respeitante às condições de emergência dos seus objectos como existem agora. Genealogia é uma história específica: desvenda as origens modernas e a contingência de instituições e ideias grandiosas e veneradas (XXXXX XXXXXXXXXXX, A criação do sujeito de Direito nas genealogias de Xxxxxx Xxxxxxxx, trad. de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx, in RMP, ano 8.º, n.º 30, Abr.-Jun. de 1987, pg. 12).
imanentes ao próprio tipo; é o próprio tipo a produzir que é condição necessária para a sua compreensão.
O princípio hermenêutico é o de que “a compreensão e alcance a adscrever aos singulares elementos da factualidade típica hão-de estar em consonância com a densidade axiológica e teleológica das pertinentes incriminações. Nomeadamente, com os bens jurídicos a proteger e com as manifestações de danosidade social a prevenir. Terá de ser assim por obediência ao moderno pensamento hermenêutico segundo o qual «só em função do tipo» podem os singulares elementos da factualidade (...) ganhar sentido normativo.”5.
A partir deste postulado, só é possível compreender o sentido da expressão “acordo” recorrendo a um manual de Direito Penal ou a um comentário6.
§ 1.ª PRELIMINARES
1. Filiação na teoria jurídico-penal — crimes plurissubjectivos ou de participação necessária
Numerosos tipos do Código Penal pressupõem para a construção do tipo a colaboração de vários sujeitos. Assim, exigem a participação de mais de uma pessoa, por convergência de contributos entre os vários agentes de forma a preencher o tipo de ilícito, para a realização integral do tipo de ilícito7. Sujeito colectivo é o que é constituído por uma pluralidade de pessoas, sem a qual o crime não se pode verificar8.
5 XXXXX XX XXXXXXXXXX XXXX / XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado in RPCC, ano 4, fasc. 4, 3.º, Jul.-Set. de 1994, pg. 355.
6 Como refere HASSEMER “Não são apenas os elementos que constróem o tipo, pois também o tipo constrói os elementos. É o tipo que os converte em algo, que os encontra e isto no verdadeiro sentido da palavra”.
Nas relações entre o tipo e as suas partes depara-se-nos algo como uma função no sentido de que o tipo só é compreensível a partir das suas partes e estas, por sua vez, só o são a partir do tipo.
Há uma relação de implicação, co-criação e codeterminação de sentidos entre o tipo e os elementos que os integram. O que define estes elementos é a sua função hermenêutica no contexto do tipo: em rigor, eles são esta função (HASSEMER apud XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo para a fundamentação de um paradigma dualista), Coimbra Ed., 1991, pgs. 245-246).
Para o jurista, está acima de toda a dúvida que os elementos constitutivos do tipo só podem ser compreendidos linguisticamente a partir do tipo, sendo igualmente certo que ele só chega a saber o que o tipo diz a partir do que os elementos constitutivos dizem (HASSEMER apud XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., pg. 246).
7 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. Volume I. Problemas Gerais, Xxxxxxx XXXXXXX et al., Coimbra Ed., 1998 (= in RPCC, 7, 1997, pgs. 7- 100), pg. 240-241.
8 XXXX XXXXXX XXXXXXXX, Teoria de la parte especial del Derecho Penal, Salamanca, 1988, pg. 46.
Os tipos de crime mencionados pertencem a uma categoria de crimes caracterizada em função do agente9, designada como de participação imprópria ou necessária, fattispecie plurissubjectiva ou pluripessoal, que se opõe à fattispecie monossubjectiva (concurso eventual10).
1.1 A bipartição mais conhecida dos crimes plurissubjectivos é, desde FREUDENTHAL, de dois grandes grupos11, consoante o efeito oposto ou recíproco:
— os crimes unilaterais ou de convergência;
— os crimes de encontro.
O acordo com vista à prática de genocídio é um crime unilateral ou de convergência, caracterizado, pois, pela actuação conjunta ou acessória de várias pessoas dirigida a uma meta comum; o encontro das diversas actuações de vontade tem um efeito constitutivo do tipo12-13.
§ 2.ª FONTES
A protecção penal da Comunidade Internacional, rectius, da Humanidade, pode conceber-se numa dupla perspectiva: i) uma, rigorosamente inovadora e integralmente internacional, é a que elabora normas punitivas pela Comunidade em seu nome, com ou sem o beneplácito dos Estados; outra, tradicional, no interior dos próprios Estados, mercê de normas originariamente de Direito interno, mas projectadas para o exterior, por se referirem a interesses comunitários.
1. Fontes internacionais
1.1. Julgamentos de Xxxxxxxxxx. Primeira expressão em Direito Penal Internacional da “conspiracy”, com vista a iniciar uma guerra de agressão
9 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º volume, AAFDL, 1999, pg. 113.
10 Neste, o tipo legal de crime pode ser preenchido individualmente, por qualquer sujeito, em princípio, ganhando especificidades se houver interacção de vários sujeitos comparticipantes (ALFONSO REYS ECHANDÍA, Tipicidad, sexta ed., Xxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, pg. 169).
11 XXXX XXXXXX, Derecho Penal. Parte General, trad. Dr. Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Buenos Aires, 1956, pg. 128; XXXX-XXXXXXXX XXXXXXXX, Tratado de Derecho Penal. Parte General, vol. secondo, trad. e notas de S. Xxx Xxxx e F. Xxxxx Xxxxx, Bosch, Barcelona, 1981 (original: Lehrbuch des Strafrechts, 3.ª ed., Berlim, 1978), pgs. 968-971.
12 XXXXXXXX XXXXXXX / XXXX XXXXX XXXXXX / XXXXX XXXX, Derecho penal, Parte General, 2, trad. de Jorge Bofill Xxxxxxx, Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxx, 0000, pgs. 401-402.
13 Mais acertado seria a descrição de intervenção necessária, segundo XXXXXXX / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 380.
Entre nós, em relação ao motim, v. XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, Artigo 302.º in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo II, Artigos 202.º a 307.º, dirigido por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Coimbra Ed., 1999, pg. 1191.
Após a II Guerra Mundial, os Aliados pretenderam punir os criminosos nazis, mesmo sem regra escrita de direito internacional.
Foi elaborado um relatório intitulado “The Nazi Conspiracy”, com vários volumes, pelo Governo dos EUA.
Os crimes não eram, “per se”, justiciáveis perante o direito internacional. Contudo, através um elemento de aproximação, os juristas americanos, promotores de solução repressivas, descobriram a noção anglo-saxónica de “conspiracy” ou “plan concerté”, o “complot”, um fio condutor14.
O Estatuto do Tribunal de Nuremberga referia-se a “Dirigentes, organizadores, instigadores ou cúmplices que participaram na elaboração ou execução de um plano concertado ou conspiração para cometer qualquer um dos crimes acima mencionados são responsáveis por todos os actos realizados por quaisquer pessoas na execução desse plano.”. O art.º 6.º, al. a), referente aos “crimes contra a paz”, referia: “nomeadamente, planeamento, preparação, desencadeamento ou prosseguimento de uma guerra de agressão, ou uma guerra em violação aos tratados internacionais, acordos ou garantias, ou participação num plano concertado ou numa conspiração para levar a cabo qualquer um dos actos anteriores”.
As definições jurisprudenciais fizeram referência, de modo mais ou menos implícito, a um complot, ou a um plano concertado15, a esta noção própria do Direito britânico: a de “conspiracy”, ideia estrangeira ao Direito alemão e ao Direito francês, “complot” ou plano concertado em vista de iniciar ou de conduzir uma guerra de agressão.
XXXXXX XXXXXXX, representante dos Estados Unidos na última fase da Comissão das Nações Unidas relativa aos Crimes de Guerra, escrevia, em relatório de 1945:
“A razão que determina que o programa de extermínio dos judeus e a destruição dos direitos das minorias seja considerado uma preocupação internacional é o facto de tal programa fazer parte de um plano para levar a cabo uma guerra ilícita.”16.
O “complot” justifica a perseguição e permite o conhecimento de “todo o sistema da guerra totalitária nazi, os métodos de guerra empregados por Xxxxxx, contrários às leis e aos costumes da guerra”: são os meios destinados a servir os fins implícitos no “plano totalitário nazi”17.
A criminalidade nazi não consistiu apenas em simples actos individuais de crueldade que, justapostos uns aos outros, fariam, conjuntamente, uma criminalidade de guerra “extraordinária”. Pelo contrário, inscreviam-se, de forma extremamente lógica, num vasto plano concertado e pendiam, cada um ao
14 Cfr. C. XXXXXXXXX, Un concept juridique en quête d’identité: le Crime contre l’Humanité
in RIDP, vol. 63, 3.º e 4.º sem. de 1992, pg. 1032.
15 GRYNFOGEL, Un concept juridique..., pg. 1033.
16 Apud XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Apontamento sobre o Crime contra a Humanidade in
EHCR, I, separata, pg. 84.
17 GRYNFOGEL, Un concept juridique..., pg. 1033.
seu modo global, rumo a um objectivo único e expresso abertamente, de servidão da Europa18.
1.1.1 Das vinte acusações proferidas em Nuremberga, apenas duas — as relativas aos arguidos VON XXXXXXXX e XXXXXXXXX — não contêm a imputação cumulativa de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, muito embora se acuse por crime de conspiração.
1.1.2 No Julgamento do Tribunal Militar Internacional de Tóquio, cujo Estatuto seguiu de perto o do Tribunal de Nuremberga19, todos os réus, à excepção de XXXXXX e de SHIGEMITSU, são condenados responsabilizados por conluio.
1.2 Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio
A CPRCG foi o primeiro instrumento jurídico vinculativo, de carácter universal, de protecção dos direitos do homem, marcando o início da etapa da “internacionalização” daqueles20.
As fontes internacionais constam da al. b) do art.º 3.º da CPRCG, que refere:
“Serão punidos os seguintes actos:
(...)
b) O acordo com vista a cometer genocídio”.
1.2.1 Nos trabalhos preparatórios da CPRCG, as controvérsias começaram na discussão da “conspiração para cometer genocídio” (o art.º III), pela dificuldade de encontrar um termo homólogo ao inglês de “conspiracy”.
Os Trabalhos Preparatórios sugerem que a razão da inclusão deste tipo foi a de assegurar, devido à natureza grave do crime de genocídio em vista à natureza perigosa do crime de genocídio, que o mero acordo para cometer genocídio deveria ser punível, ainda que não sucedesse nenhum acto preparatório. Durante o debate, o Secretariado avisou que, no intuito de cumprir a Resolução n.º 96 (I), da Assembleia Geral, a Convenção deveria ter em conta os imperativos de prevenção do crime de genocídio:
“Esta prevenção poderá envolver certos actos puníveis que não constituam eles próprios genocídio, por exemplo, certos actos preparatórios, um acordo ou a conspiração com vista a cometer genocídio, ou propaganda sistemática incitando a tal”.
1.2.1.1 O principal problema que o artigo referente ao acordo enfrentou na adopção foi a intenção de harmonização das legislações internas dos possíveis
18 GRYNFOGEL, Un concept juridique..., pg. 1033.
19 V. XXXXXXX XXXXXX, Le Proces de Nuremberg in RIDP, 1951, N. 1, pgs. 1-19.
20 XXXXX XXXX XXXXXX XXXXX, As Reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Almedina, Coimbra, 1997, pg. 58.
Estados, sendo esta a razão para que não se consideraram como puníveis os actos preparatórios do crime de genocídio21.
Nos debates do Comité “ad hoc”, o representante francês inicialmente considerou que era um conceito estrangeiro ao Direito francês. O representante dos EUA explicou que, no Direito anglo-saxónico, a conspiração era um crime consistente no acordo de duas ou mais pessoas para perseguir um propósito ilegal. O representante da Venezuela considerou que, em castelhano, a palavra “conspiración” corresponde à “asociación” com o objectivo de cometer um crime. O representante polaco observou que, no Direito anglo-saxónico, a palavra “complicity” estende-se apenas a “aiding and abeting” e que o crime de conspiração não envolve cumplicidade. A Polónia interpelou o Secretário Geral para separar a cumplicidade da conspiração.
No sexto debate do Comité, o representante dos EUA, XXXXXX, afirmou que “conspiracy” tem um significado preciso no Direito anglo-saxónico: significa que o acordo entre duas ou mais pessoas para cometer um acto ilegal. o representante RAAFAT, do Egipto, notou que a noção de conspiração tinha sido introduzida no Direito egípcio e que significava a conivência de várias pessoas para cometer um crime, quer fosse bem ou mal sucedido.
No final, admitiu-se o princípio da sanção do acordo criminal prévio à acção genocida, ainda que com a abstenção da França, da Bélgica e dos Países Baixos.
1.3 Posteriormente, a incriminação do acordo com vista à prática do genocídio consta também dos estatutos dos Tribunais Criminais Internacionais “ad hoc” para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda22.
1.3.1 O acordo ainda previsto truncadamente na al. d) do n.º 3 do art.º 25.º do Estatuto de Roma23.
21 XXXXXXX XXXXX XXXXXXXXX, Delitos de Derecho Internacional. Tipificación y Repressión Internacional, Bosch, Barcelona, 2001, pg. 70.
22 Em ambos os casos, o Conselho de Segurança actuou ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas (em caso de “ameaça para a paz, ruptura da paz ou acto de agressão”, o Conselho de Segurança pode adoptar as medidas necessárias para manter ou restaruar a paz e a segurança internacionais. As decisões destes dois Tribunais vinculam directamente os Estados. Contudo, o Conselho de Segurança não dispõe de uma competência genérica para criar um Tribunal Internacional em matéria penal, segundo a opinião dominante. Apenas pode adoptar medidas como a criação dos aludidos tribunais “ad hoc”, medida não especificada, perante situações concretas de conflito, para prosseguir os interesses de segurança (XXXXX XXXXXX, Claros e escuros de um auto-retrato: breve anotação à Jurisprudência dos Tribunais Penais Internacionais para a antiga Jugoslávia e para o Ruanda sobre a própria legitimação in RPCC, ano 12, n.º 4, Out.-Dez. de 2002, pg. 574).
Sobre os tribunais internacionais “ad hoc” para a antiga Jugoslávia e para o Ruanda, v. XXXXX XXXXXXXXXX, Reflexões sobre Temas de Direito Internacional Público. Timor, a ONU e o Tribunal Penal Internacional, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2001, pg. 257; XXXXXX XXX XXX, Xx Xxxxxxxxx x Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, pgs. 45 ss.; XXXXXXXX XXXXXXXXXX Y MECA, Los asuntos de Yugoslavia y Ruanda in Crímines contra la humanidad y genocidio, XII Seminario «Duque de Ahumada», obra colectiva, Ministerio del Interior, Imprenta Nacional del Boletín Oficial del Estado, s.l., 2001, pgs. 69-116 (v. anotações mais desenvolvidas no Anexo II).
Sobre o interessante ponto de vista da legitimação dos Tribunais “ad hoc”, v. XXXXX XXXXXX,
Claros e escuros de um auto-retrato..., pgs. 573-601.
23 A al. d) do n.º 3 do art.º 25.º do ER, sob epígrafe “Responsabilidade criminal individual”, preceitua:
Esta disposição recolhe com aparente autonomia o confuso pressuposto de quem contribui de modo intencional e por qualquer meio, à “comissão ou tentativa de comissão do crime por um grupo de pessoas que tenham uma finalidade comum.”.
Segundo XXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX00, tudo parece indicar que se pretendia incluir um caso de conspiração punível, finalidade que resultou truncada pela exigência expressa de que o grupo comece pelo menos a fase executiva do facto. Este limite temporal, impede a sua configuração como acto preparatório e reduz seriamente as possibilidades de encontrar alguma especificidade relativamente às formas normais de cumplicidade (cfr. art.º 23.º do ER).
No entanto, nos termos do n.º 3 do art.º 22.º, nada do disposto no ER afecta a tipificação de uma conduta como crime internacional.
2. Fonte nacional
A fonte nacional consta do n.º 3 do art.º 239.º do Código Penal, introduzida com a Reforma de 1995. É pois, internamente, uma neocriminalização, devida a compromissos internacionais:
Nos trabalhos preparatórios, o Professor XXXXXXXXXX XXXX dois números ao texto apresentado, em virtude de compromissos internacionais recentemente firmados:
n.º 2 — “Quem pública e directamente incitar a genocídio será punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.”
n.º 3 — “O mero acordo de três ou mais pessoas no cometimento de genocídio é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”
A Comissão concordou desde logo na consagração da nova alínea e) e dos dois novos números, embora o n.º 3 tenha visto a sua redacção alterada no seguinte sentido:
“3 — O acordo com vista à prática de genocídio é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”
A alusão a um mero acordo proporcionava uma ideia de simplificação de meios25.
“3. Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável o poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem:
(...)
d) Contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um conjunto de pessoas que tenha um objectivo comum. Esta contribuição deverá ser intencional e ocorrer:
i) Como o propósito de levar a cabo a actividade ou o objectivo criminal do grupo, quando um ou outro impliquem a prática de um crime da competência do Tribunal; ou
ii) Com o conhecimento de que o grupo tem a intenção de cometer o crime”.
24 XXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX, Hacia la Corte Penal Internacional in Crímines contra la humanidad y genocidio, XII Seminario «Duque de Ahumada», obra colectiva, Ministerio del Interior, Imprenta Nacional del Boletín Oficial del Estado, s.l., 2001, pg. 43.
25 Código Penal. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, Lisboa, 1993, pg.
284.
§ 3.ª
O BEM JURÍDICO PROTEGIDO
1. Um crime de perigo abstracto
O n.º 3 do art.º 239.º é uma incriminação de perigo abstracto ou presumido. Com efeito, a lei estabelece a perigosidade da acção, mediante uma presunção inilidível, “juris et de jure”, sendo um mecanismo mais rígido do que o dos crimes de resultado26-27.
O legislador considera — e, consequentemente, generaliza — que as regras de experiência ensinam que certas condutas, em regra, põem sempre em perigo certos e determinados bens28.
O perigo constitui um mero motivo da incriminação, renunciando o legislador a concebê-lo como resultado da acção.
O perigo está fora do tipo legal, não faz parte do ilícito-típico. O perigo não é elemento do tipo, mas tão-só uma motivação do legislador29; mero fundamento legal da incriminação. O perigo é mero fundamento legal da incriminação; não individualizado em qualquer vítima ou ofendido possível, ou em qualquer bem30.
O crime consuma-se (formalmente) apesar de, em concreto, não se verificar qualquer perigo31.
Para que o tipo legal esteja preenchido, não é necessário que em concreto se verifique aquele perigo32; basta que se conclua, a nível abstracto, que o acordo é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal protegido, dada a probabilidade de lesão do bem protegido pelo genocídio
26 XXXX XXXXXX XXXXX, Comportamento Lícito Alternativo e Concurso de Riscos. Contributo para uma teoria da imputação objectiva em Direito Penal, AAFDL, 1989, pg. 372.
27 XXXX-XXXXXXXX XXXXXXXX, Tratado de Derecho Penal. Parte General, vol. primero, trad. e notas de S. Xxx Xxxx e F. Xxxxx Xxxxx, Bosch, Barcelona, 1981 (original: Lehrbuch des Strafrechts, 3.ª ed., Berlim, 1978), pg. 357; XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., pg. 396; XXX XXXXXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo (Contributo para uma Dogmática da Imputação Subjectiva nos Crimes de Perigo Concreto), Lex, Lisboa, 1995, pg. 25.
Um exemplo de crime de perigo abstracto fornecido por XXX XXXXXXX (O Dolo de Perigo, pg.
25) é o do “Incitamento à guerra”.
28 XXXXX XXXXX, O Perigo em Direito Penal (Contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas), reimpressão, Coimbra Ed., 2000, pg. 601 (nota)
29 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pgs. 620-621; ID., Artigo 272.º in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo II, Artigos 202.º a 307.º, dirigido por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Coimbra Ed., 1999, pg. 868.
30 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pg. 117.
31 XXXXXX XXXXX, O Crime de Falsificação de Documentos. Da Falsificação Intelectual e da falsidade em Documento, reimpressão, Coimbra Ed., 1999, pg. 26.
32 V. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º volume, pg. 117.
Há uma punição do âmbito pré-delitual (“Volfeld”), originando uma antecipação da punibilidade33.
O acordo é um crime de perigo abstracto, “porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens”34.
Os crimes de perigo abstracto atingiram, sobretudo depois da II Guerra Mundial, uma importância sem precedente, nos planos dogmático e político- criminal35. Segundo a sugestiva afirmação de XXXXXXX, estes crimes estenderam-se como uma «mancha de óleo», convertendo-se em «filhos predilectos do legislador»36.
1.2 O bem jurídico concretamente protegido
O bem jurídico constitui um ponto de partida da ideia que preside à formação do tipo, sendo a base da estrutura e interpretação do mesmo.
Mediante a inclusão no art.º 239.º, relativo ao genocídio, o bem jurídico protegido pelo n.º 3 coincidirá com o bem jurídico daquele?, ou seja, em termos genéricos, a ajustar subsequentemente, com a protecção do grupo humano, independentemente da raça, da religião ou de qualquer particularidade étnica37?
Temos vários tipos de resposta, sumariadas do modo exposto de seguida:
1.2.1 A maioria da Doutrina não prescinde da fundamentação do Direito Penal na sua função protectora de bens jurídicos; não se reclama a lesão em concreto de um bem jurídico, insistindo, assim, na protecção do bem jurídico principal como operador da legitimação. O que a lei se propõe prevenir com esta incriminação é o perigo de se vir a executar o genocídio. A lei antecipa a matéria proibida, de modo a assegurar uma área avançada de tutela38.
O legislador consagra uma regra especial, em que basta a decisão de cometer genocídio39, sendo uma tutela antecipada do bem jurídico40-41.
33 XXXXXX XXXXX, O Crime de Falsificação..., pg. 27.
34 Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 426/91, de 6 de Novembro de 1991, in ATC, 20.º vol., 1991, pgs. 423, 432 (cfr. também pg. 431).
35 Ac. do TC n.º 426/91, de 6 de Novembro, pg. 433.
36 Apud Ac. do TC n.º 426/91, de 6 de Novembro, pg. 433.
37 XXXXX XXXXX XXXXXXXXX XXXXXX, Propuesta de veredicto sobre la violencia sexual de las mujeres in El genocidio bosnio. Documentos para un análisis, Los Libros de la Catarata, Madrid, 1997, pg. 228.
38 XXXXXXXXXX XXXX / XXXXX XXXXXXX, Sobre os crimes de fraude..., pg. 364.
39 XXXXX XXXX XXXXXXX, Artigo 239.º in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo II, Artigos 202.º a 307.º, dirigido por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Coimbra Ed., 1999, pg. 574.
40 XXXXX XXXX XXXXXXX, Artigo 239.º, pg. 574; XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pgs. 68, 70; XXXXXX XXXXX, O Crime de Falsificação..., pgs. 858, 860; XXX XXXXXXXX, Erro sobre regras legais, regulamentares ou técnicas nos crimes de perigo comum no actual direito português. (Um caso de
O Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 426/91, de 6 de Novembro, considerou que “Os crimes de perigo abstracto não violam, in totum, o princípio da necessidade das penas e das medidas abstractas de segurança, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição — a sua compatibilidade com este princípio depende, decisivamente, da razoabilidade da antecipação da tutela penal”42-.
1.2.2 Alguma doutrina, nomeadamente italiana, tem criticado os crimes de perigo abstracto, por violação do princípio de que o Direito Penal existe só para a protecção dos bens jurídicos, o que exigiria efectiva lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos; o Estado estaria a punir um simples não acatamento da lei, o que não seria admissível no Direito Criminal.
Daqui resultaria a ilegitimidade dos crimes de perigo abstracto, por inexistência de um bem jurídico.
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O princípio da culpa colocaria em cheque os crimes de perigo abstracto. No caso, por exemplo, do n.º 1 do art.º 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83, o TC
infracção de regras de construção e algumas interrogações no nosso sistema penal), AAFDL, 2000, pgs. 234 ss..
A antecipação da tutela penal dos bens jurídicos pressupõe a maior gravidade dos comportamentos típicos; existência dos crimes de perigo (XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pgs. 60-61); é exigida pela complexidade crescente da vida moderna, explicável à luz de um direito penal que visa a protecção de bens jurídicos, assegurando as condições de livre desenvolvimento individual (XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 68). Mas manifesta-se ainda a função do Direito Penal protectora de bens jurídicos (isto é, do livre desenvolvimento dos seus titulares) (XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 70).
Quando o bem já está perdido, não há nada a proteger, pelo que é inútil a manutenção da norma (XXXXXX apud CURADO NEVES, Comportamento Lícito Alternativo..., pg. 282).
XXX XXXXXXXX questiona o carácter intolerável ou insuportável do perigo (XXX XXXXXXXX,
Erro sobre regras legais..., pg. 247).
Criticamente, v. XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 625.
41 Em relação ao específico bem jurídico protegido pelo tipo de associações criminosas, FIGUEIREDO DIAS considera que o bem jurídico protegido é a tutela da paz pública, no sentido do asseguramento do mínimo de condições sócio-existenciais sem o qual se torna problemática a possibilidade, socialmente funcional, de um ser-com-os-outros actuante e sem entraves. O art.º 299.º coenvolve um crime de perigo abstracto, todavia assente num substrato irrenunciável: a altíssima perigosidade desta espécie de associações, derivada do forte poder de ameaça da organização e dos mútuos estímulos e contra-estímulos de natureza criminosa que aquela cria nos seus membros (FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas» no Código Penal Português de 1982 (arts. 287.º e 288.º), Coimbra Ed., 1988, pgs. 26-27; Artigo 299.º in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo II, Artigos 202.º a 307.º, dirigido por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Coimbra Ed., 1999, pg. 1157).
Poder-se-ia dizer que sempre se poderá encontrar um bem jurídico que sustente formalmente o mais extremo dos tipos legais de perigo abstracto, como os bens jurídico-penais da paz pública ou da segurança, que desempenham um papel agregador de referências vinculantes (cfr. XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 625).
Na crítica de XXXXX XXXXX, por serem meros significantes de uma vaguíssima referência axiológica, são desprovidos de conteúdo. Aqueles valores nunca serão significados axiologicamente relevantes, porquanto também nunca ascenderão à dignidade de nódulos normativos susceptíveis de congregarem um sentido de desvalor (objectivo) que o ilícito-típico tem de comportar (FARIA COSTA, O Perigo..., pg. 625).
Diversamente de XXXXXXXXXX XXXX, XXXXXXXX considera que não existe um bem jurídico autónomo, o tipo tem apenas uma função preventiva: a de reprimir as agressões aos bens jurídicos tutelados nos singulares tipos da Parte Especial, sendo uma antecipação generalizada da tutela penal para o estádio preparatório.
42 Ac. do TC n.º 426/91, de 6 de Novembro, pgs. 424, 433.
considerou que as actividades de tráfico aí incriminadas “possuem uma ressonância ética só comparável, em intensidade, às «incriminações clássicas» às quais está associada ao próprio crime”43.
Parafraseando este Xxxxxxx, mutatis mutandis, poder-se-ia defender que a condenação do acordo “está indelevelmente inscrita na consciência ética das sociedades contemporâneas”44.
1.2.3 Uma “media via” é seguida, entre nós, por XXXXX XXXXX00, que nota que é um caso paradigmático da ausência em Direito Penal, consubstanciando o sustentáculo da incriminação na relação de cuidado-de- perigo.
A construção deste Autor baseia-se em vários argumentos, enunciados de seguida:
I. As razões de prescindir do bem jurídico
É votado ao insucesso o propósito de pretender fundamentar os crimes de perigo abstracto, com um ainda mais afastado e recôndito grau de ofensividade46; é impossível dominar conceitualmente a ofensividade, quando nos afastamos para lá da ofensividade de segundo grau (colocar, concretamente em perigo). A legitimidade dos crimes de perigo abstracto não pode ser encontrada num desvirtuado e então já inócuo princípio da ofensividade47, com um ainda mais afastado e recôndito grau de ofensividade48-49.
Outro argumento é o de que técnica definidora dos crimes de perigo abstracto muda radicalmente de registo quando cotejada com a técnica dos crimes de perigo concreto.
II. A relevância da ausência em Direito Penal
Ao sancionar-se penalmente um comportamento dentro destes parâmetros de valoração somos confrontados com a inexistência de uma qualquer
«ofensividade» relativamente a um concreto bem jurídico50. Na lógica de protecção de bens jurídicos, pouco conta se se construir tipos legais em que o bem jurídico (concreto) está ausente51. Os crimes de perigo abstracto são o exemplo mais acabado da relevância da ausência em Direito Penal. O perigo não
43 Ac. do TC n.º 426/91, de 6 de Novembro, pg. 436. 44 Ac. do TC n.º 426/91, de 6 de Novembro, pg. 436. 45 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pgs. 620 ss., 632-634.
46 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 630.
47 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 631.
48 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 630.
49 A ofensa a um bem jurídico é a pedra de toque que pode legitimar a intervenção do detentor do “jus puniendi” (Estado), enquanto entidade susceptível de cominar males eticamente legitimados (XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 626). O homem, ao abrir-se para com o outro, porque também só dessa forma é que se pode rever como pessoa, vive e sedimenta um conjunto de valores, de bens axiologicamente relevantes e cristalizados na história e pela história, que permitem a existência do próprio ser comunitário (XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 626). O imponderável do ser-aí-diferente individual só tem sentido se os «outros» estiverem dentro precisamente desse escrínio que o ser-aí-individual representa. Todavia, isso só é possível se os valores despertados pelas relações intersubjectivas não forem ofendidos.
Donde decorre que a ofensa a um desses valores essenciais seja uma ofensa a um pressuposto da própria afirmação do ser-aí-diferente individual ou comunitário (XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 626).
Os valores expressos em mediação e dentro da textura normativa da ordem penal são o elo de ligação único e imprescindível que une imorredoiramente o «eu» ao «outro».
50 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 624.
51 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 621(nota).
é elemento do tipo, que está, por conseguinte, ausente, é ainda através da sua presença-ausência que vai determinar a qualificação 52-53.
O bem jurídico (concreto) está ausente54.
Não existe um bem jurídico concreto e definível a cimentar a relação de cuidado, sendo, por isso, independentemente da existência de um concreto e identificável bem jurídico.
III. O apelo às determinantes históricas
A “ausência” é preenchida com o apelo às determinantes históricas que compõem o real social. Os segmentos matriciais construtores da comunidade jurídico-penal são eles mesmos determinados pela história que os envolve e o seu aparecimento no campo da específica discursividade jurídico-penal está dependente de variáveis55.
IV. A relação de cuidado-de-perigo
O legislador age para preservar a tensão primitiva da relação de cuidado- de-perigo, sem ter no horizonte qualquer bem jurídico56.
Não existindo um bem jurídico concreto e definível a cimentar a relação de cuidado, é a relação de cuidado-de-perigo, mesmo sem a recorrência imediata do bem jurídico, que é ainda suporte material suficiente para legitimar a incriminação de condutas violadoras dessa relação originária57.
Qual o fundamento último e limite intransponível que legitima a incriminação? Segundo XXXXX XXXXX00, é a relação de cuidado-de-perigo. A relação de cuidado-de-perigo que sustenta os crimes de perigo abstracto funda-se, ainda e sempre naquela primitiva relação de cuidado que legitima o próprio Estado. O desvalor radicaliza-se no desvalor do próprio cuidado-de-perigo: independentemente da existência de um concreto e identificável bem jurídico. “a relação de cuidado-de-perigo é ainda o valor — o bem jurídico —, a determinante axiológica”59-60.
V. A limitação pelo princípio da legalidade
O poder incriminador do Estado encontra-se mais “solto”, sem limites “materiais”, a não ser os decorrentes dos princípios da legalidade (estrita) e da irretroactividade da lei penal61.
52 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 622.
53 Nesta perspectiva, o perigo, enquanto elemento oculto e que não é sequer chamado ao mundo da imediata discursividade dogmático-penal, influencia, decisivamente, toda a compreensão dos crimes de perigo abstracto (XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 622).
54 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 621 (nota).
55 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 623.
56 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 623.
57 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 634.
58 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg.633.
59 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 634(nota).
60 A relação de cuidado-de-perigo, mesmo sem a recorrência imediata do bem jurídico, é ainda suporte material suficiente para legitimar a incriminação de condutas violadoras dessa relação originária (XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 634).
O cuidado-de-perigo como bem jurídico ele mesmo, como fim em si mesmo, não meio de preservação de bens, é o fundamento último e limite intransponível que legitima a incriminação (XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 633).
61 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 632.
1.2.4 Apesar da exposição brilhante de XXXXX XXXXX, prescindindo por completo do bem jurídico concreto, cremos que a incriminação não é imune ao bem jurídico protegido.
A antecipação da tutela penal dos bens jurídicos pressupõe a maior gravidade dos comportamentos típicos. Assim, na sua maioria, as incriminações de perigo serão bens jurídicos não meramente simbólicos62.
Mesmo o Autor63 refere que é a relação de cuidado-de-perigo é-o relativamente aos bens essencialíssimos do viver comunitário64.
Não é possível abstrair a punibilidade do acordo da ideia de protecção das condições comunitárias e pessoais indispensáveis ao livre desenvolvimento e realização da personalidade ética do homem.
O contacto com o bem jurídico é mais longínquo, mas não é obnubilado.
Da perspectiva de XXXXX XXXXX, retiramos elementos úteis, tais como o apelo à historicidade.
1.3 Tem sido questionada a legitimidade constitucional dos crimes de perigo abstracto, devido à fricção com o princípio da culpa.
Em resposta, tem sido referido que o Legislador operar uma rígida definição das condutas proibidas; de acordo com o princípio da legalidade: têm de respeitar o princípio da determinabilidade do tipo (FIGUEIREDO DIAS).
Seguindo a opinião de XXXXX XXXXX, a aparente défice de legitimidade é contrabalançado pela extraordinária minúcia que o legislador põe na descrição das condutas proibidas65. A legitimidade não é tocada.
§ 4.ª
CONCEITO DE CONSPIRAÇÃO
1. Generalidades. Noção de conspiração
1.1 Partindo das estruturas linguísticas do n.º 3 do art.º 239.º do Código Penal, não custa estabelecer a ligação com o fenómeno jurídico da conspiração.
A conspiração não é desconhecida de alguns Códigos penais de ordenamentos da família romano-germânica, como os ordenamentos alemão e espanhol66. Noutros ordenamentos da família de direitos mencionada, a conspiração é punível apenas quando esteja presente o propósito de cometer determinados crimes, considerados como extremamente graves, v. g., minando a
62 XXX XXXXXXXX, Erro sobre regras legais..., pg. 243.
63 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 634.
64 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 634.
65 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 645.
66 A punição da conspiração no ordenamento jurídico espanhol remonta ao Código Penal espanhol de 1882 referia:
“La conjuración para un delito consiste en la resolución tomada entre dos o más personas para cometerlo. No hay conjuración en la mera proposición para cometer um delito que alguna persona haga a otra u otras, cuando no es antecipada por éstas.”
segurança do Estado. Contudo, a punição do “complot” derroga o princípio de que uma pessoa não pode ser punida pela mera intenção ou pelos actos preparatórios comedidos.
Diversamente, a incriminação da conspiração tem uma larga tradição que remonta à Idade Média. Contemporaneamente, a “conspiracy” é própria dos sistemas de “Common Law”, sendo uma forma específica de participação criminal, punível em si mesma.
1.2 Analiticamente a conspiração consiste na união de vontades para atentar contra o ordenamento jurídico, no “processo em que vários sujeitos se encontram e, do intercâmbio de ideias e de propósitos, nasce uma decisão firme e precisa de executar o criem, quer dizer, de fazer algo juntos que de outra maneira não fariam”67
O crime é decisão de todos os conspiradores. Não é uma corrupção, no sentido de não ser algo estranho à personalidade; é uma instigação mútua, segundo a opinião de JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, “uma influência psicológica mútua entre todos e cada um dos membros do dito acordo de conspiração.”68.
Mas a comissão do crime não é apenas o produto das diferentes personalidades consideradas individualmente.
Do ponto de vista psicológico, não há “solidariedade” alguma entre os diversos sujeitos cada um realiza o seu próprio interesse69;70-71.
1.3 Temos conspirações em vários domínios.
1.3.1 No universo da Mitologia grega, existem várias conspirações que não chegaram ao seu fim principal, mencionadas no Dicionário de XXXXXX XXXXXX:
I. Uma colonia de gregos de Melos, que se instalara na região sob o comando de Xxxxxx, cresceu rapidamente e tornou-se poderosa. Os habitantes de Criasso ficaram preocupados e decidiram aniquilar os seus incómodos vizinhos. Projectaram convidar todos os gregos para uma festa e matá-los quando estivessem todos juntos, mas Xxxxxx, uma jovem da cidade de Xxxxxxx, na Cária, estava enamorada de Xxxxxx e revelou-lhe o plano. Quando os cários foram convidar os gregos, estes aceitaram, mas disseram que o costume da sua terra exigia que as suas mulheres fossem também convidadas para o banquete. E assim se fez. Os homens foram para a festa desarmados, mas as mulheres levavam cada uma sua espada escondida debaixo da roupa. Durante o banquete, dado o sinal, os cários atiraram-se aos gregos, mas estes anteciparam-se e mataram-nos a todos. Arrasaram a cidade de Criasso72.
II. Durante uma guerra da Messénia, os lacedemónios, que não participavam numa expedição, foram reduzidos à escravatura, passando a constituir a classe dos hilotas. Todos os cidadãos nascidos por essa altura foram destituídos dos seus direitos políticos e receberam o
67 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 14.
68 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 16.
69 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 16.
70 O Direito Penal dos EUA define a conspiração, na Ordinance of Conspirators e na Jurisprudência, do seguinte modo:
“combinação de duas ou mais pessoas para realizar um acto que é ilícito em si mesmo, ou para executar um acto legal, servindo-se dele de modo ilícito.”
71 O acordo é totalmente livre, baseado numa relação de confiança (XXXXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 48).
72 XXXXXX XXXXXX, Dicionário de Mitologia Grega, tradução de Xxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxx, 0000, pgs. 68-69.
nome de Parténios. Mas eles não se resignaram com tal sorte e escolheram para chefe da revolta um deles, chamado Xxxxxxx. Conceberam um plano de acção e conspiraram contra os Espartanos. A sublevação deveria eclodir durante a festa espartana das Jacíntias e Xxxxxxx deveria dar o sinal colocando uma coifa na cabeça. Os Espartanos, porém, aperceberam-se dos planos da conjuração e o arauto impediu Falanto de colocar a coifa na cabeça. A conspiração foi assim desmascarada e os Parténios fugiram sob o comando de Xxxxxxx, indo fundar a colónia de Tarento73.
III. Mândron, rei dos Bébrices, reinava na cidade então chamada Pitúsias. Na ausência do rei, colonos focenses que ele aí recebera foram massacrados pelos habitantes, que tinham organizado contra eles uma conspiração. Mas Xxxxxxxx, a filha do rei, conseguiu preveni-los a tempo, em segredo, de tal modo que os colonos mataram todos os indígenas e apoderaram-se da cidade74.
IV. Quando Xxxxxxxx, regressado da ilha de Gérion, atravessou o Sul da Gália, Xxxxx e os Lígures, seus companheiros, atacaram Xxxxxxxx. As flechas acabaram por faltar ao herói. Prestes a ser vencido pelos adversários, dirigiu uma prece a seu pai, Xxxx, que lhe enviou uma chuva de pedras, com as quais Xxxxxxxx não teve qualquer dificuldade em rechaçar os inimigos75.
V. A tomada de Tróia tem na sua base a conspiração dos Argivos. Desistindo de tomar Tróia pela força, pensaram em construir um enorme cavalo de madeira, contendo considerável número de soldados. Havia que persuadir os Troianos a introduzir este cavalo na cidade. Para o conseguir, a armada levantou âncora e foi esconder-se secretamente atrás da ilha de Ténedo.
Xxxxx ficou em terra: era o espião que os Gregos haviam deixado em Tróia quando fingiram partir e levantar o cerco. Sínon deveria avisá-los do momento em que os Troianos tivessem introduzido o cavalo de madeira na cidade. Sínon foi feito prisioneiro por pastores troianos.
Segue-se a discussão entre os Troianos em relação ao destino do Cavalo, a morte de Xxxxxxxxx; a entrada do Cavalo na cidade, com os Gregos no bojo do cavalo; a festa troiana; a pilhagem da cidade (episódios narrados por XXXXXXXX, no livro II da Eneida76).
VI. O assassínio de Xxxxxxxxx, Rei de Micenas, chefe da expedição que levou os Argivos a Tróia (daí o epíteto que Xxxxxx lhe confere: “pastor de povos”), foi antecedido de uma conspiração.
“Clitemnestra começou a conspirar em conluio com Xxxxxx para matar Xxxxxxxxx e Xxxxxxxxx.”77.
Clitemnestra e Xxxxxx tinham motivos para delinquir, devido à culpa hereditária de Xxxxxxxxx (sendo descendente de Xxxxxx e xx Xxxxx) e devido à culpa pessoal: i) por ter desposado Ifigénia após matar o seu marido (segundo algumas versões); ii) por ter sacrificado a filha Xxxxxxxx, de modo a aplacar a ira de Xxxxxxx e partir para a Guerra de Tróia; iii) por ter chefiado a expedição de Xxxxx,
A peça sumaria os pecados de Agamémnon para justificar o seu desaparecimento. Agamémnon “pode evitar o derramamento de sangue de Xxxxxxxx, e de muito mais sangue inocente, apenas se desistir da guerra e da sua vingança sobre Páris. (...) Contudo, a necessidade obriga-o a derramar mais sangue. Tem de aceitar as consequências da sua política.”78. Assim, Xxxxxxxxx irá provar a “lei válida” da “aprendizagem pelo sofrimento”:
“Foi Xxxx que guiou os homens para os caminhos da prudência, estabelecendo como lei válida a aprendizagem pelo sofrimento. (...) isto é favor violento dos deuses que se sentam ao leme celeste.”
73 XXXXXX XXXXXX, Dicionário..., pg. 165.
74 XXXXXX XXXXXX, Dicionário..., pg. 266.
75 XXXXXX XXXXXX, Dicionário..., pg. 283.
76 Esta obra inspirou também XXXXXX XXXXXXX, na ópera Os Troianos.
77 XXXXXX XXXXXX, Os mitos gregos, 2.º volume, tradução de Xxxxxxxx Xxxxxx, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990, pg. 136.
78 H.D.F. XXXXX, A Tragédia Grega – Estudo literário, I volume, tradução do Dr. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxx, Xxxxxxx Xxxxx, Coimbra, 1990, pg. 138.
Clitemnestra e Xxxxxx tornam-se amantes (embora, na peça, não pareça ser decisiva a influência de Xxxxxxxx, a deusa do Amor (ao contrário de esposas de outros heróis que combateram em Tróia, como as Xxxxxxxx e de Xxxxxxxx, que foram infiéis) e congeminam a morte de Xxxxxxxxx, ausente, então, na Guerra de Tróia.
A conspiração não é relatada na sua fase inicial; a peça nada refere acerca da resistência de Xxxxxxxxxxxx. Pela interpretação que fazemos da obra, trata-se de um “silêncio eloquente” (dado que, segundo outras versões, Xxxxxxxxxxxx, primeiro, é fiel ao marido, repelindo as investidas; depois sucumbe, seduzida por Xxxxxx, que primeiro planeara tornar-se seu amante e matar Xxxxxxxxx quando regressasse de Xxxxx; para tal, afasta Xxxxxxxx).
A união de vontades, o acordo visa uma finalidade comum: a vingança e a tomada do poder de Micenas; cada um dos conspiradores o realiza no seu interesse pessoal, ao prospectivar o crime principal projectado.
A espera assume, assim, um carácter preparatório do crime a executar. Clitemnestra coloca um vigia para detectar a chegada de Xxxxxxxxx, através de vários vigias ao longo da costa marítima: quando o primeiro detectasse as naus de Agamémnon, correria a notícia para o seguinte, ao longo de uma transmissão de fachos, vigias que aguardavam o acender do fogo para fazer sinal ao próximo. Segundo outras versões, é Xxxxxx que coloca à beira-mar sentinelas para esperarem os barcos e darem sinal quando Xxxxxxxxx chegasse.
Segundo outras versões, temendo que chegasse inesperadamente, Xxxxxxxxxxxx escreveu a Agamémnon, pedindo que acendesse um sinal luminoso no Monte Ida quando Tróia caísse. Então — neste aspecto já coincidente com a versão que consta na peça —, Xxxxxxxxxxxx mandou preparar uma série de faróis em cadeia, de forma a que o sinal dele chegasse à Argólida, através do cabo Hermeon, em Lemnos, e dos montes Actos, Messápio, Cíterion, Egisplancto e Aracneon. No telhado do palácio de Micenas, mandou colocar uma sentinela79.
VII. Na Odisseia, é referida a conspiração para matar Xxxxxxxx. Os pretendentes decidiram preparar uma armadilha a Telémaco, para o momento em que regressasse de procurar Xxxxxxx.
Xxxxxxx, um dos pretendentes, revelou o plano a Xxxxxxxx (sendo, por isso, mais tarde, poupado por Xxxxxxx)80.
1.3.2 Temos também conspirações na Bíblia.
No Antigo Testamento, no seu livro profético, XXXXXXXX escreve:
“Por isso, assim fala o Senhor contra os homens de Xxxxxx, que conspiraram contra a minha vida” (Xxxxxxxx 11: 21).
O Autor refere-se também a outra conjura contra a sua vida:
“Eles disseram: «Vinde e tramemos uma conspiração contra Xxxxxxxx, porque não perecerá a lei por falta de sacerdote, nem o conselho por falta de sábio, nem a palavra divina por falta de profeta! Vinde, firamo-lo com a língua, e não façamos caso das suas palavras.” (Jeremias, 18: 18).
1.3.2.1 Os Salmos são bastante ricos na referência a conspirações:
I. No Salmo 31, lê-se: “o terror envolveu-me, / porque conspiraram contra mim / e decidiram tirar-me a vida.” (Salmos, 3181: 14).
II. “Livra-me da conspiração dos malvados, / do tumulto dos que praticam a iniquidade. // (...) Decidem-se pelas más obras, / e conspiram às ocultas, para armar ciladas, / dizendo: «Quem é que vai reparar?» / Projectam o crime / e levam ao fim os seus planos ocultos; / o íntimo do coração do homem é insondável.” (Salmos, 64: 3, 6-7).
III. O 59.º Salmo, intitulado “Oração contra os ímpios”, refere:
“(...) / Livra-me do que pratica o mal, / e salva-me do homem sanguinário. / Vê como armam ciladas à minha vida, / ó Senhor, conspiram contra mim os poderosos, / sem que eu tenha cometido nenhuma transgressão. / Sem que eu tenha culpa, agitam-se e preparam-se. /
79 XXXXXX XXXXXX, Os mitos gregos, 2.º, pg. 136.
80 XXXXXX XXXXXX, Dicionário..., pg. 294.
81 Seguimos a numeração hebraica (a maioria dos Salmos tem uma numeração dupla, que advém de um desfasamento entre o texto hebraico, por um lado, e as versões gregas e latinas, por outro).
(...) / As suas palavras ferem como espadas, / e dizem a gritar, em xxx xxxxx: / «Quem é que nos vai ouvir?» / (...) / Regressam pela tarde, ladrando como cães, / e dão voltas pela cidade. // Vagueiam à busca de comida / e, se não se fartam, rondam toda a noite. / Eu, porém, cantarei o teu poder, / desde o amanhecer celebrarei a tua bondade / porque foste o meu amparo, / e o meu refúgio no dia da tribulação.” (Salmos, 59: 3-5, 8, 15-17).
IV. “Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios, / nem se detém no caminho dos pecadores, / nem toma parte na reunião dos libertinos” (Salmos, 1: 1).
V. “Não convivo com homens que adoram ídolos, / nem me associo com os traidores. / Detesto a reunião dos malfeitores, / e não tomo assento com os ímpios.” (Salmos, 26: 4-5).
1.3.2.2 Também no Novo Testamento se refere conspirações, desde logo, a conspiração conducente à morte de XXXXX XXXXXX.
Outra conspiração é a conjura dos Judeus contra XXXXX: “(...) os judeus reuniram-se e juraram, sob pena de anátema, não comer nem beber enquanto não matassem Xxxxx. Eram mais de quarenta os que tinham feito essa conjura. Foram ter com os sumos sacerdotes e com os anciãos e disseram-lhes: «Jurámos, sob pena de anátema, não comer nada enquanto não matarmos Xxxxx. Agora, de acordo com o Xxxxxxxx, ide solicitar ao tribuno que o mande comparecer diante de vós, sob o pretexto de examinardes o seu caso profundamente. E nós estamos prontos a suprimi-lo durante o trajecto». Mas o filho da irmã de Xxxxx teve conhecimento da cilada. Correu à fortaleza, entrou, e preveniu Paulo.” (Actos dos Apóstolos, 23: 12-16).
1.4 Um tipo particular de conspiração é o planeado com vista à morte de um determinado dirigente político, por exemplo, conspirações políticas em Roma. XXXXXXXX, em Os Doze Césares, narra conspirações que antecederam assassínios políticos:
I. A conspiração para assassinar XXXX XXXXX XXXXX (também presente na peça de XXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx, enaltecendo a figura de XXXXX, argumento do filme, de excelente qualidade, de XXXXXXXXXXX) é relatada do seguinte modo:
“(...) espalhou-se o rumor, por vários lados, de que ele iria a Alexandria ou a Tróia (...). Dizia-se também que na próxima sessão do Senado, o quindecênviro Xxxxx Xxxx proporia que fosse dado a Xxxxx o título de rei, visto estar escrito nos livros do destino que os partos só por um rei podiam ser vencidos.
LXXX. Para não serem forçados a votar esta lei é que os conjurados se deram pressa de executar o seu projecto. Até então só houvera reuniões parciais, dois ou três conjurados as mais das vezes; tiveram então uma assembleia geral.
(...)
A conspiração englobou mais de sessenta cidadãos, à frente dos quais estavam Xxxx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxxx. Os conjurados hesitaram, primeiro, entre assassiná-lo no Campo de Marte, no momento em que, durante as eleições, ele chamasse as tribos à votação, precipitando-o uns do alto da ponte, enquanto outros o esperariam em baixo para o degolar, ou atacá-lo na Via sacra, ou ainda à entrada do teatro. Mas quando ficou assente que o Senador se reunisse nos idos de Março na cúria de Xxxxxx |XXXXXXX|, acordaram em preferir esta data e esse local.”82-83.
II. Igualmente, o assassínio do Imperador XXXXXX XXXXXXXX XXXXX foi antecedido de conspiração84.
III. Em relação à morte de XXXX XXXXXX XXXXXXXXX, XXXXXXXX refere: “Odiado e temido por todos, sucumbiu, por fim, a uma conspiração dos seus amigos,
dos seus libertos íntimos e até de sua mulher.”85. “Os conjurados não sabiam como nem quando
82 SUETÓNIO, Os Doze Césares, Tradução e Notas de Xxxx Xxxxxx Xxxxxx, Presença, 1963, pgs. 53-55.
83 Em relação à morte, XXXXXXXX refere: “Ora, de entre tantas feridas, segundo o médico Xxxxxxxx, nenhuma era mortal a não ser a do peito, a segunda punhalada.” (XXXXXXXX, Os Doze Césares, pg. 57).
84 XXXXXXXX, Os Xxxx Xxxxxxx, biografia de XXXXX XXXXXX XXXX, pg. 323.
85 XXXXXXXX, Os Doze Césares, biografia de XXXX XXXXXX XXXXXXXXX, pg. 383.
o atacariam, se à mesa ou no banho. Xxxxxxx, (...) acusado de desvios fraudulentos, ofereceu- lhes os seus conselhos e a sua ajuda. Para afastar suspeitas, durante bastantes dias trouxe ao peito o braço esquerdo, como se estivesse doente; e, na hora combinada, introduziu no meio das ligaduras um punhal. Anunciando que estava a par de uma conspiração, conseguiu ser introduzido junto do imperador, e enquanto Xxxxxxxxx xxx, estupefacto, a memória que ele acabava de lhe entregar, espetou-lhe um punhal no baixo ventre. O imperador, ferido, debatia- se, quando (...) Xxxxxxxx, Xxxxxx (...), Satúrio (...) e alguns gladiadores caíram sobre ele e lhe vibraram sete punhaladas. O jovem escravo (...) que assistiu ao crime contava que Xxxxxxxxx, ao receber o primeiro golpe, lhe pedira um punhal escondido à cabeceira da cama, e que chamasse os criados, mas ele só encontrara a bainha do punhal e vira, além disso, todas as portas fechadas (...)”86.
1.5 Encontramos igualmente conspirações noutros domínios.
I. Na Literatura, XXXXX XXXX XXXXXX, no último poema da obra Os Conjurados, escreve:
“Os conjurados
No centro da Europa estão a conspirar. O facto data de 1291.
Trata-se de homens de diversas estirpes, que professam diversas religiões e que falam em diversas línguas.
Tomaram a estranha resolução de ser razoáveis.
Resolveram esquecer as suas divergências e acentuar as suas afinidades.
Foram soldados da Confederação e depois mercenários, porque eram pobres e tinham o hábito da guerra e não ignoravam que todas as empresas do homem são igualmente vãs.
Foram Xxxxxxxxxx, que crava no peito as lanças inimigas para que os seus companheiros avancem.
São um cirurgião, um pastor ou um procurador, mas são também Paracelso e Amiel e Xxxx e Xxxx Xxxx.
No centro da Europa, nas terras altas da Europa, cresce uma torre de razão e de firme
fé.
Os cantões são agora vinte e dois. O de Genebra, o último, é uma das minhas pátrias. Amanhã serão todo o planeta.
Talvez o que digo não seja verdadeiro; oxalá seja profético.”87.
88.
II. Na música operática, existem também conspirações, por exemplo, na ópera verdiana:
i) Na ópera “Macbeth”89, inspirada na peça homónima de XXXXXXXXXXX00, XXXX XXXXXXX instiga o marido a assassinar o Rei XXXXXX, na sequência das profecias das bruxas que lhe auguravam o trono.
ii) Na ópera “Un Ballo in Maschera”91, vários nobres conspiram o assassínio do Rei Xxxxxxxx; finalmente decidem-se pela sua morte; tiram à sorte quem assassinará o Rei, durante o baile; a sorte recai sobre Xxxxxx, marido de Xxxxxx, pela qual o Rei nutria paixão.
86 XXXXXXXX, Os Doze Césares, biografia de XXXX XXXXXX XXXXXXXXX, pgs. 387-388.
87 Noutro plano, XXXXXX XXXXXXXX XXXXXX, refere, na peça Fausto, II, v. 11550: “Conjurados connosco estão / Os elementos destruidores.” (XXXXXX, Xxxxxx, trad., int., glossário de Xxxx Xxxxxxxx, imagens de Xxxx Xxxxx, Círculo de Leitores, Mem Martins, 1999, pg. 543 (cfr. também Xxxxxx, trad. de Xxxxxxxxx x’Xxxxxxx, cuidada por Xxxxx Xxxxxxxx, Relógio d’Água, Lisboa, 1987).
88 XXXXX XXXX XXXXXX, Os Conjurados in Obras Completas, III, 1975-1985, Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, pg. 527 (pgs. 477-527).
89 “Ópera em quatro actos”, música de XXXXXXXX XXXXX, libretto de XXXXXXXXX XXXXX XXXXX / XXXXXX XXXXXX (na interpretação de XXXX XXXXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Orquestra e Coro do Teatro alla Scala, sob a direcção de XXXXXX XX XXXXXX).
90 Existe também um filme inspirado na peça, realizado e protagonizado por XXXXX XXXXX.
iii) Na ópera “I Vespri Siciliani”, os sicilianos conspiram assassinar os soldados franceses, durante a ocupação da Sicília.
iv) Na ópera “Attila”92, repete-se o cenário conspirativo, desta feita dos autóctones romanos em relação à invasão dos Hunos, chefiados por Xxxxx.
2. Distinções conceptuais em relação ao acordo com vista à prática de genocídio
2.1 Figuras próximas
Existem figuras próximas da conspiração:
i) Conspiração e conjuração são praticamente sinónimos nos crimes contra a segurança do Estado (art.º 173.º do Código Penal de 1852/1886 (cfr. também art.º 143.º). No Projecto de XXXXXXX XXXXXXX, estava prevista nos artigos 360.º93 e 374.º94.
Como refere CAVALEIRO DE XXXXXXXX, o concerto criminoso da conjuração é mais do que a intenção colectiva ou acordo sobre o propósito criminoso, pois é também sobre o planeamento da execução, sobre o projecto da execução. À conjuração ou conspiração: segue-se-lhe um grau ulterior, perdendo a autonomia como facto punível95.
ii) Conceito similar é o do conluio (art.º 300.º do Código Penal de 1852/1886, do Código de Justiça Militar de 1925)96.
2.1.1 Conspiração, proposta e provocação, constando na Parte Geral
91 91 “Ópera em quatro actos”, música de de XXXXXXXX XXXXX, “libretto” de XXXXXXX XXXXX (na interpretação de XXXXX XXXXXX, XXXXXXXX XX XXXXXXX e XXXX XXXXX, Orquestra e Coro do Teatro alla Scala, sob a direcção de XXXXXXXX XXXXX).
92 “Drama lírico num prólogo e três actos”, música de XXXXXXXX XXXXX, libretto de XXXXXXXXXX XXXXXX (na interpretação de XXXXXX XXXXX, XXXXXX XXXXXX, XXXX XXXXXXXX, com Orquestra e Coro do Teatro alla Scala, sob a direcção de XXXXXXXX XXXX.
93 O artigo 360.º (Conjura) referia:
“Todo o português ou estrangeiro residente em Portugal que conjurar contra a segurança exterior do Estado, concertando com outra ou outras pessoas cometer qualquer dos crimes declarados nos artigos 352.º, 353.º e 354.º, será punido, se a conjuração for seguida de algum acto preparatório de execução, com prisão de dois a seis anos. Se não for seguida de algum acto preparatório de execução, será punido com prisão de seis meses a dois anos. Esta pena será também aplicável quando, havendo algum acto preparatório de execução, existirem atenuantes de excepcional importância.” (Actas... Parte Especial, pg. 360).
94 O artigo 374.º (Conjuração) preceituava:
“A conjuração ou conspiração para a perpetração de um determinado facto descrito nos artigos 371.º, 372.º e 373.º (...) será punida, se a pena mais grave não for estabelecida por outra disposição legal, com a pena de um a cinco anos quando seguida de algum acto preparatório de execução, ou com a pena de prisão de três meses a dois anos se não se seguir algum acto preparatório.” (Actas... Parte Especial, pg. 380).
95 CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português. Parte Geral, II, U.C.P., Editorial Verbo, pg. 21.
96 XXXXXX XXXXXXXXX XX XXXXXXXX, Direito Penal Português. Parte Geral, II, U.C.P., Editorial Verbo, 1981, pg. 20.
No Direito alemão, existe uma excepção do princípio segundo o qual ninguém sofre uma pena por causa da simples decisão criminosa: o caso em que é punido quem se declara disposto, aceita a prontificação de outrem ou instiga alguém a isso (§ 30 StGB)97-98.
Todas estas formas suscitam ou despertam algo que possa suscitar o desejo do crime; e encontram-se temporalmente no mesmo nível no grau de progressão criminal.
O perigo é distinto na conspiração, na proposição e na provocação.
Proposta e conspiração são dois graus no curso da resolução manifestada. A diferença da proposta99 em relação à conspiração é a de que o “plus” desta exigir a resolução dos agentes, ou seja, que haja vários e que tenham decidido em comum:
Na proposta, há um sujeito decidido, que manifesta a outros a sua resolução, sem que seja necessário que os receptores da proposta se mostrem resolvidos100, sendo, pois, um fenómeno tendencialmente mais próximo do começo de execução.
Na proposta ou oferta (antigo “parágrafo de Xxxxxxxx”101), é determinante do merecimento de pena o fortalecimento e a afirmação da resolução criminal do presumido autor, que fica vinculado ao assunto mediante a vinculação espiritual com os demais intervenientes102.
A “tentativa de instigação” implica que quem incita presta a sua contribuição ao facto, de modo que a punibilidade do comportamento não vem determinada por meras resoluções e atitudes morais. A acção deve consistir em imediatamente determinar outro à comissão de um crime grave. O correcto é requerer que a declaração haja chegado pelo menos ao destinatário, pois, se faltar, não alcança o mínimo de perigosidade que é necessário para que o facto seja punido103.
97 O § 30 StGB (Versuch der Beteiligung) refere:
“(1) Wer einen anderen zu bestimmen versucht, ein Verbrechen zu begehen oder ihm anzustiften, wird nach den Vorschriften über den Versuch des Verbrechens bestraft (...)
(2) Ebenso wird bestraft, wer sich bereit erklärt, wer das Erbieten eines anderen annimmt oder wer mit einem anderen verabredet, ein Verbrechen zu begehen oder zu ihm anzustiften.”
98 O anterior parágrafo 49.º a) do StBG era qualificado por XXXXXX como o “enfant terrible” entre as disposições da Parte Geral.
99 No Direito norte-americano, na conspiração, diversa da “solicitação” ( “proposta”), o acto criminal parece-se com o acto criminal da solicitação, mas vai mais longe, por envolver um acordo entre duas ou mais pessoas para cometer um acto ilícito (XXXXXX). Na conspiração, o acto pode ficar consideravelmente longe do grau de proximidade da consumação.
100 XXXX XXXXXXX DE ASÚA, Tratado de Derecho Penal, t. VII, El delito y su exteriorizacion, 3.ª ed., Losada, Buenos Aires, VII, pg. 269.
101 XXXXXXXX havia oferecido os seus préstimos para matar XXXXXXXX. O “parágrafo Duchesne” foi introduzido pela Lei de 26 de Fevereiro de 1876. Tinha apenas o objectivo proteger as personalidades políticas particularmente expostas. A sua “ratio” não era uma necessidade geral de pensar a instigação frustrada, mas de proteger personalidades.
102 JESCHECK, Tratado..., II, pg. 981.
103 V. JESCHECK, Tratado..., II, pg. 983. A acção deve consistir em imediatamente determinar outro à comissão de um crime grave. O correcto é requerer que a declaração haja chegado pelo menos ao destinatário, pois, se faltar, não alcança o mínimo de perigosidade que é necessário para que o facto seja punido. O autor deve ter o duplo dolo do instigador: deve querer determinar a comissão de um crime grave ao sujeito e, ao mesmo tempo, produzir a execução do facto principal.
A provocação, em alguns Códigos Penais, consta também da Parte Geral. A “tentativa de instigação” foi única figura admitida pelo Projecto
Alternativo (Alternativ-Enwurf)104 de 1966; as restantes figuras foram excluídas, por serem consideradas constitucionalmente objectáveis.
2.1.3.1 No Projecto da Parte Geral, de 1963, da autoria de XXXXXXX XXXXXXX, era prevista uma regra que estatuía a punibilidade105:
O art.º 31.º do Projecto de XXXXXXX XXXXXXX referia:
“Quem tenta determinar outrem à prática de um crime será punível com a pena correspondente à tentativa desse crime. Da mesma forma será punível quem aceita a oferta de outrem, ou com outra pessoa se concerta, para cometer um crime, ou quem se declara disposto a cometê-lo.”106.
Segundo XXXXXXX XXXXXXX, “a punição da autoria moral e da cumplicidade supõe a acessoriedade, isto é, supõe que outrem realize uma actividade executiva. Simplesmente, do ponto de vista político-criminal, nem sempre esta ideia conduz a resultados satisfatórios. Em particular, tem-se posto o problema de saber se não deve ser punível aquele que insiste com veemência na formação da vontade criminosa de outrem, mesmo quando este não chega a praticar qualquer acto de execução; e a resposta afirmativa tem-se imposto cada vez mais até porque o acto de execução pode não chegar a ter lugar por força de razões puramente exteriores.”107.
“as razões que impõem ou justificam a punibilidade destes casos valerão integralmente para a hipótese inversa aquela em que alguém se declara disposto a cometer um crime (caso «Duchesne», que deu origem à consagração legislativa da hipótese no Código alemão) , como valerão para as hipóteses em que alguém aceita a oferta de outrem, ou com outra pessoa se concerta para cometer um crime. Serão estas, de certa forma, aplicações válidas do pensamento que preside à chamada «Schuldteilnahmetheorie»”108.
Os Conselheiros OSÓRIO e XXXXXXXX XXXXX deram o seu acordo ao preceito.
Segundo o Conselheiro XXXXXX, não parecia ter dignidade punitiva a simples declaração de que se está disposto a cometer um crime, sendo necessário o compromisso, propondo a seguinte redacção para a segunda parte do preceito:
«Da mesma forma será punível quem se oferece para cometer um crime, quem aceita esse oferecimento e quem com outrem se concerta para a prática dele.»109
XXXX XXXXXXXXX propôs a seguinte redacção:
“Será punível com a pena correspondente à tentativa todo aquele que: (...)
104 Elaborado por jovens professores de Direito Penal.
105 Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, volume I e II, AAFDL, s. d., pgs. 206-207.
106 Actas..., Parte Geral, pg. 206.
107 Actas..., Parte Geral, pgs. 206-207.
108 Actas..., Parte Geral, pgs. 207.
109 Actas..., Parte Geral, pg. 208.
c) Com outrem se concerta para cometer um ou vários crimes.”.
O Professor XXXXX XX XXXXX teceu uma severa crítica, manifestando a sua “fundamental oposição”. “Na verdade, (...) quem forma uma vontade criminosa não é punível, visto que cogitationes poenam nemo patitur, tratando- se aí (...)de um acto preparatório. Logo, não se compreende que a formação de tal vontade não seja punível mas já o seja quem contribui ou determina a formação dessa vontade”110.
A criminalização deve ir além das hipóteses de provocação pública ao crime, pois seria “alargar o campo do direito penal para além do facto tangível, palpável”111; “uma incriminação como a do Projecto arrastará para a punição muitos casos que não têm dignidade punitiva.”112
XXXXXXX XXXXXXX rejeitou as objecções de XXXXX XX XXXXX: “Não há aqui nada que possa assemelhar-se a uma punição da nuda
cogitatio, visto que aquele que vai ser punido é sempre alguém que, por actos externos, revelou a sua intenção de cometer um crime e criou assim um sério perigo para bens protegidos pelo direito penal. Outra coisa significaria (...) esquecer que o problema da punibilidade se põe em relação ao que determina ou tenta determinar e não em relação ao determinado.”113
2.2 Figuras afins
2.2.1 Punição de actos preparatórios
Quando o sujeito leva a cabo a totalidade dos actos executivos e se produz o resultado criminoso, o tipo é plenamente realizado e chega-se à consumação.
A lei pode, contudo, antecipar a tutela penal, por uma norma legal, de maneira a que seja punível não só o crime consumado. O art.º 21.º do Código Penal114 ressalva a existência de disposição expressa.
Nas formas de crime, lidamos actos jurídico-penalmente relevantes, mas inconsumados; nesta categoria, cabem a tentativa e os actos preparatórios, sendo estes, em princípio, impunes (art.º 21.º)115-116.
110 Actas..., Parte Geral, pg. 207.
111 Actas..., Parte Geral, pg. 207.
112 Actas..., Parte Geral, pg. 207.
113 Actas..., Parte Geral, 209.
114 Art.º 20.º do Projecto XXXXXXX XXXXXXX, “no pórtico do capítulo”.
115 FARIA COSTA, O círculo e a circunferência: em redor do direito penal da comunicação in Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, 1995, pg. 47.
116 A maior parte dos penalistas europeus do século XIX considerava que os actos preparatórios deveriam ser, em geral, impunes, pois não supõem uma infracção de normas jurídicas (as proibições, nos crimes de acção dolosos), pelo seu carácter equívoco: considerados em si mesmos, podem estar orientados para a comissão de algum crime ou ser condutas perfeitamente lícitas.
Apenas havia discrepâncias dos representantes da Escola positiva italiana, de acordo com os quais os actos preparatórios deveriam castigar-se quando revelassem a perigosidade do delinquente. As
Existem excepções ao referido princípio (v. g., artigos 271.º117, 274.º, 275.º118, 300.º, 301.º, 344.º do Código Penal), em que a criminalização visa censurar condutas preparatórias de determinadas infracções, dada a gravidade criminal de que se revestem119.
suas ideias não encontraram eco nas legislações do séc. XIX, pela sua difícil conciliação com os princípio básicos do Direito Penal liberal (uma das suas exigências fundamentais era a da segurança jurídica); mas incluíram na tendência dos regimes modernos totalitários do século XX, castigando, em maior ou menor medida, os actos preparatórios.
O Código penal russo de 1926 castigava de um modo geral os actos preparatórios, quando manifestassem a perigosidade do delinquente.
O Projecto de Código Penal de 1936, na Alemanha, ampliava o conceito de tentativa, tentando substituí-lo por “empreendimento”.
Na reforma de 1944 do Código Penal espanhol, ampliou-se o âmbito de punição dos actos preparatórios, nos termos do art.º 4.º, à conspiração, à proposta e à provocação.
Sobre a história da punição de actos preparatórios, v. XXXX XXXXXX XXX, Derecho Penal. Parte general – Lecciones, Lecciones 26-40, 2.ª ed., Universidad Nacional de Educación a Xxxxxxxxx, Xxxxxx, 0000, pgs. 158-159.
117 O artigo 271.º, sob epígrafe “Actos preparatórios”, refere:
“1. Quem preparar a execução dos actos referidos nos artigos 262.º, 263.º, 268.º, n.º 1, 269.º, n.º 1 ou 270.º, fabricando, importando, adquirindo para si ou para outra pessoa, fornecendo, expondo à venda ou retendo:
a) Formas, cunhos, clichés, prensas de cunhar, punções, negativos, fotografias ou outros instrumentos que, pela sua natureza, são utilizáveis para realizar crimes; ou
b) Papel que é igual ou susceptível de se confundir com aquele tipo que é particularmente fabricado para evitar imitações ou utilizado no fabrico de moeda, título de crédito ou valor selado;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. (...)
3. Não é punível pelos números anteriores quem voluntariamente:
a) Abandonar a execução do acto preparado e prevenir o perigo, por ele causado, de que outra pessoa continue a preparar o acto ou o execute, ou se esforçar seriamente nesse sentido, ou impedir a consumação; e
b) Destruir ou inutilizar os meios ou objectos referidos no número anterior, ou der à autoridade pública conhecimento deles ou a ela os entregar.”
118 O art.º 275.º, sob epígrafe “Substâncias explosivas ou análogas a armas”, preceitua:
“1. Quem importar, fabricar ou obtiver por transformação, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo arma classificada como material de guerra, arma proibida de fogo ou destinada a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes, radioactivas ou corrosivas, ou engenho ou substância explosiva, radioactiva ou própria para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
(...)
3. Se as condutas referidas no n.º 1 disserem respeito a engenho ou substância capaz de produzir explosão nuclear, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
4. Quem detiver ou trouxer consigo mecanismo de propulsão, câmara, tambor ou cano de qualquer arma proibida, silenciador ou outro aparelho de fim análogo, mira telescópica ou munições, destinados a serem montados nessas armas ou por ela disparadas, se desacompanhados destas, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.”
119 A punição de actos preparatórios é justificável para certo tipo de crime (por exemplo, nos crimes mais graves contra o Estado).
No entanto, “deve ser rodeada de restrições e garantias adequadas a impedir uma incriminação demasiadamente lata” (Actas..., Parte Especial, pg. 361), o que não sucedia com o art. 172.º do CP anterior, que se aplicava a todos os actos preparatórios de todos os crimes contra a segurança exterior ou interior do Estado, sem qualquer especificação ou limite (Actas..., Parte Especial, pg. 361).
Assim, “a punição dos actos preparatórios deve ser tida como medida excepcional” (Actas..., Parte Especial, pg. 362); “só se justifica em relação aos crimes mais graves e quando houver já um plano de crime e uma intenção definida” (Actas..., Parte Especial, pg. 362).
Os actos preparatórios são antecedidos por actos internos do sujeito; distinguem-se: a tentação criminal, a deliberação interna entre os motivos favoráveis e desfavoráveis, resolução de vontade de realizar a acção típica120. Os actos meramente internos são impunes, devido ao princípio “cogitationes poenam nemo patitur”; não se deve sofrer a pena pelo mero pensamento.
Não obstante, a conspiração não é um mero acto interno, pois pertence à fase de comunicativa, como se demonstrará.
2.2.1.1 Podem ser adoptadas duas posições acerca da relação entre a conspiração e os actos preparatórios: a inclusão ou não da conspiração, da proposta e da provocação na categoria dos actos preparatórios121, ou seja, a adopção de uma concepção unicitária ou de uma concepção dualista ou diferenciadora.
2.2.1.1.1 A concepção tradicional opinava no sentido de enquadrar a conspiração nos actos preparatórios. A criminalização seria uma excepção ao princípio da impunidade da “nuda cogitatio”, pois a questão mudaria na conspiração, em que a resolução se transcende para o exterior122.
Não se fala da punibilidade de ideias, mas da sanção lógica de um “acto preparatório” da infracção123.
Outro argumento seria o de que uma nova categoria complicaria inutilmente a teoria do “iter criminis”.
2.2.1.1.2 Diversamente, JÍMENEZ DE ASÚA referia que, de nenhuma forma, se pode dizer que sejam actos preparatórios, pois estes são externos e materiais, não meramente verbais. São, por isso, “casos de resolução manifestada”.
Também XXXXXX XXXXXXXX000 distingue, na teoria do “iter criminis” várias fases:
Segundo XXXXX XXXXX, a punibilidade dos actos preparatórios deve-se à essencialidade de certos bens jurídicos, para suportar a natureza ou a própria compreensão do estado de direito; e existência de um plano e de uma intenção definida.
Segundo XXXXX XXXXXXXX XXXXX (A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, vol. I, AAFDL, 1990, pg. 321), há algo de mais específico. Nos casos previstos, verifica-se uma associação típica exclusiva dos actos preparatórios descritos ou apenas concebíveis, ao plano de execução de um ou vários crimes. a inerência típica de tais actos preparatórios a um plano criminoso, associada à essencialidade dos bens em causa, enfraquece as razões de segurança jurídica, que delimitam a incriminação, e dá voz às solicitações preventivas (XXXXX XXXXXXXX XXXXX, A Justificação..., I, pg. 322).
Em certos casos há já uma apetência para a autonomização do sentido valorativo daqueles actos e para uma apreciação do efeito-valor por eles realizado, independentemente da execução do crime a que estão ligados: autonomização face ao bem jurídico: não corresponde à protecção de um valor objectivamente autónomo daquele que, em última instância, se pretende prevenir. A construção de um bem jurídico autónomo assenta numa certa imagem de danosidade social, dada a normal instrumentalização criminosa das consequências ou produtos daqueles actos (XXXXX XXXXXXXX XXXXX, A Justificação..., I, pg. 323).
120 XXXX XXXXXX XXX, Derecho Penal..., pg. 158.
121 V. XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXXX, La punición de los actos preparatorios in Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, tomo XI, fasc. II, Mai.-Ago. de 1968, pgs. 278-279 (do mesmo Autor, La punition des actes preparatoires dans le droit pénal espagnol in RIDP, 1969, pgs. 77- 120).
122 XXXXXXXX XXXX XXXX, Conspiración in Nueva Enciclopedia Jurídica, Xxxxxx-X. Mascareñas (ed. lit.), tomo V, Francisco Xxxx, Xxxxxxxxx, 0000, pg. 206.
123 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 206.
124 XXXXXX XXXXXXXX, Teoria de la Parte Especial..., pg. 99.
— a fase interna;
— a fase comunicativa (conspiração, proposta provocação);
— a fase dos actos preparatórios;
— a fase executiva: tentativa, consumação.
A conspiração é um caso de antecipação da tutela penal mediante a incriminação de uma fase do “iter criminis” anterior à dos actos preparatórios.
Contudo, o art.º 21.º é aplicável “a fortiori”, por argumento de maioria de razão, para fundamentar a não punição do acordo simples, não seguido de actos de execução.
2.2.2 Situações de comparticipação criminosa
Outras figuras afins são as de comparticipação criminosa125-126, previstas na Parte Geral (artigos 26.º127 e 27.º).
O suporte de algumas destas figuras é a conspiração, consubstanciadora do plano prévio à execução da acção criminosa, sendo um elemento subjectivo que
125 A situação concursal é de não fácil apreensão. XXXXXXXXX XX XXXXXXXX refere que “A disciplina jurídica da comparticipação criminosa corresponde a uma realidade multímoda, de difícil enquadramento para abranger todas as modalidades que pode apresentar. Esta dificuldade é posta em realce pela doutrina e reflecte-se na multiplicidade de sistemas legislativos e classificações doutrinárias que se esforçam por disciplinar e explicar o fenómeno da criminalidade colectiva.” (Direito Penal Português, Parte Geral, II, U.C.P., Editorial Verbo, pg. 76).
XXXXXXXXXXX alude que “a teoria da participação é o capítulo mais obscuro e equívoco da Ciência do Direito penal alemão” (apud XXXXX XXXXX, Autoría y Xxxxxxx xxx Xxxxx en Derecho Penal, Traducción de la septima edición alamana por Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx y Xxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxx, Madrid, 2000, pg. 19, e apud JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 18).
“As construções jurídicas complicaram-na desgraçadamente tanto que (...) constitui um dos capítulos mais difíceis de toda a dogmática jurídico-penal”125 (XXXXXXX XXXXX, Derecho Penal (Parte General), traducción directa del alemán por Xxxx xxx Xxxxx y Xxxx Xxxxxx, Bosch, Barcelona, pg. 300).
Este problema foi também classificado por XXXXXXXXXX como “um trabalho de Sísifo” ou mesmo por XXXXXXXX e por XXX XXXXXXXX como um problema “privado de esperança”, do qual derivaria uma “piedosa incerteza jurídica” (HEINBERGER de novo) (apud SERGIO SEMINARA, Tecniche normative e concorso di persone nel reato, Xxxxxxx, Milão, 1987, pg. 180).
126 Já o Direito Romano, para punir os diferentes protagonistas, multiplicou as distinções nominais: “auctores”, “socii”, “fautores”, “consui”, “adjutores”, “ministri” (XXXXX XXXXX / XXXXX XXXX, Traité de Droit Criminel. Problèmes généraux de la science criminelle. Droit pénal général, tome I, Quatrième éd., Ed. Cuias, pg. 607).
Partindo de uma visão descritiva fenoménica, a comparticipação criminosa, do ponto de vista naturalístico, consiste na união de várias pessoas, cujas forças são coordenadas pelo objectivo de realizar um evento vedado pela lei penal (XXXXXX XXXXXXXX, Il Sistema del Diritto Penale, Cedam, Pádua, 1975, pg. 371).
127 Existem vários sistemas de autoria: sistema de autor unitário, o conceito extensivo de autor, teorias do merecimento da pena, teorias da perigosidade e o conceito restritivo; este último tem quatro bifurcações: teorias objectivo-formais, teorias subjectivas, teorias objectivo-materiais, teorias mistas e teoria do domínio do facto. Esta última foi defendida desde o Finalismo; como macro-conceito, tem múltiplas variantes e múltiplos critérios de definição. Posição de realce é a concepção de XXXXX XXXXX, considerando ser o autor a figura central do acontecimento, subdivida no domínio da acção, no domínio da vontade e no domínio funcional; sendo um conceito aberto, face à “resistência do objecto”, existem vazios abertos à valoração judicial.
perfaz uma das peças essenciais de várias figuras da comparticipação criminosa. O plano reveste-se da característica de fonte e de fundamento da punibilidade.
As figuras incriminadas da conspiração, do “complot”, se não se reconduzirem à co-autoria, dado não ter directamente que ver com a teoria da comparticipação: serão crimes autónomos, “sui generis”128, como já defendia XXXXXXX XXXXXXX.
2.2.2.1 A comparticipação criminosa pertence à fattispecie monossubjectiva (eventual): é uma tipicidade acessória, integrativa, diversa da fattispecie plurissubjectiva (necessária), de que o n.º 3 do art.º 239.º é exemplo.
Explicando a primeira, no sistema penal de origem demo-liberal, onde pontifica o princípio da legalidade, é necessário normas que confiram relevância penal ao comportamento não integrado “a priori” na fattispecie descrita na Parte Especial.
As normas incriminadoras da Parte Especial só valem para as formas de autoria singular (e na forma consumada), sendo as demais figuras do sistema comparticipativo criadas por alargamento da Parte Geral129.
A Parte Geral contém disposições que sancionam formas imperfeitas, pressupostos em que falta algum dos elementos exigidos pelo tipo. Elas são normas integrativas, dispositivos amplificadores do tipo; representam um complemento específico (“integratività”) para cada norma incriminadora da Parte Especial; esculpe a actividade lesiva inscrita na norma primária.
DELL’ANDRO explica este fenómeno através da teoria da “fattispecie plurisoggettiva eventuale”130: a conduta do participante que não cumpre os requisitos da Parte Especial é, de modo, atípica,; mas deixa de o ser se contemplada à luz da tipicidade plurissubjectiva eventual; a conduta é, deste modo, típica, de modo parcial e reflexo131; a atipicidade não é integral132. Existe, contudo, um fenómeno integrativo destas disposições da Parte Geral, operando uma extensão da responsabilidade.
Ao contrário, no n.º 3 do art.º 239.º, a conduta dos agentes está descrita desde logo no tipo penal, não havendo qualquer extensão da tipicidade.
2.2.2.2 Outra figura afim é a do acordo na co-autoria (§ 25, 2 do StGB 133 e art.º 26.º, 3.ª proposição134, uma formulação infeliz135, segundo XXXXX XX XXXXXXXXX VALDÁGUA136)137.
128 Ou agravantes (XXXXXXX XXXXXXX, Direito Criminal, vol. II, com a colaboração de Xxxxxxxxxx Xxxx, reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pg. 254).
129 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência em situações de comparticipação. Um Estudo sobre a validade e limites da solução consagrada no artigo 25.º do Código Penal de 1982, Almedina, Coimbra, 1992, pg. 246.
130 Art.º 110.º do Código Penal italiano.
131 Apud XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXX, La Participación en el Delito y el principio de acessoriedad, Tecnos, Madrid, 1990, pgs. 308-309. V. XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, A comparticipação em crimes especiais no Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pgs. 135-138, 198-199, 213-214, 326-328.
132 A instigação e cumplicidade são norma acessórias: têm de ser combinadas com a norma da Parte Especial.
133 O § 25, 2 do StGB refere:
“(...) Se vários cometem o facto punível conjuntamente, cada um é punido como autor (co-
autor).”
134 Cfr. o art.º 27.º do Anteprojecto XXXXXXX XXXXXXX (Actas , Parte Geral, pg. 194).
2.2.2.2.1 O n.º 3 do art.º 239.º é um tipo autónomo, dotado de um conteúdo material. A definição de “acordo com vista a cometer o genocídio” impede a aplicação sem mais do conceito técnico-jurídico de co-autoria, porque a verificação do acordo, como acto preparatório, é suficiente para o preenchimento do tipo; e, ainda que haja progressão criminal, não se pode afirmar desde logo que haja uma co-autoria antecipada.
2.2.2.3 A teoria do acordo prévio foi gizada pelo Tribunal Supremo de Espanha, aplicada à co-autoria, permitindo um âmbito muito alargado da punibilidade dos sujeitos que haviam dado o seu acordo prévio, qualquer que fosse o papel na fase executiva138.
2.2.2.4 Na conspiração, requere-se a celebração de um acordo para cometer crimes, ao passo que, no “desígnio comum”, requere-se não só o acordo, mas também a comissão de actos conforme a ele139.
135 Sobre o acordo, plano comum de execução, na co-autoria, Actas...., Parte Geral, pg. 199; XXXXX XX XXXXXXXXX X. VALDÁGUA, Início da tentativa do Co-autor. Contributo para a Teoria da Imputação do Facto na Co-Autoria, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1993, pgs. 122-123.
136 XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX, Início..., pg. 123.
137 O acordo, a decisão conjunta, tomada previamente, projecta-se, na sua luz, no tipo subjectivo (XXXXX XXXXXX admite que é possível diversidade de dolo entre os diversos co-autores (XXXXXXX XXXX XXXXX XXXXXX, La coautoría y la complicidad (necesaria) en derecho penal, Editorial Comares, Granada, 1998,, pg. 286). Como KÜPER refere, “o componente subjectivo vincula os actos individuais”, “a justaposição converte-se numa integração ou coordenação” (KÜPER apud XXXXXXX XXXX XXXXX XXXXXX, La coautoría..., pg. 282).
Sem acordo, ainda que objectivamente os agentes tenham causado o resultado final, “na sua materialidade externa”, não há co-autoria, mas actuações paralelas (XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX, Início..., pg. 125. Por exemplo, A e B, sem acordo, deitam doses de veneno, que, só juntas, matam; cada um apenas pode ser punidos por tentativa de homicídio, em autoria paralela).
XXXXX XXXXX analisa questões particulares do acordo, como o excesso do co-autor, o “error in persona” de um co-autor (em que o Bundesgerichtshof considera existir co-autoria e em que XXXXX XXXXX rejeita); a co-autoria em virtude de “operatividade ulterior causal” (em que o Autor rejeita a co- autoria); os casos em que está excluída a culpa de um interveniente (em que Xxxxx rejeita a co-autoria) (v. XXXXX XXXXX, Autoría..., pgs. 316 ss.).
138 O Tribunal Supremo de Espanha utilizou recorrentemente a teoria do acordo prévio: são co- autores todos os que actuem unidos pelo acordo, com independência da objectiva intervenção material do facto. Em sentença de 10 de Dezembro de 1983, o referido Tribunal refere que são requisitos comuns à participação plural, assumindo um vínculo de solidariedade (XXXXXX XXXXXX XXXXX XXXXXX, Coautoria y cumplicidad: Xxxxxxx Xxxxxxxxx x Xxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxx, 0000, pg. 269), perfazendo o delito uma totalidade pela qual responderiam todos os delinquentes:
o “pactum sceleris”, a maquinação (deliberada, com tempo ou acidentalmente);
a “conscientia sceleris”, conhecimento da ilicitude do acto criminal;
a realização pessoal da dinâmica comissiva
(apud XXXXXX XXXXXX XXXXX XXXXXX, Coautoria..., pg. 150; igualmente nesse sentido,
v. as Sentenças de 2 de Outubro de 1987 (ib., 156) e de 11 de Janeiro de 1991 (ib., pgs. 164-165)).
Assim, o Tribunal Supremo castigou, por exemplo, “como autores do num. 1 do art. 14 o mero vigilante de um crime de roubo; o que permanece ao volante do automóvel que espera à porta da entidade financeira, enquanto outros delinquentes se apoderam, mediante intimidação, do dinheiro, e a outros participantes que não tenham tomado parte directa na execução do facto.”.
A “Corte Suprema de Justicia”, da Colômbia, tem utilizado uma teoria semelhante, desde Sentença de 10 de Maio de 1991, na qual defendeu que, se vários indivíduos penetram num local para se apoderarem de bens imóveis, permanecendo um deles na via pública, a seis metros do local, distraindo e interferindo com a visibilidade de uma possível testemunha, é co-autor.
139 KAI AMBOS, Responsabilidad penal individual en el Derecho penal supranacional. Un análisis jurisprudencial. De Nuremberg a la Haya in La Ley. Revista Penal, n.º 7, Jan. de 2001, pgs. 10- 11.
2.2.2.5 Na Alemanha, mediante o recurso a dados de jurisprudência baixomedieval italiana e do disposto do art. 148.º da “Constitutio Criminalis Carolina” de 1532140, foi elaborada a teoria do “complot”. Outras concepções, de finais do século XVIII e de inícios do século XIX, integradas nas doutrinas causais da participação, e mesmo anteriores, como as de XXXXXX X XXXX (séc. XVII), construíram a categoria do “complot”141:
A definição então era a de duas ou mais pessoas se concertarem para cometer um crime, por motivo de um interesse colectivo, e se obrigarem à sua execução colectiva mediante o acordo de um apoio recíproco, ou seja, um acordo ou pacto selado por uma pluralidade de pessoas para a comissão de um crime, em virtude do qual todas se convertem em co-autores do crime executado, sem importar a contribuição, mais ou menos próxima, de maior ou menor eficácia, que a cada um lhe devesse corresponder no concerto142. Segundo XXXXXXX, o “complot” exige a intervenção de todos os conspiradores na «execução colectiva» do crime, porque se acredita na “seriedade” da intenção de cada indivíduo, mas também permite que a execução seja assumida tão-só, em conformidade com o plano traçado, por algum ou alguns deles 143. Tratar-se-ia de uma instigação recíproca incompleta.
XXXXXXXXX refere que o complot é uma instigação recíproca144, havendo a responsabilidade dos conspiradores como autores do facto; todos causam mutuamente a resolução de cometer o crime, já que a decisão de cada um é determinada pela “expectativa contratualmente fundada de assistência e de cooperação por parte dos demais”145 (diversamente, para STÜBEL, o interesse geral ou colectivo dos conspiradores constitui um dos pilares em que se baseia a expectativa de apoio mútuo entre os sujeitos do complot).
Se vários de associam para a comissão do crime, todos são delinquentes principais e merecedores de pena. )146.
Perspectivando as formas de intervenção psíquica ou moral no crime de uma perspectiva jurídico-civil, a teoria mencionada pretendia abarcar como autores todos os participantes espirituais do “complot”, desenhando uma analogia entre o “complot” e os contrato civis de sociedade e de mandato, atentas a determinar se o executor do crime havia executado por sua própria vontade (ou no seu interesse) ou em representação de um interesse e vontade alheios147: os vários sujeitos que pactuam estão em plano de igualdade para a prossecução dos seus propósitos comuns (excluindo assim os casos de
140 XXXX XXXXX / XXXXXXX XXXXXXXX-XXXXXXX, Les grands systèms de droit contemporain, 11.ª ed., Dalloz, Paris, 2002, pg. 47.
141 XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pgs. 133-134.
142 XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 134.
143 XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 140.
144 Criticando esta posição dogmática, a instigação pressupõe causar a resolução numa pessoa não decidida a executar o crime. A inexistência deste causar no outro não pode suprir-se. Assim, é mais uma ficção ou presunção do que uma explicação adequada à realidade controversa do complot. As manifestações sobre uma instigação recíproca são defeituosas, pois o substrato fáctico é indemonstrável ou internamente inexactas. Há casos raros em que preencha o tipo objectivo e subjectivo da instigação: qual seria o agente que determinou quem?
145 Xxxx XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 136.
146 XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 141.
147 XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 134.
cumplicidade previamente acordada)148. De acordo com BERNER, seria formada uma vontade global, a partir de um sujeito global, constituído pela colectividade dos comparsas, como resultado de uma instigação recíproca dos seus integrantes, pelo qual todos teriam de responder solidariamente149. Segundo XXXXXX, o complot consiste no acordo entre os vários sujeitos para a execução colectiva do crime, dentro do pressuposto de que tenha a qualidade de autor. Dado reconhecimento recíproco das intenções, seria constituída uma vontade global, causando um resultado também global, em virtude do qual todos responderiam solidariamente.
Um exemplo de “complot”, fornecido por XXXXXXX, é o de um facto que só pode ser realizado por uma única pessoa; todos sorteiam entre si quem há-de fazê-lo.
2.2.3 Os crimes de empreendimento empreender um facto significa tanto a sua tentativa como a sua consumação150
2.2.4 Outra figura afim é a da circunstância agravante. O crime ter sido pactuado por duas ou mais pessoas constituía uma circunstância, nos termos do n.º 7 do art.º 34.º do Código Penal de 1852/1886151.
Hoje é também um índice de maior perigosidade: facilita o empreendimento criminoso (v.g., os artigos 132.º, n.º 2, al. g)152, 190.º. n.º 3153, art.º 204.º, n.º 2, al. g)154 (o bando155)).
148 XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 135.
149 BERNER apud XXXXXXXXX XXXXX, La Participación..., pg. 140.
150 Exemplos: artigos 327.º (atentado contra o Presidente da República (cujos actos preparatórios são punidos (art.º 344.º); art.º 325.º (alteração violenta do Estado de Direito (“tentar destruir”) (cujos actos preparatórios são também punidos (art.º 344.º) V. XXXXX XXXXXX XX XXXXXXX XXXXXXX, Crimes de Empreendimento e Tentativa. Um estudo com particular incidência sobre o direito penal português, Almedina, Coimbra, 1986.
151 Com efeito, assim se diminuía a probabilidade de defesa e se dava à actividade uma maior probabilidade de êxito, reflectindo-se na gravidade da ofensa e, portanto, na ilicitude, como na altura explicava XXXXXXX XXXXXXX (Direito Criminal..., II, pg. 370).
152 O n.º 2, al. g), do artigo 132.º (Homicídio qualificado) estatui:
“2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(...)
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas (...)”.
153 O n.º 3 do artigo 190.º (Violação de domicílio) refere:
“3. Se o crime previsto no número 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por mais de três pessoas, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.
154 O n.º 2, al. g), do artigo 204.º, sob epígrafe “Furto qualificado”, preceitua: “2. Quem furtar coisa móvel alheia:
(...)
g) como membro de bando destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do bando;
é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.”
155 No campo do Direito Penal secundário, v. os artigos 21.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 15/93. São acções particularmente perigosas, planeadas, com grande astúcia e dissimulação (XXXXXXXX XXXXXXXX, (...) A Segurança Pública no Estado de Direito, AAFDL, 1995, pg. 94). Sobre o bando, v. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Os crimes contra a propriedade após a revisão do Código Penal de 1995 (sumários desenvolvidos) in A tutela penal do património após a revisão do Código Penal, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx / Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxx, A.A.F.D.L., 1998, pg. 60; XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, Aspectos da tutela penal do património após a revisão do Código Penal in A tutela
2.2.5 O paradigma dualista distintivo entre acordo excludente da tipicidade (v. g., crime de violação de domicílio) / consentimento, foi desenvolvido, entre nós, por XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX000, salientando a existência de duas espécies de bens jurídico-penais, duas formas de danosidade social, dois modelos de tutela penal:
— O acordo que exclui a tipicidade, por exemplo, do crime de introdução em casa alheia157, implica condutas com uma expressividade ético-social unívoca, susceptível de fundamentar um juízo de danosidade social e, nessa medida, apontar um sentido à valoração jurídica.
— O consentimento, como causa de justificação, produz o recuo da ilicitude e da punibilidade, por respeito pela autonomia individual158-159.
O acordo afasta a tipicidade, ao passo que o consentimento derime a ilicitude.
2.2.6 O ponto comum entre o acordo e o incitamento ao genocídio160 (art.º 239.º, n.º 2 do Código Penal161) é o objecto ser também o genocídio. Contudo, a estrutura da acção típica é diversa da do xxxxxx000, para além de não ser um crime de participação necessária.
2.2.7 Outra figura com que pode ser cotejada é a do terrorismo (art.º 300.º 163) e das organizações terroristas (art.º 301.º)164.
penal do património após a revisão do Código Penal, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx / Xxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxx, AAFDL, 1998, pg. 28 (também Aspectos da Tutela Penal do Património após a revisão do Código Penal in Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Penal. Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, vol. II, CEJ, Lisboa, 1998, pgs. 489 ss. (463-499).
156 XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo...
157 O agente não penetra na casa do ofendido contra a sua vontade (GEERDS apud XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., 146), dada a estrutura axiológico-teleológica, normativa e dogmático-jurídica, da figura do acordo.
O acordo esclarecido e livre em relação a bens relacionados com a liberdade, a autorização da intervenção de terceiro é emanação e parte integrante da realização e actualização do correspondente valor do direito (XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., 508).
O acordo mediatiza, se livre e esclarecido, aquela comunicação ideal que se identifica com o bem jurídico protegido: uma expressão da liberdade pessoa que só na interssubjectividade encontra a forma autêntica de actualização (XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., 517). O acordo assegura a continuidade entre a autonomia pessoa e o bem jurídico protegido e, reflexamente, a congruência entre a mesma autonomia e o programa sistémico-social de tutela penal. O que exclui, os coeficientes de conflitualidade próprios do consentimento. E retira todo o fundamento e pertinência a conceitos – como ofendido, renúncia, lesão,... – nucleares no discurso do consentimento (XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., 517).
158 XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Consentimento e Acordo..., pg. 362.
159 Sobre o consentimento e causas de justificação, XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX,
Consentimento e Acordo..., pgs. 228 ss.
160 Não é instigação, pois falta o facto principal típico e ilícito.
161 Também previsto na CPRCG e no ER (art.º 25.º, n.º 3, al. e)).
162 O tipo objectivo de ilícito consiste em incitar publicamente; indicia uma amplitude excessiva.
Incitar “directamente” limita a primeira característica, ou seja, de forma clara e inequívoca (sob pena de inconstitucionalidade, por violação do art.º 37.º da Constituição (liberdade de expressão)).
163 O art.º 300.º (Organizações terroristas) estatui:
“1. Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação terrorista, a eles aderir ou os apoiar é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2. Considera-se grupo, organização ou associação terrorista todo o agrupamento de 2 ou mais pessoas que, actuando concertadamente, visem prejudicar a integridade ou a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um acto, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda intimidar certas pessoas, grupo de pessoas ou a população em geral mediante a prática de crimes:
2.2.8 Há alguma sobreposição entre a doutrina dos crimes de organização e a doutrina da comparticipação165.
O tipo de crime da associação criminosa está contido no art.º 299.º do CP166, com aflorações particulares noutros diplomas167.
Os crimes de associações criminosas são historicamente assentes em componentes político-ideológicas estranhas à teoria da comparticipação168. Estão em dissonância com o regime da Parte Geral do Código Penal, são mecanismos que, conjuntamente com a conspiração, em certo sentido, em abstracto, estão direccionados para a mesma finalidade — a de proporcionar segurança às potenciais vítimas do crime concreto; ambos adiantam as barreiras de protecção penal. A essência de ambas é a «cooperação» com fins criminais. Tem de haver um grupo unido e organizado para o propósito comum.
Contudo, a mera pertença não é suficiente para haver uma organização criminosa.
No que respeita ao conteúdo material, na associação, predomina o aspecto institucional, a perenidade, aparecendo os sujeitos relacionados através de um tecido associativo complexo de que todos se servem (“fundadores”, “promotores”, “quem fizer parte”, “quem chefiar”). A associação será algo tendencialmente mais estável do que a conspiração, será mais organizada.
a) Contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas (...)
3. Quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação terrorista é punido com pena de prisão de 10 a 15 anos.”.
164 Sobre os artigos 300.º e 301.º, v. os comentários de FIGUEIREDO DIAS, Artigo 300.º in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo II, Artigos 202.º a 307.º, dirigido por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Coimbra Ed., 1999, pgs. 1175-1182; ID., Artigo 301.º in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, tomo II, Artigos 202.º a 307.º, dirigido por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxx, Coimbra Ed., 1999, pgs. 1183-1187.
165 FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas»..., pg. 9.
166 O artigo 299.º refere:
“1. Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2. Na mesma pena incorre quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações ou quem os apoiar, nomeadamente fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões, ou qualquer auxílio para que se recrutem novos membros.
3. Quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.”.
V. o art.º 395.º do Projecto XXXXXXX XXXXXXX. Sobre o crime de associações secretas ou ilícitas, Actas... Parte Especial, 1979, pgs. 395-396.
167 V. g., o artigo 5.º da Lei n.º 64/78, de 6 de Outubro, preceitua:
“1. Os que tiverem organizado ou desempenhado cargos directivos ou funções de responsabilidade em organização declarada extinta por perfilhar a ideologia fascista serão punidos com pena de prisão de dois a oito anos.
2. Em igual pena serão condenados os membros de organização declarada extinta que tenham tomado parte em acções violentas enquadráveis no âmbito do artigo 3.º.
3. Os membros de organização declarada extinta que, após a extinção, ajam com desacatamento da decisão declaratória, ainda que no âmbito de nova organização similar, serão punidos com a pena de dois a oito anos de prisão, agravada quando se trate de organizadores, dirigentes ou responsáveis.
4. Aquele que, não sendo membro de qualquer organização declarada extinta, tiver participado na sua actividade ilícita será punido com pena de prisão até dois anos.”
168 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 10.
Na conspiração, predomina o aspecto subjectivo, a decisão pessoal e íntima que une um conspirador ao outro; a conspiração implica um acordo em virtude do qual os sujeitos intervêm, fazendo nascer em todos e dada um o propósito firme e decidido de fazer algo: cometer o crime, que, de outra maneira, não se atreveriam a realizar169. Na associação, os membros componentes não têm de encontrar-se numa situação relação de dependência mútua.
Segundo JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, formalmente considerada, a conspiração não é definitiva, mas uma etapa prévia de participação no crime. A associação é um crime autónomo.
Os sujeitos que intervêm na conspiração planeiam a comissão de um crime. A associação representa a criação de uma maquinaria, ou a participação na mesma, que tem por objecto o crime, não havendo conexão técnico-jurídica prévia entre os que participam no crime de associação e aqueles que o façam nos crimes (não necessários em concreto).
Segundo XXXX XXXX, na associação, o desígnio criminoso é mais amplo do que na conspiração170; é, em nosso entender, um critério também tendencial171.
§ 5.ª
TIPO DE ILÍCITO
§ § 1.ª TIPO OBJECTIVO
1. Sujeitos. Requisito quantitativo
Na análise do tipo legal de crime172, o requisito quantitativo é o de dois ou mais sujeitos.
A proposta inicial do Professor XXXXXXXXXX XXXX mencionava “três ou mais pessoas”173-174.
169 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 76.
170 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 209.
171 Na expressão de JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX (La Conspiración..., pg. 76), ao passo que a associação é um Estado (“antiestado”), a conspiração é uma comunidade.
172 No tipo legal de crime (Tatbestand), o legislador descreve aquelas expressões da vida humana que em seu critério encarnam a negação dos bens jurídico-criminais, que violam os bens ou interesses jurídico-criminais (XXXXXXX XXXXXXX, A teoria do concurso em Direito Criminal. I – Unidade e Pluralidade de infracções. II – Caso julgado e poderes de cognição do juiz, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000 (reimpressão), pg. 86). Neles vasa a lei como em moldes os seus juízos valorativos, neles formula de maneira típica a antijuridicidade, a ilicitude criminal (XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 87).
173 V. Código Penal. Actas..., 1993, pg. 284.
174 Quanto ao tipo legal de crime de rixa (art.º 151.º do CP), discute-se o número de pessoas necessário, havendo quem entenda ser suficiente duas; outros entendem ser necessário mais (XXXXXXXXX XXXXXX, Da participação em Rixa (o Art.º 151.º do novo Código Penal), reimpressão, AAFDL, 1999 (1985), pgs. 47-48). No n.º 1 do art.º299.º, avulta o grupo, a organização ou a associação.
Os Trabalhos Preparatórios da Reforma de 1995 demonstram que não há obstáculo a considerar teoricamente que bastam dois sujeitos para haver preenchimento do tipo. Não obstante, na prática, o tipo de genocídio requererá um número consideravelmente amplo de sujeitos.
2. O acordo é um crime formal. Segundo a sentença MUSEMA do TCIR, tanto na família romano-germânica como na família de “Common Law”, a conspiração é uma infracção formal (“inchoate offence”), que é punível em virtude do acto criminal como tal, não como consequência ou resultado do acto. O crime é punível, ainda que não se produza o resultado, isto é, a “substantive offence”, o crime principal, isto é, se o genocídio não for perpetrado.
3. A acção típica
3.1 “Acordo”, “acordar”
A determinação é missão do Direito. O indivíduo deve ter a possibilidade de conhecer desde o início o que está proibido penalmente175.
Importa recortar filologicamente o significado exacto das palavras: “Acordar”, sendo um verbo transitivo, tem como significado “resolver”,
“decidir”, “determinar”; sendo um verbo intransitivo, significa “chegar a um acordo”, “concordar”; não acordar, dissentir. “Acordo” significa conformidade, unidade de opinião, perfeito acordo.
Juridicamente, o concerto é o perfeito consenso de vontades, afastando-se as meras conversações prévias e as discussões comuns acerca da possibilidade de cometer um facto; a falta de clareza do crime projectado176 afasta a existência de um “acordo”.
3.2 Tendo em conta o lastro histórico-valorativo do direito anglo- saxónico, averiguando o objecto comum da conspiração, esta não é meramente a concorrência de vontades, mas a concorrência resultante de um acordo. “Conspire is nothing; agreement is the thing” (XXXX XXXXXXXX). As partes têm de “put their heads together to do it”177.
Etimologicamente, “conspiracy” significa um esforço conjunto; duas pessoas não podem esforçar-se conjuntamente, a menos que se ponham em acordo.
175 ALBIN ESER / XXXXX XXXXXXXXX — Derecho Penal. Cuestiones fundamentales de la Teoría del Delito sobre la base de casos de sentencias, traducción de Xxxxxxx Xxxxxxxxxx y Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, Xxxxx, 1995, pg. 53. “No entanto, não se deve extremar o mandato de determinação, pois, de contrário, as leis tornar-se-iam excessivamente rígidas e casuísticas e não se poderiam adequar à evolução da vida, acompanhando a mudança das situações ou as características especiais do caso concreto.”, referem ESER / XXXXXXXXX (Derecho Penal..., pg. 53).
176 MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 473.
000 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxx. The General Part, Second Ed., Stevens & Sons Limited, London, 1961, pg. 667.
Não basta uma troca de impressões; é necessário que se tome a deliberação de executar o crime178.
3.3 Os meios de chegar a acordo
O acordo não necessita de ser submetido a formalidades específicas: os conspiradores podem pôr-se de acordo por correspondência do correio ou por correspondência através de um terceiro. Mas tem de haver algum tipo de comunicação
Os conspiradores não necessitam de se ter encontrado ou comunicado uns com os outros; basta uma pessoa que o faça inicialmente179.
3.3.1 A possibilidade de acordo tácito
Aplica-se possibilidade de acordo tácito que vige para a co-autoria?
Numa primeira opinião, perfilhada por XXXXXXXXX XXXXXXXX 000, não seria necessário que o acordo fosse oral: seria possível por formas tácitas, tal como na co-autoria181.
Diversamente, numa interpretação exigente do tipo, não seria possível o acordo tácito. Nos Trabalhos Preparatórios da revisão do Código Penal de 1995, eliminou-se a expressão “mero acordo”, que proporcionava uma ideia de simplificação de meios182; daí a sua substituição. Por exemplo, se o agente ouve a conversa, será um cúmplice.
Se os agentes não se ajudam, é difícil falar de um objecto criminal comum.
Consideramos, com o Professor XXXXXXXXX XXXXXXXX, que um mero conhecimento e consentimento mental para um crime a ser cometido por outros não faz de um homem conspirador; mas uma ligeira participação no plano é suficiente183.
4. Os requisitos do acordo
Nos elementos pessoais, exige-se uma pluralidade de pessoas184.
A conspiração não é meramente a concorrência de vontades, mas a concorrência resultante de um acordo185.
178 CEREZO MIR, Derecho Penal , pg. 161.
179 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law…, pg. 666.
180 GRANVILLE WILLIAMS, Criminal Law…, pg. 668.
181 MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 380.
182 Código Penal. Actas..., 1993, pg. 284.
183 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law…, pg. 668.
184 É similar à liberdade de reunião (art.º 45.º, n.º 1, da Constituição).
A natureza do acordo exigido é susceptível de algumas dúvidas. Poder-se- ia supor que o acordo necessário para a conspiração é o mesmo do necessário a um contrato; é um encontro de vontades )“meeting of minds”), resultante de proposta e de aceitação. Este tipo de acordo é suficiente. Mas a questão é se a palavra “acordo” poderá ter um significado diverso do sentido do contrato do Direito Civil.
Segundo alguns anglo-saxónicos, não existiria diferença.
Contudo, dever-se-á entender, com outros Autores, que se não aplicam inteiramente as regras de celebração de contratos do Direito Civil. Segundo J.C. XXXXX / XXXXX XXXXX, não é necessário “um acordo no sentido estrito da lei dos contratos” “mas as partes têm de, pelo menos, ter chegado a uma decisão para perpetrar o objecto contrário ao Direito.”186.
A conspiração pressupõe usualmente um pensar e um repensar, um intercâmbio de pareceres ou critérios distintos para a comissão do crime; e um chegar a acordo conforme o mesmo, normalmente sobre a sua forma de realização, ocasião, lugar, pessoas que devem intervir187. Contudo, não é imprescindível que os conspiradores tenham amadurecido o plano em detalhe188.
Por outro lado, não se exige que a forma de um “contrato criminal” contenha detalhadamente todas as estipulações da realização do tipo criminal; basta um conhecimento geral189. Um plano divergente quanto aos detalhes, mas existindo coincidência no essencial, não põe em causa o concerto criminoso. Tal como na co-autoria, não é necessário que os meios ou instrumentos particulares tenham sido acordados190.
A pessoa que se junta posteriormente à conspiração, sendo “anexada”, é contaminada desde o momento da entrada191.
4.1 Aplicando a teoria do acordo na comparticipação (na autoria plenária, na cumplicidade e, em particular, a co-autoria)192.
A conexão de vontades é designada por “convenção de ilicitude”193.
185 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law..., pg. 667.
186 X X XXXXX / XXXXX XXXXX, Criminal Law, 7.ª ed., pg. 293.
187 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 207.
188 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law..., pg. 664. Tal como no acordo de comparticipação, o acordo “simples” pode ser fruto de uma maquinação deliberada e com tempo ou pode produzir-se de forma instantânea ou acidental.
189 Em relação à co-autoria, v. XXXXXXX XXXX XXXXX XXXXXX, La coautoría..., pg. 286.
190 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law..., pg. 664.
191 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law..., pg. 664.
192 O elemento subjectivo consistente no acordo de vontades implica: i) “Pactum sceleris” ou “societas sceleris”: concerto de vontades ou acordo prévio para levar a cabo a consecução da empresa comum. ii) A “conscientia scaeleris” consiste na consciência da ilicitude do acto convencionado ou pactuado; “animus adjuvandi” consiste no propósito de coadjuvar ou cooperar com os demais para a perpetração do acto.
193 MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 381.
A conexão de vontades como elemento subjectivo de co-autoria exige simultaneamente vontade de participação no domínio colectivo do facto, a vontade de domínio comum do facto pela comunidade de pessoas.; requer, em princípio, um plano e uma resolução criminosa comuns a todos os co-autores que formam parte do ente colectivo (MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 379), e, ademais, como vontade de participação, uma actuação conjunta querida em virtude da qual cada co-autor particular efectue a sua contribuição objectiva ao serviço da realização do plano comum. Ambos os elementos, a vontade de domínio do facto pela colectividade de pessoas e a vontade de participação nela, recebem o nome de conexão de vontades (MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 379).
4.1.1 Analogamente ao que sucede com a punição da conjuração, exige- se que a conjuração se destine à perpetração de um determinado facto, não bastando, portanto, os simples projectos abstractos e genéricos194, limitando o tipo de crime às proporções razoáveis:
É necessário, pois, que os sujeitos resolvam executá-lo195 ou que estejam de acordo em levar à prática.
4.2 O conteúdo do acordo. “com vista à prática de genocídio”
A expressão “acordo com vista à prática de genocídio” (art.º 239.º, n.º 3) significa que o acordo é tendente ao genocídio. O Legislador define o âmbito dogmático de protecção da norma. O acordo deve incluir a estipulação deste tipo legal de crime. Existe uma relação de íntima dependência entre a conspiração e o genocídio, crime objecto da conspiração. Assim, há uma remissão para o tipo objectivo de ilícito do genocídio.
4.2.1 O acordo engloba necessariamente a realização de actos executivos de genocídio?
O acordo engloba necessariamente a realização de actos executivos no genocídio? Qual o conceito de autor na conspiração, tendente à repartição de papéis entre os sujeitos? Terá de haver uma estrutura rígida, abarcando somente responsabilidade a título de autoria, ou flexível, abarcando também responsabilidade a título de participação?
4.2.1.1 Certos Autores, como XXXXXXX e XXXXXXXXX XXXXXXXX, configurando a conspiração como uma co-autoria antecipada, afirmam o compromisso de co-autoria no acordo de conspiração, ou seja, exigem que todos os conspiradores ajam como co-autores.
Os elementos subjectivos do domínio colectivo do facto significam o ter nas mãos o curso do acontecer típico dos actos individuais necessários à lesão do bem jurídico (MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 373).
O alcance da conexão de vontades é o de ater o carácter comum da lesão a um bem jurídico, que deverá ser provocada pela via da divisão de trabalho (MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 379).
O comparticipante que assume, nos termos do plano comum, desempenhar um papel essencial para a realização do projectado delito, fica, a partir da decisão conjunta, titula do domínio (negativo) do facto; mas enquanto não iniciar, pelo menos, o exercício desse domínio de facto que lhe cabe, não pode ser considerado co-autor de uma tentativa (XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX, Início..., pg. 44).
194 Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal. Parte Especial, AAFDL, s. d. (= in BMJ, 1979), pg. 380.
195 Art.º 4.º do anterior CP espanhol.
4.2.1.2 Outros Autores não subscrevem a exigência de realização de actos executivos. Os conjurados conspiraram em mistério, para cometer os crimes; tomam a resolução tomada para cometer o crime.
Existe a possibilidade de algum ou alguns dos conspiradores não ter intenção de ser co-autor no crime principal, de ser cúmplice durante a execução ou de não ter título de intervenção.
4.2.1.2.1 Segundo JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX000, os conspiradores não têm de realizar actos executivos. Não há a necessidade de o conspirador ser um autor presumido do crime principal. É suficiente o papel como artífice do plano colectivo e, sobretudo, o apoio de um género ou de outro raiando toda a acção principal.
Na conspiração, o único facto real que existe é a tomada de acordo, seguida da tomada de decisão.
Segundo o Autor, esta é a única forma de evitar a distorção não só da conspiração, mas da própria estrutura das figuras de participação, que exigem sempre uma conduta principal de referência, que irá permitir apreciar o desvalor das mesmas.
A determinação dos sujeitos do crime principal é um elemento essencial da conspiração; aquela é uma característica peculiar do acordo de conspiração. Do mesmo modo que nenhum dos conspiradores pode não intervir com actos executivos do crime projectado, o acordo de conspiração deve designar as pessoas, os conspiradores, que irão tomar parte na execução, como co-autores ou como cúmplices materiais.
Na conspiração, o único facto real que existe é a tomada de acordo, seguida da tomada de decisão197.
Assim, não é necessário que todos os conspiradores tomem parte na execução do crime198. Nem todos os autores têm de ser necessariamente co- autores do crime projectado; podem ser cúmplices ou não ter nenhum papel, caso em que respondem como instigadores199 (ou, acrescentamos, também como cúmplices (infra)).
4.2.1.2 Posição intermédia é a de referir que não é suficiente a participação na resolução, exigindo-se como mínimo a participação de algum modo, como autor ou cúmplice material, na execução do crime.
4.2.1.3 Averiguando o critério mais idóneo para indagar quem pode ser autor de conspiração, em nossa opinião, o “acordo com vista ao genocídio” expressa o núcleo da conspiração. Todos e cada um influem na decisão dos demais.
Desde modo, não há razão para interpretar a expressão “com vista a cometer” no sentido de todos terem necessariamente de realizar executivos do crime de genocídio. Nem todos os conspiradores poderão não ser autores do crime genocidário.
196 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pgs. 40-41, 94, 125-126.
197 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 125.
198 GRANVILLE WILLIAMS, Criminal Law…, pg. 668.
199 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 125.
O conspirador não tem de estar destinado a realizar actos executivos de genocídio. Pode mesmo nenhum deles executar o genocídio.
4.2.1.4 Seguindo o entendimento de JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, da mesma forma que nenhum dos conspiradores pode não intervir com actos executivos do crime projectado, o acordo de conspiração deve designar as pessoas, os conspiradores, que irão tomar parte na execução, como co-autores ou como cúmplices materiais200. Esta determinação dos sujeitos do crime principal é um elemento essencial da conspiração; é uma característica peculiar do acordo de conspiração.
O conspirador não tem de estar destinado a realizar actos executivos de genocídio.
Contudo, a mera intenção de colaboração deve ser contemplada no “pactum sceleris”.
4.2.2 Acordo condicionado
Imaginemos um exemplo de acordo condicionado ou conspiração condicionada:
Os conspiradores A e B fazem depender a comissão do crime acordado de que C ponha à sua disposição um meio de transporte para o fazer. É uma decisão que não permite ser levada a cabo imediatamente, mas requer que ocorra algo, representado por uma condição201. Por exemplo, os agentes pactuam perpetrar genocídio, no momento propício, se chegarem ao poder (ganhando as eleições); ou, noutro exemplo, existe discussão quanto à data.
Os diversos tipos de condição podem ser:
— de natureza objectiva
— de natureza subjectiva.
Qual a solução do acordo condicionado?
Como nota preliminar, dir-se-á que os critérios de Direito Civil não podem ser plenamente utilizados para a obtenção de um conceito de conspiração.
4.2.2.1 Uma primeira posição sublinharia a inadmissibilidade do acordo. Com efeito, a referência a “mero acordo” foi eliminada na Reforma de 1995202, o que constituiria um argumento contra a admissibilidade.
4.2.2.2 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX perfilha uma solução casuística, de acordo com cada caso particular203.
Tomando em conta o princípio do aumento do risco (como foi delineado para a negligência ou para a participação ou para a tentativa), para existir imputação do resultado, a conduta deve ir além do risco permitido:
200 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 126.
201 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 146.
202 Código Penal. Actas..., 1993, pg. 284.
203 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pgs. 147-149.
Aplicando o esquema à conspiração condicionada, a decisão, o acordo dos conspiradores, dirigido à comissão do crime projectado, implica um perigo de execução. Neste sentido, o acordo de conspiração implica já um certo aumento do risco de produção da lesão do bem jurídico do crime principal, ainda que apenas se trate de um resultado hipotético.
Sem embargo, quando o acordo aparece condicionado, produz-se um facto de insegurança na produção do resultado lesivo, que pode chegar a ser juridicamente relevante. Assim, se o cumprimento da condição é tão provável e de tão fácil verificação que nada parece duvidar da sua realização, não haverá inconveniente em admitir que estamos perante uma conspiração, que não afecta a execução. Se, pelo contrário, o cumprimento da condição depende de factores e de circunstâncias que aparecem como muito improváveis de ocorrer no caso, a condição, e, com ela, a execução do conspirado, aparece como utópica, irrealizável, contrapesando e anulando o aumento de perigo de produção do resultado que representa a conspiração. Não se pode falar em conspiração, dada a ausência do principal critério de imputação nestes cases, que é o do aumento do perigo de execução do crime principal204.
Temos, assim, duas possibilidades:
a) Colocando um terceiro na posição dos conspiradores, com conhecimento objectivo, a acção principal condicionada poderia ser executada, sendo muito provável; haverá, então, conspiração;
b) Se o terceiro representa como pouco provável, sendo quase impossível, não há conspiração.
É indiferente que a conspiração esteja condicionada objectivamente ou dependa da conduta a realizar por um terceiro, alheio à conspiração, ou que se exija a verificação de condições por parte dos conspiradores. O relevante é que objectivamente se verifique a possibilidade de superar o obstáculo representado pela condição. Será uma conspiração consumada, no primeiro caso; inexistente, no segundo205.
4.2.2.3 Outra solução seria a de admitir sempre a conspiração.
Segundo a Sentença do Bundesgerichtshof, de 3 de Dezembro de 1958, trata-se de uma circunstância objectiva, independente da vontade dos conspiradores; em todos estes casos há um autêntico acordo de conspiração, dado que o perigo de produção do resultado é sempre o mesmo, isto é, dependente do azar de que se cumpra ou não a condição.
4.2.2.3.1 Outra solução ainda seria a da aplicação analógica das regras relativas ao dolo condicionado.
A vontade condicionada de realizar a acção contém três possibilidades206:
1) o estado de indecisão;
2) a decisão baseada em factos hipotéticos;
3) a decisão com reserva de desistência.
204 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 148.
205 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 149.
206 JESCHECK, Tratado..., I, pg. 408.
1) O primeiro não é dolo, pois para este é precisa uma decisão definitiva da vontade. O estado de indecisão não constitui acordo; os agentes ainda não sabem o que hão-de fazer.
2) Na segunda, adopta-se a resolução de cometer o facto, mas faz depender a sua realização de condições situadas fora do seu alcance; actua também com dolo.
3) A terceira, já na fase de execução, não exclui o dolo.
Com base na aplicação analógica das regras relativas à decisão baseada em factos hipotéticos, não dependente da vontade dos agentes, a existência de acordo não é afastada, aplicando por analogia as regras relativas ao dolo condicionado.
4.2.2.4 Em nosso entender, devido à letra da lei positivar “o acordo” e não “o mero acordo”, concordamos com as observações de JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, perfilhando, pois, uma solução casuística, balizada pela averiguação do incremento do risco permitido.
§§ 2.º
TIPO SUBJECTIVO
1. Não coincidência total entre os tipos subjectivos do acordo e do genocídio
O tipo subjectivo do acordo não é inteiramente coincidente com o do genocídio. Com efeito, a distinção entre crimes de perigo e crimes de dano contém uma diferenciação de tipos subjectivos: segundo os critérios de ilicitude objectiva, o dano e o perigo são duas formas autónomas de “lesão social”, pelo que a posição dos agentes em relação a eles há-de comportar uma diferente “representação” ou “disposição”207.
O dolo de perigo é distinto e autónomo do dolo de dano.
Estes crimes têm uma estrutura subjectiva assente no conhecimento da acção perigosa, independentemente do conhecimento das características próprias e da perigosidade inerente à acção perigosa208.
No que concerne ao tipo de responsabilidade, este é necessariamente um tipo doloso, nos termos do art.º 13.º do Código Penal.
207 XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 71.
208 XXXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXXXXXX, Os crimes de perigo comum e conta a Segurança das Comunicações em face da Revisão do Código Penal in Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Penal. Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, vol. II, CEJ, Lisboa, 1998, pg. 268 (pgs. 253-315) (v., do mesmo Autor, O conceito de perigo nos crimes de perigo concreto in DJ, vol. VI, 1992, pgs. 351-364).
2. O dolo na conspiração
O acordo desempenha o seu papel em dois momentos: como elemento objectivo e como elemento subjectivo.
Há uma analogia com o acordo na comparticipação, em especial, com o acordo na co-autoria, sobretudo no tocante aos elementos subjectivos do domínio colectivo, no âmbito das teorias do domínio do facto209.
O dolo corresponde ao conhecimento e vontade de realizar o tipo, abarcando os elementos tanto objectivos como subjectivos210.
2.1 Qual a relação entre o dolo do acordo e o dolo do crime principal? Existirá um dolo de conspiração “proprio sensu”, independente e autónomo do dolo do crime principal?
Temos que considerar três opiniões:
1) A da desconsideração do dolo do crime principal; só se exige conhecimento e vontade de conspirar, sem considerar o crime principal.
2) A da exigência de duplo dolo, ou seja, do dolo de conspiração e do dolo do crime principal; o dolo deve abarcar o dolo de o autor principal consumar o crime, como formas preparatória de participação (LETZGUS refere que, tal como na instigação, o instigador deve ter duplo dolo).
3) A da manifestação antecipada do dolo do crime principal; não existe um dolo específico de conspiração, mas uma manifestação antecipada do dolo do crime projectado, dentro das características especiais do crime genocidário principal. O dolo da conspiração seria absorvido pelo dolo do crime principal.
A primeira não faz sentido, pois a conspiração se refere a um determinado facto, que é o facto principal futuro, que os conspiradores almejam, mediante a emissão de um juízo de prognose.
A segunda opinião é também criticável, pois seria um dolo referido a um acontecimento futuro. Ora, não há “dolus subsequens”; correr-se-ia o risco de distorção na transição para o crime principal.
Assim, a terceira é a maneira de ver mais acertada. Na conspiração, JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX reafirma que tudo é subjectivo. Há uma acção típica, descrita no n.º 3 do art.º 239.º, constituída pela manifestação de um desejo, de uma intenção, e a repercussão da dita exteriorização na vontade de outros211-212. A manifestação de vontade e a decisão subsequente que provoca — o resultado da conspiração — estão dirigidas à realização do crime principal
209 V. XXXXXX XXXXXX XXXXX XXXXXX, Coautoria..., pgs. 156, 268-269. Sobre o elemento subjectivo da co-autoria, v. XXXXX XXXXX, Autoría y Xxxxxxx xxx Xxxxx en Derecho Penal, Traducción de la septima edición alemana por Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx y Xxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxx, Madrid, 2000, pgs. 316 ss.; XXXXXXX / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pgs. 378-383.
210 Elementos do dolo são i) o elemento intelectual ou cognitivo: o conhecimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime: conhecimento dos elementos descritivos e normativos; ii) o elemento volitivo: a vontade, conteúdo da vontade.
211 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 135.
212 É uma influência psicológica mútua entre todos e cada um dos membros do acordo de conspiração.
projectado, de tal modo que aquela manifestação de vontade, na forma de acordo, há-de abarcar todos os elementos do crime, ou seja, o conteúdo do dolo de conspiração abarca todos os elementos essenciais do crime principal, que hão-de estar suficientemente concretizados213.
Assim, o dolo de conspiração é formado pelo conteúdo do dolo do crime principal e o da consciência por parte de todos e cada um dos participantes de que é o desejo comum de atentar contra o bem jurídico protegido no tipo legal de crime principal o que se acabou de decidir. O acordo de conspiração é essencial no momento da decisão do ilícito do crime projectado de todos e cada um dos conspiradores. Este é o núcleo da conspiração214.
O dolo do crime principal é relevante no crime de conspiração.
Não tem sentido falar num dolo especifico de conspiração, no sentido de exigir que quem haja decidido pelo ilícito do crime projectado não tem sentido215.
Não se deve confundir a conspiração com o dolo do “iter criminis”. Na conspiração, exige-se o mesmo dolo que na execução; a única diferença é a de que o dolo do crime principal originou-se e exteriorizou-se num momento anterior ao da execução.
2.1.1 A possibilidade de dolo eventual
Será que é admissível o dolo216-217 eventual218 na conspiração?
213 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 135.
214 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 135.
215 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 136.
216 A classificação tradicional distingue entre dolo directo, dolo necessário e dolo eventual. Esta classificação não diz apenas respeito ao elemento volitivo (XXXXXX XXXXXXX BELEZA, Direito Penal, 2.º vol., pg. 202).
217 O acordo de conspiração pode abarcar o dolo do crime principal de forma directa (primeiro grau), com o “recurso industrioso do pensamento” (na expressão de ÉSQUILO. É o caso usual: os celebrantes do acordo especificam o crime principal minuciosamente, como objectivo final do acordo de conspiração, em que os conspiradores planeiam o delito principal minuciosamente, como objectivo final do seu acordo de conspiração (JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 137).
218 O n.º 3 do art.º 14.º do CP refere: “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”
Sobre a distinção entre dolo eventual e negligência consciente, existem as teorias da vontade e da representação (ESER / XXXXXXXXX, Derecho Penal..., pgs. 157 ss.).
a) As teorias da vontade têm como denominador comum o conhecimento e vontade de realização do facto típico, tendo as seguintes variantes:
a1) A teoria do consentimento, propugnado pela Jurisprudência alemã: no elemento cognoscitivo, o agente deve considerar ser possível a realização do facto típico; no elemento volitivo, é necessário que aceite juridicamente essa realização.
a2) A teoria da vontade, propugnada pela maioria da Doutrina alemã: o autor deve crer ser seriamente possível e deve-se conformar com a produção do facto típico.
a3) A teoria da indiferença, tendo como subvariantes a teoria de ENGISCH (a indiferença como exigência adicional) e as teorias unificadoras.
b) As teorias da representação têm como denominador comum o critério decisivo de delimitação ser unicamente o elemento cognoscitivo. Tem as seguintes variantes:
Poder-se-ia pensar que seria possível o dolo eventual, aplicando a norma da Parte Geral (art.º 14.º, n.º 3) como complemento da Parte Especial.
Contudo, não parece que a lei se conforme que os conspiradores se hajam decidido pela possível lesão do bem jurídico — exige-se um “plus”, devido à contundência da redacção: a decisão da execução deve ser tomada como definitiva e firmemente querida pelos conspiradores.
JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX prescinde da modalidade do dolo eventual, pois, dada a configuração deste, na qual falta a consciência certa e
b1) Teoria da probabilidade. Existem duas versões:
b1’) uma versão lida com um conceito de probabilidade comparativo: se a ocorrência do facto é mais provável do que a sua não realização, existirá dolo eventual; no caso contrário, existirá negligência;
b1’’) uma segunda versão considera que o agente deve considerar mais provável a produção do resultado; a probabilidade deve ser algo mais do que uma mera possibilidade, mas algo menos do que uma probabilidade elevada.
b2) Teoria da probabilidade: existe dolo eventual quando o agente tem, ao menos, uma consciência incerta sobre a realização do facto.
b3) Teoria normativa do risco (esta teoria é, por vezes, autonomizada). O agente deve partir não só de um perigo concreto para o bem jurídico, mas também de um perigo relevante para o Direito Penal. São considerados três factores relevantes: o grau de probabilidade de lesão para o bem jurídico, o alcance do bem jurídico afectado e a utilidade social do comportamento perigoso). Assim, é necessário o reconhecimento tanto de um risco não permitido, como de um risco não controlado.
Existe ainda a teoria das diferenças estruturais entre dolo e negligência, próprio da Escola Finalista. XXXXX XXXXXXXX parte da acção final como protótipo do dolo (a vontade activa); KINDHAÜSER parte do conceito teleológico de acção, considerando o erro sobre a capacidade preventiva do sujeito e da evitabilidade do resultado.
Outras formulações são as de STRATENWERTH (a consideração como sério do risco do resultado); a formulação de ROXIN (a decisão pela lesão de bens jurídicos).
XXXXX XXXXXXXX XXXXX prefere não demonstrar “uma distinção qualitativa entre graus de culpa (...), mas, pelo contrário, (...) confundir a essência normativa do dolo (a consciência de ilicitude) com a essência do próprio juízo de culpa.”218. Analisando os casos da menina da barraca de tiro, dos mendigos russos (Bettlerfall) (Distinção entre Dolo Eventual e Negligência Consciente em Direito Penal. Justificação de um critério da “vontade”, Lisboa, 1981, pgs. 185 ss.), das correias de couro (Lederrimanfall) ou do cinturão; de um caso da Jurisprudência inglesa citado por XXXXX, é então defendida a relevância de um elemento volitivo no dolo (“Distinção entre Dolo Eventual e Negligência Consciente em Direito Penal. Justificação de um critério da “vontade””, Lisboa, 1981, pg. 199), rejeitando a autonomização do critério emocional do dolo. Por outro lado, “As ideias de intenção ou de acção final (...) só devem definir o dolo como “conceitos abertos”” (“Distinção entre Dolo Eventual e Negligência Consciente em Direito Penal. Justificação de um critério da “vontade””, Lisboa, 1981, pg. 201). Numa lógica de aproximação ao caso concreto e da “vinculação da distinção a dados pré- jurídicos”, é necessário partir de casos diferenciados:
1 e 2 - Casos de desproporção manifesta entre a motivação da acção e o resultado típico (ou inversamente ou casos de falta de relação directa (causal) entre o risco para o bem jurídico e a motivação da conduta (ou inversamente). Nestes casos de falta ou não de estrutura intencional, a lógica do risco é ultrapassada pela lógica do desejo (casos Xxxxxx e da jurisprudência inglesa (citado por XXXXX)).
3 - Casos de incerteza quanto à relação entre o risco e a motivação (a situação externo-objectiva não pode desfazer as dúvidas sobre o carácter intencional do comportamento do agente).
4 - Casos de tipos de crimes, a cuja descrição pertence uma certa qualidade o ofendido. Nestes casos, na conduta intencional, não há a separação entre o estado cognitivo e a volição (apenas podem ser desunidos para efeitos analíticos).
5 - Casos do direito penal secundário.
V., entre nós, os trabalhos de XXXXX XXXXXXXX XXXXX, nomeadamente Distinção entre Dolo Eventual e Negligência Consciente em Direito Penal. Justificação de um critério da “vontade””, Lisboa, 1981; Dolo Eventual e culpa em Direito Penal, in Problemas Fundamentais de Direito Penal. Colóquio Internacional de Homenagem a Xxxxx Xxxxx, Lisboa, 17 e 18 de Março de 2000, coord. de Xxxxx xx Xxxxxxxxx Valdágua, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002, pgs. 47-67; A Vontade do Dolo Eventual in Estudos em Homenagem à Professora Xxxxxx xx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, vol. II, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pgs. 795-833.
segura de que o resultado do crime principal se venha a produzir, não se encaixa no dolo de conspiração219.
Seguindo de perto a opinião de XXX XXXXXXX000, o art.º 14.º constitui uma norma interpretativa da Parte Especial, no sentido de que todos os crimes dolosos nesta tipificados podem ser praticados através de qualquer das modalidades de comportamento assinaladas como dolosas por essa norma.
Qualquer crime doloso da Parte Especial pode expressar uma ou algumas daquelas formas de conduta, não sendo, no entanto, indispensável que todas essas formas correspondam às possibilidades de preenchimento de todos os tipos de crime: depende da descrição da conduta típica a admissibilidade das diversas modalidades de dolo.
No relacionamento entre a Parte Xxxxx e a Parte Especial, a primeira opera uma condensação de princípios racionais de determinação da responsabilidade. A Parte Geral deve conter uma orientação sistemática válida para a Parte Especial221-222.
Não se pode afirmar que qualquer crime doloso, sem excepção, admita a possibilidade de preenchimento do respectivo tipo subjectivo através de todas as modalidades de dolo, enunciadas na Parte Geral.
O art.º 14.º carreia uma pretensão disciplinadora da interpretação da Parte Especial, na qualidade de afloramento do princípio da culpa223, impondo ao intérprete uma determinada metodologia, no âmbito da subsunção de comportamentos aos tipos de crime224.
O conceito legal de dolo implica, como norma orientadora do intérprete, que qualquer crime doloso previsto na Parte Especial expresse, pelo menos, alguma ou algumas das formas de conduta nele previstas. O que não exige, porém, é que todas elas correspondam, simultaneamente, às possibilidades de comissão de todos os crimes, cuja concreta configuração depende da descrição da conduta típica (e, designadamente, da inclusão no seu âmbito de elementos subjectivos especiais da ilicitude)225.
Ora, o sentido redacção do n.º 3 do art.º 239.º, ao preceituar “o acordo”, requer que este seja tomado como definitiva e firmemente querido pelos conspiradores.
Em conclusão, prescinde-se da modalidade do dolo eventual, na qual falta a consciência certa e segura de que o resultado do crime principal se venha a produzir.
219 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 138.
220 XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pgs. 83-97.
221 XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 83.
222 A inexistência de uma rígida submissão da Parte Especial à Parte Geral é patenteada pelo facto de, na sua Parte Especial, o CP introduzir figuras e regimes que rompem com os genericamente previstos na Parte Geral (XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 84) (por exemplo, no erro sobre a idade de ofendida, não se aplica art. 16.º e 17.º).
223 XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 86. 224 XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 87. 225 XXX XXXXXXX, O Dolo de Perigo, pg. 132.
§ 6.ª
1. A dimensão dogmática da ilicitude, segundo alguns Autores, só ganha verdadeira ressonância a acuidade na parte especial dos códigos penais, pois é aí que ela se confronta com as reais tensões jurídicas impostas pela natureza do bem jurídico-penal que se quer proteger226.
É acentuado, no caso do acordo, o desvalor da acção.
2. Correlativamente à culpa, o indivíduo é corruptível227-228.
O acordo é um comportamento prenhe de sanção valorativa, com suficiência ofensiva, perversidade valorada pela ordem jurídica, que se expressa no “dolose agere”229.
A culpa advém da preparação minuciosa do crime de genocídio.
3. Relativamente à consumação, quando a conjura e os actos preparatórios são incriminados (fases anteriores ao crime consumado), são elas próprias crimes consumados230-231.
O tipo legal de crime basta-se com a simples consumação formal, com o preenchimento de todos os elementos que constituem aquele tipo; verifica-se antes da consumação material
A consumação da conspiração ocorre quando os autores hajam realizado todas as características do tipo (objectivo e subjectivo), ou seja, quando se chega ao acordo unânime de vontades dos conspiradores sobre a execução do crime principal232. Este acordo constitui o resultado da conspiração.
O problema da perfeição da declaração de vontade criminosa é o de saber quando se consuma.
Quanto dois sujeitos estão no mesmo local, não existe problema. Quando estão em sítios díspares, a solução é a de considerar que a perfeição tem lugar, não no momento em que cada um dos concertados se decide que execute o crime, mas no momento em que os concertados têm conhecimento da aceitação da realização do plano criminal pelos restantes (situação análoga à que ocorre no Direito Civil, com a perfeição do contrato entre ausentes)233.
226 Introdução do Decreto-Lei n.º 400/92, de 23 de Setembro, considerando 14.
227 Sobre a culpa, entre nós, v. XXXXXXXXXX XXXX, capítulo décimo de O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 5.ª ed., Coimbra Ed., 2000, e Liberdade. Culpa. Direito Penal, 2.ª ed., Coimbra Ed., 1995.
228 Na síntese de FIGUEIREDO DIAS, em Liberdade. Culpa. Direito Penal, no posfácio da segunda edição (pg. 259), o homem tem de se decidir a si e sobre si, sem que possa furtar-se a tal decisão: neste sentido o homem dá-se a si mesmo, através do que XXX XXXXXX chama a «opção fundamental», a sua própria conformação.
229 Cfr. XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 476.
230 XXXXXX XXXXXXXXX XX XXXXXXXX, Lições de Direito Penal. Parte Geral. I. A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982, Editorial Verbo, 4.ª ed., 1996, pg. 426.
231 Segundo XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX, o conceito de consumação: tem sempre uma natureza formal, por imposição do princípio da tipicidade, identificada com a plena realização de todos os elementos constitutivos de um tipo descrito na lei. Pode acontecer esse tipo incluir ou não a identificação de um evento danoso que se pretende evitar.
232 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 185.
233 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 208.
Deste modo se permite afirmar que a consumação da conspiração se produz num momento anterior ao momento do crime principal. Embora teoricamente ao acordo se possa seguir a prática do genocídio, na prática, devido a normalmente ser um crime pensado, o acordo é realizado num momento mais distante relativamente ao crime principal de referência.
§ 7.ª
FORMAS ESPECIAIS DE APARECIMENTO DO CRIME
§§ 1.ª
OUTRAS CONDIÇÕES DE PUNIBILIDADE
1. Desistência
Em caso de intervenção de várias pessoas no facto, a desistência234, sendo uma causa pessoal de levantamento da pena, só deixa sem castigo o interveniente que desistiu, não os demais, que merecem a punibilidade.
1.1 A desistência relevante do crime apresenta especificidades, devido à estrutura do crime, sobretudo no que toca à desistência exclusiva da conspiração. É o problema da dissociação do concerto criminoso235.
Alguns Autores negam a possibilidade de desistência. Consumada e esgotado no momento da unanimidade do acordo e da firmeza da resolução, este acto seria suficiente para a imposição de uma pena aos conspiradores. O que depois sucedesse seria irrelevante.
Mas este resultado não seria satisfatório — seria mesmo funesto —, do ponto de vista político-criminal236, pois o conspirador-autor e o conspirador- instigador não encontrariam estímulo suficiente para evitar a produção do resultado final. Quem sabe que vai ser condenado é indiferente ao facto de ser numa pena máxima de vinte e cinco ou numa pena máxima de apenas cinco anos.
Os resultados satisfatórios de Política criminal são os de colocar o centro de gravidade na possibilidade de o desistente poder continuar a actuar; até ao momento de consumação do crime principal proposto.
As soluções adoptadas divergem:
234 Ao contrário, não existe tentativa de conspiração, que chocaria com a própria natureza desta, de consumação instantânea (JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 141).
235 V. XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pgs. 73-
75.
236 V. JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 195.
Segundo alguns, basta adoptar uma resolução contrária àquela que ligou ao empreendimento (XXXXXX XXXX). Bastando para ser punido por um dos factos incriminados na Parte Geral (como a conspiração) uma resolução para o cometimento de um crime, não sendo necessária a sua execução, de igual forma não deveria a lei exigir senão apenas uma diferente resolução, de sentido contrário à primeira, para reconhecer a impunidade do desistente, não obstante a execução do facto projectado pelos outros intervenientes237.
Outros argumentam desfavoravelmente, pois o propósito de dissolução do pacto criminoso não era realizado, a não ser que, pelo menos, tal decisão de renunciar ao envolvimento no facto fosse comunicada aos demais agentes, de modo a tentar-se, assim, frustrar a execução do delito projectado (XXXX XXXX, JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX).
a) Primeiro, o agente deve renunciar ao desempenho do papel do acordo de conspiração.
Se não se lhe for reservado nenhum papel no desenvolvimento do tipo, será necessária a exteriorização da sua renúncia ao autor principal, única maneira de evitar a produção do resultado.
b) Alguns Autores, identificando os factos em causa com uma particular forma de perigosidade pelo envolvimento de diversas pessoas, defendem a presença adicional de outro(s) requisito(s), havendo variantes:
b1) A necessidade de comunicar aos restantes conspiradores, com o objecto de iniciar um novo intento de produção do resultado principal238.
b2) É necessário, pelo menos, a constância da resolução aos demais conjurados, ou a realização de actos concludentes (facta concludentia), demonstrativos de forma inequívoca da sua mudança de vontade239.
b3) Identificando os factos em causa com uma particular forma de perigosidade pelo envolvimento de diversas pessoas, alguns Autores chegam à exigência de o desistente anular ou tornar ineficaz o contributo que prestou.
b4) Alguns cumulam a última exigência com o esforçar-se na medida do possível para evitar a execução do facto planeado. Entre nós, este resultado seria coadjuvado por o art.º 25.º, relativo à desistência em caso de comparticipação criminosa, aplicável nesta sede por analogia240, prescrever o esforço sério (para além de o art.º 25 e do n.º 1 do art.º 24.º241 exigirem a não consumação do “resultado não compreendido no tipo de crime”242, que se reporta, em geral, aos crimes de consumação antecipada, como os perigos de perigo243).
237 Apud XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg.
74.
238 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 209.
239 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 210.
240 Um sector doutrinal minoritário na Doutrina alemã (JAKOBS, MAURACH, XXXXXXX)
defende que a analogia não é proibida na Parte Geral.
241 Dada a equiparação funcional dos conceitos nos art. 24.º e 25.º, inculcando um sentido não só formal mas também material, reportado à efectiva lesão do bem jurídico em perigo (XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 46).
242 A consumação material, esteja ou não descrita no tipo de ilícito, ocorre com a afirmação de uma lesão irreversível do bem jurídico protegido (XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 48).
243 Bem como aos crimes de intenção e aos crimes de empreendimento.
XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX não concorda com a última exigência244. Admitindo que a posição mais moderada (que se basta com uma mudança de atitude ou uma resolução contrária à anterior) não satisfaz por ser previsivelmente nulo o seu efeito desmotivador sobre os demais intervenientes, em nada contrariando então a perigosidade decorrente dos factos praticados; as condições traçadas constituem uma severa limitação às possibilidades de uma dissociação relevante do facto projectado: a dissociação de um facto que consiste numa forma antecipada de intervenção penal, que supõe ainda uma ulterior progressão lesiva, distante, portanto, da lesão efectiva dos bens jurídicos tutelados e da própria tentativa245. Deve existir de um nexo relacional entre o contributo lesivo e a intensidade da exigência que condiciona a dissociação relevante do agente.
Por outro lado, o art. 25.º não se pode aplicar nos limites da sua literalidade e amplitude material246. Assim, em situações de envolvimento em actos preparatórios, mesmo se excepcionalmente puníveis (aplicável, pois, “a fortiori”, ao caso do acordo com vista à prática de genocídio), não é de invocar, pelo menos por aplicação directa, o regime do artigo 25.º247; o envolvimento de outros agentes para além do autor não gera situações típicas de comparticipação: estas exclusivamente moldadas sobre a existência de uma execução248.
2. Correlativamente à prescrição, os crimes contra a Humanidade são imprescritíveis, uma vez que são crimes de poder; de outro modo, haveria a possibilidade de o Estado fazer furtar o agente à acção penal.
A imprescritibilidade do genocídio tem que ver com o facto de, no segundo pós-guerra, se ter declarado a sua imprescritibilidade (art.º 30.º do ER), dado serem crimes de poder.
Em todos estes casos, utilizando uma expressão de XXXXXX, o “centro da ilicitude” encontra-se fora da descrição legal do crime e é por referência a ele que se deve ponderar a utilidade político-criminal da desistência (XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 51). Daí a criação de um “centro de ilicitude imaginado”, através de uma formulação genérica, válida para qualquer tipo da Parte Especial (FINCKE apud XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 52).
Segundo XXXXXXXXXX XXXX, é o resultado que interessa à valoração do ilícito por directamente atinente aos bens jurídicos e à função de protecção da norma.
Exige-se, pois, em concreto, uma actividade interpretativa referenciada ao bem jurídico de cuja tutela é expressão, devendo esse resultado a evitar não estar já valorado no tipo de ilícito, caso em que já fará então parte do tipo e é evitado pelo impedimento da consumação, embora possa ou não integrar a descrição do tipo de garantia. Fundamental é que a acção dos agentes tenha apenas produzido o “máximo de perigosidade concreta” tolerável pelo legislador no quadro das valorações da norma em causa, de forma a não tornar inútil, do ponto de vista de tutela dos bens jurídicos ameaçados, o retrocesso da agressão (XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 46).
244 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 75. 245 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 75. 246 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 39. 247 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 39. 248 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 39.
§§ 2.ª
PARTICIPAÇÃO NA ACÇÃO DE CONSPIRAÇÃO
Sendo um crime de comparticipação necessária, como refere FIGUEIREDO DIAS249, os problemas em matéria de modalidades de autoria são simplificados250. O que se verifica são actuações paralelas, não casos de co- autoria251.
Os problemas existem em relação à participação eventual de outros agentes em crimes de participação necessária252. O “acordo com vista à prática de genocídio” abarca as formas distintas de participação?
1. Uma opinião afirmativa consideraria que, formalmente não há obstáculos: aplicar-se-iam as normas da Parte Geral, pelo que haveria a participação na formação do acordo.
Nos actos preparatórios, cabem perfeitamente formas participativas, já que são crimes autónomos, “sui generis”, de estrutura legal igual a qualquer outro tipo da Parte Especial.
A Doutrina alemã tende a admitir a participação nos actos preparatórios, a possibilidade de punibilidade como participante (XXXXXXX / XXXXX, XXXXXX).
A comparticipação é determinada pela estrutura subjectiva dos tipos
legais.
Nada obsta às formas de comparticipação dos crimes de perigo abstracto,
nomeadamente de actos preparatórios punidos autonomamente253. Na perspectiva de crime plurissubjectivo, entre nós, a instigação é possível, no caso da participação em rixa254-255.
Não existe inconveniente dogmático para admitir a participação na conspiração.
2. Uma opinião em sentido negativa consideraria os argumentos referidos de seguida:
2.1 Sendo um crime de participação necessária, o acordo seria uma norma especial, que afasta a aplicabilidade das normas gerais;
249 FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas»..., pg. 65.
250 XXXX XX XXXXXXXX ASCENSÃO admite poder haver co-autoria e autoria mediata (Direito Xxxxx X. Sumários, AAFDL, 1996-97, pg. 171)
251 Também para o crime de rixa, XXXXXXXXX XXXXXX, Da participação em Rixa..., pg. 80.
252 Ou seja, outros agentes que participem por outro título, como instigadores ou cúmplices, embora não nomeados expressamente como essenciais à incriminação (CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições..., pg. 500).
253 XXXXX XXXXX XX XXXXXXXXXXX, Os crimes de perigo..., pg. 279.
254 XXXXXXXXX XXXXXX, Da participação em Rixa..., pg. 80.
255 Em relação ao crime do art.º299.º, v. XXXXXXXXXX XXXX, As «Associações Criminosas»...,
pg. 66.
Nos crimes de convergência, todos os colaboradores convergentes são puníveis só como autores e não como participantes256. A possível participação nos crimes de convergência encontra-se fora da relação típica de convergência257. Não cabe distinguir autor e participante, nos casos que preparam a execução, pois tanto prepara quem realizará a conduta principal, como quem o
ajuda; não há diferentes modalidades.
2.2 Segundo o argumento da inexistência de preceitos sancionadores, existiria a impossibilidade de participação, dado que o legislador teria feito a escolha do tipo, sendo uma presunção inilidível de não aplicação da Parte Geral, (pois esta não tem de se projectar totalmente na Parte Especial).
2.3 Num terceiro argumento, xxxxxxx a aplicabilidade do princípio da excepcionalidade da punição dos actos preparatórios.
Segundo a opinião de XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX000 em relação a actos preparatórios, a excepcional punibilidade dos actos preparatórios circunscreve-se ao seu autor.
Os alargamentos de punibilidade consistentes na punição excepcional de actos preparatórios, enquanto soluções pontuais detectáveis na Parte Especial, só valem nos estritos limites deste contexto punitivo, ou seja, para o autor que preenche directamente tais normas.
A responsabilidade de outros comparticipantes, concretamente cúmplices e instigadores, significaria uma nova extensão injustificada sobre outros sucessivos alargamentos da punibilidade, pois a conduta não é por si lesiva dos bens jurídicos tutelados pelo sistema penal259.
Não se pode reconhecer qualquer efeito de genérico alargamento das figuras comparticipativas da Parte Geral, pois isso equivale a atribuir a tais ampliações excepcionais um significado que não têm na sua origem e a sobrepô- las à modelação típica das normas gerais que delimitam a comparticipação criminosa.
Ao que acresce, ainda, não estarem os actos preparatórios rigorosamente tipificados na Parte Geral ou Parte Especial do Código, o que gera uma severa imprecisão interpretativa destas normas contendente com as exigências da tipicidade, particularmente potenciada tratando-se de condutas de participação260.
2.4 Um argumento a considerar é o da falta de facto principal. XXXXXXXXX XXXXXXXX nega a cumplicidade na conspiração, pois, ao contrário daquela, falta a execução do facto.
Não cabe participação, devido à distância do crime principal; só o autor da conduta é penalmente relevante, sendo a conduta do participante juridicamente irrelevante. O Legislador não distingue entre autor e participante na Parte Especial.
287, 39.
287.
256 MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 402.
257 MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 402.
258 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pgs. 286-
259 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 286.
260 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pgs. 286-
Este resultado seria coadjuvado pelo princípio da intervenção mínima do Direito Penal (art.º 18.º, n.º 2, da Constituição).
2.5 Utilizando o n.º 2 do art.º 239.º, se se incrimina o incitamento ao genocídio, “a contrario” excluir-se-ia a possibilidade de participação, a título de extensão da tipicidade.
2.6 Segundo JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, a conspiração encontra-se entre os tipos que exige algo de especial entre os factores dirigidos à lesão do bem jurídico.
Conspiração é um acordo totalmente livre entre várias pessoas, que há-de produzir como resultado uma resolução unânime de execução do crime, em virtude da influência mútua operada261. Chega-se a acordo porque cada um se sente apoiado por todos e cada um deles. Se em algum decai a vontade, decai também a vontade dos restantes; o plano não será prosseguido.
Cada um é peça indispensável do plano total, daí a impossibilidade de estimar instigação262.
Quanto à cumplicidade, não se pode dizer que toda a ajuda prestada por terceiros haja sido causal para a lesão do bem jurídico protegido, nem que haja aumentado o risco de produção da mesma263. Assim, não se pode afirmar a cumplicidade na conspiração, que tenha sido causal para o resultado a que esta se dirige, nem que haja contribuído para a produção da lesão.
A impunidade da cumplicidade na conspiração baseia-se na noção de conspiração que adopta (acordo baseado apenas na influência mútua entre os participantes do mesmo).
3. Seguimos o entendimento de que as regras gerais sobre comparticipação são supletivas — aplicam-se quando compatíveis com a índole daquele tipo de participação necessária. Embora compaginada com os limites típicos e valorativos do sistema de comparticipação264, a possibilidade de aplicabilidade das regras gerais da comparticipação eventual ou facultativa aos crimes de participação necessária é um problema a resolver na Parte Especial. A aplicabilidade tem lugar quando não seja afastada pela regulamentação específica de cada crime de participação necessária, em razão da similar matéria de facto.
Com efeito, a especificidade das incriminações afasta frequentemente a aplicação de normas directamente previstas para a comparticipação, as quais só são aplicáveis quando compatíveis com a estrutura e natureza do crime. São apenas aplicáveis, enquanto integrem o conteúdo da própria incriminação, como supletivas265.
O facto de terem de ser vários os agentes é um elemento típico limitativo da aplicação, sem mais, da regras da Parte Geral.
Contudo, a Parte Geral cumpre uma função de apoio, perante o carácter fragmentário dos tipos individualizados no Direito Penal Especial266. Mais: a
261 JUAQUÍN CUELLO JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 48.
262 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 48.
263 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 50.
264 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 159.
265 XXXXXXXXX XX XXXXXXXX, Lições..., pg. 500.
266 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 53.
“função correctora” da Parte Geral para suprir lacunas da Parte Especial267 não deixa de ser aplicável:
Os participantes são criminalmente responsáveis por contribuírem para o facto ilícito praticado pelo autor, contrariando, assim, não as proibições implícitas nas normas da Parte Especial, que tutelam bens jurídicos violados pela conduta do autor, mas sim aquelas decorrentes dos artigos 26.º in fine e 27.º, n.º 1268:
A responsabilidade dos participantes está dependente dos requisitos tipificados na lei quanto à sua própria conduta, por um lado, e de certas características do facto principal, por outro269.
3.1 Cabe instigação à conspiração?
Como foi referido, JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX não admite a instigação, atendendo à ideia de conspiração como instigação mútua270.
Diremos que, em alguns casos, haverá uma absorção da instigação pela autoria; estão abrangidos. Por exemplo, o agente, instigando outros, também participa no acordo; é punível como autor (1.ª proposição do art.º 26.º do Código Penal, que prevalece sobre a instigação (4.ª proposição do art.º 26.º), mediante uma relação de subsidiariedade implícita. Já não assim noutros casos, em que, por exemplo, instiga e vai-se embora.
No primeiro caso, como conduta dolosa, a tipicidade da instigação pode estender-se a todos os elementos do tipo de crime da Parte Especial. A conduta mencionada corresponde à ideia de determinar outra pessoa à prática de um facto ilícito perigosidade (XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA COSTA PINTO271), do incremento do risco “ex ante”, de que a acção elimine as inibições do autor, determinando a sua adopção e posterior execução de uma resolução criminosa272-
273.
267 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 246. 268 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 284. 269 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 284. 270 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX La Conspiración..., pg. 48.
271 XXXXXXXXX XX XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, A relevância da desistência..., pg. 284.
272 M.ª DEL XXXXXX XXXXX XXXXXX, La inducción a cometer el delito, tirant to blanch, Valencia, 1995, pg. 176.
273 A instigação constitui uma motivação dolosa de outro ao facto de cometer dolosamente um
crime.
Segundo XXXXXX, o instigador deveria possuir o domínio do plano; contrariamente a
XXXXXXX / GÖSSEL / ZIPF (Derecho Penal..., pg. 436), que argumentam que, com o domínio do plano, seria possível extrair um elemento essencial fundante da co-autoria.
No complexo global da instigação, os elementos objectivos da instigação são “determinar”, exigindo exige uma influência dirigente sobre a conduta, que proporciona a quem não se encontra resolvido a cometer o crime, a decisão de fazê-lo; determinar pressupõe a concreção do facto; instigar a uma determinada lesão típica de um bem jurídico; a exortação genérica de cometer crimes não é suficiente; tal como não é o mero apelo a instintos criminais, nem o chamado “cuidar do seu próprio xxxxxxxxx”.
Só é possível falar em determinação quando a acção de instigação haja provocado a resolução criminosa do instigado. O instigador deve haver dado o tempo necessário para adopção e realização da dita resolução. A acção de instigação não necessita de ter sido a única condição para a resolução do autor, nem se exige que a acção se deva exercer face a um agente originariamente indiferente ou mesmo contrário. Objecto idóneo da instigação é também aquele que, no início, se encontrava propenso ao facto e que só esperava o impulso decisivo; existe instigação quando aquele que se oferecia para executar o facto
Existe ainda a possibilidade de preenchimento do tipo legal de incitamento (art.º 239.º, n.º 2), se o agente o fizer “pública e directamente”.
3.2 Resta averiguar a cumplicidade274.
A cumplicidade, tanto na forma material como na psíquica, é possível, atendendo à interpretação do tipo da conspiração (acordo livre e voluntário para lesionar o bem jurídico).
O cúmplice presta, dolosamente e por qualquer forma, auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso; o referido participante tem total liberdade dos meios.
Por exemplo, no primeiro caso, oferece a casa para os conspiradores se reunirem; ou aceita levar algum dos conspiradores e não adere ao acordo.
No segundo caso, o reforço da decisão criminosa, a estabilização desta, segundo XXXXX XXXXX; é causal, pois oferece um motivo adicional para cometer o crime ou lhe dissipa as últimas dúvidas respeitantes à decisão criminosa.
Os fundamentos da participação275 coadjuvam estas asserções.
§§ 3.ª RELAÇÃO DE CONCURSO
§§§ 1.ª DINÂMICA
recebe a promessa da recompensa exigida, pois só nesse momento se intensifica a tendência latente à resolução criminosa (MAURACH / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 438).
Não é objecto idóneo o autor que, antes da aparição do agente que irá instigar, se encontrava decidido a causar a lesão típica concreta do bem jurídico, com todos os elementos objectivos e subjectivos (o “omnimodo facturus”); nestes casos, decai a responsabilidade por instigação.
Mas já existe responsabilidade jurídico-penal por instigação quando o instigador incrementa relevantemente a resolução criminosa do autor ou a modifica materialmente.
Sobre a tipicidade objectiva da instigação, v. M.ª DEL CARMEN GOMÉZ RIVERO, La inducción..., pg. 172.
274 O art. 25.º, al. c), do ER preceitua:
“Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem:
(...)
c) Com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática”.
275 a) Teoria da corrupção ou da culpa, teoria da participação na culpa (“Sculdteilnahmetheorie”);
b) Teoria da participação no ilícito (“Unrechtsteilnahmetheorie”);
c) Teoria da solidariedade com o ilícito alheio;
d) Teorias da causalidade:
d1) Teoria pura da causalidade (“Die reine Verursachungstheorie”); d2) Teoria da causalidade orientada para a acessoriedade;
d3) Teoria do ataque acessório ao bem jurídico.
Iniciada progressão criminal, a conspiração pode ter vários desfechos:
1) a não execução do crime principal, isso é não ser executado qualquer acto executivo de genocídio;
2) a tentativa do crime genocidário (principal) (artigos 22.º, 26.º do Código Penal);
3) a consumação do crime genocidário.
Com a consumação, o crime realiza-se completamente; o “iter criminis”
finda.
Nestes dois últimos, ocorre a transformação dos conspiradores em
comparticipantes. Do ponto de vista dos sujeitos, há uma mudança de papéis: as mesmas condutas, que não poderiam ser encaradas como de autoria ou de participação, passam a converter-se em acções comparticipativas. Pode existir:
co-autoria dos vários intervenientes no acordo;
a prática de um facto principal por um ou vários agentes e, por parte de outro ou outros, participação (instigação276 ou cumplicidade277).
Os crimes contra a humanidade em sentido lato e o genocídio em particular patenteiam particularidades na aplicabilidade dos títulos comparticipativos, nomeadamente no que tange à autoria mediata.
§§§ 2.ª CONCURSO
276 Os elementos objectivos da instigação são: determinar, exigindo uma influência dirigente sobre a conduta, que proporciona a quem não se encontra resolvido a cometer o crime, a decisão de fazê- lo; pressupõe a concreção do facto; instigar a uma determinada lesão típica de um bem jurídico; a exortação genérica de cometer crimes não é suficiente; tal como não é o mero apelo a instintos criminais, nem o chamado “cuidar do seu próprio benefício”.
No complexo global da instigação, o instigador leva o autor a decidir-se pela comissão de um crime; essa instigação é essencial, é uma causa essencial para que o autor se decida a cometer um crime (XXXXXX XXXXXXX BELEZA, Direito Penal, 2.º vol., pg. 419). Há casos excluídos da instigação (v. XXXXXXX / GÖSSEL / ZIPF, Derecho Penal..., pg. 438), por exemplo, se o agente estava resolvido a cometer o genocídio.
Deste modo, não há obstáculo a considerar punível a instigação.
277 Ao contrário do instigador, o cúmplice não tem uma actuação decisiva para que o autor se decida a cometer o crime. O cúmplice apenas fortalece a decisão do autor.
A cumplicidade material consiste na ajuda para a execução do crime; ao passo que a cumplicidade moral implica apoio psíquico. O conselho técnico para o autor para facilitar a execução do crime é um dos casos de cumplicidade (M.ª XXXXXX XXXXX XXXXXXXX, La complicidad en el Delito, Tirant lo blanch, Valencia, 1997, pg. 311).
Sobre a cumplicidade, v. a monografia de XXXXX XXXXXXXX, La complicidad en el Delito. Sobre o grau de influência da cumplicidade, há várias teorias:
a) A teoria causalista, de XXXXXXXX, perfilhada, entre nós, por XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX (mais antigas, as teorias da cumplicidade como contribuição causal (XXXXXX e a causalidade concreta).
b) Outras tentam dar a definição da cumplicidade à margem da causalidade: a Jurisprudência alemã e a fórmula do “Förderung”; a teoria do favorecimento;
c) Um sector minoritário da teoria tradicional nega a exigência de causalidade: (XXXXX, XXXXXXX e H. XXXXX);
d) Outras formulações são a de cumplicidade como crime de perigo (SCHAFFSTEIN e XXXXXXX); a cumplicidade como crime de perigo abstracto (XXXXXXXX); a cumplicidade como crime de perigo abstracto-concreto (VOGLER).
O crime de conspiração consuma-se independentemente da prática de qualquer crime visado.
Nos últimos casos referidos, a conspiração desenrola-se com normalidade; o crime planeado, progredindo no “iter criminis”, há uma relação de concurso com o crime genocidário principal. Se alguns não celebraram o acordo ou, por hipótese, têm um acidente que os impede de executar o crime, ou se desiste voluntariamente da execução, em relação a eles não há esse concurso278 (por exemplo, na Solução Final do regime nacional-socialista, apenas um grupo pequeno de pessoas da hierarquia militar estava a par do genocídio279).
Importa saber se o concurso é aparente (impuro) ou efectivo. Utilizaremos a metodologia, desenvolvida, entre nós, por XXXXXXX XXXXXXX000.
1. Concurso efectivo — Direito anglo-saxónico
A considerar-se que estamos em presença de objectos, valores e formas de lesão diferentes, o concurso seria efectivo (pluralidade de crimes), devendo entrar no cômputo do ilícito por recurso ao n.º 1 do art.º 30.º do Código Penal.
Na redacção do n.º 3 do art.º 239.º, a medida da pena inculcaria a punibilidade imediata.
No sistema de “Common Law”, o agente pode, em princípio, ser acusado de ambas as conspirações e da “substantive offence”, em particular se o objectivo da conspiração se estende para além das “offences” de facto cometidas.
1.1 A dificuldade real desta opinião é a seguinte: apenas se se considerasse que o bem jurídico protegido é diverso seria uma teoria defensável.
2. Concurso aparente
278 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 209.
279 Poucas pessoas no interior do partido nazi tinham sido preparadas em vista da adopção da política de extermínio. O extermínio era quase sempre obra das tropas SS, com autoria mediata de XXXXXX e de XXXXXXX, contra os protestos das autoridades civis e militares (XXXXXX XXXXXX, Compreensão e Política e Outros Ensaios. 1930-1954, trad. de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Relógio d’Água, Antropos, Lisboa, 2001).
280 A unidade ou pluralidade de significações, de valores jurídico-criminais negados por um certo comportamento humano fornece o princípio à luz do qual é possível determinar o número de crimes a que tal comportamento dá lugar. A resposta não pode encontrar-se sem previamente fixar qual seja a fonte de conhecimento dos valores específicos, em cuja tutela residem os fins da reacção jurídico-criminal, e à luz dos quais certas condutas humanas e os respectivos sujeitos se deixam classificar como criminosos (XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 84).
Se a conspiração é bem sucedida e se o crime principal é consumado, o agente é apenas condenado pelo crime principal, não pela conspiração. Estando o objectivo do crime principal atingido, não há razão para punir o agente pela mera resolução criminal, ou mesmo pelos actos preparatórios. O agente apenas pode ser acusado de conspiração que haja sido perpetrada pelos seus co-conspiradores, sem intenção da sua participação directa281.
O Direito Continental distingue dois tipos de “actus reus”, qualificando dois níveis de “complot” ou conspiração: Em sentido amplo, existem dois níveis de “complot” ou conspiração. Seguindo um nível crescente gravidade, o primeiro dos níveis diz respeito à mera conspiração (“le complot simple”); o segundo nível diz respeito à conspiração seguida de actos materiais (“complot suivi d’actes matérieles”).282.
A posição do sistema de “Common Law” tem sido criticada, lembrando que o que importa não é que a prova haja sido usada duas vezes, mas que a natureza do crime de conspiração é puramente preventiva, incompleta, auxiliar, relativamente ao crime principal, e não tendo verdadeira independência racional se existir o crime completo; assim, a punição não tem justificação.
No acórdão MUSEMA, o TCIR considerou que seria de adoptar a definição de conspiração mais favorável ao arguido; por isso, não o condenando o arguido por genocídio e, simultaneamente, por conspiração com vista ao genocídio, com base nos mesmos actos.
Os trabalhos preparatórios da CPRCG mostram que o crime de conspiração foi incluído para punir actos que, em si, não constituíam genocídio. Nenhum objectivo seria alcançado condenando o arguido, que já era responsável por genocídio, por conspiração com vista ao genocídio, com base nos mesmos actos283.
Não há concurso real, pois a valoração é feita com base nos mesmos actos284.
2.1 Em nosso entender, existe um caso de concurso aparente ou impuro, que é um limite ao concurso de infracções propriamente dito285. A afirmação do concurso puro e efectivo de crimes está condicionada sempre pela exclusão prévia da existência de um facto anterior não punível (Straflose Vor-und Nachtat) ou de um crime progressivo (a ideia da Doutrina italiana de progressão da actividade criminosa).
Ora, sucede que, por vezes, a punibilidade de diversas condutas parece prima facie existir e, todavia, vem a apurar-se que só uma ou algumas delas são efectivamente objecto de punição, por isso que os preceitos violados estão numa
281 Acórdão MUSEMA, do TCIR, pg. 11 (fonte: site da Internet xxx.xxxx.xxx/XXXXXXX/xxxxx/).
282 Ambas as formas de “complot” exigem três elementos comuns: 1- Um acordo para o acto (resolução de agir);
2- O concerto de vontades;
3 - O objectivo comum de praticar o crime principal.
283 Xxxxxxx MUSEMA, do TCIR, pg. 11.
284 Assim, com base no princípio da proibição da dupla valoração, a sentença MUSEMA do TCIR considera o agente “guilty of Genocide” e “Not Guilty of Conspiracy to commit Genocide”.
285 V. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pg. 537.
relação de hierarquia tal que da eficácia dum resulta a impossibilidade da aplicação cumulativa do outro ou outras286. É o caso, por exemplo de acções preparatórias em si mesmo puníveis e dos crimes de perigo, cujos preceitos incriminadores têm a sua eficácia dependente de que os respectivos crimes tentados ou consumados, crimes de dano, não tenham tido lugar287. A relação é “minus ad maius”.
O resultado hermenêutico pode ser o mesmo quer pelo estabelecimento de uma relação de subsidiariedade quer pelo estabelecimento de uma relação de consumpção288.
2.2 Subsidiariedade
Temos, desde logo, a via da subsidiariedade implícita ou material289.
Considerando haver estádios diversos de agressão a um bem jurídico, o tipo do n.º 1 do art.º 239.º é caracterizado por uma fase mais grave de lesão do bem jurídico (dado que são fases diferentes de agressão de um certo bem jurídico): há uma transição por uma fase menos grave: onde está o mais está o menos; e, portanto, contém-na e nessa medida consome-a290.
A incriminação do acordo deve recuar perante a incriminação do genocídio.
2.2.1 A relação entre crime de perigo e crime de dano é de subsidiariedade implícita ou material291.
Em relação ao crime de associação criminosa, XXXXXXXXX XX XXXXXXX DA XXXXX XXXXX sustentou haver uma relação subsidiária perigo- dano dos factores de perigo (tendo como pressuposto uma interpretação abrangente das regras de concurso). Salvo factores autónomos de perigo (nestes casos, concurso efectivo), a ideia facto acessório — facto principal conduz a uma relação de subsidiariedade.
2.2.2 Poder-se-á recorrer a uma analogia com a relação crime na forma tentada — crime na forma consumada, ou seja, entre a forma transitiva imperfeita do crime para o crime perfeito, na forma consumada292. A punição da tentativa cede, por subsidiariedade implícita, face à consumação293.
286 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pgs. 25-26.
287 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 26.
288 Apenas não pode ser aplicável a relação de especialidade.
289 Relação de hierarquia entre dois preceitos dada a qual um deles (o subsidiário) deixa de ter aplicação quando em concorrência com outro (o primário) (XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pg. 457).
290 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 147.
291 Assim, XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, Vol. I, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 1998, pgs. 457-458. Diferentemente, CAVALEIRO DE FERREIRA considera que existe uma relação de consumpção.
292 A tentativa é um tipo dependente (Actas..., Parte Geral, pg. 179).
293 XXXXXXXX XXXXXXX, Direito Penal. Parte Geral (Aspectos Fundamentais), tradução de Xxxxxx Xxxxxxx, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1976, pg. 180.
2.3 Consumpção
No caso da consumpção294, “o afastamento da aplicabilidade da norma consumpta só pode averiguar-se em concreto; não respeita à interpretação, mas à aplicação das normas no caso concreto.”.
2.3.1 PUIG PEÑA295 e JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX000 considera que se trata de uma forma natural de transição. Se o crime planeado começa a ser executado com fidelidade, implica a consumpção da conduta de conspiração, na forma de comissão mais avançada do começo de execução.
A relação de consumpção implica que uma norma consome já a protecção de outra297. A norma do n.º 1 do art.º 239.º do Código Penal consome a protecção que a norma do n.º 3 do mesmo preceito visa; a primeira, a “lex consumens”, tem de ser eficaz298.
2.3.2 Por outro lado, haveria consumpção, mediante a relação entre um crime formal e um crime material: excluídas, por força da relação de consumpção, são as disposições que punem actividades que consumam materialmente aquelas ofensas já formalmente havidas como consumadas e punidas.
2.3.3 Segundo uma perspectiva diversa da mencionada (em 2.2.1), seria ainda um caso de consumpção, por relação entre crime de perigo — crime de dano, que exclui as disposições em que o pôr-se em perigo a lesão de bens jurídicos por aquelas que punem a sua lesão efectiva299.
A eficácia das disposições consome naturalmente a daquelas que visam punir a verificação efectiva e concreta desse perigo de lesão ou dessa lesão de bens jurídicos300.
Exclui-se as disposições que punem o pôr-em-perigo de a lesão de bens jurídicos (crimes de perigo), por consumpção, por aquelas que punem a sua lesão efectiva (crimes de dano)301.
294 Para que a consumpção possa ter lugar, é sempre necessário investigar cuidadosamente se o círculo de bens jurídicos, cujo perigo de lesão uma determinada norma prevê, coincide com aquele cujo dano uma outra proíbe (XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pgs. 139, 133; XXXXXXXXX XX XXXXXXXX, Lições..., pg. 532).
Há consumpção quando o conteúdo de ilícito e de culpa de uma acção típica abarca outro facto ou tipo, de modo a que a valoração global do ilícito do ponto de vista dos ilícitos abarca o acontecimento global. A conduta de conspiração é absorvida pela forma comissiva mais perfeita do começo de execução.
295 PUIG PEÑA, Conspiración, pg. 209.
296 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 184.
297 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 131.
298 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 344.
299 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 130.
300 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 138.
301 XXXXXXX XXXXXXX, A Teoria..., pg. 138.
§ 8.ª MOLDURA PENAL
1. O preceito secundário consta do n.º 3 do art.º 239.º: a pena é de 1 a 5 anos. Este limite máximo é preferível a um limite de dez anos (com variação de nove anos em relação ao limite mínimo), pois dá melhor cumprimento ao princípio da proporcionalidade da sanção em relação ao facto e dá cumprimento ao princípio da legalidade das penas, tornando-a mais previsível302.
2. Na comparação com a medida da pena do genocídio, a moldura do acordo é menor, dado que a lesão de um bem jurídico é punida com uma maior amplitude do que a mera colocação em perigo303.
O genocídio é um crime de censura exemplar; tem a mais elevada das escalas penais (nos termos do n.º 1 do art.º 239.º, a pena é de 10 a 25 anos).
2.1 A lógica da prevenção em sede de medida legal da pena, levada até às últimas consequências, poderia conduzir ao absurdo como afirmar que, havendo poucos genocídios em Portugal, logo dever-se-ia punir este crime com pena de prisão até 3 anos. “Na realidade, não se pode estabelecer uma relação concludente entre a gravidade das penas e a frequência dos crimes”304.
2.2 Por outro lado, a moldura penal de 12 a 25 anos é excessivamente ampla. “Não sai aqui gravemente ferida a previsibilidade de pena, constitucionalmente exigível nos termos do princípio da legalidade em matéria penal?”305. É necessário um equilíbrio das escalas penais306.
2.3 É ainda discutível a equivalência identitária de penas entre o crime de genocídio e o crime de homicídio qualificado (artigos 132.º e 239.º, n.º 1).
3. O incitamento (art.º 239.º, n.º 2) é punível com pena de 2 a 8 anos, moldura penal mais ampla, nos limites mínimo e máximo, do que a do n.º 3 do art.º 239.º, dada a maior gravidade daquele tipo-de-ilícito.
§ 9.ª ESPECIFICIDADES PROCESSUAIS PENAIS
302 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Os crimes contra a propriedade..., 1998, pg. 63.
303 XXXXXXXX XXXXXX, Introdução à parte especial do Direito Penal, tradução e notas de Xxxxxxx Xxxxx Xxxx, AAFDL, 1989 (versão original de 1987), pg. 26.
304 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, A revisão da Parte Especial na reforma do Código Penal: legitimação, privatização, «individualismo» in Jornadas sobre a revisão do Código Penal, org. de Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, AAFDL, 1998, pg. 91.
305 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, A revisão da Parte Especial..., pg. 105.
306 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, A revisão da Parte Especial..., pg. 101.
Nos termos do n.º 2, al. d), do art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, a competência de investigação dos crimes contra a paz e a humanidade é reservada à Polícia Judiciária.
Cabe ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal do MP coordenar a direcção da investigação dos crimes contra a paz e a humanidade.
A nível processual, há um alargamento da legitimidade para a constituição de assistente (v.g., art.º 68.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal)307.
O tipo não exige que os agentes sejam arguidas no processo; não pode paralisar o tipo esta omissão (tal como no crime de associação criminosa).
307 V. XXXXX XXXX XXXXXXX, Artigo 239.º, pg. 574.
SEGUNDA PARTE ENQUADRAMENTO TEORÉTICO-CONSTRUTIVO
§ 1.ª
OS OBSTÁCULOS À INCRIMINAÇÃO E A SUA SUPERAÇÃO
1. A colocação da questão em termos de dúvida metódica formula-se do seguinte modo:
É admissível a incriminação do acordo, excepcionando os princípios gerais do Direito Penal? O sistema está vocacionado para o aspecto objectivo do comportamento. Como salvar uma categoria que se baseia no aspecto subjectivo?
2. Premissas
A descoberta da natureza da incriminação insere-se numa realidade cultural (embora metodologicamente se parta dos textos legais (documentos a nível de fontes)308).
As premissas de que partimos são de natureza objectiva e de natureza subjectiva.
A nível objectivo, são características do direito positivo e condição essencial de tudo o que é humano a temporalidade e a historicidade309-310. Estas duas determinações são convertíveis uma na outra. Toda a realidade sensível ou não-sensível (corpo, alma ou cultura) nos é dada no tempo. A historicidade é a
308 XXXXX XXXXX, A Caução de Bem Viver. Um Subsídio para o estudo da evolução da Prevenção Criminal, Coimbra, 1980, pg. 41.
309 XXXXXX XX XXXXXXX, X. XXXXXX XX XXXXXXX, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 2.º, Doutrina e Crítica, reimpressão, Coimbra Ed., 1995, pg.120.
310 Como refere XXXX XXXXXXXX XXXXXXX, “em último termo, a Verdade, se, por um lado, é indesligável da história do homem, é, por outro lado, transcendente a esta história enquanto história que acontece (...) — por isso que exige a transcensão ad infinitum do homem tal como é em cada momento histórico e exige, portanto, a transcenssão do homem enquanto ser histórico. E é assim que a própria lógica do pragmatismo filosófico conduz à negação do mesmo pragmatismo, na medida em que se reconheça (do ponto de vista do pragmatismo) que da estratégia de sobrevivência da forma de vida “homem” fazem parte postulados e ideadores universais que transcendem o homem histórico.” (XXXX XXXXXXXX XXXXXXX, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pgs. 277-278).
efectivação mais completa da temporalidade. É uma herança e não um espaço cósmico temporal independente de nós311.
A temporalidade é uma categoria essencial para o pensamento jurídico, mormente jurídico-penal312.
A nível subjectivo, “A própria forma de descrever a realidade observada implica uma escolha, uma valoração”313.
Existe uma “inserção social do sujeito pensante, que investiga e teoriza”. Neste sentido, a primeira exigência de um trabalho sério e “objectivo” de investigação é o reconhecimento e a consciência da inevitável subjectividade. Não tanto para a poder controlar completamente, mas para ser capaz de um permanente questionamento da nossa capacidade de ver e entender314. O poder do conhecimento pode ser exercido, mas com a consciência de cientista e de respeito da verdade.
Neste ponto, a vinculação do Direito à realidade é sublinhada pela Escola Finalista, mediante a afirmação da existência de estruturas lógico-objectivas.
3. A impunibilidade geral das fases anteriores à tentativa
Os actos preparatórios são, em princípio, impunes, pelo seu conteúdo criminoso insuficiente e pela escassa captabilidade real. O maior centro de ilicitude reside na execução; aquelas não constituem a realização do facto típico (Tatbestandsverwirklichung).
Frequentemente as pessoas desenvolvem actividades preparatórias sem terem ainda uma decisão firme; esta decisão vai-se formando e vai-se desenvolvendo à medida que se faz a própria preparação315.
Daí a afirmação do princípio da materialidade do facto: sem facto material ou prescindindo del, ter-se-ia um direito penal totalitário ou eticizante, da constate ou da perigosidade social do autor, da “nuda cogitatio”, da atitude interior, da suspeição316.
Não se poderia, assim, incriminar o acordo como mero encontro de vontades, o preliminar do preliminar, a fase de idealização da actividade criminosa.
311 CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 2.º, pg. 120. Só o homem tem história, porque só o homem é portador do espírito, sabe de si, e nessas condições faz a cultura. Os outros seres reais têm cronologia, mas não têm história (XXXXXX XX XXXXXXX, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 2.º, pgs. 120-121).
312 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 86.
313 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime ou a Perplexidade de Xxxxxxxxx, AAFDL, 1993 (reimpressão), pg. 404.
314 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime..., pgs. 423-424.
315 XXXXXX XXXXXXX BELEZA, Direito Penal. § 12. A Tentativa, actualização das Lições de Direito Penal, 2.º volume, 2000 (fonte: Internet fd.unl.), pg. 10.
316 XXXXXXXX XXXXXXXXX, Sobre a exigência perene da codificação in RPCC, ano 5, 2.º, Abr.-Jun.. de 1995, pg. 149.
3.1 No entanto, a título preliminar, diga-se que, influenciada pela visão liberal, a aplicação rigorosa da lei baseada num estudo dogmático elaborado e sofisticado é um processo de garantia, de uma maneira essencialmente formal, tendo uma função sobretudo legitimadora317.
XXXXXX XXXXXXX BELEZA anota o perigo teórico do fascínio que o estudo da dogmática pode exercer nos juristas, obnubilando a realidade do funcionamento do sistema penal e a enorme riqueza de outras perspectivas318.
Não está em causa a punição da “nuda cogitatio”, mas de uma manifestação conjuntamente revelada e acordada.
Tendo como suporte o bem jurídico protegido pelo genocídio, o acordo supera o teste da dignidade e da carência de tutela penal319, pois protege um bem jurídico de eminente dignidade de tutela (Schutzwurdigkeit)320; mediante um juízo qualificado de intolerabilidade social, assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva da sua criminalização e punibilidade321; ao que acresce a legitimação positiva da carência de tutela penal322.
O bem jurídico pela incriminação do genocídio é de “jus cogens”, senão mesmo Direito Natural323. Não é menos importante — bem pelo contrário — do que a incriminação de actos preparatórios de crimes contra a segurança do Estado (cfr., v.g., artigos 344.º, 300.º, números 2 e 5).
4. Direito Penal simbólico
Poder-se-ia arguir que seria um Direito Penal simbólico, sem consequências, nomeadamente não aumentando a prevenção.
Em primeiro lugar, respondemos que não é por desempenhar também uma função simbólica que não deve pertencer ou Direito Penal.
317 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, A Moderna Criminologia e a Aplicação do Direito Penal in
RJ, n.º 8, Out.-Dez. de 1986, pg. 57.
318 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, A Moderna Criminologia..., pg. 57.
319 Sobre a contraposição entre dignidade penal e carência de tutela penal (desenvolvidos na Doutrina alemã, nomeadamente por XXXXXXXX), v., entre nós, o estudo de XXXXX XXXXXXX, XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, A «Dignidade Penal» e a «Carência de Tutela Penal» como Referências de uma Doutrina Teleológico-racional do Crime in RPCC, ano 2, 2.º, Xxx.-Xxx. xx 0000, xx. 000 (xxx. 173-205).
320 XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, A «Dignidade Penal»..., pg. 184.
321 XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, A «Dignidade Penal»..., pg. 184; XXXXXXXXXX XXXX /
XXXXX XXXXXXX, Sobre os crimes de fraude..., pg. 341.
322 V. as formulações de XXXXXXXX, de GALLAS (apud XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, «Constituição e Crime». Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização, Universidade Católica Editora, Porto, 1995, pg. 222), de ZIPF (apud XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, «Constituição e Crime»..., pg. 223).
323 XXXX-XXXXX XXXXXXXXX, La notion de Crime contre l’humanité in RDP, 1996-5, pg.
1257.
Para além da sua própria aplicação e eficácia no sentido restrito, “técnico” dos termos, o Direito tem uma função simbólica, “declaratória”, ideológica, fundamental; esta função torna-se educativa das atitudes, expectativas e comportamentos sociais324. Como declaração de princípio, vinca-se a importância que para o legislador terá tido uma determinada matéria325.
Assim, o Direito Penal alarga a protecção dos bens jurídicos até à fase comunicativa, mais recuada, no crime dos crimes.
5. O perigo de execução do facto e a sua prevenção
Por outro lado, nem por ser simbólico se pode considerar que a conspiração não aumenta a prevenção. Pelo contrário, a conspiração representa um perigo de execução do facto.
O crime origina-se e exterioriza-se num momento anterior à execução326. A “combination of minds” dispensa a necessidade de um perigo mais próximo. o efeito da conspiração é um aumento do risco de que o crime irá ser cometido327.
“Ao Direito Penal só interessam estes actos enquanto manifestam uma possibilidade mais ou menos remota de uma crime virá a ser executado”328.
Pretende-se assim evitar a execução do facto projectado.
Neste sentido, há uma necessidade político-criminal329, pois se receia que uma intervenção posterior do “iter criminis” possa já não ser eficaz, dada a função motivadora do Direito Penal, distinta de qualquer ramo de Direito. De outro modo, cair-se-ia no absurdo de pensar que se teria de exigir um princípio de execução, quando pode ser extirpado de raiz330.
Tal como outros “inchoate crimes”, permite a prevenção contra os criminosos, em situações em que já houve uma intenção fixa para cometer o crime331.
“A reprovação ético-jurídica do crime é um meio de prevenção geral”, segundo o Professor XXXX XXXXXX XXX XXXXXX000.
324 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime..., pgs. 395, 218; ID., A revisão da Parte Especial..., pg. 91.
325 Criticamente, XXXXX XX XXXXX XXXXXX, XXXXX XX XXXXX XXXXXX, Vale a pena o direito penal do ambiente?, AAFDL, 2000, pgs. 32-33; cfr. XXXXX XXXX, “Xxxxxx protege adamah: os artigos 278.º a 280.º do Código Penal” in OD, ano 133, II, Abr.-Jun. de 2001, pgs. 374-375.
326 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 16.
327 No dizer do reflexo da “law in action” anglo-saxónica, por intermédio de J.C. XXXXX / XXXXX XXXXX, “the confederecy of several persons to effect any injurious object creates such a new and additional power to cause injury as requires criminal restraint” (J.C. XXXXX / XXXXX XXXXX, Criminal Law, pg. 303).
328 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 13.
329 XXXXXXXXX XXXXXXXX, La punición de los actos preparatorios, pg. 301.
330 SILVELA apud XXXXXXXXX XXXXXXXX, La punición de los actos preparatorios, pg.
301.
331 GRANVILLE WILLIAMS, Criminal Law…, pg. 710.
O sujeito deve conformar no futuro as suas decisões volitivas e, por conseguinte, o seu comportamento, com as exigências legais.
A conspiração pode ser um forte motivo para delinquir. A punição actua como contra-reacção inibidora333.
Ou um pouco mais mitigadamente, com os crimes de perigo abstracto, de algum modo se reforça a “prevenção”, mas apenas na exacta medida da sua proibição: mais correctamente, alarga-se o campo da punibilidade334, ou seja, um aumento de protecção ao preciso bem jurídico protegido pela incriminação do genocídio.
A necessidade de retribuir surge num plano secundário, pois não de se deu início à execução do facto principal.
6. Vinculação conspiracional
Na perspectiva da visão crítica da excepção aos princípios gerais da não punição dos actos preparatórios, em sentido negativo, XXXX XXXXXX000 considerava que a punição da conspiração se tratava de um critério muito discutível de um “direito penal do sentir”, que pune não só manifestações de vontade, mas manifestações do “sentir” dirigidas a acções futuras336.
Segundo XXXXXXX, os acordos não representam sempre certa a intenção de executar o crime, e, ainda que haja tal intenção, não são começo de execução do crime pensado, deliberado, instigado ou acordado.
Um Direito Penal da vontade é dificilmente de enquadrável de modo satisfatório no quadro lógico de um sistema penal337.
Segundo XXXXXXX XX XXXX, a penalização da proposta e da conspiração é o barómetro que indica o grau de liberalismo ou reacção que goza ou sofre o país em que se contém estas disposições.
6.1 O argumento do “direito penal do sentir” não é insuperável. Segundo FRÄENKEL, existe uma necessidade, exigida pela política criminal e pela justiça, de sancionar certas acções anteriores à tentativa do facto punível; baseia- se em representações valorativas que nos vêm dadas; e, em última análise, do sentir jurídico338.
332 In Inimputabilidade..., pg. 15 (apud XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pg. 289).
333 JUAQUÍN XXXXXX XXXXXXXXX, La Conspiración..., pg. 13.
334 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pgs. 574-575.
335 XXXX XXXXXX, Derecho Penal..., pgs. 131, 190.
336 XXXXXX refere que, com a imaginação, poderia ter cometido todos os crimes do mundo. A malícia consuma-se recém no acto (XXXXXXXXXXX, Othello, II, 1.).
337 XXXXXXXXX XXXXXXXX, La punición de los actos preparatorios, pg. 292.
338 Xxxx XXXXXXXXX XXXXXXXX, La punición de los actos preparatorios, pg. 291.
Em relação à protecção de bens jurídicos, as suas exigências do Direito Penal são limitadas à protecção de específicos bens jurídicos, mas participam de todo o modo do dever-ser ético-social339.
6.2 Por outro lado, militam os argumentos utilizados a favor da incriminação na Parte Geral. O merecimento da pena do facto obedece às vinculações conspiracionais que surgem ao implicar outras pessoas na resolução de delinquir340. O merecimento da pena do facto obedece à vinculação conspiracional da resolução criminal341.
Como o facto principal não foi cometido na realidade, o desvalor do facto limita-se ao ilícito da acção, que permanece no âmbito do espiritual, aparecendo o objectivo unicamente através da expressão da intenção criminal ou do acordo com esta342.
É uma acessoriedade hipotética, na expressão de JESCHECK, isto é, uma dependência da punibilidade com respeito ao crime proposto, cuja consumação devem querer todos os intervenientes.
O que é importante não é a situação real, mas um aspecto abstracto, espiritual ― a representação343.
7. Resposta a outras objecções
7.1 LANGE tecia a objecção constitucional de violação do princípio da igualdade: tratar-se-ia como iguais casos — condutas preparatórias descritas no par. 49 a) e a tentativa — que são essencialmente desiguais; o que implicaria uma transgressão do princípio constitucional da determinação do tipo.
7.1.1 A este tipo de objecções à criminizalização, contrapõem-se as razões de política criminal. Se são estas que levam à quase unânime impunidade dos actos preparatórios, a inversa também é verdadeira, pois a punibilidade, em casos contados, dos actos preparatórios encontra o seu fundamento num qualquer sentido político-criminal, segundo XXXXX XXXXX, em “Tentativa e Dolo Eventual”344.
Excepcionalmente, o Direito positivo tipifica como crime consumado certas condutas pertencentes ao “iter criminis”, que não lesionam directamente o
339 FIGUEIREDO DIAS, Liberdade. Culpa. Direito Penal, pg. 260.
340 JESCHECK, Tratado..., II, pg. 980.
341 JESCHECK, Tratado..., II, pg. 981.
342 JESCHECK, Tratado..., II, pg. 981.
343 JESCHECK, Tratado..., II, pg. 982.
344 XXXXX XXXXX, Tentativa e Dolo Eventual (ou da relevância da negação em Direito Penal), separata do número especial do BFDUC, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxxxx, 1984, reimpressão, Coimbra, 1996, pg. 47. “Dir-se-á, então, que perante tais situações o sistema reencontra a sua plenitude punitiva, mas plenitude reencontrada através de uma via não primária. Isto é, são, uma vez mais, razões de política criminal que, combatendo, anulando, os outros motivos, também de política criminal, que levavam à ideia de que os actos preparatórios não devem ser punidos, fazem que os chamados actos preparatórios devam ser punidos” (FARIA COSTA, Tentativa e Dolo Eventual..., pg. 47).
bem jurídico. São tipos de protecção antecipada — sancionam condutas que não produzem a lesão do bem jurídico. Não é necessária a efectiva lesão do bem jurídico para o preenchimento do tipo (a criminalização das organizações terroristas invoca o valor da segurança345).
7.2 Um outro argumento negativo seria o de que conspirador perde o domínio do facto; isto é, desencadeia-se um acontecimento sobre o qual não tem um absoluto poder de controlo.
Este argumento é desmontado por LANGE, referindo que também o cúmplice não tem o domínio do facto, sendo punível com atenuação da medida da pena.
8. Justificação da “Law of conspiracy”
Com frequência os actos da qual a conspiração é inferida evidenciam uma intenção de cometer o crime.
A justificação prática é a vantagem de pôr a claro a conspiração é dispensar a dificuldade de requerer a proximidade com a tentativa346.
No espírito pragmático, conspiração e incitamento são actos condenados por lei, por serem suficientemente próximos da tentativa, sem necessidade de entrar na teoria nebulosa da proximidade da tentativa347, ampliando o âmbito e a elasticidade da “offence”.
A vantagem subsidiária é a da prova.
8.1 A conspiração, os actos preparatórios, a tentativa, e a consumação correspondem a uma unidade de sentido que não vale por si e em si mas encontra o seu fecho normativamente harmónico na relevância conjunta com o valor do resultado348.
Existe uma fraccionabilidade, uma quebra da unidade do “iter criminis”.
9. A inserção no mecanismo complexo de repressão do genocídio
A punição do acordo insere-se na opção legislativa de incriminação de um mecanismo complexo de repressão, composto pela incriminação também pela
345 O considerando 32 da Introdução do Decreto-Lei n.º 400/92, de 23 de Setembro refere: “Este tipo de criminalidade tem de ser combatido pela lei de forma severa, mas, nestes casos, a lei penal, só por si, tem pouquíssimo efeito preventivo. A seu lado tem de existir uma consciencialização da comunidade no sentido de ser ela, em primeira instância, o crivo inibidor daquela criminalidade”.
346 XXXXXXXXX XXXXXXXX, Criminal Law…, pg. 710.
347 GRANVILLE WILLIAMS, Criminal Law…, pg. 672.
348 Cfr. XXXXX XXXXX, A Caução de Bem Viver..., pg. 48.
criminalização do incitamento ao genocídio349. Entre a panóplia sancionatória de que o Estado dispõe, não é de afastar a criminalização350-351.
10. As cautelas na utilização pelo Legislador da incriminação
Devendo “ser tida como medida excepcional”352, a incriminação é rodeada de precauções, de cautelas particulares na incriminação de actos preparatórios353.
Segundo FIGUEIREDO DIAS354, é necessário uma efectiva resolução criminosa: esta constitui o passo inicial do “iter criminis” e sem ela nem sequer poderemos saber se estamos perante um acto preparatório. Só se justifica numa se os actos apontarem já indubitavelmente para a realização do tipo; num plano interno, é necessário haver um plano do crime e uma intenção definida.
349 XXXX-XXXXX XX XXXX / XXXXXXXX XXXXXXXXXXX, Le Crime de Génocide revisité...
in Génocide(s), dir. de Xxxxx Xxxxxxxx / Xxxxxx Xxxxxx, Bruylant, Bruxelles, 1999, pg. 92.
350 Seguindo o pensamento de XXXXXXXXXX XXXX, o legislador não é completamente livre nas decisões de criminalização. Estas decisões, seguindo quase sempre muito de perto a evolução histórica da sociedade para a qual são tomadas, revelam-se estreitamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos directamente políticos, pelos interesses dos grupos sociais e pelas representações axiológicas neles prevalentes em certo momento histórico.
351 “O juízo sobre a necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, em primeira linha, ao legislador, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio, só pode ocorrer quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva (...)” (Ac. do TC n.º 606/99, pg. 317).
A “liberdade de conformação política do legislador”, expressão enunciada nos anos 50 pelo Bundesverfassungsgericht designa os espaços de actuação livre, não constitucionalmente vinculada, da função legislativa.
A expressão “discricionariedade legislativa” era inadequada, porque não correspondia à intensidade e natureza da vinculação do legislador à constituição (XXXXX XXXXX XXXXXX, Responsabilidade do Estado..., pg. 382 (nota)). A adopção do termo “Gestaltungsfreiheit”, liberdade de conformação, decorreu assim da consciência nítida de que era necessário apor limites ao processo de transposição de conceitos de direito administrativo para o direito constitucional e estabelecer uma inevitável distância entre o conteúdo do princípio da legalidade e o conteúdo do princípio da constitucionalidade (XXXXX XXXXX XXXXXX XXXXX XXXXXXX, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do Legislador, Coimbra Ed., 1998, pg. 382 (nota)).
No quadro das escolhas permitidas pelos parâmetros constitucionais, o legislador ordinário escolhe livremente, conforma politicamente a ordem do direito, de modo a actualizar e cumprir os valores já fixados pela instância constituinte (XXXXX XXXXX XXXXXX XXXXX XXXXXXX, Responsabilidade do Estado..., pg. 292).
A Constituição, como qualquer direito histórico, necessita da «actualização» do seu âmbito normativo» e essa tarefa de actualização pertence, em primeira linha, ao legislador, democraticamente legitimado (XXXXX XXXXXXXXX, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2001, pg. 62).
352 Actas... Parte Especial, pg. 362.
353 V. Actas... Parte Especial, pgs. 361-362.
354 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Sumários e notas das Lições, Universidade de Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, e As «Associações Criminosas»..., pgs. 81-82.
10.1 A pontualidade da incriminação da conspiração
A incriminação da conspiração só é admissível pontualmente, quando tenda a um crime grave (como defendia CARRARA). Uma incriminação genérica da punição antecipada não é, entre nós, admissível; só em crimes pontuais, se constituir uma excepção tolerável, susceptível de ser uma disposição criticável, se se elevasse a regra geral355.
Consequentemente, o lugar da conspiração não deve ser a Parte Geral, mas a Parte Especial. A conspiração não deve figurar na Parte Geral; basta a previsão específica na Parte Especial, nomeadamente no n.º 3 do art.º 239.º dada a intensidade particular do crime de genocídio.
§ 2.ª
A FUNDAMENTAÇÃO MATERIAL DA PROIBIÇÃO
A nível de Direito interno, os trabalhos preparatórios demonstram que a introdução do n.º 3 do art.º 239.º foi imposta pela assunção de compromissos internacionais.
Poder-se-ia referir que o Estado Português foi “obrigado” pela necessidade a introduzir a incriminação no Direito Interno.
Isso apenas parcialmente corresponde à realidade:
Há um momento de heterovinculação, mas que é precedido por um momento de autovinculação.
Em segundo lugar, não seria adequado a um país como Portugal não ratificar a CPRCG, que assegura a protecção contra um dos crimes mais gravosos do planeta.
Mas falta averiguar se a incriminação é conforme ao espírito e à normatividade axiológica da nossa ordem jurídica, ou seja, inquirir a legitimação do tipo de crime plasmado no n.º 3 do art.º 239.º356.
Sobre a perspectiva de ser um crime de perigo abstracto, remetemos para o que se referiu a propósito do bem jurídico protegido pela incriminação (supra). Não colhe, por isso, o argumento da ausência de protecção de um bem jurídico. A punição da conspiração com vista ao genocídio é uma incriminação que efectiva, e para o futuro, a protecção do bem jurídico, pois, se nenhum povo está
355 XXXXXXXXX XXXXXXXX, La punición de los actos preparatorios, pg. 300.
356 Usamos a expressão legitimação em lugar de legitimidade, pois o que está em causa não é a validade da incriminação apreciada de um qualquer ponto de vista, mas o próprio acto cosmogónico de segregação pela ordem jurídica universal da incriminação (cfr. XXXXX XXXXXX, Claros e escuros de um auto-retrato..., pg. 575 (nota) (para uma distinção entre legitimidade e legitimação, v. XXXXX XXXXXXXXX, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4.ª ed., Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pgs. 1377 ss.).
livre de ser vítima, igualmente nenhum povo pode ser despojado de ajuda ou de protecção do Direito Internacional.
1. A gravidade do crime de genocídio
O que se pretende é uma estrutura de domínio tendente à aniquilação de outros, conjecturando o domínio, preparando uma estrutura de domínio letal (por exemplo, o genocídio nazi).
Na Constituição Alemã, estabelece-se, no n.º 1 do art.º 26.º357, uma obrigação constitucional expressa de criminalização do atentado à convivência pacífica dos povos, assim como a proibição de uma guerra de agressão; é um caso de imposição expressa de criminalização358-359.
Mas mesmo em Estados que não contenham preceito constitucional, os factos são punidos por atentarem contra valores de primordial importância, não sendo necessária uma imposição expressa de criminalização360.
2. A intolerabilidade dos crimes contra a humanidade
Outro baluarte da incriminação é a ideia de intolerabilidade, impressivamente analisada por XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “entendida como radical inaceitabilidade da concepção de homem emergente da ideologia nacional-socialista que, transposta para o plano do político, se traduziu na
357 O n.º 1 do art.º 26.º da Constituição alemã refere: “São inconstitucionais e sujeitos a sanções penais os actos que, pela sua natureza ou intenção, venham a perturbar a existência pacífica dos povos, em especial aqueles que preparem para uma guerra de agressão.”
358 Foi determinado sob a pressão dos acontecimentos da II Guerra Mundial, querendo-se proibir acções de preparação de guerra, servindo a imposição de punição para reforçar esta ideia (XXXXXX- XXXXX apud XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, «Constituição e Crime»..., pg. 312).
359 Também se revela noutro plano: o da fiscalização pelos tribunais da constitucionalidade das leis e da legalidade dos actos praticados pela Administração:
“Entre as razões que levaram a Lei Fundamental a instituir um controlo de toda a actividade estadual pelos Tribunais Constitucionais e pelos Tribunais Administrativos, a experiência da ditadura nacional-socialista não foi menor. O desrespeito total pelos direitos de liberdade, o terror e a desumanidade deste regime, impuseram o reconhecimento da necessidade de estabelecer de antemão uma barreira a todo e qualquer abuso em que de futuro o poder político viesse a incorrer. E entendeu-se que a actividade legislativa não devia constituir excepção – pois que também o legislador democrático não está livre do perigo de colocar considerações jurídicas atrás dos objectivos políticos” (XXXX XXXXXX apud XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, «Constituição e Crime»..., pg. 349).
Há inúmeros casos na história de defesa do desrespeito por esta necessidade de protecção de valores básicos, no período do regime nacional-socialista.
360 XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, «Constituição e Crime»..., pg. 312.
realização metódica de um plano, racionalmente concebido, para a destruição de grupos de seres humanos.”361.
O genocídio é um crime contra a humanidade, ou seja, um crime contra o estatuto fundamental do ser humano.
O acordo é um acto que realiza uma intolerável ofensa de valores, cuja importância é comunitariamente conhecida; tem uma estrutura valorativa própria que se exacerba ao limite do tolerável e do impunível no genocídio362.
3. Perspectiva filosófica. O Mal
O genocídio é um crime quase impensável, que raia os limites do mal363.
O princípio que se ergue do fundo da natureza e pelo qual o homem se separa de Deus é a ipseidade que nele existe, mas que se torna espírito pela sua unidade com o princípio ideal364.
O conceito de Mal, segundo XXXXX XXXXXX, consiste numa perversão positiva e numa inversão dos princípios; o Mal seria explicado através de profundas analogias físicas, nomeadamente com a doença. Daí a negação do Mal como antagonismo positivo e redução ao “malum metahysicum”, ou ao conceito negativo de imperfeição da criatura365.
361 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Apontamento..., pg. 88.
362 Certa doutrina alemã indica como directamente aplicáveis aos indivíduos também aqueles (preceitos relativos aos) deveres fundamentais cuja violação normativa (rectius legal) é inaceitável, dado, pela sua natureza, serem deveres do homem eticamente fundados e, pela sua origem extra-estadual, terem um conteúdo obrigatório que não pode reconduzir-se à vontade do estado manifestada nesse sentido através do legislador. Este entendimento merece a crítica de XXXX XXXXXXX XXXXXX, que considera não ser um verdadeiro dever constitucional (v., do Autor, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, Coimbra, 1998, pgs. 153-154).
363 Em XXXXXX, o Mal é imputado aos deuses e ao mito das jarras de Xxxx:
“Este é o destino que os deuses designaram para os pobres mortais. Aos pés de Xxxx, existem duas jarras, que contém os presentes que ele nos dá. Numa, estão os males; noutra, a fortuna. Quando Xxxx, que se delicia com os seus trovões, mistura os seus presentes para os dar aos homens, ora tira o mal ou o bem. Mas, quando dá tira da jarra da desgraça, conduz o homem à degradação e a fome condu-lo pela terra, onde vagueia sem honra para os deuses e para homem.” (XXXXXX, Ilíada, XXIV, verso 527) (tradução nossa a partir de versões portuguesa e inglesa (XXXXXX, The Iliad, trad. e int. de Xxxxxx Xxxxxxx, Penguin Books, 1987; ID., A Ilíada, 2.ª ed., Europa-América, Mem Martins, 1988). “Xxxx é o distribuidor dos bens e dos males. Xxxxxx, na Ilíada, conta que na porta do seu palácio, existem duas jarras, uma contendo os bens, e outra os males. Normalmente, Xxxx tira o conteúdo alternadamente de uma e de outra para cada um de nós. Mas, por vezes, retira exclusivamente de uma delas e o destino que daí resulta é ou inteiramente bom ou, e é o que mais se verifica, inteiramente mau.” (XXXXXX XXXXXX, Dicionário..., pg. 469).
XXXXXXXXX XXXXXXXX escreve:
“Gefährlich ist’s den Leu zu wecken, / Verderblich ist des Tigers Zahn, / Jedoch der schrecklichste der Schrecken, / Das is der Mensch in seinem Wahn.” (“Perigoso é acordar o leão, / perniciosos os dentes do tigre. / Contudo, o mais temível dos medos / é o homem na sua ilusão.” (poema “Canção do Sino” (“Das Lied vor der Glocke”)).
364 F.W.J. XXXXXXXXX, Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana e os Assuntos com ela Relacionados, Edições 70, Lisboa, 1993, pg. 70.
365 XXXXXXX refere que era impossível que Deus compartilhasse todas as perfeições com o homem, sem o fazer Deus.
Contudo, o Mal, enquanto Mal, só pode ter origem na criatura, na medida em que só nesta a luz e a obscuridade, ou seja, ambos os princípios, podem ser unificados. O fundo-essencial originário não pode nunca ser em si mesmo mau, pois não há nele nenhuma dualidade dos princípios366.
A possibilidade universal do Mal reside no facto de o homem, em vez de utilizar a sua ipseidade como base ou instrumento, a elevar à posição dominante e a vontade geral e transformar em meio o espiritual que existe em si mesmo367.
Porque o início do pecado é de tal ordem que o homem transita do ser autêntico para o não-ser, da verdade para a mentira, da luz para a escuridão, para se tornar ele próprio um fundo criador, com o poder do centro que tem em si próprio, dominar todas as xxxxxx000.
Do Mal resulta o apetite do egoísmo, que se torna cada vez mais mesquinho e empobrecido, mas, por isso mesmo, mais desejoso, faminto e envenenado à medida que se afasta do todo e da unidade. No Mal, existe uma contradição que se consome e se nega a si mesma constantemente, na medida em que aspira a ser criatura enquanto nega a união que é própria do ser-criatura e em que, na arrogância de tudo ser, cai no não-ser. Acima de tudo, o pecado manifesto não nos enche de pena, como a fraqueza ou a incapacidade, mas de susto e de terror, um sentimento que só se explica pelo facto de ambicionar despedaçar o Verbo, atentar contra o fundo da criação e profanar o mistério369. O falso e o impuro do Mal são encerrados eternamente na obscuridade
Segundo SCHELLING370, o Mal e o Bem não configuram uma oposição originária e muito menos uma dualidade. Há dualidade onde duas essências se opõem efectivamente. O Mal, porém, não é uma essência, mas uma não-essência, que só em oposição se torna uma realidade, não é uma essência em si mesmo. Também, justamente, a identidade absoluta — o espírito do amor — é anterior ao Mal, pois este somente em oposição a ele se pode manifestar. Por isso, o Mal também não pode ser concebido a partir da identidade absoluta, mas está, de toda a eternidade, fechado a ela e excluído dela.
3.1 Relembre-se que XXXXXX XXXXXX, ao ouvir as palavras proferidas por XXXXXXXX, utilizando todas as frases feitas que são dispensáveis em orações fúnebres371. Porque, no cadafalso, a memória dá-lhe um último tom eufórico. Ele esquecia-se da sua própria morte. Como se, nos diante da morte, se resumisse a lição do longo estudo arendtiano efectuado sobre a
Segundo XXXXXX, o Mal provém da antiga natureza; porque todo o Mal deseja regressar ao Caos, quer dizer, àquela situação em que o centro originário não estava ainda subordinado à luz; é um borbulhar do centro da nostalgia, privada ainda de entendimento.
366 XXXXXXXXX, Investigações Filosóficas..., pg. 82.
367 XXXXXXXXX, Investigações..., pg. 100.
368 XXXXXXXXX, Investigações..., pgs. 101-102.
369 XXXXXXXXX, Investigações Filosóficas..., pg. 102.
370 SCHELLING, Investigações Filosóficas..., pg. 124.
371 XXXXXXXX declara com insistência que acreditava em Deus, à maneira nazi, mas não era cristão; não acreditava numa vida após a morte. “Em pouco tempo, meus senhores, nós voltaremos. É o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria, Não os esquecerei.” (apud XXXXXX XXXXXX, (...) Xxxxxxxx à Jérusalem, éd. établie sus la direction de Xxxxxx Xxxxxxxx, trad. de Xxxx Xxxxxx (1966), ver. por Xxxxxxxx-Xxxxx Xxxxxx-xx-Xxxxxx (1991), pour folio histoire révisée pour la présente édition par Xxxxxxx Xxxxxxxxx, Gallimard, s.l., 2002, pg. 1262).
maldade humana “— a lição da terrível, da indizível, da impensável banalidade do mal.”
4. Memória histórica. Lastro histórico jusinternacional
A descoberta e a assunção do sentido da historicidade permite a compreensão material de um ordenamento jurídico aberto; os processos de transição dos elementos passam da realidade circundante para a ordenamento jurídico-penal372.
O Direito Penal, enquanto ordenamento jurídico matricialmente ligado à realidade social é um lugar privilegiado para um correcto entendimento desta fenomenologia373.
As determinantes históricas374 que compõem o real social são relevantes na composição dos crimes de perigo abstracto, dos segmentos matriciais construtores da comunidade jurídico-penal; o seu aparecimento no campo da específica discursividade jurídico-penal está dependente de variáveis375.
O agir comunicacional só é possível porque se opera em um campo axiologicamente denso e historicamente definível376.
Na lição da História, como refere XXXXXXXXX XXXXXX, todas as experiências totalitárias têm implicado sistemáticas violações das garantias formais e processuais e limitações dos “deveres de transparência” e das possibilidades de actuação das instâncias de controle das decisões dos poderes públicos — o que, ao desrespeitar a exigência de “despersonalizar” o exercício do poder, promove o arbítrio e, ao cercear garantias fundamentais dos particulares, concorre para uma insustentável “des-racionalização” da concreta realização do direito”377.
O fundamento é, pois, também associado à memória histórica, ao lastro histórico internacional, relações geradoras de um Direito Penal de raízes éticas378. A punição da “conspiracy” (ou, na versão francesa, da “entente en vue de commettre le génocide”), com recurso ao Direito anglo-saxónico, surgiu num contexto histórico específico379-380, no final da II Guerra Mundial (conspiração
com vista a iniciar uma guerra de agressão)381.
372 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 176.
373 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 177.
374 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 623.
375 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 623.
376 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 627.
377 XXXXXXXX XXXX BRONZE, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão Problematizante dos pólos da radical matriz analógica do discurso jurídico), Coimbra Ed., 1994, pg. 99.
378 XXXXX XXXXX, O Perigo..., pg. 466.
379 O TIJ considera que a “Convenção (...) revela a intenção de as Nações Unidas condenarem e de reprimirem o genocídio como um crime contra o Direito das gentes, que implica a recusa do direito à existência de grupos humanos inteiros, recusa que é conforme à consciência humana”.
380 Por exemplo, em relação à criminalidade governativa do regime nacional-socialista, não se tratava de uma “actividade legítima do Estado nas suas próprias fronteiras”, mas da “preparação de
É legítimo incriminar o acordo. Contudo, este é um juízo revisível; o acordo é ou poderá ser uma incriminação sucedânea de não se conseguir prevenir os desvarios político-estatais (no ER, o acordo não é incriminado, devido a uma ausência “atabalhoada” (supra)).
Poder-se-á atingir-se os mesmos fins de Política Legislativa, mediante a incriminação de actos preparatórios de genocídio (mantendo crime de incitamento ao genocídio).
5. A afirmação preventiva de um princípio de auto-limitação do poder estatal ou para-estatal
Na génese social e doutrinal do fenómeno genocidário, este nasce fora do Estado, mas transporta-se normalmente para o seu seio382. Este tipo de criminalidade governativa383, na fórmula de M. XXXXXXX, é uma ordem pública assassina, um alegado “acto de soberania nacional”.
O auxílio da Criminologia é útil, nomeadamente a teoria culturalista da Escola de Chicago (SELLIN e o “conflito de culturas”384), a teoria de XXXXXXX XXXXX sobre a ligação do crime às leis de imitação385 (v. g., o caso do genocídio ruandês).
agressões internacionais, na sinistra intenção, abertamente expressa pelos nazis, de se servirem do Estado alemão como um instrumento de dominação dos outros países” (XXXXXX XXXXXXX apud GRYNFOGEL, Un concept juridique..., pg. 1034).
381 V. o relatório americano “The Nazi Conspiracy” e a defesa por XXXXXX XXXXXXX da incriminação.
382 Nas falas entre o rei Xxxxxx XX e os seus Conselheiros, no Acto II da tragédia “A Castro”, de XXXXXXX XXXXXXXX (salientado por XXXXX XXXXX, Aspectos Fundamentais da Problemática da Responsabilidade Objectiva no Direito Penal Português, Coimbra, 1981, pg. 7) refere-se:
“Conselheiro: O bem comum, Senhor, tem tais larguezas com que justifica obras duvidosas”.
383 A criminalidade governativa consiste nos factos criminosos, incluindo violações de direitos fundamentais, escutas, uso ilegítimo de violência, cometidos pelos governantes, entendendo estes como todos os titulares de cargos públicos de natureza genericamente executiva (XXXX XXXXX XXXX- XXXXXX, La criminalidad de los gobernantes, Crítica, Barcelona, 1996, pg. 11).
Em regimes ditatoriais, a criminalidade governativa é irrelevante, pois, nestes casos, “a criminalidade governativa não pressupõe um verdadeiro problema nem jurídico nem político. Tal não só é devido à ausência de meios adequados para sancionar os governantes, mas também, sobretudo, ao facto de que o respeito da legalidade por parte daqueles não constitui um valor a salvaguardar.” (XXXX XXXXX XXXX-XXXXXX, La criminalidad de los gobernantes, pg. 17).
Deste modo, nos regimes ditatoriais, “Sem embargo de haver formalmente mecanismos especificamente destinados a combater os comportamentos ilícitos, o significado destes é completamente distinto do império da lei próprio do constitucionalismo.” (XXXX XXXXX XXXX-XXXXXX, La criminalidad de los gobernantes, Crítica, Barcelona, 1996, pgs. 18-19). Nos regimes ditatoriais, “as proclamações formais sempre antepõem a consecussão de um objectivo supremo (...) à observância da legalidade. Esta tem apenas, na melhor das hipóteses, um puro valor instrumental.” (ID., ib.).
384 V. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pg. 248.
385 V. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pgs. 233-234.
A Criminologia crítica386 opera uma redefinição criminológica do objecto do crime, sublinhada por T. PLATT, tendo por objecto o estudo do próprio Estado como instituição criminógena387.
Como refere XXXXXXXXXXX XXXXX000, a ideologia é a absolutização do relativo; o político, por sua vez absolutiza a heteronomia institucional (o social, com as suas estruturas colectivas e de colectivismo).
Não se pode admitir a violência colectiva e o genocídio, especialmente quando são organizados pelo poder político.
O combate ao genocídio pressupõe a limitação dos poderes estaduais. O n.º 3 do art.º 239.º visa a prevenção da delinquência do Estado389 ou, mais rigorosamente, da delinquência estatal ou para-estatal.
A prevenção do genocídio implica que se possa prever o genocídio, as causas, origens e detecção de situações genocidárias ou pré-genocidárias (Trabalhos Preparatórios da R-96).
Com isto não pretendemos que o fundamento dos crimes seja a auto- limitação do poder estatal; afirmamos, sim, que desse modo se congrega um meio de prevenção qualificada390.
6. A salvaguarda da dignidade da pessoa humana, no “crime dos crimes”
A perspectiva da auto-limitação do Estado, ainda que preventiva, não é suficiente. Há que afirmar uma assumida dimensão ética, exterior aos órgãos de poder que se lhe encontram submetidos, fundada, em última instância, no conjunto de valores emergentes da essência do homem, destinatário desse poder391.
386 V. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Direito Penal, 2.º vol., pgs. 260-262.
387 “(...) Precisamos duma definição de crime que espelhe a realidade dum sistema legal que assenta no poder e no privilégio. (...) Uma definição de índole socialista, perspectivada em função dos Direitos do Homem, permite-nos estudar o imperialismo, o racismo, o capitalismo (...). O Estado e o aparelho jurídico, em vez de dirigirem a nossa investigação, devem, pelo contrário, converter-se em tópicos centrais da investigação, como instituições criminógenas, implicadas em corrupção, fraude, genocídio.” (T. PLAAT apud XXXXX XX XXXXXXXXXX XXXX / XXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena, 2.ª reimpressão, Coimbra Ed., 1997, pg. 60).
388 A. XXXXXXXXXXX XXXXX, Dignidade da pessoa humana e direitos do Homem in Digesta. Escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, vol. 2.º, Coimbra Ed., 1995, pg. 426.
389 XXXXXXXX XXXXXXXXX, Sobre a exigência perene..., pg. 147.
390 V. g., os poemas de XXXXXXX XXXXXX, que glosam o Estado nazi: “Os medos do regime (...) 3. Mas também os próprios camisas-castanhas / Receiam o homem cujo braço não se ergue voando / E assustam-se diante de quem / Lhes deseje os bons-dias. / (...) / Levados pelo medo / Assaltam casas e rebuscam nas retretes / E é o medo / Que os faz queimar bibliotecas inteiras. Assim / O medo domina não só os dominados, mas também / Os dominadores.” (trad. de Xxxxx Xxxxxxxx, Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 461); “São estas as cidades onde aos berros / Gritámos “Heil” aos destruidores do mundo.” (trad. de Xxxxx Xxxxxxxx, Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 461).
391 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Apontamento..., pg. 97(nota).
Para além dos fundamentos histórico e preventivo, existe um fundamento filosófico: o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da “dignitas hominis”, ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projecto individual392-393.
A radical humanidade existente em cada homem leva a nossa ordem jurídica a reconhecer que todos e cada um de nós temos uma personalidade física e moral igualmente tutelada na sua essência394.
A dignidade é um bem jurídico essencial395, devendo ser “levada a sério”, devendo o Direito contribuir para dignidade de todas as pessoas396.
A ideia de humanidade (humanitas) enquanto repositório dos caracteres que qualquer homem tem em comum com todos os homens e que desde logo lhe assegura a sua dignidade (dignitas, Menschenswürde), não prejudica, antes se
392 J. J. XXXXX XXXXXXXXX, Direito Constitucional..., pg. 225.
393 O mito com que abre “De Dignitate Hominis” revela que cada ser é o que é por sua natureza, excepto o homem. O homem é uma excepção no ser, não existe limite intransponível para a sua acção; em vez de receber a sua vida já pronta da ordem das coisas, ele tem o poder de lhe dar forma: tal a sua grandeza e a sua dignidade:
“Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás por ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder de entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo” (XXXXXXXX XXXX DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a Dignidade do Homem, trad. de Margarida de Lurdes Sirgado Ganho, Edições 70, Lisboa, 1989, pg. 53).
Da participação do homem na razão, deriva a dignidade incomparável de «fim-de-si-mesmo». A pessoa humana é um Xxxxxxxxxx, e não pode nunca ser tratada como coisa nem como meio, mas só simplesmente como fim (L. XXXXXX XX XXXXXXX, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 1.º, Parte Histórica, 2.ª ed., reimpressão, Coimbra Ed., 1995, pgs. 259-260). Fim-de-si-mesmo só pode ser a pessoa do homem: a personalidade é o mais alto fim do Estado, a pessoa humana e a personalidade dos indivíduos futuros e das gerações vindouras. Numa visão universalista, é para as pessoas que o Estado verdadeiramente existe, numa série intérmina de todas as gerações. Tudo na vida humana está apontado ao futuro (XXXXXX XX XXXXXXX, Filosofia do Direito e do Estado, vol. 2.º, pg. 322).
XXXX distinguia entre a liberdade (Freiheit) e o arbítrio (Willkür). tendo a primeira tem valor racional e moral, sendo o segundo um mero facto empírico destituído de valor (o fazer cada um aquilo que lhe apetece).
O fim do Direito é o de permitir sempre uma maior liberdade de cada um e de todos, à custa da esfera do seu arbítrio.
A partir de XXXX, os filósofos recuaram por referência a ele — por preocupação de coerência e de desespero. Porque todos eles, à excepção de XXXX XXXXXXX, abandonaram mais tarde ou mais cedo o conceito kantiano fundamental da liberdade e da dignidade do homem. O sacrifícios desta ideias teve por resultado criar uma estranha melancolia que tem caracterizado a filosofia (XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pgs. 94-95).
Da dignidade do homem, ou seja, do facto de ele ser um valor em si mesmo e não simplesmente um meio para os fins dos outros, retira mais recentemente XXXX XXXXXX, na linha de KANT, que todo o ser humano tem, face a qualquer outro, um direito a ser respeitado por ele como pessoa e a não ser lesado no seu existir e na sua esfera própria, bem como é obrigado a respeitar o outro de modo análogo.
394 XXXXXXXXXXXX XXXXXX XX XXXXX, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Ed., 1995, pg. 181 (sem prejuízo da tutela da identidade familiar, racial, linguística, política, religiosa e cultural, que não é incompatível, bem pelo contrário, com o princípio da igualdade e da proibição da discriminação do art.º 13.º da Constituição (RADINBRANATH XXXXXX XX XXXXX, O Direito Geral..., pg. 249 (nota)).
395 Neste sentido, XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime..., pg. 557.
396 XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime..., pg. 559.
incorpora, na noção de individualidade (Individualitas, Individualität), que, em função de caracteres próprios, permite distinguir cada um dos homens e atribuir- lhes originalidade e irrepetibilidade397.
A criminalização do genocídio é uma conquista irreversível da Humanidade no caminho para a dignidade de todas as pessoas398-399.
“Os catálogos de direitos humanos são normalmente o reverso de violações ou atentados a bens ou qualidades humanas de algum modo tidos como fundamentais, com as óbvias variações históricas e geográficas”400.
Os seres humanos podem ser ameaçados e aniquilados quando os governos recusam a admitir a dignidade da pessoa humana e o respeito pelo direito dos povos à identidade cultural.
O genocídio é um crime contra a humanidade, no sentido de “crime contra o estatuto do ser humano” ou contra a própria essência da humanidade, segundo XXXXXX XXXXXX000 (supra).
O objectivo último dos governos totalitários, para além de confiscar um poder global, é dominar completamente o homem. Os campos de concentração são laboratórios de uma experiência de dominação social402.
Depois das experiências históricas de aniquilação do ser humano (o nazismo403 (o mito biológico do III Reich, da Comunidade do sangue e da raça, como forma de suprapersonalismo), o estalinismo, o polpotismo), a dignidade da pessoa humana significa o reconhecimento do “homo noumenon”, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República404.
O princípio da dignidade da pessoa humana justifica também a criminalização, não da decisão individual, mas da decisão concertada de atentar contra os alicerces básicos do género humano,
Em sociedades democráticas, cuja essência reside no princípio da liberdade, ligado à existência de respeito pela dignidade humana, sociedades que não se baseiam num monismo axiológico, mas que promovem até a diversidade
397 XXXXXXXX apud RADINBRANATH XXXXXX XX XXXXX, O Direito Geral...,, pg. 112.
O homem, embora individualizado, não é um ser isolado mas em permanente relação com os outros homens, com o mundo e consigo mesmo, assumindo aí especial relevo o mundo de valores a que ele aderiu, a ponto de lhe estruturar, moldar e significantizar a pessoalidade (Personalität).
398 Cfr. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime..., pg. 552.
399 Sem prejuízo dos direitos de quarta geração, caracterizados pelo seu carácter poligonal ou multidimensional, como o direito dos poros à paz e ao desenvolvimento (XXXX XXXXXXX XXXXXX, O Dever Fundamental..., pg. 49 (nota)).
400 XXXXXX XXXXXXX BELEZA, Sem Sombra de Pecado. O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal, separata de Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Xxxxx, Xxxxxx, 0000, pg. 24.
401 XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx à Jérusalem, pg. 1277.
402 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pgs. 156-157.
403 Sobre a Alemanha do nacional-socialismo e a ideia de povo na base de critérios biológicos mitigados historicamente, entre nós, v. XXXXX XXXXXXX, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra Ed., 2002, pgs. 197-198, 296; XXXXX XXXX XXXXXX, Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. do Estado de Direito liberal ao Estado social e democrático de Direito, Coimbra, 1987, pgs. 150-167 (sobre os sistemas constitucionais fascistas e fascizantes, v. XXXXX XXXXXXX, , pgs. 194ss.).
404 XXXXX XXXXXXXXX, Direito Constitucional..., pg. 225.
ética como algo de intrinsecamente valioso, sociedades pluralistas e, necessariamente, compromissórias405.
Proíbe-se, em particular, as organizações políticas e sociais de tratarem a pessoa de modo a que ela não possa representar a contingência do seu corpo como momento de uma própria, autónoma e responsável individualidade.
O Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem cimenta esta ideia (com reflexos na ordem constitucional portuguesa (art.º 16.º, n.º 2, da Constituição)), na vertente da função interpretativa do princípio da dignidade da pessoa humana406, uma esfera constitutiva da República Portuguesa407.
A intangibilidade da dignidade da pessoa humana, como norma fundamental de todo o sistema de valores da Constituição, a par dos direitos fundamentais, é o único ponto fechado na caracterização material do Estado de Direito408. A criminalização do acordo é uma decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, uma dignidade projectada e realizada para e com os outros, para a diversidade e no seu respeito, solução que, como um corte do nó- górdio, resolve o problema da atribuição ao Todo e do perigo de exclusionismos.
405 XXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, «Constituição e Crime»..., pgs. 136-
137.
406 Neste sentido, XXXXX XXXXXXX XXXXXXX, O Estado de Excepção no Direito
Constitucional entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, Vol. II, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pg. 1493.
407 Por exemplo, a consideração de o presos não serem homens, mas “Häftlinge” contradiz o princípio da dignidade da pessoa humana. Atendendo ao princípio metodológico “Entia non sunt multiplicanda”, de XXXXXXXXX XX XXXXXX, segundo o qual não precisamos de fazer apelo para explicações complicadas quando temos à mão de semear qualquer explicação mais simples.
Basta que reconheçamos a utilidade humana da protecção dos grupos, conotáveis da humanidade como um todo, para que termos descoberto, do mesmo passo, a razão primitiva da inclusão no catálogo de bens jurídicos (cfr. XXXXX XX XXXXX XXXXXX, Vale a pena o direito penal, pg. 100). Que melhor expressão da negação da dignidade humana do que o genocídio? A relação de respeito recíproca constitui a relação jurídica fundamental, a base de toda a convivência numa comunidade jurídica e de toda a relação jurídica em particular.
“Mesmo a própria indução dita humanidade não pode esquecer o homem, cada homem concreto, de carne, sangue e sonhos, cada eu nas suas circunstâncias, esse verdadeiro centro do mundo, esse fim em si mesmo, esse ser que nunca se repete.” (XXXX XXXXXXX XXXXXX, Curso..., pg. 39). A violência cometida para com o membro mais ínfimo da espécie humana afecta toda a humanidade; a liberdade de um homem é uma parcela da liberdade universal: não se pode atingir uma sem comprometer, simultaneamente a outra (XXXXXX XXXXXXXXX, defensor da abolição da escravatura). O cosmos da comunidade mundial está imanente no próprio microcosmos do indivíduo (XXXX XXXXXXX XXXXXX, Curso..., pg. 67). Porque cada ser humano reflecte o universo enquanto um todo, conforme nos ensinam os estóicos e XXXXXXX. Por dentro da mais pequena célula desse todo, ao lado da dimensão individual, existe uma dimensão social, que tem de ser entendida de forma ampla (XXXX XXXXXXX XXXXXX, Curso..., pg. 67) (cada indivíduo, como verdadeiro centro do mundo, como ser que nunca se repete, dá vida a uma pluralidade de pertenças, a uma pluralidade de grupos, a uma rede de poderes, na qual, por articulações horizontais e verticais, se estabelecem as instituições, os valores e as essências fazendo. Essências que só se realizam quando se enraízam nas existências, objectividades sociais que só estão vivas quando se radicam no húmus das subjectividades. A ideia de obra ou de instituição apenas se torna permanecente quando é objecto das adesões individuais, das comunhões de pessoas, das regras vivificadas, das formas de poder institucionalizadas (XXXX XXXXXXX XXXXXX, Curso..., pg. 34)).
Cada indivíduo deve interessar-se pelo inocente oprimido, sob pena de ser vítima, por sua vez, quando vier um mais forte do que ele para o subjugar (XXXXXX XXXXXXXXX).
408 XXXXX XXXX XXXXXX, Contributo..., pgs. 227-228.
7. A violação dos limites últimos da justiça
O princípio do Estado de Direito determina que o Direito Penal se deve orientar para o ideal de Estado justo409.
A base antropológica dos direitos do homem proíbe a aniquilação dos direitos de outros homens, designadamente quando essa aniquilação equivale à violação dos limites últimos de justiça410, ínsita, nomeadamente, à proibição constitucional (art.º 13.º, n.º 2, da Constituição)411.
A criminalização do acordo assume, assim, a função de negação da negação, ou de neutralização da negação, preenchendo um espaço de decisão valorativa, com base normativa e com guarida jusconstitucional.
A igualdade é o centro de gravidade da natureza xxxxxx000.
O genocídio é uma ruptura qualificada do princípio da igualdade. Segundo n.º 1 o art.º 13.º da Constituição, todos “têm a mesma dignidade social” e uma mesma dignidade interior, natural ou íntima, constituindo ambas a dignidade da pessoa humana referida no art.º 1.º413.
§ 3.ª
PROPOSTA “DE JURE CONDENDO” DE INCRIMINAÇÃO
DE ACTOS PREPARATÓRIOS “PROPRIO SENSU” COM VISTA À PRÁTICA DE GENOCÍDIO
Os crimes de perigo abstracto são fabricados através de uma ideia de realização vinculada. De uma estrita e rigorosa realização vinculada414. Os crimes de perigos abstracto são dogmaticamente aceitáveis — e jurídico- constitucionalmente inobjectáveis — se e na medida em que for neles respeitado o princípio da determinabilidade do tipo e afastada qualquer presunção de culpa415.
Tendo em conta experiências anteriores, como a do genocídio nazi, com a preparação de campos de concentração, ou como a do genocídio no Ruanda — com a preparação de listas de pessoas para serem eliminadas, com a distribuição
409 JESCHECK, Tratado..., I, pg. 34.
410 XXXXX XXXXXXXXX, Direito Constitucional..., pg. 410.
411 A injunção de igualdade, ou de não discriminação, está contida, como princípio geral dos direitos fundamentais, no art.º13.º da Constituição, sendo reafirmado noutros lugares (v. XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, Mulheres, Direito e Crime..., pgs. 110 ss., 129 ss.).
412 RADINBRANATH XXXXXX XX XXXXX, O Direito Geral..., pg. 289.
413 RADINBRANATH XXXXXX XX XXXXX, O Direito Geral...,. 288.
414 XXXXX XXXXX, Artigo 272.º, pg. 884.
415 FIGUEIREDO DIAS, Para uma dogmática do Direito Penal Secundário. Um contributo para a Reforma do Direito Penal Económico e Social Português in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. Volume I. Problemas Gerais, XXXXXXX XXXXXXX et al., Coimbra Ed., 1998, pgs.35-74 (publicado originariamente na RLJ, ano 116.º, 1983-84, 1 117.º, 1985-85), pg. 65.
de armas a civis, com a formação de milícias —, torna-se necessário repensar a criminalização, expandindo-a para os actos preparatórios.
Exige-se, pois, que os actos preparatórios o sejam «de um determinado facto» de modo a que o agente só seja punido quanto tiver praticado actos importantes, idóneos e relevantes de uma intenção definida. Estas limitações são a garantia de que a punição não se afasta da razoabilidade e da justiça.
Assim se adensa a proibição, definindo especifica e taxativamente quais o legislador considera criminalmente puníveis416.
Existem diferentes técnicas de criminalização dos actos preparatórios: i) por vezes, as acções são descritas e limitadas as formas por que são punidas as acções de preparação dos crimes: fabrico, importação,..., fornecendo um catálogo de actos preparatórios extremamente pormenorizado e densificado (artigos 331.º, 344.º, 274.º, 275.º, 272.º); ii) noutros, predominam as preparações não tipicizadas, como poderia suceder na incriminação de actos pré-executivos do genocídio417.
CONCLUSÕES
1. O acordo é um crime plurissubjectivo, com carácter unilateral ou de convergência.
2. O acordo é uma incriminação que consta de fontes tanto no plano internacional, a partir do segundo pós-guerra, como no plano nacional.
3. A dogmática do acordo é desenvolvida no Direito anglo-saxónico.
4. O acordo é um crime de perigo abstracto.
5. Como tal, embora o contacto seja mais distante, o bem jurídico protegido não é obnubilado nem imune ao bem jurídico concretamente protegido com a incriminação do genocídio.
6. O acordo tem como figuras afins a conjura, o conluio e a conspiração (esta figurando na Parte Geral).
7 O acordo difere dos actos preparatórios, pois pertence a uma fase anterior — a fase comunicativa.
8. O acordo difere de outras figuras, como as situações de comparticipação criminosa (fattispecie monossubjectiva, eventual, em virtude da tipicidade acessória da Parte Geral), a circunstância agravante do pacto prévio do crime, a figura histórica do “complot” o acordo prévio, o acordo que exclui o preenchimento do tipo e o consentimento, o incitamento ao genocídio, e a associação criminosa.
416 Cfr. XXXXX XXXXX, Artigo 272.º, pg. 885.
417 Em matéria de crimes contra a Humanidade, é relevante o novo art.º 275.º do CP, sob epígrafe “Substâncias explosivas ou análogas a armas” (alterado pela Lei n.º 98/2001), no seu n.º 1, na parte em que refere: “Quem (...) trouxer consigo arma classificada como material de guerra”.
Na alteração de 2001, a nível do preceito secundário, os limites mudaram, variando agora entre 2 e 5 anos, ao invés do limite máximo da pena até 3 anos ou com pena de multa.
9. O tipo objectivo é preenchido por dois ou mais sujeitos.
10. O acordo é um crime formal.
11. A acção típica consiste na concertação de esforços e de vontades.
12. O acordo tácito é possível.
13. O «contrato criminal» tem de convergir no essencial, nomeadamente na resolução da prática concreta e na resolução de execução ou de levar à prática o genocídio.
14. Não se exige que o acordo seja minuciosamente detalhado.
15. O acordo não exige que os agentes realizem actos executivos de genocídio.
16. Uma decisão baseada em factos hipotéticos (acordo condicionado) não afasta o preenchimento do tipo, por aplicação analógica das regras relativas ao dolo condicionado (decisão baseada em factos hipotéticos).
17. Sendo um crime de perigo, o tipo subjectivo não coincide inteiramente com o do genocídio.
18. O dolo presente no acordo é uma manifestação antecipada do dolo do crime principal.
19. Na configuração do dolo no acordo, prescinde-se da modalidade do dolo eventual, uma vez que o crime doloso da Parte Especial não tem de se expressar sempre de acordo com a norma da Parte Geral, o n.º 3 do art.º 14.º do Código Penal.
20. O acordo, tal como o genocídio, contém ainda um elemento subjectivo especial de ilicitude (“com intenção de destruir...”), concretamente uma tendência interna excessiva, sem correspondência com o tipo objectivo.
21. A justificação por legítima defesa da conspiração não é concebível, devido à presença do elemento subjectivo especial de ilicitude.
22. A consumação ocorre quando os conjurados, estando no mesmo local, cheguem a um acordo unânime. Estando em sítios diversos, a perfeição da declaração tem lugar aquando do conhecimento pelos restantes concertados.
23. A desistência aproveita ao agente, devendo este adoptar uma resolução contrária e comunicá-la aos restantes comparsas.
24. A participação na acção de conspiração é possível, pois as regras de tipicidade integrativa constantes na Parte Geral, sendo supletivas e supridoras das lacunas da Parte Especial, são compatíveis com os crimes de participação necessária e ajustadas aos limites típicos e valorativos do sistema de comparticipação.
25. Determinados comportamentos no acordo são susceptíveis de preencher quer a tipicidade objectiva da instigação quer a tipicidade subjectiva da cumplicidade.
26. Na dinâmica da progressão criminal, o crime principal pode ser executado ou não.
27. Nos casos de tentativa ou de consumação do crime de genocídio, existe uma relação de concurso aparente com o crime de acordo, pela via da subsidiariedade (crime de perigo — crime de dano) ou pela via da consumpção (“acto preparatório” — facto consumado, crime formal — crime material).
28. A moldura penal do n.º 3 do art.º 239.º é menor do que as do genocídio (n.º 1 do art.º239.º) e do incitamento (n.º 2 do art.º 239.º).
29. Como crime contra a Humanidade, existem especificidades processuais penais.
29. O argumento da impunibilidade das fases anteriores à tentativa cede ante a consideração do bem jurídico protegido.
30. A incriminação assume um valor simbólico, declaratório, recuando até à fase comunicativa.
31. A conspiração representa um perigo de execução do facto, pelo que há uma necessidade criminal de “prevenção”, no sentido de alargamento da punibilidade.
32. A incriminação não visa a punição de um “Direito Penal do sentir”, manifestando-se, ao invés, os mecanismos da vinculação conspiracional e da acessoriedade hipotética.
33. A punição do acordo esteia-se também em razões de política criminal, inserindo-se num mecanismo complexo de repressão.
34. A conspiração deve ser incriminada pontualmente, apenas em crimes graves, como o do genocídio, não com carácter geral.
35. O fundamento material da incriminação leva em conta estarmos em presença de um crime de gravidade extrema, intolerável, ao negar a dignidade do Homem e ferir os fundamentos da existência comunitária.
36. O lastro histórico jusinternacional, as determinantes históricas permitem compreender a estrutura deste crime de perigo abstracto.
37. Afirma-se preventivamente um princípio de auto-limitação do poder estatal ou para-estatal.
38. A incriminação baseia-se, em última análise, na dimensão exterior constituída pelo princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que o genocídio atenta contra o estatuto do ser humano, contra a essência da humanidade.
39. O genocídio viola os limites últimos da justiça, constituindo uma ruptura qualificada do princípio da igualdade.
40. “De jure condendo”, propomos a densificação pelo Legislador de actos preparatórios com vista à prática de genocídio.
ANEXOS
ANEXO I EXEMPLOS DE GENOCÍDIO
1) Genocídio dos Hebreus no Egipto
Um exemplo de genocídio figura no Êxodo (1, 8-22)418-419:
“Xxxxx, então, ao trono do Egipto, um novo rei que não conhecera Xxxx. E ele disse ao seu povo: «Reparai, os filhos de Xxxxxx constituem um povo mais numeroso e poderoso do que nós. Temos de proceder astuciosamente contra eles, a fim de impedirmos que se desenvolvam ainda mais e, no caso de sobrevir uma guerra, se aliem aos nossos inimigos para os destruírem, saindo, depois, desta terra». Nomearam, então, capatazes para os oprimirem com trabalhos penosos. E, assim, construíram as cidades de Pitom e Ramsés, que eram depósitos à ordem do Faraó. Todavia, quanto mais os oprimiam, mais se multiplicavam e aumentavam; e os egípcios começaram a odiar os filhos de Xxxxxx. Os egípcios impuseram a mais implacável servidão aos filhos de Xxxxxx. Faziam-lhes passar uma vida amarga, submetendo-os a violentos trabalhos de barro e tijolos, e a toda a espécie de serviços agrícolas; e, cruelmente, impunham-lhes todas estas tarefas. O rei do Egipto chamou, também, as parteiras dos hebreus, cujos nomes eram Xxxxxx e Xxx, e disse-lhes: «Quando assistirdes aos partos das mulheres dos hebreus, observareis a criança: se for rapaz, matai-o; se for rapariga, deixai-a viver». Mas as parteiras, que temiam a Deus, não cumpriram a ordem do rei do Egipto, e deixaram viver os rapazes. O rei mandou-as chamar novamente e disse-lhes: «Porque procedestes dessa maneira deixando viver os rapazes?» Responderam ao Faraó:
«Porque as mulheres dos hebreus não são como as dos egípcios: elas são vigorosas, dão à luz mesmo antes de chegar a parteira». Deus recompensou as parteiras e o povo continuava a multiplicar-se e a aumentar. Porque as parteiras temeram a Deus, Ele protegeu as suas famílias.
Então o Xxxxx deu a seguinte ordem a todo o seu povo: «Lançareis ao rio todos os indivíduos do sexo masculino que nasceram aos hebreus e deixareis viver todas as raparigas.”.
2) Genocídio dos Arménios no Império Otomano
O genocídio dos Arménios é o primeiro do século XX420.
O Ittihad, pequeno grupo de homens que fazem parte do comité central deste partido ou dele próximo, planeiam eliminar a maioria dos Arménios do Império Otomano e extirpar definitivamente os que vivem nas províncias orientais.
418 A cena pode ser visualmente imaginada, através do filme “Os Dez Mandamentos”.
419 Outros exemplos de genocídio na Bíblia são narrados no Deutoronómio (capítulo 2, nomeadamente 1-3, 15-17, 34) e nos Números (capítulo 31).
420 Sobre o genocídio dos Arménios, v. XXXX XXXXXX, Les Arméniens. Histoire d’un génocide, Éditions du Seuil, s.l., 1996 (reimpressão).
A I Guerra Mundial ― ou a “Grande Guerra”, como então era chamada ―, fornece a oportunidade de recorrer ao genocídio para resolver a questão arménia. As comunicações civis estão em parte interrompidas e as informações circulam mal.
O Ittihad recorre a uma organização especial de cobertura: o Techkilât-i Mahsoussé (prova da premeditação do crime a vontade de camuflar quem o acompanha421 e da vontade de decapitar a comunidade arménia).
As primeiras medidas genocidárias são tomadas entre Novembro de 1914 e Março de 1915.
Entre Abril e Maio de 1915, Zeiton é o banco de ensaio do genocídio arménio, mediante a deportação, dizimando pela fome e pela exposição ao abandono.
Uma lista negra de 300 a 600 nomes circula no programa de deportação.
Na noite de 24 para 25 de Abril de 1915, uma vasta operação, montada pelo Prefeito de polícia de Constantinopla, para prender todas as personalidades arménias de Constantinopla, prende redactores e jornalistas do jornal “Azatamart”, intelectuais (escritores, poetas e jornalistas; médicos, advogados), num total de 270 pessoas, presas no domicílio.
O Ministro do Interior justifica a medida; vai dizendo que não há prova do “complot” arménio e que em breve serão libertados.
As autoridades acusam os Arménios de espionagem e de traição; iniciam a deportação colectiva das cidades e vilas suspeitas.
Em 30 de Maio, o Conselho de Ministros publica um decreto geral de deportação, veiculando uma aparência humanitária, prevendo medidas de protecção das pessoas e bens, sendo completado por regulamentos de reinstalação dos Arménios.
Na prática, as autoridades fecham escolas arménias, suprimem a imprensa arménia.
A deportação fazia, pois, parte de um plano geral de exterminação422.
O plano, executado com precisão, era supervisionado pelo Ministro do Interior, que passará pela eliminação dos chefes políticos e dos notáveis; por perseguições, prisões, execuções massivas de homens; pela destruição de vilas vizinhas.
Entre Maio e Julho, serão atingidos os Arménios das “vilayet” orientais; a partir daí, a captura será no resto do Império.
A população arménia é reagrupada: os homens válidos são separados, enviados em pequenos grupos para as cidades e mortos. Mulheres, velhos e crianças são organizados em comboios que tomam a rota da deportação.
As rotas de deportação estão cheias de cadáveres. O centro operacional do genocídio é em Erzeroum.
Numa estimativa, dos 1800 000 Arménios no Império Otomano, 600 000 foram assassinados no local, 600 000 no decurso da deportação, num total de 1200 000 vítimas de genocídio.
Cerca de 200 000 Arménios refugiaram-se no Cáucaso; 150 000 escaparam à deportação: Arménios de Constantinopla e de Esmirna. No total, existem 000 000 de um universo de 1200 000 vítimas. É um povo inteiro que perece.
3) Genocídio nazi
421 XXXX XXXXXX, Les Arméniens..., pg. 226.
422 XXXX XXXXXX, Les Arméniens..., pg. 251.
3.1 Não há história mais difícil de contar em toda a história da humanidade do que esta, revelando a monstruosa igualdade na inocência423-424.
O III Reich, segundo os nazis, devia durar mil anos.
Os poemas de XXXXXX referem-se ao sistema totalitário implantado pelo regime nazi425.
423 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg.118.
424 Sobre o genocídio nazi, a literatura é inúmera. V., nomeadamente, AA.VV., Die nationalsozialischten Konzentrationslager, org. de Xxxxxx Xxxxxxx / Xxxxx Xxxx / Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, 2 vols., Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxxxx xx Xxxx, 0000; XXXXXX XXXXXX, Compreensão e Política e Outros Ensaios. 1930-1954, trad. de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Relógio d’Água, Antropos, Lisboa, 2001; ID., Les Origines du totalitarisme (...), éd. établie sus la direction de Xxxxxx Xxxxxxxx, trad. de Xxxxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxx-Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxx, Gallimard, s.l., 2002,; ID., Xxxxxxxx à Jérusalem, éd. établie sus la direction de Xxxxxx Xxxxxxxx, trad. de Xxxx Xxxxxx (1966), ver. por Xxxxxxxx-Xxxxx Xxxxxx-xx-Xxxxxx (1991), pour folio histoire révisée pour la présente édition par Xxxxxxx Xxxxxxxxx, Gallimard, s.l., 2002; XXXXXX XXXXXXXXX, et al., L’Allemagne de Xxxxxx. 1933-1945, Éditions du Seuil, s.l., 1991; XXXXX XXXXXXX, Los Alemanes y el Genocidio Judío. Consciencia, Memoria y Represión in El genocidio ante la historia y la naturaleza humana, XXXXXXX XXXXXXXX / XXXXXX XXXXXX et al., Universidad Xxxxxxxx Xx Xxxxx, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxx, 0000, pgs. 141 ss.; XXXXXXX XXXXXX, Racismo, Antirracismo y Progreso Moral in El genocidio ante la historia y la naturaleza humana, XXXXXXX XXXXXXXX / XXXXXX XXXXXX et al.Universidad Xxxxxxxx Xx Xxxxx, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxx, 0000, pgs. 47 ss.; ID., Modernidade e Holocausto, trad. de Modernity and the Holocaust, Oxford, 1996, Xxxxx Xxxxx Editor, Rio de Janeiro, 1998; M.A. XXXXXXXXX, Rapport General sur la repression des crimes nazis contre l’humanité et sur la protection des libertés démocratiques in RIDP, 1948, n.º 1, pgs. 201-207 (= Rapport General sur la repression des crimes nazis contre l’humanité et sur la protection des libertés démocratiques in RIDP, 1948, n.º 2, pgs. 11-26); XXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxxx, nazisme, autoritarisme, Éditions du Seuil, s.l., 2000; XXXXXX XXXXXX, (ed.), Os Criminosos de Guerra. Eichmann. Tóquio, Amigos do Livro, Camarate, s.d.; XXXX XXXXXXXXXX, Um Olhar sobre o Holocausto, trad. de Xxx Xxxx, Prefácio, Lisboa, 1999 (original: Reading the Holocaust, Cambridge University Press); ÉDUARD CONTE / XXXXXXXX XXXXXX, La Quête de la Race. Un anthropologie du Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000; XXXXXX XXXXXXXXXX, Seis estudios sobre genocidio. Analisis de las relaciones sociales: otrdad, exlcusión y exterminio, Eudeba, Buenos Aires, 2000; XXXX XXXXXXX, Die Vernichtung der europäischen Juden, 3 vols., Xxxxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxxx xx Xxxx, 0000; XXXXX XXXXX, L’État SS. Le système des camps de concentracion allemands, Éditions de la Jeune Parque, Manchecourt, s.l., 1993 (original Der SS Staat. Das System der deutschen Konzentrazionslager, Frankfurt a.M., 1946); XXXXXX XXX XXX XXXX / XXXXXXX XXXXX, Auschwitz. Von 0000 xxx xxxxx, Xxxxx, x.x., 2000 (original: Auschwitz. 1270 to the Present, Nova Iorque, 1996); XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação. A vida e a morte nos 18 campos de concentração e de extermínio, trad. de Xxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx, Notícias, Lisboa, 1998 (original: Le Livre de la Déportation); XXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx Kriminalisten. Die deutsche Kriminalpolizei und der Nationalsozialismus. Zwischen 1920 und 1960, Beck, Munique, 2002.
425 “Dificuldade da governação
1. Os ministros proclamam incessantemente ao povo / Quão difícil é governar. Sem os ministros
/ o Trigo crescia pra dentro da terra em vez de pra cima. / Nem uma pedrinha de carvão sairia da mina / Se o Führer não fosse tão sábio. Sem o Ministro da propaganda / Xxxxxxx mulher se deixaria engravidar. Sem o Ministro da Guerra / Nunca viria uma guerra. Mais: seria muito duvidoso que, / Sem o beneplácito do Führer, o Sol nascesse / De manhã, e se nascesse, então / Seria no sítio errado.
(...) 3. Se a governação fosse fácil / Não eram precisos espíritos luminosos como o Führer”
“4. Ou acaso será / Que a governança seja tão difícil / Por se ter de aprender a explorar e a vigarizar?” (trad. de Xxxxx Xxxxxxxx, Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 457).
“O Governo como artista
1. Na construção de palácios e estádios / Gasta-se muito dinheiro. O governo assemelha-se muito a um jovem artista / Que não receia a fome se se trata / De tornar célebre o seu nome. É verdade / Que a fome, que o governo não receia. / É a fome dos outros, quer dizer / A do povo (trad. de Xxxxx Xxxxxxxx, Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 467).
“(...) 5. Em face da poderosa força do regime / Dos seus acampamentos e caves de tortura / Dos seus polícias bem nutridos / Dos seus juízes intimidados ou subornados / Dos seus ficheiros com as listas
XXXXXX usa a propaganda moderna. Os nazis tinham as suas próprias ideias, precisavam de técnicas e de especialistas técnicos426.
XXXXXXXX XXXXXXX é o homem ao qual alguns historiadores atribuem a decisão do genocídio hebraico e que, desde 1929, está à frente das SS.
As ideias sobre a criação biológica de uma nova raça derivam de LANZ VON LIEBENFELS.
O objectivo final de XXXXXX é o da criação de uma nova elite ariana e do seu domínio mundial, a nova humanidade.
XXXXXX e os seus homens de confiança vão decidir que a Solução Final para a Questão Judaica é a exterminação, numa Europa reestruturada de acordo com as definições raciais: não uma mera deportação da Alemanha, mas uma eliminação.
As etapas do programa são “cientificamente” fixadas.
“A consecução da finalidade mitificada do povo alemão, (...) determinada pela origem, o sangue, a hereditariedade e o passada, tornada destino a cumprir, não só autoriza como impõe ao Estado, centralizador e catalizador de tal destino, a eliminação sistemática de todos os elementos da população que constituem obstáculos à sua realização última”427, para a conservação da raça na sua pureza (XXXXXX).
3.2 XXXXXX XXXX000 divide em três políticas nos campos de concentração:
— entre 1933-1939: políticas de exclusão;
— entre 1939-1945: destruição dos inimigos nazis;
— entre 1942-1945: alguns campos mudam de finalidade, passando a fornecer mão-de-obra escrava à economia de guerra.
Visa-se a eliminação física dos seres cuja nocividade se funda na sua improdutividade, nos custos inúteis a suportar pelo erário público, nos riscos de contaminação da descendência, ou seja, os velhos, os doentes incuráveis, os portadores de anomalia psíquica grave e irreversível, ou de doença venérea, as vidas indignas de serem vividas.
3.3 Os passos iniciais
A primeira etapa do “complot” foi iniciada pela Alemanha em 1933, traduzindo- se concretamente em perseguições, deportações e assassínios.
Mediante as leis de excepção, caracterizadas pela falta de generalidade, os Judeus são progressivamente privados dos seus direitos.
Primeiro, houve que definir quem era judeu.
de suspeitos / Que enchem edifícios inteiros até ao telhado / Deveria supor-se que ele não teria que recear / A palavra franca dum homem simples.” (trad. de Xxxxx Xxxxxxxx, Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 462).
“Necessidade da propaganda
(...) 2. Quando o regime num só dia / Mandou abater mil pessoas, sem / Instrução nem sentença judicial, / O Ministro da Propaganda louvou a infinita paciência do Führer / Por ter esperado tanto com a matança / E ter cumulado os patifes de bens e postos de honra / Num discurso tão magistral que nesse dia / Não só os parentes das vítimas / Mas até os próprios carrascos choraram.” (trad. de Xxxxx Xxxxxxxx, Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 458).
426 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg.123.
427 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Apontamento..., pgs.88-89.
428 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 88.
Em Setembro de 1935, é publicado durante o congresso anual do partido nazi, o decreto intitulado “Para a protecção do sangue e da honra alemães”, determinando que são declaradas judias as pessoas que têm dois avós judeus, que são elas próprias de confissão judaica ou têm um cônjuge judeu, assim como todas as pessoas que tenham três avós judeus. São consideradas como “parcialmente judias” (Mischlinge ou mestiços) as pessoas que tenham um avô judeu, ou que tenham dois avós judeus que não sejam de confissão judaica e não tenham cônjuges judeus. São interditados os casamentos mistos de arianos e judeus (4 de Novembro de 933), o concubinato misto (23 de Novembro de 1933), as relações sexuais mistas.
A segregação exprime-se também mediante medidas discriminatórias no plano profissional: reforma de funcionários judeus (7 de Abril, 11 de Abril e 8 de Agosto de 1933), expulsão da função pública (30 de Junho de 1933), da imprensa e do espectáculo (4 de Outubro e 19 de Dezembro de 1933), da medicina (2 de Abril de 1933, 13 de
Dezembro de 1935 e 25 de Julho de 1938), da farmácia (26 de Março de 1933 e 3 de Abril de 1936), do comércio (18 de Março de 1936), da indústria (23 de Novembro de 1938), da função veterinária (3 de Abril de 1936) ou camponesa (3 de outubro e 29 de setembro de 1939) (com venda forçada dos bens dos camponeses judeus), do exército (26 de Junho de 1936)429.
É imposto um numerus clausus à entrada dos estudantes nas escolas e nas universidades (22 de Abril de 1933).
Os judeus têm então bilhetes de identidade especiais, passaportes especiais. Os bens judeus e os capitais judeus devem ser declarados; são primeiro congelados e depois liquidados (3 de Dezembro de 1938, 16 de Janeiro e 21 de Fevereiro de 1939); é-lhes aplicado um imposto especial de 1000 milhões de marcos por terem provocado “a justa cólera do povo alemão”.
3.4 Entre 1939 e 1941, é executado programa de XXXXX XXXXXX, de eutanásia para alemães com deficiências físicas ou mentais.
Os passos do programa consistem na elaboração de listas secretas, transporte secreto das vítimas dos autocarros fechados com as cortinas corridas, recepção, causando a morte, através de gás ou de injecções, mais de 80000 alemães com deficiências físicas ou mentais.
3.5 O extermínio dos judeus
“Os homens não sabem que tudo é possível”430. Assim sintetiza XXXXX XXXXXXX, sobrevivente do campo de Buchenwald, o horror do genocídio.
A singularidade do extermínio dos judeus é a de que visa um grupo específico de seres humanos, incluindo os velhos, as crianças, mesmo as de tenra idade. É um crime de massacre organizado.
Grupos humanos encurralados, viajavam, de um a dez dias, em condições miseráveis, sem água, comida ou instalações sanitárias; depois, separavam as pessoas
429 Informações recolhidas em XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 21.
430 XXXXX XXXXXXX, L’Univers concentrationnaire, 1946, pg. 81 (apud XXXXXX XXXXXX, Les Origines du totalitarisme (...), éd. établie sus la direction de Xxxxxx Xxxxxxxx, trad. de Xxxxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxx-Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxx, Gallimard, s.l., 2002, pg. 609).
individualmente das famílias e amigos, atirando-os para o meio de estranhos, despindo- os de todos os haveres, roupa, cabelo:
fome; mais tarde, direito à panela da sopa comunal.
Uma Carta de XXXXX XXXXXXXXX, rabi da Sinagoga de Grabow, em Lodz, em 19 de Janeiro de 1942, refere:
“Infelizmente, para nosso maior infortúnio, sabemos já tudo o que se passa. Falei com uma testemunha que escapou. Ela contou-me tudo. Eles estão a ser exterminados, em Chelmno, próximo de Dombie, e são todos encerrados na floresta de Rzuszow. Os judeus são mortos de duas maneiras: por fuzilamento ou pelo gás. Isto acabou de acontecer a milhares de judeus de Lodz.
Não creias que isto é escrito por um louco.”.
Cerca de mais de meio milhão dos judeus polacos terá morrido dentro dos guetos, a maior parte de fome. Os fornecimentos de comida eram dolosamente inadequados.
3.5.1 Os campos de concentração e os campos de extermínio
Os campos em análise são, na expressão de XXXXXX XXXXXX000, as “fábricas da morte”.
Logo em 20 de Março de 1933, abre o campo de Dachau.
Foram construídas fábricas com o único fim de exterminar judeus pelo gás, nomeadamente em Chelmno, em Balzec e em Sobidór. São ao todo doze campos de concentração e seis campos de extermínio. Estes são uma inovação nas guerras contemporâneas: não se trata de campos de prisioneiros de guerra ou de campos de represálias, mas de campos que permitem reduzir seres humanos à escravidão, de os explorar antes de os destruir432.
Ao passo que os campos de concentração são “campos de morte lenta”, nos campos de extermínio, a morte é imediata.
Em Auschwitz, o portão de entrada tem a seguinte inscrição gravada “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”) (tal como noutros campos, como Flossembürg e Sachsenhasen)433.
XXXXXXX XXXXX, que faz toda a sua carreira nos campos de concentração, toma o comando do pequeno campo de Auschwitz; constrói a sua fábrica em Auschwitz-Birkenau, como complemento de Auschwitz I. Irá transformá-lo num campo mais eficiente de todos os campos da morte.
Auschwitz tem um vasto complexo concentracionário:
— Auschwitz I, o campo central (Stammlager), campo de concentração;
— Auschwitz II-Birkenau, o campo de extermínio (Vernichtunglager);
— Auschwitz III, o campo de trabalho.
Existe uma selecção imediata à chegada de um comboio; separam os maridos (e os filhos) das mulheres; existe um selecção dos médicos SS dos aptos para o trabalho; alguns, em Auschwitz II-Birkenau, como mulheres com crianças pequenas, homens de aparência doentia ou delicada, são directamente conduzidos para as câmaras de gás.
431 Compreensão..., pg. 119.
432 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 409.
433 No campo de Buchenwald, no pórtico de ferro forjado da entrada do campo, constava a inscrição “Jedem des seine” (“A cada um o seu dever”).
Constitui uma nota relevante o isolamento absurdo que separa os campos do mundo exterior, como se os seus ocupantes já não fizessem parte do mundo dos vivos434, dificilmente comparável com o isolamento das prisões, dos guetos ou dos campos de trabalho forçados435.
A partir do momento em que um indivíduo era detido, considerava-se que ninguém mais no exterior ouvira falar dele: como que desaparecera da face da terra. Eram dadas ordens proibindo que fossem fornecidas informações sobre o local de detenção sobre os prisioneiros; os terceiros deveriam ser deixados à incerteza quanto ao destino; as famílias não podiam ser informadas. Todos os documentos de identificação — se existissem — são destruídos.
Em Dachau, os deportados ordinários têm de usar tamancos; têm o crânio rapado; as categorias superiores podem usar sapatos de cabedal e cabelo comprido436.
Dentro dos campos, é bem clara a distinção entre “guarda” e “prisioneiro”: os judeus são, para os nazis, “os inimigos por trás do arame”, num ódio activo e no desejo de os degradar.
Os oficiais superiores falavam só uma vez e em voz baixa; ao passo que o resto das patentes alemãs e os seus imitadores “Kapos” gritavam, falavam alto ou ladravam as suas ordens. O assunto não era a inteligibilidade. Muitos dos seus ouvintes não compreendiam o alemão abastardado dos campos, muito menos esta gritaria, que inspirava o terror.
Muitos comentadores notam que, para assassinar as suas vítimas, os nazis tiveram primeiro que assassinar a língua alemã, associada como estava à alta cultura, ao racionalismo e ao pensamento filosófico. Uma nova forma degradada de alemão veio a aparecer primeiro na própria Alemanha, depois nos campos, onde encontrou a sua expressão mais brutal.
Os detidos não eram homens, mas “Häftlinge” (prisioneiros); quando comiam, o verbo era “fressen” (o verbo “comer”, usado para os animais); os cadáveres eram “Figuren”437.
XXXXX XXXX refere:
“Eles levar-nos-ão até o nosso nome: e se queremos conservá-lo, deveremos encontrar em nós a força para o fazer, para que além do nosso nome, algo de nós, do que nós éramos, subsista.”
XXXXX XXXX foi dos poucos que aguentou a sua integridade, pelos seus hábitos de ver, analisar, identificar — por ser um fiel químico, devido ao treino científico.
Existem marginalmente casos de resistência, nomeadamente em algumas fábricas, produzindo peças defeituosas. A mais viável e efectiva resistência ocorre na mente, com a determinação, não para aumentar o desespero, mas para sobreviver438.
3.5.2 A “vida” quotidiana
434 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg. 155.
435 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg.156.
436 Os SS distribuem com parcimónia uma carta de cabelos (XXXXXX XXXX, O Libro da Deportação..., pg. 99).
437 Já anteriormente a 1939, no campo de Buchenwald, os SS designam os deportados por “Kopf” (cabeças) ou “Stück” (pedaços).
438 CLENDINNEN, Um Olhar..., pg. 77.
O programa diário dos deportados em Dachau e em Buchenwald consistia em despertar às 4 horas; neste último campo, o despertar é feito com os berros e chibatadas dos “Kapos”439 (em Flossembürg, às 4h30, o vigilante da noite, entrando no dormitório grita “Kaffe-holer, raus!”), tendo o tempo cronometrado até à hora de deitar, às 21 horas.
A arbitrariedade não é acidental, mas desenhada para destruir o ser privado e social. Mesmo a malícia trivial, como o espalhar de um boato falso, é desenhada para aumentar a angústia e exaurir as mentes ainda capazes de esperança440.
O prazer de manipular as vítimas psicologicamente, ao mesmo tempo que lhes negavam a humanidade.
“Aqui não há porquês” (“Hier is keine Warum”).
O suicídio podia ser negado. Aos guardas tinha sido ordenado que atirassem a matar sobre qualquer prisioneiro que corresse para a cerca electrificada antes que pudesse tocar nos fios441.
Uma infracção mínima poderia fazer privar da magra ração442. As camas são nichos de andares.
3.5.2.1 O “muçulmanismo”
O “muçulmanismo” constituía, em Auschwitz, a última forma de subalimentação, aquela que precedia a morte. Na descrição de um médico, XXXXXX, no julgamento de XXXXXXXX, “Os movimentos tornavam-se lentos. os rostos adquiriam um aspecto de máscara, os reflexos já não funcionavam, faziam as necessidades sem se dar conta. Nem mesmo se voltavam na cama por vontade própria. Jaziam sem se mexerem e assim transformavam-se em muçulmanos.”; ficava parecido com um muçulmano em oração. “(...) eram simplesmente esqueletos de rostos cinzentos, porque tinham perdido o equilíbrio.” (como se recordou no julgamento de XXXXXXXX)443. Um murro de um SS ou de um vigilante ou uma cacetada na cabeça bastavam para acabar com ele, segundo o relato de XXXXX XXXX.
Os prisioneiros eram amontoados à noite em barracões (em Gross-Rosen, caberiam apenas 300 pessoas; foram amontoados 1300 e até 1500444. A subalimentação sistemática esgota os organismos, a farda em farrapos; as intempéries, as doenças, a falta de sono... É um mundo que destrói as personalidades. As referências morais desaparecem. O medo é a companhia omnipresente do deportado445.
O assassínio é praticado sem escrúpulos pelos SS, munidos de bastões, pretendendo abater com duas ou três pancadas446. Certas execuções são públicas.
439 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 83.
440 CLENDINNEN, Um Olhar..., pg. 60.
441 CLENDINNEN, Um Olhar..., pg. 77.
442 Além das torturas concentracionárias, havia sevícias muito cruéis (a permanência num quarto fechado, sem se poder sentar); as bastonadas, em que o homem devia contar os golpes em voz alta e, se não conseguisse fazê-lo ou se enganasse, recomeçavam tudo do zero (XXXXXX XXXX, O Libro da Deportação..., pg. 101); a pancada com que eram vexados (por exemplo, em Gross-Rosen, um deportado, XXXX XXXXX, refere que ficou com cinco costelas partidas por não ter corrido suficientemente depressa para a faxina do café (XXXXXX XXXX, O Libro da Deportação..., pg. 145).
443 XXXXXX XXXXXX et al., Os Criminosos de Guerra..., pgs. 152-153.
444 XXXXXX XXXX, O Libro da Deportação..., pg. 146. 445 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 410. 446 XXXXXX XXXX, O Libro da Deportação..., pg. 148.
3.5.2.2 No Leste, os fuzilamentos eram um segredo conhecido; mas os responsáveis nazis pretendiam ocultar os centros de extermínio e as câmaras de gás.
Em Auschwitz-Birkenau, foi usado o ácido cianídrico, Zyklon-B447. O primeiro gaseamento tem lugar em 3 de Setembro de 1941.
As casas dos Bunkers 1 e 2 não tinham janelas, contrastando com portas estranhamente robustas.
É particularmente chocante o procedimento de condução para as câmaras de gás: Os SS estavam mais afáveis e corteses, conduzindo as vítimas sem gritos, incitamentos, armas, empurrados para a frente, sem palavras ofensivas. O cenário continha de vestuários, com cabides numerados para pendurar a roupa. “Lembrem-se do vosso número”; havia sinais em várias línguas avisando os benefícios da higiene. No tecto, podiam ver-se saídas dos chuveiros, que estavam cimentadas e nunca distribuíam
água.
Já sem roupa, os guardas empurravam os que estavam ainda do lado de fora; as portas eram fechadas hermeticamente448.
Depois dos quinze minutos necessários para o «Zyklon B» actuar nas câmaras de morte, decorriam ainda cerca de trinta minutos antes de as portas serem abertas.
Os corpos estavam amontoados, apertados uns contra os outros; vinha o pânico, ficando os mais fortes em cima, esmagando os outros; havia a tentação de correr para a porta. Depois vinha a morte.
Os cabelos da mulheres eram então cortados e arrancados os dentes de ouro dos cadáveres, que só depois eram levados para os fornos449.
Os corpos eram depois removidos, para dar lugar à chacina seguinte.
Depois, cuidava-se da destruição física de todas as evidências, com o crematório de que Auschwitz sempre teve. Existiam em Auschwitz quinze fornos crematórios que funcionavam a pleno rendimento e podiam incinerar até 10 000 corpos por dia.
Assim, existe um problema de prova, na documentação e na precisão do número de vítimas.
3.5.2.3 As tarefas eram efectuadas não sem auxílio de prisioneiros judeus. Sonderkommando, o Esquadrão Especial em Auschwitz, é o nome dado a um grupo de prisioneiros, quase todos judeus, que fornecia mão-de-obra para manter a funcionar as câmaras de gás ou arrastando-as para as valas de execução, para posterior execução.
A maior parte do trabalho em Auschwitz, incluindo a coerção, o castigo dos prisioneiros e o desvio ou a retenção das rações de fome, era efectuado por prisioneiros. Em Treblinka, o trabalho era feito por milhares de judeus de várias nacionalidades, sob a direcção de oitenta guardas ucranianos e quarenta SS, dos quais
apenas vinte estavam de serviço a qualquer hora.
Os homens eram escolhidos pelo seu aspecto físico ou por qualquer pequena infracção disciplinar.
Era um “acordo profano”: comida e cessação da pancadaria em troca de um extenuante trabalho degradante450. XXXXX XXXX chama-lhes os “corvos dos crematórios”.
Os componentes do “Sonderkommando” não estavam autorizados a contactar com o resto do grupo. Estavam também condenados à morte: a prática dos SS era matar
447 O monóxido de carbono era usado em Treblinka.
448 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 314.
449 XXXXXX XXXXXX et al., Os Criminosos de Guerra..., pg. 151.
450 CLENDINNEN, Um Olhar..., pg. 89.
e substituir todos os membros de um esquadrão ao fim de alguns meses, para manter o segredo; era regra da SS executar os homens da Brigadas Especiais. Poucos sobreviveram: dois, quatro, cinquenta, sessenta de mil.
3.5.2.3 Na Primavera de 1944, Auschwitz atinge o seu zénite, com a entrada e saída de comboios entre o campo auxiliar de Birkenau e a Hungria. Os quatro crematórios trabalham sobre pressão; rapidamente os fornos ficam inutilizáveis devido ao uso excessivo e contínuo que lhes era dado; apenas o crematório 3 continua a funcionar451. Os gaseamentos ocorrem a um ritmo superior.
Este período de extermínio intensivo permite aos SS gasear, a partir de 16 de Maio de 1944, a maioria dos 438 000 judeus arrebanhados na Hungria, que haviam chegado em 148 comboios.
A maioria dos deportados não entra no campo e é conduzida directamente para a câmara de gás. Alguns detidos são enviados para outros campos.
O último comboio chega ao campo em 3 de Novembro.
Em 26 de Novembro de 1944, XXXXXXX ordena a destruição das câmaras de gás e dos crematórios, esperando dissimular as exterminações massivas. Apenas o crematório 5 continua a funcionar até ao fim. Em 20 de Janeiro de 1945, os alemães dinamitam-no antes de partirem.
A última execução ocorre em 6 de Janeiro.
São queimados todos os arquivos e, em primeiro lugar, os registos do serviço de entradas (que teriam permitido descobrir a dimensão do massacre).
Em 17 de Janeiro, começa a evacuação geral para outros campos. As tropas soviéticas chegam em 25 de Janeiro.
3.7 Reflexão
Os observadores manifestam uma incompreensão aterrada.
O princípio nihilista do “tudo é permitido” é substituído por “tudo é possível”, segundo XXXXXX XXXXXX.
“Era realmente como se o abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que tudo o resto acabaria por se poder arranjar (...). Mas aquilo, não. Era uma coisa que não devia ter acontecido nunca. (...) Auschwitz não devia ter acontecido. Passou-se em Auschwitz qualquer coisa com que continuamos a não poder reconciliar- nos. Nenhum de nós.”452.
Auschwitz é considerado o mais gigantesco empreendimento criminoso da História.
Segundo XXXXXXXX, em Auschwitz tocou-se em algo que representa a camada mais funda da solidariedade entre todos os que têm face humana; Auschwitz mudou o fundamento para a continuidade das condições de vida na História. Auschwitz é uma palavra que não concerne apenas ao mundo hebraico ou à sua história política, nem muito menos à história de um povo (ou dois), mas põe toda a ciência do homem, e o direito nesta, em face de um facto de importância essencial para a compreensão do próprio objecto. Auschwitz não é um facto histórico como tantos outros, mas um evento da autoconsciência humana, uma sombra que pesa sobre a consideração que o homem pode ter de si próprio (XXXXXXX XXXXXXXXXXX)453.
451 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 318.
452 XXXXXX XXXXXX, Compreensão, pg. 28.
000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, Xxxxxxx, Xxxxx, 0000, pg. 142.
Sobressai irrealidade que preside à experiência454, a lógica demente.
Estes tenebrosos matadouros humanos são o “inferno organizado”, no sentido mais literal455: a vida é minuciosamente e sistematicamente organizada em vista dos maiores tormentos possíveis. As referências morais desaparecem. O medo é companhia omnipresente456. Não existe o homem, mas o número.
Segundo XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, o conceito de homem na sua irredutível humanidade, cede passo à ideia de raça e às exigências da sua conservação extrapoladas dos processos naturais de selecção das espécies.
O homem é apenas corpo, veículo enigmático, “fatalidade biológica”. No campo de extermínio, a vida não possui valor em si mesma.
XXXX XXXXXX, Presidente da Comissão das Nações Unidas para os crimes de guerra, considera que foi um retrocesso civilizacional, uma reminiscência do tempo da barbárie457.
3.7.1 Sistema totalitário
Na perspectiva de XXXXXX XXXXXXXX, o extermínio nazi articula-se não só com um sentido bio-político, mas também como mecanismo anátomo-político, como forma de regular o tipo, as formas e os ritmos dos movimentos de cada corpo, findando com a apropriação autónoma do corpo pelo sujeito.
Impressiona o absurdo ideológico, o aspecto mecânico da execução e o programa minucioso, o cientificismo utilizado458.
Os campos de concentração totalitários aumentam em número à medida que a oposição política diminuía (os campos de concentração não são invenção dos movimentos totalitários459).
São “a sociedade mais totalitária jamais realizada”460, sendo o ideal social exemplar da dominação total em geral461; a mais central e importante instituição do poder de organização totalitária462.
É de salientar a insistência no segredo: a existência de centros de extermínio e o uso de câmaras de gás eram segredos rigorosamente guardados.
3.7.2 A ausência de necessidade militar
Na perspectiva de XXXXXX XXXXXX, o genocídio foi praticado sem necessidade militar. Pelo contrário, sabia-se que, em período crítico de mão-de-obra, se eliminava uma parte considerável de trabalhadores.
As outras medidas contra os judeus podiam ter algum sentido e beneficiavam de uma maneira ou de outra os seus autores; as câmaras de gás não beneficiavam ninguém463.
454 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pgs. 157-158.
455 XXXXXX XXXXXX, Les Origines du totalitarisme, pg. 983.
456 XXXXXX XXXX, O Livro da Deportação..., pg. 410.
457 Apud XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Apontamento..., pg. 87.
458 As SS sofreram também uma restrição, tendo de se limitar a uma quota determinada de morte (XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg. 154).
459 XXXXXX XXXXXX, Les Origines du totalitarisme, pg. 786.
460 XXXXX XXXXXXX apud XXXXXX XXXXXX, Les Origines du totalitarisme, pg. 783.
461 XXXXXX XXXXXX, Les Origines du totalitarisme, pg. 783.
462 XXXXXX XXXXXX, Les Origines du totalitarisme, pgs. 785,787.
463 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg. 151.
As deportações, durante um período de penúria aguda de comboios, o estabelecimento de fábricas dispendiosas, o recurso a mão-de-obra, em detrimento do esforço bélico, o efeito desmoralizador de tais medidas sobre as tropas alemãs, bem como sobre as populações dos territórios ocupados — tudo isso intervinha de maneira desastrosa na condução da guerra na frente de Leste464.
O gabinete de XXXXXXX emitia sem parar directivas fazendo saber aos comandos militares e aos responsáveis da hierarquia nazi que nenhuma consideração económica ou militar devia entravar o programa de extermínio465 (extermínio de seres humanos que, para todos os fins úteis, já são “mortos”).
3.7.3 Quando os resistentes são os culpados, ocorrem os processos de transferência de culpa. A estratégia do nazismo foi a do uso da responsabilidade colectiva, uma das formas mais primitivas de sanção (PIAGET); os processos de individualização são relativamente recentes, como demonstrou XXXXXX XXXXXXXX.
As práticas genocidas não culminam com a sua realização material (o aniquilamento), mas realizam-se no âmbito simbólico e ideológico. Não resulta suficiente para os fins genocidas eliminar materialmente (aniquilar), mas é também importante fechar os tipos de relações sociais que os corpos encarnavam, gerando outros modos de articulação social entre os homens466.
A negação da identidade das vítimas inculca um vazio, que justificaria a necessidade da sua perseguição467.
A construção da negatividade de certos grupos vincula-se com a sua inadmissibilidade para uma determinada ordem social468. Há que desmontar esta construção negativa e recuperar a identidade social das vítimas469.
3.7.4 Auschwitz é um evento bivalente. Mostra em que é que não se deveria ter acontecido, segundo o que representamos de ser, mas mostra que aconteceu470.
Auschwitz tem implicações nas concepções dos direitos fundamentais. Como explica XXXXXXX XXXXXXXXXXX, qualquer grande concepção constitucional pressupõe de facto uma determinada «visão do homem» (o Menschenbild de que fala a literatura jurídica alemã). Isto vale também para os direitos. Através da construção desta visão, qualquer ciência do direito constitucional entra em sintonia com as características espirituais gerais da sua época. Poder-se-á dizer que talvez a imagem do homem que a ciência constitucional faz sua é o ponto de contacto mais determinante entre o direito em geral e o clima cultural471.
Será que são possíveis os direitos, que são a coroação do valor do homem472?
O argumento irrefutável decisivo contra as visões acriticamente optimistas são as grandes tragédias de que o homem e apenas o homem com a sua livre vontade deu causa. Esta tragédia, no nosso século, compendia-se em Auschwitz.
Devemos ver a outra parte do ensinamento: o erro de querer fundar sobre uma acrítica ideia ética positiva do homem o reconhecimento dos direitos que constituem a armadura do próprio «domínio da sua vontade»473. A situação hodierna dos direitos
464 XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg. 151.
465 Apud XXXXXX XXXXXX, Compreensão..., pg. 151.
466 XXXXXX XXXXXXXXXX, Seis estudios sobre genocidio. Analisis de las relaciones sociales: otrdad, exlcusión y exterminio, Eudeba, Buenos Aires, 2000, pg. 113.
467 XXXXXX XXXXXXXXXX, Seis estudios sobre genocidio..., pg. 117. 468 XXXXXX XXXXXXXXXX, Seis estudios sobre genocidio..., pg. 118. 469 XXXXXX XXXXXXXXXX, Seis estudios sobre genocidio..., pg. 118. 470 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Il diritto mite, pg. 142.
000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 141. 000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 142. 000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 142.
humanos deve ser avaliada, enfim, no quadro de uma dúvida acerca do fundamento de todas as teorias acríticas dos direitos do homem, pelo menos daquelas em função dos direitos-vontade. Este é um ponto que qualquer teoria consciente das suas bases não se pode acantonar e deve ser considerada fora do apriorismo ideológico474.
Em face de tudo o que não podemos fazer menos de desconfiados, não para negar os direitos, mas para procurar uma defesa em relação a aspectos mais agressivos. Em última análise, os princípios objectivos de justiça servem este escopo. Eles constringem a vontade exigente de realização, seja essa individual ou colectiva, a confrontar-se, a moderar-se, até a ceder: em todo o caso para aceitar não ser a exclusiva força constitutiva do direito e de tornar-se essa mesma objecto de um possível juízo de validade475.
3.7.5 Se são avançadas interrogações acerca da possibilidade para o homem se conservar a estima de si mesmo e assim é levantada a pergunta de se pode também crer na sua qualidade mais propriamente humana476, será que Auschwitz colocará em causa a crença em Deus?
3.7.5.1 Numa primeira opinião, é de considerar “morta a ideia de um Deus bom, omnipotente e ao menos parcialmente inteligível”, destruída a mesma ideia do homem e do seu valor. E colocar em discussão Deus não pode deixar indemne o homem, e vice-versa, segundo o que impõem as palavras do Deus bíblico: «façamos o homem à nossa imagem e semelhança» (Gen., I, 26)477.
3.7.5.2 Com o devido respeito, não concordamos.
Como refere o Eclesiástico, os pecados são do homem e não de Deus:
“Não digas: «Foi o Senhor que me fez pecar», / porque Ele não faz aquilo que detesta. / Não digas: «Foi Ele quem me seduziu», / porque Ele não necessita dos pecadores. / O Senhor aborrece toda a abominação, / e os que o temem não se entregam a tais coisas. / Desde o princípio, Ele criou o homem, / e entregou-o ao seu próprio juízo. / Se quiseres, observarás os mandamentos; / ser-lhes fiel será questão da tua boa vontade. / Ele pôs diante de ti o fogo e a água; / estende a mão para o que quiseres. / Diante do homem estão a vida e a morte; / o que ele escolher, isso lhe será dado, / pois é grande a sabedoria do Senhor. / Ele é forte e poderoso e vê todas as coisas. / Os olhos do Senhor estão sobre os que o temem, / Ele conhece as acções de cada homem. / A ninguém Ele deu ordem para fazer o mal, / e a ninguém deu permissão de pecar” (Eclesiástico, 15: 11-20).
3.7.6 Devemos também lembrar o silêncio daqueles que viveram, mas não falaram478.
“Senti-me mais perto dos mortos que dos vivos, senti-me culpado por ser um homem, porque os homens haviam construído Auschwitz e Auschwitz engoliu milhões de seres humanos.” (XXXXX XXXX).
3.7.6.1 A poeta XXXXX XXXXX descreve em vários poemas o sentimento dos sobreviventes. O poema “Oh as chaminés”, com epígrafe do livro de JOB479, refere:
“OH AS CHAMINÉS / Sobre as moradas da morte engenhosamente inventadas,
/ Quando o corpo de Israel desfeito em fumo partiu / Pelo ar — / Como limpa-chaminés uma estrela o recebeu / Que se fez negra / OU era um raio de sol? // Oh as chaminés! / Vias da liberdade para o pó de Xxxxxxxx e de Job — / Quem vos inventou e compôs
000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 140. 000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 143. 000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 142. 000 XXXXXXX XXXXXXXXXXX, Xx diritto mite, pg. 142. 478 CLENDINNEN, Um Olhar..., pg. 42.
479 “E quando esta minha pelo estiver desfeita, / eu verei Deus sem a minha carne.” (Job).