program contracts for rebalancing in the light of Law no. 14,026/2020 and Decree no. 10,710/2021

A extensão dos contratos de programa de saneamento para reequilíbrio à luz da Lei

nº 14.026/2020 e do Decreto nº 10.710/2021*

The extension of sanitation

program contracts for rebalancing in the light of Law no. 14,026/2020 and Decree no. 10,710/2021

Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx**

RESUMO

O presente artigo busca avaliar a juridicidade da extensão de prazo como forma regular de recomposição do equilíbrio econômico­financeiro dos contratos de programa à luz do novo marco legal do saneamento básico.

* Artigo recebido em 26 de agosto de 2022 e aprovado em 29 de agosto de 2022. DOI: xxxxx://xxx. org/10.12660/rda.v281.2022.88313.

** Xxxxxxxxx xxxxxxx xx xxxxxxx xxxxxxxxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx xx Xxxxxx xx Xxx xx Xxxxxxx (Xxxx). Professor do Mestrado em Regulação e Concorrência da Universidade Xxxxxxx Xxxxxx (Ucam). Doutor em direito do estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em direito público pela Uerj. Procurador do estado do Rio de Janeiro. Árbitro advogado. E­mail: xxxxxxx@xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx.

Nesse objetivo, examina­se o tratamento conferido pela Lei nº 14.026/2020 àqueles instrumentos de delegação, destacando a manutenção de sua higidez e a preservação das suas inerentes garantias, inclusive econômico-

­financeiras. Em seguida, o trabalho analisa os diferentes mecanismos de preservação do equilíbrio contratual, dando especial atenção à prorrogação para fins de reequilíbrio, mecanismo de recomposição que não se confun­ de com a prorrogação ordinária por juízo de conveniência e oportunidade da administração pública. À luz dessas premissas, demonstra­se de que maneira a extensão de prazo dos contratos de programa para fins de reequilíbrio encontra abrigo não apenas na legislação geral, como também não contraria a legislação específica do setor de saneamento básico, especialmente a Lei nº 14.026/2020 e o Decreto nº 10.710/2021.

PALAVRAS-CHAVE

saneamento básico — contratos de programa — prorrogação para fins de reequilíbrio

ABSTRACT

This article aims to evaluate the legality of the term extension as a regular way of restoring the economic­financial balance of program contracts in the light of the new legal framework of basic sanitation. In this objective, we examine the main novelties of Law no. 14,026/2020 and the treatment given by it to those delegation instruments, highlighting the preservation of their inherent guarantees, including the economic and financial ones. Then, the work analyzes the different mechanisms of preservation of contractual balance, giving special attention to the extension of duration for the purpose of rebalancing, a recomposition mechanism that is not confused with the ordinary extension by judgment of convenience and opportunity of the Public Administration. Considering these assumptions, we detail how the extension of the length of program contracts for rebalancing purposes finds shelter not only in general legislation, but also does not contradict specific legislation for the basic sanitation sector, especially Law no. 14,026/2020 and Decree no. 10,710/2021.

KEYWORDS

sanitation — program contracts — extension for rebalancing purposes

1. Introdução

Instituído pela Lei nº 14.026/2020, o novo marco legal do saneamento básico alterou importantes aspectos da regulação do setor de distribuição de água e esgotamento sanitário. Entre as mudanças promovidas, o novo marco legal deu nova redação à Lei nº 11.107/2005, para, em seus termos, “vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal”, permitindo apenas, doravante, concessões como forma de delegação daquele serviço.

Com efeito, de acordo com a nova redação dada ao art. 10 da Lei

nº 11.445/2007:

a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.

A despeito da redação utilizada, a Lei nº 14.026/2020 reiterou a validade e eficácia dos contratos de programa regularmente celebrados sem licitação, nos termos da Lei nº 11.107/2005 (art. 2º, § 1º, III), e não estabeleceu qualquer limitação aos direitos das empresas estatais cuja prestação de serviços já houvesse sido formalizada por meio desses instrumentos. Ao contrário, asseverou expressamente a higidez dos contratos de programa já vigentes até a sua regular extinção, em consonância inclusive com a proteção cons­ titucional conferida ao ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, CF), vedando esse instrumento apenas para novas relações jurídicas no setor.

Da mesma maneira, a Lei nº 14.026/2020 também trouxe outras relevantes inovações, ao, por exemplo, adotar como princípio a regionalização dos serviços de saneamento e, principalmente, ao definir a obrigatoriedade de os contratos, em vigor ou a serem celebrados, preverem ambiciosas metas de universalização dos serviços prestados, sendo essa última a grande novi- dade do novo marco e seu principal vetor hermenêutico.

Conforme analisaremos, contudo, a efetiva implementação dessas novas metas de universalização é tarefa que exigirá profundos investimentos por parte dos prestadores do serviço, gerando, naturalmente, intensas repercussões sobre o equilíbrio econômico­financeiro dos contratos de prestação celebrados antes da edição da Lei nº 14.026/2020.

Nesse contexto, e tendo sempre em vista que as possibilidades, direitos e obrigações dos contratos de programa em vigor permanecem plenamente vigentes e eficazes, passaremos a examinar a necessidade de se garantir adequadamente o equilíbrio econômico­financeiro das relações formalizadas por esses instrumentos, em razão, por exemplo, das novas metas determinadas pela lei, analisando, mais especificamente, a viabilidade jurídica da extensão de prazo dos contratos de programa como forma de recomposição da equação econômico­financeira.

2. Principais instrumentos de delegação de serviços públicos de saneamento básico

A diversificação dos serviços públicos ao longo da história fez com que o Estado fosse criando novas formas organizativas que pudessem desenvolver essas atividades o mais eficientemente possível, mantida sempre a sua vin­ culação orgânica com o Estado.

Além da prestação centralizada, que ocorre quando o próprio ente da Federação titular da atividade é o responsável por prestá-la, os serviços públicos podem ser também prestados de forma descentralizada.

A prestação descentralizada pode se dar por lei (para entidade da admi- nistração indireta do ente federativo titular do serviço) ou por contrato (para particular ou até mesmo para entidade da administração pública indireta), mas por contrato, precedido da respectiva licitação ou dos procedimentos de dispensa ou inexigibilidade de licitação apropriados.

Note-se, não há identidade absoluta entre delegação legal e entidades da administração indireta. Sempre que há delegação legal, há entidades da administração indireta responsáveis pelo serviço; mas nem sempre as enti- dades da administração indireta recebem o serviço apenas por lei, muitas vezes celebrando contratos de delegação com esse objetivo. Isso pode se dar tanto em relação a entidades da administração indireta do mesmo ente federativo titular do serviço como para entidades da administração indireta de outros entes federativos. Para darmos exemplo de outro setor, há companhias estaduais de energia elétrica, como a Cemig, que são delegatárias deste serviço federal, e empresas federais, como a recém-desestatizada Eletrobras, que eram concessionárias da própria União, mas por contrato, não por lei.

No setor de distribuição de água e esgotamento sanitário, desde a criação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), em 1971, o serviço, de titularidade

municipal, foi prestado sobretudo por empresas públicas estaduais,1 sendo essa descentralização atualmente formalizada principalmente pelos chamados contratos de programa, instrumentos “intrinsecamente vinculados à gestão associada formalizada por meio de consórcio público ou convênio de cooperação”.2

Embora amplamente até então utilizados no setor de saneamento, a Lei nº 14.026/2020 buscou restringir a utilização dos contratos de programa, que possuíam autorização específica para serem celebrados sem licitação, impondo, para as novas delegações, os tradicionais contratos de concessão, celebrados mediante processo licitatório.

Todavia, dado ambos serem instrumentos de delegação contratual de serviços públicos, os paradigmas legais e doutrinários das concessões aplicam­se em tudo o que couber aos contratos de programa.

A Lei nº 11.107/2005, inclusive, em seu art. 13, § 1º, estabeleceu expressamente que “o contrato de programa deverá atender à legislação de concessões e permissões de serviços públicos”. De acordo com Xxxxxxxx Xxxxxx,

os contratos de prestação de serviços de saneamento (incluindo os que adotem o figurino do contrato de programa, até então admitido pela legislação, ou de contrato de concessão, precedido ou não de licitação) são espécies de contratos administrativos, compreendidos estes como gênero e, por isso, estão submetidos a firmes condicionantes legais.3

Sendo a teoria da garantia da equação econômico­financeira o núcleo da estrutura econômica das concessões de serviços públicos (investimento na infraestrutura — amortização e lucro mediante determinada equação

1 O objetivo principal do Planasa, à época, era justamente promover a criação de empresas públicas estaduais para o fornecimento de água e esgoto, encorajando as prefeituras a cele­ brarem contratos de concessão de longo prazo com essas empresas, em troca de investimentos a serem realizados pelo Banco Nacional de Habitação (BNH).

2 Conforme leciona Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, “não é incomum também a existência de vínculos contratuais entre prestadores e municípios, formalizados à luz de legislações passadas (eventualmente, antes mesmo da Constituição de 1988), que não se enquadrem nas categorias de contratos de programa ou de contratos de concessão precedidos de licitação (GUIMARÃES, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Apontamentos sobre o Decreto nº 10.710/2021 e a com­ provação da capacidade econômico­financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização. In: XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. O novo direito do saneamento básico. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 169).

3 XXXXXX, Xxxxxxxx. Condições de validade dos contratos de prestação de serviços públicos de saneamento. In: Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, O novo direito do saneamento básico, op. cit., p. 210.

econômico­financeira — reversão da infraestrutura para o concedente), natural que seja aplicada em todos os seus consectários às outras espécies contratuais de delegação, inclusive, por imposição do citado dispositivo de lei, aos contratos de programa.

Assim entendeu também o Supremo Tribunal Federal (STF) em caso envolvendo contrato de delegação de serviço de saneamento básico que, embora formalmente denominado de Contrato de Concessão, foi celebrado sem licitação entre o município de Itaju do Colônia e a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A. (Embasa).4

Na ocasião, após ter sido editada lei municipal que reduzia pela metade o patamar tarifário máximo outrora fixado, decidiu o STF que não seria dada ao município a prerrogativa de estipular normas dessa natureza,

ainda que no âmbito de sua competência, desconsiderando o ajuste por ele próprio firmado, sem que se estabeleçam as devidas análises quanto à possi­ bilidade de incidência desta lei nova no contrato em curso e, em sentido positivo, quanto à necessidade de reequilíbrio econômico­financeiro do contrato.

Xxxxxxxxxx das palavras do ministro Xxxx Xxx em decisão precedente,5 o

ministro relator, Xxxx Xxxxxxx, ainda destacou que:

[a] preservação da equação econômica possui estatura constitucional, por estar expressamente prevista na expressão “mantidas as condições efetivas da proposta” (art. 37, XXI). O dispositivo, que remete à lei específica, trata de toda a contratação pública. É uma inovação da Constituição Federal de 1988, que, assim, estende o reequilíbrio econômico­financeiro a todos os contratos administrativos (WALD, Xxxxxxx. O Direito da Regulação, os Contratos de Longo Prazo e o Equilíbrio Econômico­Financeiro, Direito Público, nº 8, Abr­­Maio­Jun, 2005 p. 120). A manutenção da equação proposta durante toda a vigência do pactuado decorre também dos postulados constitucionais da garantia da justa remuneração do capital do contratado e da proibição do confisco da propriedade. Os termos contratuais obrigam as partes nos limites do avençado. Por essa razão, a superveniência de fatos extraordinários, não previstos ou imprevisíveis, faculta à parte onerada rescindir o contrato, caso não seja restituído o equilíbrio econômico­financeiro original. É como determina a teoria da imprevisão, que, com esteio na cláusula rebus sic stantibus, informa tanto os contratos privados quanto os públicos.

4 STF, AgRg na STP 111, Plenário, rel. min. Xxxx Xxxxxxx. julg. 13.9.2019.

5 XXX, XX 00000, dec. mon. min. Xxxx Xxx, julg. 3.8.2018. O ministro Xxxx Xxx também reiterou as considerações anteriormente transcritas em seu voto vencedor no AgRg no MS 35196, 1ª Turma, rel. min. Xxxx Xxx, julg. 12.11.2019.

O fato de os contratos de programa vincularem duas esferas estatais que atuam na busca de interesses públicos primários, inclusive, em nada afasta as conclusões anteriores. Afinal, conforme Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, o reconhecimento do auferimento do lucro pelas empresas estatais (inclusive as delegatárias de serviços públicos) também é importante para a concretização dos interesses primários.6 Ao Estado, mais que qualquer agente privado, não é dado desprezar oportunidades de lucro, pois é por meio da geração de recursos que as entidades estatais acessam os meios necessários ao cumprimento de suas tarefas constitucionais.

3. O advento do novo marco legal do saneamento e a proteção do ato jurídico perfeito

Embora, conforme adiantado, tenha a Lei nº 14.026/2020 impedido a celebração de novos contratos de programa no setor de saneamento, o novo marco legal não escamoteou as garantias legais e contratuais das relações já formalizadas. Ao revés, a respeito especificamente desse instrumento, estabeleceu que “os contratos de programa regulares vigentes permanecem em vigor até o advento do seu termo contratual”, asseverando a intangibilidade desses instrumentos e de suas inerentes garantias.

Nem poderia ser mesmo diferente, dada a proteção constitucional

conferida aos atos jurídicos perfeitos. Conforme já asseverou o STF,

a lei nova não pode reger os efeitos futuros gerados por contratos a ela anteriormente celebrados, sob pena de afetar a própria causa — ato ou fato ocorrido no passado — que lhes deu origem. Essa projeção retroativa da lei nova, mesmo tratando-se de retroatividade mínima, incide na vedação constitucional que protege a incolumidade do ato jurídico perfeito.7

Sendo os contratos de programa, portanto, instrumentos regulares, o novo marco legal, ao limitar a sua utilização, não modificou a sua disciplina, inclusive em relação a alterações contratuais e consequentes repercussões na manutenção da equação econômico­financeira da relação.

6 CÂMARA, Xxxxxxxx Xxxxxx. O lucro nas empresas estatais. Revista Brasileira de Direito Público, v. 37, p. 10, 2012.

7 STF, AI 251.533, rel. min. Xxxxx xx Xxxxx, julg. 25.10.1999.

Conforme afirma Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx, em dissertação específica

sobre o novo marco legal do saneamento básico,

se a prestação se dá mediante contrato de delegação ou cooperação, é preciso

observar os direitos e obrigações pactuados, ou mesmo o equilíbrio econômico­

­financeiro das avenças no formato aplicável para cada situação. Do contrário, quebra­se a segurança jurídica por descaracterizar o ato jurídico perfeito (cf. art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal), gerando­se enriquecimento sem causa, rompendo com a boa­fé e a confiança legítima.8

É sob esse prisma que devemos analisar as consequências intestinas aos contratos de programa da imposição das novas metas de universalização dos serviços, neles não previstas originariamente (nem em qualquer outra espécie contratual).

3.1 As novas metas de universalizaęão do saneamento

Ao incluir o art. 11­B na Lei nº 11.445/2007, o novo marco previu que “os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento” deveriam, todos eles, incorporar ambiciosas metas de universalização que garantissem, até o final de 2033, o atendimento de, no mínimo, 99% dos usuários do serviço.

Buscando compatibilizar esse objetivo com a disciplina dos contratos já em vigor, a Lei nº 14.026/2020 estabeleceu ainda um dever de revisão desses instrumentos para que as novas metas de universalização fossem também incluídas nos contratos vigentes, inclusive nos de programa.9

Com efeito, até em razão do princípio da manutenção dos negócios

jurídicos e para evitar vultosas indenizações por encerramento antecipado

8 XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. O regime jurídico da regulação econômica no setor de água e esgotamento sanitário sob a ótica do Novo Marco Regulatório. Dissertação (mestrado em direito)

— Programa de Estudos Pós­Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, São Paulo, 2022. x. 00.

0 Xxx xxxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, “é importante indicar que esse dever de adaptação alcança os instrumentos atualmente vigentes celebrados pelas estatais, ainda que eles não se qualifiquem como contratos de concessão. Isso deriva do fato de a validade destes no momento da alteração normativa ter sido expressamente ressalvada (cf. art. 110, § 3º, da Lei nº 11.445/2007)” (XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. Empresas estatais de saneamento básico, Novo Marco Legal e parcerias com a iniciativa privada. In: GUIMARÃES, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx de; XXXXXXX, Xxx Xxxxxxxx (Coord.). Novo Marco Legal do Saneamento. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 51).

dos contratos de delegação dos serviços de saneamento, a nova lei optou por manter os contratos vigentes. Em outras palavras, poderia, em tese, ter previsto a encampação mediante ampla indenização dos contratos vigentes e celebração apenas de novos contratos, já contendo as novas metas de universalização. Optou, porém, pelo contrário, por manter os contratos em vigor, mas determinar a revisão deles para que possam incluir as novas metas, dentro de uma recomposta equação econômico­financeira.

A efetiva universalização do serviço de saneamento básico, contudo, naturalmente exigirá intensos (e imprevistos) investimentos por parte dos prestadores do serviço.10 Nas palavras de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx,

a inclusão destas metas nos contratos vigentes, como é lógico supor, importa a assunção, pelos atuais prestadores, de novas obrigações de investimento, além de repercutir no provável encarecimento dos custos de operação. Este impacto na estrutura de custos dos contratos acarreta o rompimento do seu equilíbrio econômico­financeiro.11

Destaca­se que tal inovação se voltou tanto aos contratos de concessão como aos de qualquer outra espécie, inclusive os de programa. Como de todos esses delegatários serão exigidos aportes extraordinários para o cumprimento das novas metas de universalização, a todos deve ser igualmente garantido o correspondente direito ao reequilíbrio contratual, seja o prestador um concessionário privado ou uma empresa estatal estadual contratada por meio de contrato de programa.

Se as referidas metas de universalização sujeitam os prestadores, indistintamente, na mesma proporção e intensidade, a todos devem-se asse- gurar, também de forma indistinta, os mesmos mecanismos para a promoção do reequilíbrio de seus respectivos contratos, inclusive por força da garantia geral à incolumidade econômico­financeira que recai sobre todos os contratos administrativos e não somente sobre os de concessão.12

10 No mesmo sentido, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx de Vita e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx aduzem que “o salto de universalização imposto para pouco mais de dez anos exigirá aportes intensos de investimentos pelos atuais e futuros prestadores, com inúmeras implicações sobre a execução dos contratos em andamento e sobre a modelagem dos futuros contratos” (VITA, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx de; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Planejando concessões de saneamento básico: boas práticas na estruturação de projetos. In: Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx e Xxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, Novo Marco Legal do Saneamento, op. cit., p. 196).

11 Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Apontamentos sobre o Decreto nº 10.710/2021 e a comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização, op. cit., p. 171.

12 Afinal, conforme observa Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx, “sem esse tipo de garantia, haveria o risco de, nos anos finais de vigência do contrato, a delegatária cessar seus dispêndios em atualização

Adiante, analisaremos essa garantia e as diferentes formas de promovê-la.

4. O inafastável equilíbrio econômico-financeiro dos instrumentos de delegação de serviços públicos, inclusive os celebrados diretamente

Conforme já afirmamos em outra oportunidade,13 os contratos admi- nistrativos em geral — inclusive aqueles celebrados entre entes da adminis­ tração, com ou sem licitação — possuem uma salvaguarda contra a instabilidade baseada na incolumidade da equação econômico­financeira inicial do contrato, que deve ser mantida diante de quaisquer fatos, naturais ou humanos, que alterem os seus elementos econômicos.

A proteção do equilíbrio econômico­financeiro dos contratos adminis­ trativos possui esteio constitucional de longa data.14 Na atual Constituição, a garantia encontra­se insculpida mais precisamente na parte final do inciso XXI do art. 37 da Constituição (“mantidas as condições efetivas da proposta”) e

da infraestrutura utilizada. A paralização obedeceria a lógica econômica, pois obviamente ninguém assumiria o ônus de investir em bens reversíveis se não mais houvesse tempo para amortização. […] Contraria a realidade supor que tais investimentos possam ser exigidos da concessionária sem garantia de retorno. Quem, na prática, assumiria referido ônus? Que empresa aceitaria, como condição contratual, a obrigação de investir pesadamente em bens reversíveis quando, pelo prazo remanescente da concessão, não fosse mais viável amortizar esse investimento? Não seria razoável, do ponto de vista econômico, prever tal sistema” (XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Direito à indenização prévia na extinção da concessão pelo término do prazo contratual. In: XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Direito administrativo contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 298 (Coleção pareceres; v. 2)).

13 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx xx. Direito dos serviços públicos. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum,

2017. p. 479.

14 Conforme descreve historicamente Xxxxxxx Xxxx, “a Constituição Federal de 1967, sob a redação da Emenda nº 1/69, assegurava, nos contratos de concessão de serviços públicos, a manutenção do equilíbrio econômico e financeiro do pacto, por meio da fixação de tarifas reais, suficientes, inclusive, para a justa remuneração do capital e a expansão dos serviços (art. 167, II). O mesmo princípio, com maior abrangência, encontra­se esculpido no artigo 37, XXI, da nova Carta Política” (WALD, Xxxxxxx. O equilíbrio econômico e financeiro no direito brasileiro. Revista Justiça e Cidadania, ed. 161, 2014, meio digital). De acordo com Xxxx Xxxxxx, sob a égide da Constituição Federal de 1946: “A doutrina ou a jurisprudência nacionais não foram, ainda, mobilizadas para a exegese construtiva do preceito constitucional. Os comentadores à lei fundamental não vão além das apreciações gerais, na compreensível expectativa de que a lei ordinária especifique critérios e medidas sobre o regime dos serviços públicos concedidos. Decorre, no entanto, diretamente, da norma constitucional, a consagração inequívoca do princípio do equilíbrio financeiro da concessão de serviço público. (XXXXXX, Xxxx. O equilíbrio financeiro na concessão de serviço público. Revista de Direito Administrativo, s.l., v. 65, p. 1­25, 1961, p. 16­17).

no direito de propriedade inerente à iniciativa privada (arts. 5º, XXII, e 170, CF). Aludida proteção ao equilíbrio é também expressamente prevista em diversos dispositivos da Lei nº 8.666/1993, em especial no art. 65, II, “d”.15 No âmbito do serviço de saneamento básico especificamente, a própria Lei nº 14.026/2020, ao alterar a redação do art. 11 da Lei nº 11.445/2007, previu que “nos casos de serviços prestados mediante contratos de concessão ou de programa” as normas setoriais regulamentares deveriam prever “as con- dições de sustentabilidade e equilíbrio econômico­financeiro da prestação dos serviços, em regime de eficiência”.

Assim como qualquer contrato sinalagmático, inclusive os de direito privado,16 os contratos de programa pressupõem uma base econômica essen- cial que os define. Há prestações por parte do poder concedente, geralmente envolvendo a viabilização da exploração do serviço mediante o pagamento de tarifas pelos usuários, e contraprestações pelas empresas prestadoras do ser- viço, que, por exemplo, realizam investimentos, cumprem metas etc. A essa inafastável rede de prestações e contraprestações intrinsecamente relacio- nadas dá­se o nome de equação econômico­financeira do contrato.

Havendo qualquer alteração na proporção entre custos e remuneração, em prejuízo ou benefício a qualquer um dos contratantes, surge a necessidade do reequilíbrio econômico­financeiro da relação, para se manter aquela proporção, o que pode ser efetivado de diversas maneiras, conforme passamos a examinar.

15 O dispositivo prevê que os contratos podem ser alterados, por acordo das partes: “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico­financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”.

16 “Não se trata de um instituto jurídico caudatário, apenas, da publicatio dos serviços públicos à Francesa, mas concernente à teoria geral dos Contratos, uma vez que atrelado à ideia de comutatividade das prestações das partes” (XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx de. O equilíbrio econômico­financeiro nas concessões de rodovias. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, a. 15, n. 58, p. 199­239, abr./jun. 2017). Nesse sentido, leciona Xxxxxxx Xxxxx que “o princípio do equilíbrio econômico do contrato, ou do sinalagma, encontra­

­se presente no Código Civil primordialmente como fundamento de duas figuras, a lesão e a revisão ou resolução do contrato por excessiva onerosidade superveniente” (XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 48).

4.1 Mecanismos diversos de reequilíbrio

Como expõe Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx,

o reestabelecimento da equação econômico­financeira pode se fazer por múltiplas formas jurídicas e econômicas. Não importa o meio, o importante é que alcance a manutenção da proporção inicial entre custos e remuneração. A legislação nacional não restringe ou delimita as formas de recomposição (mediante, por exemplo, a revisão tarifária, a ampliação da contraprestação pública, a extensão do prazo de prestação de serviços etc.) ou os critérios e metodologias para isso (mediante, por exemplo, a utilização de fatores de cálculo para a definição de taxas de desconto quando a recomposição pressupuser a redefinição do fluxo de caixa do concessionário ou a projeção de um fluxo de caixa marginal), essas questões ficarão à conta da liberdade de estipulação contratual.17

Ora, todo o feixe de liberdade contratual (rectius, de faculdades contratuais) se insere naturalmente na relação jurídico-contratual, estando também protegido pela garantia constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito. Assim, se a CF e o próprio novo marco legal do saneamento protegem os contratos de programa em vigor, protegidas também estão as diversas formas de recomposição econômico-financeiras nele desde sempre inseridas e possibilitadas.

Entre todas essas metodologias de recomposição não há, obviamente, qualquer hierarquia. São inúmeras as formas que, no caso, a depender de avaliações técnicas, econômicas e políticas, poderiam ser escolhidas pelo poder concedente em comum acordo com o delegatário para reequilibrar as relações desbalanceadas.

No caso específico das recomposições decorrentes das novas metas de universalização do serviço público de distribuição de água e esgotamento sanitário, serão a necessidade específica de cada prestador, a capacidade financeira do município e, principalmente, a proteção dos interesses dos usuários que indicarão a melhor alternativa para que se promova o reequilíbrio devido.

A princípio, parece­nos difícil imaginar que os elevados investimentos em universalização pelos prestadores poderão ser facilmente compensados por meio de aportes financeiros diretos realizados pelos municípios dele­ gantes. À exceção talvez apenas das grandes capitais, os vultuosos valores

17 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. O equilíbrio econômico­financeiro nas concessões e PPPs: formação e metodologias para recomposição. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Tratado do equilíbrio econômico-financeiro. Belo Horizonte: Fórum: 2019. p. 110.

necessários para o alcance das metas previstas em lei serão um grande obstáculo ao reequilíbrio desses contratos por meio de indenização. De igual maneira, também não vislumbramos o aumento de tarifas como a solução mais adequada para a recomposição dos novos investimentos exigidos dos prestadores a título de universalização do serviço — tendo em vista, sobre- tudo, o princípio da modicidade tarifária.

Entre as formas tradicionais de recomposição, portanto, a extensão do prazo contratual revela­se, em tese, como a forma mais eficiente de reequilíbrio dos contratos de delegação do serviço público de saneamento básico, posto que, ao mesmo tempo que cumpre sua função principal de recompor a equação econômico­financeira, o faz sem onerar os usuários do serviço, o serviço em si ou o poder público.18

Passemos a examiná­la especificamente.

4.2 A extensão de prazo para fins de reequilíbrio

Conforme explicita a literatura,

em contratos administrativos complexos, que envolvem serviços/obras — notadamente àqueles firmados no âmbito de setores de infraestrutura — o prazo do contrato possui contornos próprios. Mais do que delimitar até quando o contrato irá viger entre as partes, afastando­se ajustes perpétuos, o tempo afigura­se como uma variável econômica desses ajustes.19

18 Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, comparando a prorrogação do ajuste a outras formas de reequilíbrio, ensina que “a elevação da tarifa atinge diretamente os usuários, eventualmente afastando­os do serviço prestado pelo concessionário, o que acabará por reduzir a receita da concessão, em um ciclo vicioso; a redução dos encargos afeta a qualidade do serviço ou a abrangência da utilidade que se buscava obter com o contrato de concessão; a compensação financeira, via indenização ou subsídio estatal, destina os sempre escassos recursos públicos ao concessionário. Daí que não se possa descartar a prorrogação do contrato de concessão como medida de reequilíbrio da equação econômico­financeira, ampliando o período no qual o concessionário auferirá receita com a prestação do serviço” (XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx de. Prorrogação de concessão de serviço público. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, a. 12, n. 46, p. 216, abr./jun. 2014).

19 XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx. Contratos administrativos complexos e de longo prazo: a prorrogação antecipada e a relicitação na teoria dos contratos públicos. Dissertação (mestrado) — Escola de Direito do Rio de Janeiro, Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, 2018. p. 148. De acordo com a autora: “A temporalidade, portanto, funciona como um elemento de estabilidade dessas relações complexas e mutáveis, como garantia de que não ocorrerão ‘rompimentos imotivados ou arbitrários’ no curso do ajuste. Tanto o Poder Público reconhece que, durante determinado período, a parte detém legítima expectativa sobre a previsão inicial de investimentos necessários, dos custos operacionais e financeiros e da projeção de receita, assim como o contratado tem ciência que é nesse lapso que sua proposta terá que se materializar em termos de entrega do objeto contratado, prestação do serviço acordado e efetivação da sua remuneração”.

Também no direito comparado, nas palavras de Xxxxx Xxxxxxxxx, “como regra geral, a duração das concessões [e demais delegações de serviço público] é fixada de forma a permitir ao delegatário a possibilidade de amortizar os seus investimentos e obter retorno do capital investido”.20

O prazo contratual é, portanto, importante variável econômico­finan­ ceira nos contratos de delegação de serviço público e vincula-se não só à amortização dos investimentos como também à própria rentabilidade do projeto.21 E é justamente em razão de sua importância econômica que a modificação do período de duração desses contratos se mostra um relevante mecanismo para reestabelecer o balanço econômico­financeiro originalmente acordado pelas partes em face de eventos imprevistos supervenientes capazes de desequilibrar a equação.

Examinando o tema, Xxxxxxx Xxxx’xxxxx Xxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx lecionam que, diante de causas de desequilíbrio imprevisíveis, como ocorre no caso das novas metas de universalização,

a preservação do prazo original não mais reflete a relação de proporcionali- dade de bônus e ônus distribuída a cada uma das partes, tampouco acomoda a equação econômico­financeira prevista em momento pretérito. Assim, esta equação precisa ser revisitada, alterando­se seus componentes para que o equi- líbrio então existente seja reestabilizado — e sendo o prazo importante elemento dessa equação, pode nele residir a alteração necessária que melhor acomoda os interesses particulares e públicos.22

20 XXXXXXXXX, Xxxxx. Le regime des biens dans les contrats de concession. Institute Management Delegué. Commission Juridique de l’Institut de la gestion déléguée, Paris, p. 30. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxx­xxx.xxx/xx­content/uploads/2020/12/19­IGD­Les­ Precis-1-V5.pdf. Acesso em: 9 nov. 2021. Tradução livre, grifos nossos. Nas palavras de Xxxxxx Xxxxx de Xxxxxxx, o poder concedente, “ao examinar o empreendimento que será delegado à iniciativa privada, estipulará um prazo que integre a equação econômico­financeira nesses ajustes, prazo esse suficiente para que o concessionário obtenha o retorno econômico projetado quando da apresentação de sua proposta na licitação. […] Daí por que tenho para mim que o prazo das concessões deve ser tratado como uma variável com características econômicas” (XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx de. As prorrogações e a relicitação previstas na Lei nº 13.448/2017: um novo regime jurídico de negociação para os contratos de longo prazo. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, a. 15, n. 59, p. 175­199, jul./set. 2017, p. 177).

21 Em análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) acerca do setor de rodovias, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx Xxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx explicam que o prazo está “relacionado com o volume de investimentos necessários, com a taxa de retorno do empreendimento e a demanda (fluxo de veículos) que participa do cálculo do tempo necessário para recuperar os investimentos iniciais do projeto (payback)” (XXXXXX XXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. A eficácia do Estado e as concessões rodoviárias no Brasil: preocupação com o valor do pedágio e sugestões para operacionalizar a modicidade das tarifas. Brasília: Xxxx, xxx. 2007. (Texto para Discussão nº 1.286). Disponível em: http:// xxxxxxxxxxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/00000/0000/0/XX_0000.xxx. Acesso em: 7 fev. 2020).

22 CANTO, Xxxxxxx Xxxx’xxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Prorrogações em contratos de

concessão. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Tratado do equilíbrio econômico-financeiro.

E devemos lembrar que a avaliação dessa “melhor acomodação de interesses privados e públicos” na gestão contratual incumbe primariamente ao titular do serviço, no caso do saneamento, aos municípios.

Independentemente da nomenclatura utilizada, contudo, é preciso ter em consideração que esse mecanismo de reequilíbrio, fundado na extensão do prazo como forma de compensar os investimentos supervenientes que não seriam amortizados durante o prazo contratual original, não se confunde com a prorrogação ordinária dos contratos administrativos, que ocorre quando o poder concedente, por mero juízo de conveniência e oportunidade, opta por renovar a relação quando do fim do contrato, que pode estar inclusive perfeitamente equilibrado economicamente.

4.2.1 Peculiaridades da extensão para fins de reequilíbrio com relaęão à prorrogaęão ordinária

Conforme exposto, a prorrogação para fins de reequilíbrio se justifica em função do rompimento da equação econômico­financeira inicial e constitui verdadeiro dever do delegante em face do delegatário, sobretudo quando outras formas de recomposição não puderem ser implementadas. Trata-se de mecanismo de reequilíbrio que busca tutelar as relações existentes e a garantir as posições já constituídas de cada contratante.

A prorrogação ordinária, por sua vez, é uma opção discricionária do titular do serviço no sentido de renovar uma relação jurídica já finda pelo transcur­ so do tempo, geralmente em igual período, quase que em uma espécie de nova contratação do mesmo prestador.23

Belo Horizonte, Fórum: 2019. p. 291. Grifamos. Segundo Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “a prorrogação­

­ampliação do prazo final de vigência do contrato pode ser adotada nas hipóteses em que, durante a sua execução, verificou­se a redução de vantagens ou a elevação dos encargos originalmente previstos em favor do concessionário. A ampliação do prazo permite que o concessionário mantenha a exploração por período mais longo do que o previsto, o que lhe permitirá buscar obter as vantagens em dimensão equivalente ao que lhe havia sido assegurado (XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Prorrogação contratual: a propósito da Lei 13.448/2017. Jota, 2017. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx­e­analise/artigos/prorrogacao­contratual­a­ proposito­da­lei­13­4482017­12062017. Acesso em: 19 maio 2022).

23 Dada a discrepância entre os institutos, alguns autores utilizam até mesmo termos distintos para se referir a cada um deles. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, por exemplo, refere­se à prorrogação para fins de reequilíbrio como “extensão de prazo para fins de reequilíbrio”, enquanto o termo “prorrogação” cuida especificamente da prorrogação ordinária, por juízo de conveniência e oportunidade da Administração (XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 167­168). Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, por sua vez, em termos até autoexplicativos, refere­se à prorrogação ordinária como “prorrogação­renovação”, enquanto utiliza “prorrogação­ampliação” para referir­se à prorrogação extraordinária para

Nesse sentido, são claras as lições de Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx:

Diga­se, desde logo, que a prorrogação não se confunde com a extensão do prazo para fins de reequilíbrio, nem com a devolução do prazo de delegação diante de situações que tenham impedido a regular fluência do prazo inicial. Prorrogação [ordinária] é a previsão de um novo prazo de concessão que projeta o plexo de direitos e obrigações subjacente a ela para um novo período, igual ou inferior ao inicial. Ela é, em si, um fator de desequilíbrio contratual, e não de reequilíbrio […]. A extensão de prazo para fins de reequilíbrio é o inverso da prorrogação. Aqui ocorre que, por qualquer circunstância, o balanço contratual não pôde ser atingido, exigindo sua recomposição. Nesse caso, uma das hipóteses de reposição do equilíbrio original é a extensão de prazo, sendo, efetivamente, o prazo de concessão um elemento da equação econômica (a exploração da utilidade pública por n anos é menos vantajosa que a explo­ ração do mesmo objeto por n + x anos).24

Destaca­se, nesse contexto, que, ao contrário da prorrogação ordinária, a prorrogação para fins de reequilíbrio não é nem pode ser definida de forma prévia, por livre escolha das partes. O prazo de extensão da relação vincula­

-se intrinsecamente à efetiva necessidade do delegatário e somente pode ser quantificado após a apuração de todos os eventos de desequilíbrio, de parte a parte, podendo ser inclusive modificado durante o seu curso a depender do aumento, da diminuição ou da própria extinção do desequilíbrio outrora verificado.25

Exatamente por decorrer de fato superveniente e imprevisível e justificar-se em garantias legais e constitucionais, inclusive, a prorrogação para fins de reequilíbrio não depende de previsão contratual, sendo este mais um fator que distingue esse mecanismo de recomposição do instituto da prorrogação ordinária.26

fins de reequilíbrio (Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, Prorrogação contratual, op. cit.). A despeito das vantagens pedagógicas que a utilização de nomes diferentes para institutos dessemelhantes pode trazer, utilizaremos esses vocábulos de forma indistinta sempre ressalvando, no entanto, a sua natureza “ordinária” ou “para fins de reequilíbrio”.

24 Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, Concessões, op. cit., p. 167­168. Grifamos.

25 Conforme já entendeu a jurisprudência, “caso no transcurso da prorrogação verifique­se que os prejuízos das concessionárias foram diluídos e o reequilíbrio econômico­financeiro do contrato então restabelecido, o Município poderá declarar extinta a concessão e, via de consequência, proceder na realização de licitação. Ou ainda, se o ente público no transcurso da prorrogação dispuser de recursos financeiros suficientes e entender que deva indenizar as concessionárias pelos prejuízos suportados, estará, então, autorizado a extinguir a concessão e deflagrar procedimento licitatório para a prestação do serviço de transporte coletivo municipal” (TJ­SC, AC 2013.057791­0, rel. des. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxx, julg. 06.05.2014).

26 Nas palavras de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, “as prorrogações extraordinárias não necessitam de qualquer previsão contratual. Na medida em que tais prolongamentos cronológicos decorrem de desequilíbrios contratuais originados por situações imprevistas ao tempo da celebração

A possibilidade daquela extensão de prazo constitui mero e necessário corolário do reequilíbrio econômico-financeiro de quaisquer contratos de delegação, assim como outras possibilidades para tanto, como o aumento de tarifas, indenização pelo poder concedente, diminuição de investimentos etc.

Retirar a priori uma das possibilidades de reequilíbrio constitui ablação parcial do próprio reequilíbrio, posto limitar os meios para realizá­lo.

5. Juridicidade da extensão de prazo para fins de reequilíbrio dos contratos de programa sob a ótica do novo marco legal de saneamento

O novo marco legal do saneamento básico, como já exposto, teve como um dos seus objetivos principais inaugurar uma nova cultura na prestação descentralizada do serviço de distribuição de água e esgotamento sanitário, elegendo ex nunc as concessões como o instrumento para a formalização de novas delegações, em detrimento dos outrora prevalecentes contratos de programa.27

A Lei nº 14.026/2020, em sua redação original, até trazia um regime de transição entre esses regimes contratuais, ressalvando expressamente a possibilidade de os contratos de programa serem “renovados” até o limite máximo de 30 anos, caso as partes discricionariamente assim acordassem (art. 16). Tal previsão, contudo, foi objeto de veto presidencial, posteriormente mantido pelo Congresso.

A supressão desse dispositivo no texto final da lei fez com que parte da

doutrina, em uma análise preliminar da disciplina do novo marco, entendesse

do instrumento, careceria de fundamento exigir que tais contratos previssem, numerus clausus, mecanismos para tutelar essas situações imprevisíveis” (XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Concorrência no mercado portuário de contêineres. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 000, x. 0, x. 000x000, xxx./xxx. 2019). No mesmo sentido, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx do Amaral aduz que “se o poder concedente optar pela prorrogação do prazo, a fim de assegurar o reequilíbrio contratual, poderá fazê­lo independentemente de constar do contrato cláusula de prorrogação, porque se estará diante de uma situação superveniente, imprevisível e extraordinária, criada no interesse dos usuários a fim de garantir­lhes até o final do contrato a prestação de ‘serviço adequado’” (AMARAL, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx do. Concessão de serviço público: novas tendências. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000. p. 29).

27 Apenas ilustrativamente, é possível citar o art. 10, caput da Lei nº 11.445/2007, o art. 11, § 8º da Lei nº 11.107/2005, entre outros dispositivos, como exemplos claros da intenção do novo marco de impedir a celebração de novos contratos de programa.

que o veto representaria uma espécie de limitação à própria extensão dos

contratos de programa vigentes.28

Independentemente da até questionável juridicidade desse entendimento

— posto que do silêncio da lei não se podem extrair quaisquer restrições a direitos —, fato é que o dispositivo suprimido se referia específica e exclusivamente à possibilidade de prorrogação ordinária dos contratos de programa, nada dispondo sobre a extensão do prazo para fins de reequilíbrio.

Com efeito, além de não trazer quaisquer “previsões relacionadas com o acréscimo ou redução de encargos envolvidos”, critério já utilizado pelo Tribunal de Contas de Portugal para identificar as disposições legais atinentes à extensão para fins de reequilíbrio,29 o art. 16 do novo marco legal vinculava a “renovação” dos contratos de programa a um prazo prefixado, limitado a

30 anos, e expressamente condicionava a viabilidade da prorrogação à existência de um livre “acordo entre as partes” — algo impossível de ser exigido das extensões para fins de reequilíbrio, dada a sua natureza imprevisível e imperativa (obrigação de reequilíbrio por algum dos meios a ele inerentes).30 Caso entendamos que o veto presidencial em questão de alguma maneira impediu a prorrogação dos contratos de programa, portanto, somente poderíamos admitir que o fez em relação à prorrogação ordinária, eminentemente voluntária e negocial (que não visa a sanar um problema passado, mas a gerar novos direitos e obrigações), posto ser este instituto

específico o objeto do dispositivo vetado.

Nas lições de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx:

28 Nesse sentido, ilustrativamente, XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Novo Marco Legal do Saneamento e a impossibilidade de prorrogação de contratos de programa. Blog Zênite, 1º abr. 2021. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxxx.xx/x­novo­marco­legal­do­saneamento­e­a­ impossibilidade­de­prorrogacao­de­contratos­de­programa/. Acesso em: 21 jul. 2022; Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx de Vita e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, Planejando concessões de saneamento básico, op. cit., p. 196­197; e XXXXXX, Xxxxxxxxxx. Tramitação no Congresso Nacional e os bastidores do Novo Marco Legal. In: XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx (Coord.). Novo Marco Legal do Saneamento Básico: por quem fez. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 57.

29 Tribunal de Contas de Portugal, Acórdão nº 29/2013, Processo nº 1469/2013, rel. juiz conselheiro Xxxx Xxxxxxxxxx, julg. 18.11.2013.

30 Como visto, a extensão de prazo como forma de recomposição não pode ser previamente delimitada (posto exigir a aferição casuística dos desequilíbrios que aproveitam e prejudicam cada um dos contratantes) e muito menos se sujeita apenas a um consenso das partes, podendo ser exigida, pelo contratante prejudicado, inclusive à revelia do contratante beneficiado. Naturalmente que as formas de reequilíbrio devem preferencialmente ser objeto de acordo entre as partes, mas não se retira delas (ao contrário do que ocorre nas prorrogações ordinárias) uma base coativa, inerente à obrigação de o contrato, por algum daqueles meios, ser reequilibrado.

o veto ao artigo 16 atingiu apenas a possibilidade de prorrogação [ordinária] do contrato. O veto não impediu a extensão de prazo dos contratos de programa em curso para reequilibrá-los. […) A extensão ou redução dos contratos de programa para reequilíbrio continua permitida, assim como a modificação dos prazos do contrato para facilitar a modalidade de desestatização dos serviços escolhida pelos entes envolvidos (vide artigo 13, da Lei nº 14.026/2020).31

A extensão da vigência dos contratos de programa para a recomposição dos dispêndios extraordinários exigidos em razão das novas metas de uni­ versalização, portanto, não só está abrigada pelos dispositivos legais e consti- tucionais que garantem o reequilíbrio, como é perfeitamente congruente à disciplina do novo marco legal do saneamento básico.

Efetivamente, conforme as “razões de veto” ao dispositivo em referência, uma das causas para retirar o art. 16 do texto final da Lei nº 14.026/2020 seria que a disposição nele contida “prolonga[ria] de forma demasiada a situação atual”, em linha, inclusive com a nova redação do art. 10, § 3º, que prevê que “os contratos de programa regulares vigentes permanecem em vigor até o advento do seu termo contratual”.32

Ocorre que tanto a justificativa para o veto quanto a previsão do art. 10,

§ 3º pressupõem um cenário de equilíbrio nos contratos de programa, referindo­se às hipóteses em que os prejuízos de parte a parte já tenham sido integralmente amortizados durante o transcurso do prazo contratual. Nesse cenário, a restrição à possibilidade de renovação de contratos de programa findos pelo transcurso do prazo realmente até pode ser considerada uma opção legislativa.33

Se, porém, no advento “do seu termo contratual”, determinado contrato de programa encontrar­se desequilibrado, a situação se inverte e as razões do veto não mais se mostram suficientes para justificar a proibição ao “prolongamento” daquela relação desbalanceada, até porque, frise­se, essa sequer poderia regularmente ser extinta sem que antes houvesse a derradeira

31 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. INFRADebate: Novo Marco Legal do Saneamento — efeitos da manutenção pelo Congresso Nacional do veto ao artigo 16, particularmente sobre os limites para assinar novos contratos de programa. Agência Infra, 2022. Disponível em: https:// xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx/xxxx/xxxxxxxxxxx­novo­marco­legal­do­saneamento­efeitos­da­ manutencao­pelo­congresso­nacional­do­veto­ao­artigo­16­particularmente­sobre­os­limites­ para­assinar­novos­contratos­de­programa. Acesso em: 14 jul. 2022. Grifos nossos.

32 Previsões somente terão lugar nas hipóteses em que os prestadores por contratos de programa efetivamente tiverem todos os seus investimentos realizados — sobretudo os extraordinários

— devidamente amortizados.

33 Embora, reiteramos, seja discutível a interpretação que extrai do veto ao art. 16 uma proibição implícita a essa faculdade contratual, quando prevista.

recomposição da equação econômico­financeira original, por qualquer um dos meios concretamente possíveis — e, nesse ponto, reiteramos que, como já foi por nós visto, o aumento da tarifa e o aporte público não são, a princípio, meios de recomposição atualmente factíveis.34

Por todos esses motivos, entendemos que nenhuma norma do novo marco legal, nem mesmo o veto ao art. 16 (que tratava de instituto distinto), buscou afastar a viabilidade da extensão dos contratos de programa como forma de recomposição dos custos extraordinários e imprevisíveis suportados pelos prestadores, como aqueles decorrentes das novas metas de universalização. Admitir intepretação diversa implicaria estender indevidamente o alcance do veto para restringir a própria garantia constitucional à incolumidade econômico­financeira dos contratos de programa.35

E, nesse contexto, vale de toda sorte frisar que o veto não integra a lei, ainda que de fato constitua um dos elementos históricos para a sua interpretação. A interpretação da lei parcialmente vetada não pode, salvo em casos extremos de a lei vir a ficar sem lógica, levar a resultados expressamente refutados pelo veto, o que, como visto, não é o caso.

Como bem ensina Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx,

no sistema norte­americano, por exemplo, a história legislativa é uma técnica de hermenêutica normativa largamente utilizada.36 A partir da reconstrução das fases do processo legislativo, interpreta-se não apenas os vetos, mas especialmente o texto positivado considerando os debates parlamentares e, principalmente, os consensos alcançados. Parte-se do pressuposto de

34 Nas palavras de Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx, “restando investimento não amortizado ao término da concessão, a correspondente indenização deveria ser paga previamente. Isso significa que, enquanto não for indenizada a concessionária, a reversão dos bens e a extinção da concessão não serão efetivadas” (Xxxxxx Xxx Xxxxxxx, Direito à indenização prévia na extinção da concessão pelo término do prazo contratual, op. cit., p. 291-304).

35 Asseverando a impertinência de se estender às prorrogações para fins de reequilíbrio o tratamento conferido às prorrogações ordinárias, leciona Marçal Justen Filho que “a con_ taminação do tratamento da prorrogação­ampliação de prazo pela figura da prorrogação­

­renovação é uma alternativa muito ruim. Porque, num grande número de casos, não existe autorização expressa nem em lei, nem no edital, nem no contrato. O resultado prático será ou obrigar o Poder Concedente a indenizar o concessionário em dinheiro (que não existe) ou elevar as tarifas (para usuários que não têm condições de pagar)”. De acordo com o autor, “discutir sobre palavras é um problema teórico, mas é uma maldição quanto se traduz em equívocos sobre a vida real” (Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, Prorrogação contratual, op. cit.).

36 Cf. XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Leviathan and interpretative revolution: the administrative state, the Judiciary, and the rise of legislative history, 1890-1950. 123 Yale Law Journal, v. 123, p. 266­411, 2013. Apesar de o Judiciário norte-americano fazer larga utilização da história legislativa como técnica hermenêutica, a utilidade do método não é infensa a críticas. Cf. XXXXXX, Xxxxxxx. A matter of interpretation. Federal Courts and the law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. p. 17-23.

que os consensos alcançados por representantes políticos ou instituições constituem valiosos guias democráticos interpretativos. Por essa razão os grandes documentos de interpretação normativa são aqueles que resultam de deliberação, como as votações congressuais. A expressão do Presidente é relevante, mas terá um ‘peso interpretativo’ inferior aos consensos nos debates. […] A história legislativa importa para compreender todos os debates travados no curso do processo legislativo e qualificar a fundamentação do intérprete da Lei, notadamente dos agentes públicos. Os vetos não interditam a adoção do conteúdo jurídico vetado, mas geram um ônus de motivação qualificada.37

Também não seria possível extrair tal restrição da ratio geral da Lei nº 14.026/2020, pois, conforme exaustivamente exposto, ao mesmo tempo que o novo marco buscou vedar a formalização de novas delegações por meio de contratos de programa, também garantiu a incolumidade dos instrumentos vigentes à época de sua edição. Afinal, os contratos de programa firmados entre as empresas estatais estaduais de saneamento básico e os municípios titulares desse serviço, quando celebrados regularmente, em consonância com as normas legais que os previram, continuam plenamente válidos, devendo o aplicador respeito àqueles instrumentos.

Ainda que efetivamente houvesse disposição no sentido de proibir a prorrogação dos contratos de programa para fins de reequilíbrio (e não apenas uma aparente vedação implícita à prorrogação ordinária desses instrumentos), aliás, a própria validade dessa disposição seria questionável. Afinal, ao restringir os meios de promoção do equilíbrio de contratos plena­ mente válidos, o novo marco legal do saneamento estaria limitando a própria garantia à incolumidade econômico­financeira da relação jurídica ali formali­ zada, indo de encontro às profusas normas legais e constitucionais que integram o direito dos contratos públicos.

Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, a extensão de prazo para fins de reequilíbrio “cabe até mesmo em face de previsão legal que vede a prorrogação- ampliação”.38 Também nesse sentido, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, discorrendo sobre os contratos de arrendamento portuário, mas em lições plenamente transponíveis aos contratos de programa, leciona que:

37 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx de. Ensaio sobre os vetos presidenciais à Lei nº 13.655/18: qual é o valor dos vetos presidenciais à interpretação e aplicação da Lei de Segurança Jurídica. In: XXXXX XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx; ISSA, Xxxxxx Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx (Org.). Lei de introdução às normas do direito brasileiro — anotada. São Paulo: Quartier Latin, 2018. x. 0, x. 00x00.

00 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. A ampliação do prazo contratual em concessões de serviço público. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, v. 23, p. 109­135, mar./abr. 2016, p. 135. Grifamos.

Mesmo ausente previsão contratual ou legal acerca de tal mutabilidade para fins de reequilíbrio, a necessidade de atualização e adequação de contratos administrativos à realidade em que se inserem, bem como o respeito ao equilíbrio econômico­financeiro, tornam a prorrogação extraordinária conatural à natureza e ao regime jurídico dos contratos administrativos de longo prazo. Mais especificamente, trata­se de cláusula impositiva e implícita aos contratos de arrendamento portuário. Logo, a prorrogação extraordinária não só independe de previsão contratual, como não encontra limites em quaisquer pretensas vedações contratuais (as quais não podem nem prever nem conter a força dos fatos e as vicissitudes naturais a qualquer contrato de longo prazo). Como anota Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, o “efeito disso é que serão inválidas todas as estipulações, contratuais ou legais, destinadas a afastar o direito à reconstrução da equação econômico-financeira”.39

Seja, portanto, (i) pela inexistência de qualquer vedação explícita ou implícita à extensão de prazo dos contratos de programa para fins de reequi­ líbrio; (ii) pelo fato de as razões de veto parcial à lei não passarem a integrar seu conteúdo (constituindo apenas um dos elementos do seu histórico processual legislativo); ou (iii) pela própria injuridicidade que teria eventual disposição nesse sentido, não é possível extrair da redação do novo marco legal do saneamento (na verdade, do que deixou de nela constar) qualquer restrição à utilização da extensão de prazo como forma regular de proteção à incolumidade econômico­financeira dos contratos de programa.

Se já não seria possível estender a interpretação da Lei nº 14.026/2020 para afastar a viabilidade da prorrogação para fins de reequilíbrio pelos motivos já examinados, a fortiori não seria possível fazê-lo em relação à norma infralegal de natureza meramente procedimental, como é o caso do Decreto nº 10.710/2021, que também vem suscitando alguns debates acerca de seu âmbito de incidência.

6. O Decreto nº 10.710/2021 e sua adequada interpretação

Buscando regulamentar o novo art. 10­B da Lei nº 11.445/2007, incluído pela Lei nº 14.026/2020, o Decreto nº 10.710/2021 foi editado com o objetivo de

estabelecer a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário que detenham contratos regulares em vigor, com vistas

39 Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, Concorrência no mercado portuário de contêineres, op. cit., p. 262­

263. Grifos nossos.

a viabilizar o cumprimento das metas de universalização previstas no caput do

art. 11­B da Lei nº 11.445, de 2007. [art. 1º].

Conforme se extrai do artigo transcrito (replicado também na ementa do decreto), trata-se de norma regulamentar de natureza procedimental, voltada a disciplinar a metodologia de comprovação da capacidade econômico-

­financeira das prestadoras do serviço de saneamento básico, exigida pela legislação como forma de assegurar o cumprimento das metas de univer- salização trazidas pelo novo marco legal do setor.40

Referido regulamento traz numerosas e minudentes regras acerca do tema, dispondo inclusive sobre os indicadores econômico­financeiros mínimos exigidos, planos de captação e, ainda, sobre os estudos de viabilidade neces­ sários para a efetiva comprovação da capacidade econômica.41

Todavia, algumas normas do decreto vêm suscitando debates acerca de seu sentido e alcance. Destaca­se a regra contida no seu art. 7º, § 3º, que, ao determinar o que poderia ou não ser levado em consideração naquela avaliação técnico­contábil, determinou que “os estudos de viabilidade não poderão prever: i — no caso de contrato de programa, ampliação de seu prazo de vigência”.

Discute-se, com efeito, se a limitação à possibilidade de os estudos de viabilidade dos contratos de programa preverem a ampliação de seu prazo de vigência representaria também uma restrição regulamentar à própria utilização da extensão de prazo como mecanismo de reequilíbrio daqueles contratos.

O decreto em referência tem como objeto apenas “estabelecer a meto­ dologia para comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores” do serviço de saneamento básico, sem que nada disponha sobre o equilíbrio econômico­financeiro dos contratos de delegação do setor. E é exatamente de acordo com essa ratio do decreto que devem ser interpretados os seus dispositivos.

40 Conforme Xxxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx, “tem­se claro que as estatais deverão, nos prazos assinalados na lei, demonstrar se têm condições para atingir as metas de universalização definidas, inclusive demonstrando capacidade financeira para tanto. A Lei expressamente prevê que haja estudo que demonstre isto (art. 10­B)”. (Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, Empresas estatais de saneamento básico, Novo Marco Legal e parcerias com a iniciativa privada, op. cit., p. 51).

41 Cf. Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Apontamentos sobre o Decreto nº 10.710/2021 e a com­ provação da capacidade econômico­financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização, op. cit., p. 168.

Tudo que o dispositivo faz é apenas estabelecer que eventuais aumentos de prazo (ainda que devidos) não poderiam ser utilizados como variáveis válidas nos estudos de viabilidade dos prestadores de serviço por contratos de programa (curiosamente, nada fala dos contratos de concessão), condi- cionando a comprovação da capacidade.42

Não há na literalidade do art. 7º, § 3º, do decreto, pois, qualquer vedação à extensão de prazos dos contratos, mas apenas mera proibição de que os estudos de viabilidade para demonstração da “capacidade” (não equilíbrio) econômico­financeira do prestador (não do contrato) venham a considerar, a partir daquela data, a possibilidade de prorrogação ordinária do prazo con­ tratual,43 tendo em vista, inclusive, que não seria factível que norma da União dispusesse diretamente sobre opções político-discricionárias na gestão de contratos de delegação da competência de outros entes federativos — in casu dos municípios.44

Deve ser advertido que uma análise linguística do direito nada tem a ver com uma preponderância da interpretação meramente literal, muito pelo contrário, já que a linguística pressupõe verificações contextuais, teleológicas e sistemáticas, que vão muito além da mera gramática.

Como adverte Xxxx Xxxxxx Usera, tratando da dicotomia entre o espírito e a letra das normas, essa distinção absoluta entre a ratio e a literalidade não procede, uma vez que “as palavras expressam efetivamente esse espírito e são elas mesmas também espírito”.45

42 V. tópico VII, infra.

43 Conforme o Manual de comprovação da capacidade econômico-financeira, elaborado pela Fundação para Pesquisa e Desenvolvimento da Administração, Contabilidade e Economia da USP, e o escritório Xxxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxx, “a melhor interpretação do art. 7º, § 3º, I do Decreto, assim, é que os estudos de viabilidade não podem considerar prorrogações futuras (e, portanto, incertas) do prazo contratual, devendo tomar como premissa a vigência dos contratos tal como existente no momento de protocolização do requerimento, ao final de 2021” (Disponível em: xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxx/xx­content/uploads/2021/10/Manual­Decreto­ 10710­Comprova%C3%A7%C3%A3o­de­capacidade­econ%C3%B4mico­financeira.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022).

44 Nas palavras de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, “A definição, pela via legislativa ou regu­ lamentar, da forma de compensação do reequilíbrio econômico­financeiro em contratos de prestação do serviço público de saneamento básico não está abrangida, a meu juízo, nas competências atribuídas constitucionalmente à União. Creio que esse seja um tema próprio da competência legislativa e regulamentar dos entes locais” (Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Apontamentos sobre o Decreto nº 10.710/2021 e a comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização, op. cit., p. 177).

45 Cf. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Xxxxx Xxxxxx, 2002. p. 183.

Sendo a linguagem a matéria­prima por excelência do labor dos juristas e operadores do direito em geral,46 é natural que a maior parte das divergências jurídicas se revele em interpretações, ou seja, formas de se ver divergentes de textos legais, mister se fazendo, portanto, ter na atividade hermenêutica uma abordagem incindível entre direito e linguística. “O texto é o ponto de partida do intérprete, bem como representa o seu limite.”47

A interpretação anteriormente sugerida, xxxxx, não se mostra compatível somente com a letra do próprio decreto, mas guarda consonância inclusive com a própria disciplina do novo marco legal. A uma, porque seria mesmo ilógico que os prestadores pudessem utilizar eventual prorrogação ordinária para fundamentar a sua capacidade econômico­financeira se o próprio marco legal houvesse limitado a viabilidade dessa ampliação; e, a duas, pois, ainda quando devida fosse a prorrogação (para fins de reequilíbrio), esta estaria sujeita a uma circunstância fática que fugiria ao alvedrio exclusivo do delegatário, não podendo decorrer unilateralmente apenas do concessionário: deve concorrer a vontade do titular do serviço no sentido de promover o reequilíbrio por meio daquele mecanismo, em detrimento de outros, quando porventura também cabíveis.

Por uma razão ou outra, ou por ambas, preferiu o legislador limitar a possibilidade de que as prorrogações fossem a priori consideradas para fins de comprovação da capacidade econômica do prestador, o que não quer dizer, reiteramos, que tenha havido qualquer restrição à possibilidade de os contratantes, efetivamente, estenderem o prazo de seus ajustes de modo a viabilizar a necessária recomposição econômico­financeira.

Eventual interpretação diversa mostrar-se-ia desatenta inclusive à própria distinção entre (i) a comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores do serviço público e (ii) a equação econômico­financeira dos con­ tratos de delegação de serviço público.

46 “Não se pode fazer ciência do Direito ou pretender ensiná-lo sem ter o respaldo de uma séria compreensão dos elementos linguísticos comprometidos com o mundo jurídico. Não se deve esquecer que o objeto da ciência jurídica é algo que já pré­cientificamente se apresenta como linguagem” (XXXXX, Xxxx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Lenguaje y definición jurídica. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1973. p. 17).

47 XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Interpretação constitucional operativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 117. Grifamos.

6.1 Alheamento entre a comprovaęão de capacidade econômico-

-financeira dos delegatários de saneamento e o direito ao reequilíbrio

Conforme já adiantamos, o art. 7º, § 3º, do Decreto nº 10.710/2021 previu, especificamente, que eventuais prorrogações ordinárias de prazo não poderiam ser tomadas em conta nos estudos de viabilidade para fins de com­ provação da capacidade econômico­financeira dos contratos de programa, de forma que tal previsão não implicaria qualquer vedação abstrata e absoluta à prorrogação daqueles instrumentos para fins de reequilíbrio (extensões de prazo).

Ocorre que, da mesma forma, eventual comprovação da capacidade econômico­financeira de um prestador, à luz do prazo original, não teria o condão de afastar eventual extensão de prazo para fins de reequilíbrio que fosse necessário. A capacidade econômico­financeira do prestador não se confunde com o equilíbrio econômico­financeiro do contrato, individual e atomizadamente considerado, sendo plenamente possível que um mecanismo inafastável para a manutenção deste seja um elemento dispensado para a comprovação daquela.

Em termos práticos, a comprovação da capacidade econômico­financeira de que cuida o Decreto nº 10.710/2021 consiste na demonstração de que os ativos totais do prestador (relacionados ou não com aquele serviço delegado especificamente considerado) são suficientes para cobrir ou ao menos igualar os custos básicos de exploração do serviço delegado, incluindo aqueles decorrentes das novas metas de universalização. A equação econômico­

­financeira, por sua vez, como já exposto, é “a equivalência honesta entre as cargas e as vantagens que o cocontratante tenha levado em consideração no momento da conclusão do contrato”.48

É plenamente possível que um delegatário comprove, de plano, a sua capacidade econômico­financeira para executar o serviço delegado, mas que haja algum elemento do contrato em si a ser reequilibrado, e vice­versa. Capacidade do delegatário e equilíbrio de um dos seus contratos podem estar simultaneamente presentes, mas não necessariamente.

48 XXXX, Xxxxxx Xxxxx. Manual de derecho administrativo. 6. ed. Buenos Aires: Plus, 1991, t. 1,

p. 319. Grifamos.

Imagine­se, por hipótese, o exemplo de um prestador que tenha um ativo total superior a 100 bilhões de reais. Imagine­se também que, nesse mesmo cenário, serão necessários 70 bilhões de reais para operar regularmente os serviços a ele delegados, promovendo inclusive as novas metas de univer- salização trazidas pela Lei nº 14.026/2020. Tem capacidade econômico­

­financeira para prestar aquele serviço, mas isso não quer dizer que esses investimentos adicionais em universalização não previstos não precisarão ser recompostos pelo titular do serviço, sob pena de enriquecimento sem causa deste.

Também sob esse prisma, portanto, não seria possível sustentar que dos critérios para a elaboração dos estudos de viabilidade decorreria qualquer restrição ao direito constitucional ao equilíbrio econômico­financeiro do contrato, com os diversos meios a ele inerentes, inclusive por meio de extensão de prazo. Em outras palavras, a comprovação da capacidade de univer- salização no prazo contratual originalmente firmado não afasta a sua extensão como uma possível forma de recomposição de um virtual desequilíbrio econômico­financeiro.

6.2 Exaurimento dos efeitos do decreto após a comprovaęão da viabilidade de atendimento das metas

De toda sorte, independentemente das conclusões anteriores, não nos parece juridicamente possível extrair do Decreto nº 10.710/2021 (cujo objetivo, rememoramos, era estabelecer a “metodologia para a comprovação da capa- cidade econômico­financeira”) qualquer restrição às futuras extensões de prazo dos contratos de programa para fins de reequilíbrio também e, sobre­ tudo, em razão do exaurimento de seus efeitos.

O processo de comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores do serviço de saneamento básico sempre teve a sua duração muito bem delimitada. De acordo com os arts. 10 e 14 do Decreto nº 10.710/2021, o requerimento inicial deveria ser apresentado pelos prestadores às entidades reguladoras competentes até 31 de dezembro de 2021 e estas, por sua vez, teriam até 31 de março de 2022 para concluir o processo de certificação da capacidade econômico­financeira dos prestadores do serviço.

E assim foi feito. Conforme notícia veiculada no sítio eletrônico da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), em 1º de abril de 2022, diversas empresas estaduais já haviam recebido, das

agências reguladoras estaduais responsáveis, a confirmação quanto à capa­ cidade econômico­financeira para se manterem prestando os serviços de saneamento dos quais eram delegatárias.49

Considerando, portanto, que o objetivo do decreto era justamente definir a metodologia para a comprovação dessa capacidade econômico­financeira, referida norma já teve a sua eficácia exaurida no momento da efetiva certificação da capacidade econômico­financeira dos prestadores, sendo, por mais fortes razões, impossível de extrair dela solução para questões outras, atuais ou futuras, envolvendo os contratos de saneamento (por exemplo, as discussões atinentes à possibilidade da extensão de prazo dos contratos de programa para fins de reequilíbrio), até porque também inerentes à sua gestão pelo respectivo ente federativo competente.

Seja, portanto, (i) por se tratar de norma meramente procedimental, voltada a disciplinar a “metodologia para comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores de serviços” de saneamento, (ii) pela impossibilidade de se extrair dessa capacidade, quando comprovada, qualquer dispensa aos eventuais reequilíbrios porventura necessários, ou

(iii) pelo verdadeiro esgotamento dos efeitos do regulamento em questão, o Decreto nº 10.710/2021 não restringe a viabilidade da extensão de prazo dos contratos de programa para fins especificamente de reequilíbrio.

7. Interpretação à luz do princípio da isonomia entre os delegatários e do art. 173, § 1º, CF

Conforme já expusemos em obra específica sobre as empresas públicas

e sociedades de economia mista,50 naturalmente, o simples fato de serem

49 Naquela ocasião, as empresas certificadas eram: Companhia de Águas e Esgotos do Estado de Rondônia (Caerd); Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (Caern); Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará (Cagece); Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa); Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal); Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan); Companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan); Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa); Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa); Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan); Companhia de Sanea- mento de Sergipe (Deso); Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa); Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp); Companhia Saneamento de Goiás (Saneago); Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul (Sanesul) (Disponível em: xxxxx://xxxxx.xxx.xx/xxxx/xxxxxxxxxx­ estaduais­de­saneamento­sao­certificadas­por­orgaos­reguladores­com­a­comprovacao­de­ capacidade­economico­financeira/. Acesso em: 19 jul. 2022).

50 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Empresas estatais — o regime jurídico das empresas públicas

e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2018.

controladas pelo Estado, oriundas ainda que parcialmente do patrimônio público e integrando a administração pública nos termos do art. 37 da CF, torna inevitável que as estatais sempre se sujeitem a controles e normas não cogitáveis para as empresas privadas (licitações, concurso público, tribunais de contas, ação popular etc.), mas a sua aplicação deve se dar com parcimônia em razão das suas peculiaridades.

O art. 173 da CF impõe, em seu § 1º, II,51 a paridade de regime jurídico para a atuação direta do Estado na economia quando o Estado estiver exercendo atividade econômica em concorrência com a iniciativa privada, de forma a evitar a concorrência desleal. Não é por outra razão que nessas hipóteses o Estado é obrigado a adotar a forma de sociedade de economia mista ou de empresa pública, pessoas jurídicas da administração pública indireta, mas dotadas de personalidade jurídica de direito privado, a exemplo das empresas da iniciativa privada.

Desse dispositivo exsurge que o tratamento das empresas estatais deve ser, o máximo possível, o mesmo daquele dispensado às empresas privadas.

O que se busca com a indigitada paridade de regime prevista pelo art. 173 da CF é evitar que uma norma jurídica aplicável às empresas privadas

— seja essa norma do direito civil, comercial, tributário, sanitário, ambiental, administrativo etc. — tenha a sua aplicação excluída ou diferenciada para as empresas estatais atuantes no mesmo setor.

Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, ao tratar sobre isonomia de tratamento

das empresas estatais, em relação ao restante do mercado, ensina que

haverá de ser ofensivo à nossa Lei Maior o estabelecimento de quaisquer deveres ou ônus de atuação que impeçam sua atuação no mercado nos moldes em que uma empresa privada o faria. Deverão sempre atuar em pé de igualdade, vedados privilégios e o estabelecimento de ônus de qualquer natureza que impliquem formas de desigualdade jurídica de tratamento ao longo de suas respectivas atuações no campo econômico.52

51 “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: […] II — a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”.

52 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. O dever de licitar e os contratos das empresas estatais que exercem atividade econômica. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. v. III, p. 786.

Também nesse sentido, e em consonância com o entendimento da jurisprudência, inclusive do Tribunal de Contas da União,53 Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx aduz que

a interface entre os entes estatais exploradores de atividades econômicas pelo prisma de competição (empresas estatais e suas concorrentes privadas) deve se dar em condições de ampla e justa competição, sendo vedada qualquer regra legal que ofereça privilégio ou, ao contrário, estabeleça restrições à atuação do ente estatal.54

Destaca­se que eventual tratamento pontual distinto não é aprioris­ ticamente inconstitucional, quando juridicamente amparado. Eventual dife­ renciação entre o tratamento conferido às empresas estatais e suas congêneres privadas, contudo, somente se justificaria, à luz do princípio da isonomia, se fundado em critérios de distinção legítimos. Ocorre que nem a natureza estatal das empresas prestadoras do serviço, nem a forma de contratação (direta) dos contratos de programa mostram­se suficientes para justificar o esbulho de uma legítima forma de recomposição que, por outro lado, seria admitida para beneficiar os concessionários privados que porventura tivessem seus contratos desequilibrados.

Em primeiro lugar, porque as empresas estatais estaduais de saneamento básico foram, todas elas, constituídas em consonância com os requisitos legais e constitucionais necessários para a sua instituição. É difícil imaginar, inclusive, algum outro setor que ostente maior “relevante interesse coletivo” (art. 173, CF) que o setor de distribuição de água e esgotamento sanitário.

53 Como decidiu o Tribunal de Contas da União no TC 006.658/89­0, relator ministro Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxx, DOU de 6.6.90, p. 10838: “As empresas públicas ou sociedades de economia mista, particularmente aquelas concebidas para explorar atividades econômicas, são os instrumentos de que se vale o Estado para a necessária intervenção no domínio econômico, quando relevante o interesse coletivo, ou quando necessário aos imperativos da segurança nacional (artigo 173, § 1º). É imperioso que reconheçamos que estas entidades, embora integrantes da Administração Indireta, se diferenciam dos demais entes que compõem este ramo da Administração, em função da particularidade de exercerem atividades tipicamente empresariais mercantis. […] Estando, assim, em nível de igualdade no setor econômico, competindo de igual para igual com as empresas privadas, é imperativo que também sejam dotadas das facilidades de que se valem aquelas, para concretização de seus objetivos. Circunstâncias que entravem a mobilidade destas entidades deverão ser eliminadas, sob pena de se condenar o Estado-empresário à ine- ficiência, com sérios danos para o Erário” (grifamos).

54 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. As contratações estratégicas das estatais que competem no Mercado. In: OSORIO, Xxxxx Xxxxxx; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx (Coord.). Direito administrativo. Estudos em Homenagem a Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 585. Grifamos.

De igual maneira, eventual tratamento diferenciado aos contratos de programa no que tange à garantia de seu equilíbrio também não se justificaria em razão da ausência de processo licitatório para a contratação. A dispensa de licitação no caso dos contratos de programa era uma possibilidade expressamente ressalvada pela legislação desde pelo menos 2005, conforme a já mencionada previsão do art. 2º, § 1º, III, da Lei nº 11.107/2005 e, já antes disso, fundava­se no art. 241 da Constituição Federal, que disciplinava a gestão associada de serviços públicos. Não por acaso, referidos instrumentos tiveram a sua validade e sua eficácia expressamente reconhecidas pelo novo marco, razão justamente pela qual, naturalmente, não poderiam ser discriminados em relação a outras espécies de delegação.

A interpretação do novo marco legal do saneamento básico, bem como de quaisquer normas regulamentares dele decorrentes, deve ser também calcada no princípio da eficiência, da isonomia e da adequada competição entre as empresas estatais e suas congêneres privadas. Admitir que empresas estatais prestadoras de serviços públicos tenham o seu direito ao reequilíbrio limitado por norma não aplicável aos delegatários privados do mesmo serviço, contudo, não seria uma leitura adequada à luz desses princípios, uma vez que implicaria restrição clara àquelas sociedades controladas pelo Estado e em indevido favorecimento dos delegatários particulares.

Não se pode admitir que o decreto esteja fazendo verdadeiro bullying jurídico com as empresas estatais. O que estamos a nos referir ironicamente como bullying jurídico tem uma qualificação técnica própria no direito, que é o desvio de finalidade,55 pelo qual determinado instrumento (in casu, o novo marco regulatório do saneamento), criado para uma finalidade (cumprimento das metas de universalização), é desvirtuado para um outro fim (retirar as empresas estatais desse mercado). O novo marco regulatório tem vários objetivos. Mas o principal objetivo dele, o seu grande vetor hermenêutico, é o cumprimento das novas metas de universalização.

55 “O ato praticado com desvio de finalidade — como todo ato ilícito e imoral — é praticado

— ou é consumado às escondidas ou se apresenta sob o capuz da legalidade do interesse público. Diante disso há que ser surpreendido por circunstâncias que revelem a distorção do fim legal, substituído habilidosamente por um fim ilegal ou imoral não desejado pelo legislador. A propósito, já decidiu o STF que ‘indícios vários e concordantes são provas. […] Tudo isso dificulta a prova do desvio de poder ou finalidade, mas não a torna impossível se recorrermos aos antecedentes do ato e à sua destinação presente e futura por quem o praticou […]” (XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 92).

Ele não tem como objetivo afastar empresas estaduais desse mercado de forma imediata, sem quaisquer garantias, inclusive econômico­financeiras. Isso poderia até ter sido o objetivo de um ou outro deputado federal, de um ou outro agente atualmente em exercício no Poder Executivo, mas não é o objetivo da lei. É a vetusta distinção entre objetivo do legislador e o objetivo da lei, como já visto anteriormente.

8. Conclusão

Eventuais interpretações em sentido contrário ao presentemente exposto, portanto, precisam ser tomadas com cautela, pois, além de não se mostrarem adequadas à própria inteligência das normas, podem vir a inclusive violar os diversos cânones fundamentais do direito dos contratos públicos já men­ cionados anteriormente, como a garantia ao ato jurídico perfeito, o direito à incolumidade econômico­financeira dos contratos, o direito de propriedade dos prestadores de serviço etc.

Todas essas possíveis violações mostram-se especialmente sensíveis quando nos referimos ao Decreto nº 10.710/2021, norma regulamentar de natureza infralegal que, caso interpretada em sentido diverso àquele anteriormente proposto, poderia restringir a própria garantia constitucional ao equilíbrio dos contratos administrativos.

Nas palavras de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, “uma norma de efeitos secundários como o regulamento não poderia, para os fins a que se propõe, ir a ponto de vedar a utilização pelas partes contraentes de uma forma de reequilíbrio contratual admitida implicitamente pela legislação nacional e explicitamente por leis regionais e locais”.56

Mais que isso, entendemos que admitir qualquer tipo de restrição à possibilidade de prorrogação dos contratos de programa, para fins de recom­ posição dos desequilíbrios porventura experimentados, implicaria desvio de finalidade, em uma anti­isonômica vedação, porque aplicável somente para as empresas estatais prestadoras do serviço público de saneamento mediante contratos de programa, mas não extensível às concessionárias privadas do mesmo serviço.

56 Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Apontamentos sobre o Decreto nº 10.710/2021 e a comprovação da capacidade econômico­financeira dos prestadores de serviço de saneamento básico para viabilizar a sua universalização, op. cit., p. 174-175.

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