DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, através do seu Núcleo
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA EMPRESARIAL DA COMARCA DA CAPITAL – RIO DE JANEIRO
VARA DE
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, através da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa do Consumidor e do Contribuinte, com sede na Xx. Xxxxxxxx Xxxxxx, x. 000, Xxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, inscrito no CNPJ sob n. 28.305.936/0001-40, presentado pelo Promotor de Justiça que ao final subscreve, propõem a presente e a
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, através do seu Núcleo
de Defesa do Consumidor, com endereço na xxx Xxx Xxxx 00, 00x xxxxx, Xxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, XXX 00.000-000, inscrita no CNPJ 31.443.526/0001-70, presentada pelos Defensores Públicos subscritores
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
com pedido de tutela de urgência
em face da CEDAE - COMPANHIA ESTADUAL DE ÁGUAS E ESGOTO, sociedade de economia mista, inscrita no CNPJ sob o nº 33.352.394/0001-04, dotada de autonomia e personalidade jurídica próprias, com sede na Xx. Xxxxxxxxxx Xxxxxx, xx 0000, Xxxxxx Xxxx, Xxx xx Xxxxxxx, pelos fatos e fundamentos adiante externados.
- DA LEGITIMIDADE ATIVA:
A Defensoria Pública1 e o Ministério Púbico estão legitimados para defender em juízo os interesses coletivos, no caso o direito individual homogêneo, e o direito coletivo aplicáveis na hipótese, na forma como descrito no art. 5o, II da Lei 7.347/85, Lei de Ação Civil Pública e no próprio Código de Defesa do Consumidor, arts. 81 e 82. Vejamos:
Art. 5o da Lei de Ação Civil Pública. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I – o Ministério Público; II - a Defensoria Pública;
L. 8078/90:
"Art. 81 do CDC. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Art. 82 do CDC. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008 , de 21.3.1995)
III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;
Assim, diante do disposto na lei e tendo sido declarada a Constitucionalidade do inciso II do art. 5º da Lei 7.347/85 pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.943, de relatoria da Eminente Ministra Carmem Xxxxx, a Defensoria Pública e o Ministério Público têm legitimidade para a propositura desta ACP.
1 art. 134 da Constituição Federal, ante a nova redação dada pela Emenda Constitucional n. 80 de 4 de junho de 2014; arts. 1°; 4º, VII, VIII, X, XI; 106-A da Lei Complementar nº 80/94, com redação dada pela Lei Complementar n. 132/2009; ADI 3943 do STF, e Embargos de Divergência no RESP n. 1.192.577 do STJ.
- DA LEGITIMIDADE PASSIVA
A CEDAE é a pessoa jurídica que explora o serviço público essencial de distribuição de água e coleta de esgoto na cidade do Rio de Janeiro, fazendo-o de forma exclusiva, isto é, detentora do monopólio de sua atividade, com exceção apenas do esgotamento sanitário na Área de Planejamento nº 05, por força de Aditivo ao denominado Termo de Reconhecimento Recíproco de Direitos e Obrigações.
DOS FATOS
Trata-se de ação civil pública que visa promover a defesa dos direitos dos consumidores da CEDAE, em situação de hipervulnerabilidade social, moradores da cidade do Rio de Janeiro, Nilópolis e outras cidades da Região Metropolitana abastecidas pelo sistema de água da Estação de Tratamento de Águas (ETA) Guandu, em especial pela Elevatória do Lameirão e sem o devido serviço de abastecimento de água para as necessidades básicas (inclusive sobrevivência) e também de saúde e preservação da vida, especialmente durante o período de isolamento social, imposto por decreto estadual, devido a pandemia do COVID-19, aos residentes do Estado do Rio de Janeiro.
A partir de 15 de novembro de 2020, os autores, Defensoria Pública e Ministério Público, passaram a receber centenas de reclamações através de suas ouvidorias narrando a falta ou descontinuidade do serviço de abastecimento de água em diversas áreas da cidade do Rio de Janeiro ou a sua prestação mediante uma água “suja”, com cor de barro.
A falta de acesso à agua potável, por si só, já fere a garantia ao direito fundamental à vida, agravando-se em época de pandemia, em que a medida mais eficaz contra a contaminação é lavar as mãos; além de retirar a possibilidade de milhares de pessoas protegerem a si própias, seus entes familiares, sua comunidade e em última esfera a toda coletividade.
Durante a atual pandemia, é de conhecimento geral declarado pelas autoridades competentes que a prevenção ao coronavírus passa pela constante higienização. Assim, é a continuidade do serviço de fornecimento de água que também possibilitará, ao mesmo tempo e a depender do caso, o cumprimento de uma das medidas mais importante determinadas pelo Poder Público, consistente justamente na lavagem constante das mãos com água e sabão para evitar a disseminação do vírus.
No que se refere às regiões mais humildes e vulneráveis, com especial dificuldade de prestação regular dos serviços de abastecimento de água, observa-se que o isolamento imposto oficialmente e necessário ao combate ao contágio do coronavírus demonstra-se extremamente dificultoso para as pessoas mais carentes de nosso país.2
2 Disponível em xxxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxxxx/xxxxxx-00000000.
A maior concentração populacional em uma mesma área e mesmo dentro de uma mesma residência ou cômodo, demanda ainda mais atenção do Poder Púbico pelo risco de maior disseminação do vírus.
Em situações de crise de abastecimento de água decorrentes por ineficiência e má gestão da empresa (conforme se demonstrará a seguir), em que o serviço de abastecimento regular de água não está sendo fornecido por muitos dias em diversos bairros (em regra carentes) da cidade e da região metropolitana, o mínimo que a CEDAE deveria providenciar era o fornecimento de caminhões-pipa ou outras medidas técnicas adequadas a garantir o fornecimento de água (tais como reservatórios, cisternas e/ou torneiras públicas etc), conforme já realizado em situações até mesmo menos graves do que a que vivenciamentos neste momento. Além disso, era necessário disponibilizar à população informações seguras de como obter o fornecimento de água para atender às suas necessidades básicas e poderem se programar, a fim de sobreviverem durantes dias sem água em suas redes, e assim beberem água, lavarem as mãos, tomarem banho...
Devido a isso tudo, são diárias as notícias de falta de água desde o dia 15 de novembro de 2020 principalmente nos bairros carentes da cidade do Rio de Janeiro (reportagens e reclamações em anexo).
Atentos a esta situação de gravidade incalculável, as Ouvidorias da Defensoria Pública e do Ministério Público começaram a mapear, através das reclamações que lhes eram direcionadas, as áreas afetadas pela situação narrada (falta de água em áreas do município e Estado do Rio de Janeiro).
Como podemos observar do gráfico abaixo, elaborado pela plataforma MAPAS do MPRJ, a partir do georreferenciamento das reclamações dos cidadãos nas Ouvidorias da Defensoria Pública e do Ministério Público (sinalização em vermelho claro e escuro identificam as áreas com falta de abastecimento de água), concluímos que são muitas regiões, em regra bairros carentes, com a ausência deste serviço essencial e vital neste momento execepcional em razão da pandemia mortal mundial que estamos atravessando. Vejamos (documento em anexo).
Em que pese a emergência da situação, o Ministério Público e a Defensoria Pública, em uma atuação conjunta, tentaram junto à CEDAE, de forma extrajudicial, a imediata solução dos problemas apontados.
Assim, na data de 17 de novembro de 2020, os referidos órgãos oficiaram à CEDAE para que a mesma apresentasse esclarecimentos, soluções e providências às ouvidorias/reclamações anexadas (documento em anexo), com pedido de providências para fins de abastecimento de água.
Em sua resposta, esclareceu a Companhia demandada que foi identificada a necessidade de reparo emergencial em um dos motores da Elevatória Lameirão, dispositivo que integra o sistema Guandu e é utilizado para parte do abastecimento de água nos Municípios do Rio de Janeiro e Nilópolis, o que provocou a redução de 25% da capacidade de operação da Elevatória.
Alegou então a empresa que passou a adotar as seguintes medidas: Adoção de plano de manobras, a fim de assegurar abastecimento nas linhas adutoras que integram o sistema Guandu de forma contínua, porém alternada; disponibilização da carros pipa para abastecer ou complementar o abastecimento dos usuários, hospitais e órgãos públicos; abastecimento de água diário em 33 reservatórios instalados em 2020 pela CEDAE durante a pandemia; intensificação de publicação de informações aos consumidores pela mídia e sítios eletrônicos.
Após serem prestadas tais informações, foi realizada reunião por meio virtual no dia 26 de novembro de 2020, entre os representantes da Defensoria Pública e Ministério Público com a Diretoria da Companhia, onde foi reiterado a ocorrência de
problemas no motor da Elevatória do Lameirão e esclarecido que, em verdade, 3 motores apresentaram problemas (sendo que, segundo informado pela Companhia, a Elevatória funciona em plena capacidade com até 2 quebrados), o último deles em 14 de novembro de 2020 e que provocou a redução da capacidade de abastecimento.
Restou ainda apontado que o prazo de reparo seria apenas em 20 de dezembro e que, iriam ser realizados procedimentos de manobra da rede para que apenas em localidadades específicas e previamente informadas, iria ocorrer a falta d´água, permitindo ao consumidor ter ciência com antecipação e poder se programar.
Nesta oportunidade, a Defensoria e o Ministério Público apontaram a necessidade de máxima transparência ao longo de todo o processo para que fosse informado ao cidadão com antecedência se sua localidade seria ou não atingida, bem como prazo razoável para o pronto restabelecimento. Da mesma forma, indicou-se a necessidade de ser realizado um rodizio isonômico e proporcional entre as áreas a serem impactadas, não permitindo que os impactos se restringissem a moradores de determinadas localidades ou regiões carentes e vulneráveis.
Ressalta-se que, até aquele momento, apesar das reclamações, ainda não havia sido dada total transparência por parte da Companhia ré sobre a razão da falta de água. Tanto que o plano de manobra que já vinha sendo executado apenas passou a ser informado no site da empresa recentemente (em 01 de dezembro de 2020).
Foi então iniciado, no dia 27 de novembro de 2020, de maneira informal, reuniões e troca de informações entre estes membros para acompanhar a efetividade e execução das manobras.
No entanto, passados 1 semana de acompanhamento das medidas adotadas pela CEDAE, pôde ser constatado que as medidas adotadas pela empresa não produziram efeitos práticos desejados, ainda causando uma série de danos aos seus consumidores (reféns deste serviço monopolizado da mesma).
Registre-se ainda que, ao se iniciar a intervenção da Defensoria Pública e do Ministério Público no feito, foi apontado à empresa a necessidade de assunção de compromisso mediante instrumento formal para prestação de informações claras e tempestivas a população, constituição de Gabinete de Crise, medidas emergenciais efetivas, além de medidas compensatórias ao consumidor, que se viu obrigado a, mesmo com suas contas de consumo em dia com a CEDAE, ter de gastar dinheiro extra (muitas vezes se endividando) para obterem água para
sobreviverem, mediante caminhões-pipa, água mineral e outros meios alternativos.
No entanto, a CEDAE não apresentou solução satisfatória para atender os direitos dos consumidores prejudicados pela ineficiência da empresa, eis que a referida empresa pública não demonstrou interesse em ressarcir, de forma adequada e suficiente, os danos materiais e morais devidos a todos os prejudicados.
Com efeito, ao se analisar o gráfico das reclamações diárias (dados oficiais da Ouvidoria da CEDAE) entre os dias 29 de novembro até 02 de dezembro, período de execução do plano de manobra/rodídio realizado pela Companhia, observa-se que as localidades ou pontos de reclamações no mapa são muito semelhantes, o que demonstra que não houve melhora ou concentração apenas nos pontos afetados pelo plano de manobra, com um número diário de reclamações diretas à CEDAE quase em torno de 1.000 (mil)/dia.
Mapa de reclamação de falta d´água de 27a29/11 (dias do final de semana)
Mapa de reclamação de falta d´água de 30/11:
Mapa de reclamação de falta d´água de 01/12:
Mapa de reclamação de falta d´água de 02/12:
Assim, os pontos de reclamação que se repetem ao longo de todos esses dias de maneira semelhantes demonstram que as manobras de rodizio executadas não produziram qualquer efeito.
E o que é mais importante: as reclamações no mapa acima apontados não se concentram unicamente nas áreas afetadas pelo plano de manobra disponibilizado no site da Companhia. Para isso, basta um comparativo entre o mapa das reclamações acima e do plano de manobra disponibilizados no site da Companhia para esses dias (doc. em anexo).
A título exemplificativo, observa-se no gráfico abaixo grande concentração de reclamações nas regiões centrais da cidade, Ilha do Governador, Engenho de Dentro, não previstos no plano de manobra de 01 de dezembro de 2020.
Mapa de reclamação de falta d´água e plano de manobra previsto para dia 01/12:
Da mesma forma, ao se observar o número de reclamações informados pela CEDAE, não restou apontado uma grande redução no número de reclamações entre os mesmos dias na semana do plano de manobra e da semana anterior, com uma média de quase 1.000 (mil) reclamações diárias.
Segue também em anexo, diversas reclamações de consumidores (em especial nos bairros mais pobres da cidade), tanto expostas pela mídia como também através de reclamações nas redes sociais da empresa quanto a ausência de fornecimento do serviço por longo tempo, muitas das regiões sem água desde 15 de novembro.
Tudo isto demonstra a ineficiência da intervenção buscada.
Ademais, salta ao olhos um critério desproporcional ao se efetivar o rodízio de abastecimento de água que se concentrava unicamente na interrupção do serviço nos bairros mais vulneráveis da cidade.
Não é necessário muito esforço para demonstrar, através dos planos de manobra realizados e disponíveis no site da CEDAE (doc. em anexo), que as medidas de manobra se concentraram, quase que sua totalidade, em localidades mais humildes, representanto grande desequíbrio entre camadas sociais.
As informações disponíveis pela Companhia indicam que a Elevatório do Lameirão abastece, entre outras áreas, a Xxxx Xxx xx xxxxxx xx Xxx xx Xxxxxxx.
No entanto, nos planos de manobra, num primeiro momento, essas regiões não estavam entre as áreas a serem impactadas por essas manobras no fornecimento. Por outro lado, outras localidades da região metropolitana, como Municípios da Baixada (São João de Meriti, Duque de Caxias etc) que a princípio não seriam abastecidos pela Elevatória do Lameirão, passaram a também serem inseridos no plano de manobra, fazendo com que o problema da Elevatória causasse impactos em toda a Região Metropolitana.
Tais afirmações são confirmadas não somente pelas reclamações disponíveis na mídia, mas também pelo próprio sistema de Manobras anterior e de Atendimentos de pedidos de carros-pipa da CEDAE, em que se percebe que, nas primeiras 2 (duas) semanas do evento, somente bairros mais vulneráveis foram atingidos (somente após a intervenção da Defensoria Pública e do Ministério Público tal situação foi minimamente equalizada):
Por outro lado, merece ser destacado que já havia determinação judicial consistente na obrigação de fazer da Companhia demandada de garantir o fornecimento adequado de água potável neste período de pandemia, o que não vem sendo cumprido a contento pela ré.
Isto porque em outra Ação Civil Pública (n.º 0076803-21.2020.8.19.0001) ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro em litisconsórcio ativo com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em face da CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgoto, do Município do Rio de Janeiro, do Estado do Rio de Janeiro e do Instituto Rio Metrópole, para garantia do fornecimento adequado do serviço de água durante a pandemia do coronavírus, foi concedida a tutela de urgência, através de acórdão nos autos do Agravo de Instrumento n.º 0026608- 35.2020.8.19.0000, interposto pelos autores, para:
“determinar que CEDAE providencie a regularização do fornecimento de água em todas as áreas do MUNICÍPIO do Rio de Janeiro, vedada a exclusão das comunidades carentes, com a devida apresentação do cronograma necessário em prazo não superior a 05 (cinco) dias, para cumprir as seguintes medidas: adoção das providências necessárias para garantir o abastecimento adequado e regular de água nas redes da 1ª Agravada aos seus consumidores em todo o território do município do Rio de Janeiro, prioritária e especialmente nas comunidades carentes dotadas de rede de abastecimento regular de água, em prazo não superior a 48 (quarenta e oito) horas, a contar da reclamação do consumidor, da associação de moradores ou dos autores coletivos, para o abastecimento de toda a área afetada, garantido um mínimo de 20 litros por pessoa a ser entregue em distância razoável, nos termos preconizados pela ONU, OMS ou autoridade de saúde nacional, ficando autorizado o abastecimento por caminhões pipa ou colocação de torneiras públicas, para a satisfação do pedido de urgência, sob pena de multa diária de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), em caso de descumprimento”.
Assim, a decisão concedida determina, de maneira inconteste, que a CEDAE garanta durante a pandemia do coronavírus medidas efetivas de abastecimento em todo o território do Rio de Janeiro, inclusive áreas carentes dotadas de abastecimento regular. Mas, tendo em vista a ausência de cumprimento da referida decisão judicial, prejuízos foram e estão sendo causados aos consumidores da empresa desde o dia 15 de novembro de 2020, como acima narrado.
Como já exaustivamente apontado ao longo da inicial, estamos diante de um período de pandemia do coronavírus, com grande elevação do número de casos recentes e dificuldade de vagas na rede hospitalar de cobertura, pública e privada.
A água representa não apenas bem vital para a vida cotidiana, mas também uma das principais medidas de prevenção ao coronavírus com a higienização constante das mãos.
Caberia à Companhia ré, detentora do monopólio do fornecimento de água regular na região, tomar medidas preventivas e efetivas para garantir o acesso da população a este serviço, ainda mais quando há determinação judicial neste sentido.
No entanto, viu-se mais uma vez a falha na prestação da atividade, não garantindo um serviço eficiente e contínuo, como garantido pelo artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor.
Ressalta-se, por fim, que a AGENERSA, após instaurar o processo regulatório e apurar, liminarmente, os fatos que ocorreram na Elevatória do Lameirão, em especial, diante da flagrante ausência de manutenção preventiva dos equipamentos (motor bomba) que guarnecem aquela estação e, consequentemente, o desabastecimento de água em bairros do Rio de Janeiro, amparado nos pareceres técnico e jurídico daquela Agência Reguladora, aplicou multa a Companhia CEDAE no valor aproximado de R$ 1.350.000,00 (hum milhão, trezentos e cinquenta mil reais), ante a incontroversa falha na prestação do serviço público, que deveria ser adequado e eficiente.
Por isso, resta flagrante a falha na prestação do serviço de abastecimento de água pela CEDAE, causando danos de ordem material e moral aos seus consumidores, sendo necessário, pois o deferimento da tutela de urgência pleiteada, ante um problema trágico que poderia e deveria ter sido evitado (principalmente em uma situação de calamidade pública que estamos passando).
- DO DIREITO
ASPECTOS DO DIREITO INTERNACIONAL
O acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à sadia qualidade de vida,
reconhecido pela comunidade internacional (ONU e CIDH). Aspecto indissociável da moradia adequada, reconhecida no plano internacional pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, estabelecidos pela Convenção de Nova York de 1966, internalizada no direito brasileiro através do Decreto nº 591/1992.
A Constituição da República Federativa do Brasil também recenhece o direito a moradia adequada, elecando dentre as necessidades vitais básicas à moradia, alimentação, saúde, higiene etc, todos dependentes da água para sua concretização, (Art. 6º e art. 7° inciso IV da CRFB).
O Pacto Interncional de Direitos Econômicos e Sociais no Art. 11 prevê que: “Os Estados Partes do presente Xxxxx reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.” Continua no Art. 12: “Os Estados Partes do presente Xxxxx reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento é das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.
Para a concretização dos direitos previstos e assegurados no instrumento internacional a água é insumo indispensável, reconhecido como tal em diversos documentos internacionais do qual destacamos a Agenda 21 (capítulo 18) da Conferência e Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU) de 1992.3 Num dos mais recentes e completos trabalhos da
3 18.1 Os recursos de água doce constituem um componente essencial da hidrosfera da Terra e parte indispensável de todos os ecossistemas terrestres. O meio de água doce caracteriza-se pelo ciclo hidrológico, que inclui enchentes e secas, cujas conseqüências se tornaram mais extremas e dramáticas em algumas regiões. A mudança climática global e a poluição atmosférica também podem ter um impacto sobre os recursos de água doce e sua
Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Opinão Consultiva nº 23/2017, o direito à água foi reconhecido como um dos mais vulneráveis, merecendo a máxima atenção dos Estados Partes. Vejamos:
“66. A Corte considera que, entre os direitos particularmente vulneráveis a afetações ambientais, se encontram os direitos à vida105, integridade pessoal106, vida xxxxxxx000, xxxxx000 , xxxx000 , xxxxxxxxxxx000 , xxxxxxx000 , participação na vida cultural112 , direito à propriedade113 e o direito a não ser deslocado forçadamente114 . Sem prejuízo dos mencionados, são também vulneráveis outros direitos, de acordo ao artigo 29 da Convenção115, cuja violação também afeta os direitos à vida, liberdade e segurança das pessoas116 e infringe o dever de se conduzir fraternalmente entre as pessoas humanas117, como o direito à paz, já que as deslocações causadas pelo deterioro do meio ambiente com frequência desatam conflitos violentos entre a população deslocada e a instalada no território ao que se desloca, alguns dos quais por seu massividade assumem caráter de máxima gravidade.”
Diante do cenário de proteção internacional dos direitos ao meio ambiente, à sadia qualidade de vida e do direito à água potável o desabastecimento de milhares de pessoas, em época de pandemia, caracteriza grave afronta às normas internacionais e pátrias, merecendo reparo no âmbito da justiça interna e, quiçá, internacional.
DA MÁ PRESTACÃO DE SERVIÇO PÚBLICO E SUAS IMPLICAÇÕES SEGUNDO OS PRECEITOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O saneamento básico consubstancia um direito subjetivo e uma necessidade humana com o objetivo maior a manutenção da vida com qualidade, através da oferta de água potável e do desenvolvimento de soluções ao esgotamento sanitário com sua coleta e tratamento.
Para se ter ideia, de acordo com o Ministério de Saúde, 60% (sessenta por cento) das internações hospitalares de crianças são causadas pela falta de saneamento básico, portanto, trata-se de medida preventiva do direito à saúde.
disponibilidade e, com a elevação do nível do mar, ameaçar áreas costeiras de baixa altitude e ecossistemas de pequenas ilhas.
18.2 A água é necessária em todos os aspectos da vida. O objetivo geral é assegurar que se mantenha uma oferta adequada de água de boa qualidade para toda a população do planeta, ao mesmo tempo em que se preserve as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da capacidade da natureza e combatendo vetores de moléstias relacionadas com a água. Tecnologias inovadoras, inclusive o aperfeiçoamento de tecnologias nativas, são necessárias para aproveitar plenamente os recursos hídricos limitados e protegê-los da poluição.
Prevê a CRFB:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Por sua vez, a Lei nº 8080/1990, prescreve da seguinte forma:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.
Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem- estar físico, mental e social.
Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I - a execução de ações:
de vigilância sanitária; (...)
§ 1º Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo:
(...)
II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.
Na mesma toada, também incide a normatização do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), especialmente o seguinte dispositivo:
Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
Em razão disso, os serviços de saneamento básico, relacionam-se fortemente com a dignidade da pessoa humana, comportam-se como vertente do direito à saúde e se manifestam enquanto serviço público essencial, cuja prestação deve obedecer aos ditames constitucionais previstos no art. 175, o qual, além de explicitar que a sua prestação é incumbência do poder público, estabelece que sua manutenção deva ser feita de forma adequada, in verbis:
Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários; III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado. (g.n.)
Os serviços de água e esgoto ofertados pela CEDAE se enquadram no microssistema do CDC, sendo-lhes aplicáveis os seus arts. 6º e 22, in verbis:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
Omissis
X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Art. 22- Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.(g.n.)
Da mesma maneira, se aplica os princípios fundamentais da Lei nº 11.445-2007, que impõe a obrigatoriedade da empresa ré de disponibilizar um serviço público de saneamento básico adequado à saúde pública (Lei. 11445/07), entre eles:
Art. 2o Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais:
III - abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente;
IV - disponibilidade, em todas as áreas urbanas, de serviços de drenagem e de manejo das águas pluviais adequados à saúde pública e à segurança da vida e do patrimônio público e privado;
É importante esclarecer que o art. 3º, a Lei 11.445/2007, define saneamento básico como sendo o conjunto de serviços, infra-estrutura e instalações de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, in verbis:
Art. 3º. Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I - saneamento básico: conjunto de serviços, infra-estruturas e instalações operacionais de:
a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição;
b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente;
Outrossim, no ano de 2010 a Assembléia Geral das Nações Unidas reconheceu explicitamente o direito humano à água e ao saneamento. Trata-se de garantia inerente ao princípio da dignidade (art. 3º, III, CRFB/88) o direito fundamental de todo o ser humano a ter uma qualidade aceitável continuamente suficiente, segura e fisicamente acessível de água para o uso pessoal e doméstico.
A OMS e a UNICEF, desde 2004, no documento Guidelines Drinking-water Quality, já preconizavam que existem uma série de definições de acesso (ou cobertura), muitas com distintas qualificações quanto à segurança ou adequação, sendo a preferida a usada no "Programa Conjunto de Monitoramento", definindo como "acesso razoável" a "disponibilidade de pelo menos 20 litros por pessoa por dia dentro de um quilômetro da moradia do usuário.
À vista do conceito legal supra exposto, tem-se que é incontroverso a ausência de fornecimento de um um serviço essencial de abastecimendo regular de água aos consumidores sob a responsabilidade da Cedae na região do município do Rio de Janeiro.
A questão ganha ainda mais relevo considerando o momento grave de saúde pública não apenas no Brasil como no mundo todo, devido a pandemia do coronavírus
em que as medidas preventivas passam pela permanência em casa e higienização constante.
Imagine-se a gravidade da situação em que a pessoa é obrigada a permanecer em casa sem o recebimento do bem mais essencial: à água. E mais: como tomar medidas preventivas que passam pela higienização e lavagem das mãos sem água na residência?
Não se revela adequado relegar a população carente do Rio de Janeiro a uma situação de ausência de água em suas torneiras para poderem lavar as mãos.
A Cedae, detentora do monopólio do serviço, deve assumir sua responsabilidade. Assim é que toda a população da capital do Rio de Janeiro, sejam das mais diversas áreas e bairros, estão totalmente à mercê da obtenção de água de maneira privada por caminhão pipa ou ajuda de vizinhos e parentes para sobreviverem. Em análise quantitativa, no documento intitulado “A ONU e a água”, a Organização das Nações Unidas também preconiza que um abastecimento de água suficiente poderia ser definido “como uma fonte que possa fornecer 20 litros de água
por pessoa por dia a uma distância não superior a mil metros”.
Nesse sentido, frisa-se que o saneamento básico e a distribuição de água potável de qualidade são as atividades socioambientais mais importantes para a prevenção de doenças dentre todas as vinculadas às áreas de saúde pública. Na definição fixada pela OMS (Organização Mundial de Saúde), "saneamento é o controle de os fatores do meio físico do homem que exercem efeito deletério sobre o seu bem- estar físico, mental ou social'. Seu objetivo maior é a promoção da saúde do homem, porquanto muitas doenças podem proliferar devido à carência de medidas de saneamento, monitoramento e qualidade da água distribuída. No caso atual, o coronavírus!!
ÁGUA BEM DE USO COMUM DO POVO — MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE PROTEGIDO — DIREITO FUNDAMENTAL AO BEM-ESTAR E A SAUDE – O RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Meio ambiente, sob o ponto de vista científico-jurídico, é o conjunto de todas as condições e influências externas que afetam a vida e o desenvolvimento de um
organismo (humano ou não) - clássica definição de Xxxx Xxxxxx, Direito do Meio Ambiente, Editora RT, p. 737.
Na esfera jurídica do direito ambiental a Constituição da República estabelece que a ordem económica tenha entre seus princípios a •defesa do meio ambiente• e assegura que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado . E. por evidente, na órbita de proteção do meio ambiente se insere curialmente a água - como recurso natural - já que qualificado como bem de uso comum do povo e essencial à sobrevivência e qualidade da saúde e da vida humana, à luz do disposto no artigo 225,
`caput', da Constituição da República.
Art 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado , bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva -lo para as presentes e futuras gerações.
No âmbito da Política Nacional de Recursos Hídricos, edificada pela Lei 9.433 de 1997, além dos seus fundamentos (art. 20), objetivos (art. 30), diretrizes (art. 45 - entre as quais se destaca •a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos aspectos de quantidade e qualidade* - determina, entre os outros instrumentos dessa política (art. 5°), a existência. dos Planos de Recursos Hídricos; o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água; a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; e, por fim, a cobrança pelo uso de recursos hídricos.
Na parte do enquadramento dos corpos de água em classes (art. 9º), na esfera da citada política de recursos hídricos , previu-se ainda que os usos preponderantes da água deverão assegurar às águas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que forem destinadas, bem como diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações preventivas permanentes. Consigne-se que as classes de corpos de água serão estabelecidas pela legislação ambiental (art. 10). E por fim, o regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água (art. 11).
Por isso, entende-se como legítima e desejável a presente demanda para ver o réu obrigado a respeitar não apenas o arcabouço normativo já mencionado, como também o respeito à dignidade, saúde e vida dos usuários do seu serviço neste momento de crise de saúde pública mundial.
O princípio da dignidade da pessoa humana é um princípio de natureza constitucional, portanto, deve prevalecer sobre interpretações jurídicas equivocadas que com ela conflitem. Da leitura dos autos, com base em critérios internacionais de concepção da dignidade da pessoa humana4, buscamos a compreensão mínima deste direito em sua vertente vida e morte.
Se o início da concepção da dignidade da pessoa humana foi como fundamento para a proibição do lançamento de anões em 19955, muitas das lições aprendidas internacionalmente há anos atrás são mais do que válidas e necessárias neste momento. A dignidade é absoluta, é relacionada à toda humanidade (sendo indigno utilizar uma pessoa como um objeto, uma coisa).
A discussão jurídica desta questão é simplesmente o direito ao acesso à água, a todos, ricos e pobres, moradores dos mais diversos bairros da região metropolitana. Todos têm o direito a esse serviço essencial de maneira contínua e eficiente, inclusive para a higiene necessária como forma de inibir o contágio do coronavírus.
O Judiciário aqui está no limite de uma atuação que adentra as funções legislativas e executivas, mas que, na realidade, importa mais em uma forma de accountability, para a defesa e concretização de direitos. Uma transformação do Estado Democrático de Direito em um nível substancial, e não formal, um espaço de legitimação constituído pela função de garantia6. Uma nova visão da classificação das funções do Estado, com uma função de garantia atrelado ao judiciário, em seu papel no projeto democrático. O Poder Judiciário como jurisprudencialização da Constituição, da dignidade da pessoa humana neste caso concreto de efeitos gerais.
A chave central para aqueles que fazem o Direito nos níveis nacional e internacional é criar um clima em que a dignidade de todos os seres humanos possa florescer.7 Neste caso, almeja-se criar um clima em que todos os seres humanos possam tentar sobreviver.
4 Citamos o caso, por exemplo, do direito a habitação decente a pessoas menos favorecidas, em razão do interesse nacional de promover a dignidade das pessoas – FRA, 1995, Conselho Constitucional Decision no. 94-359 DC of 19 January 1995, Diversity of habitat.
5 Conselho de Estado Francês (Decisão de CE, Ass., 27 October 1995, Commune de Morsang-sur-Orge; Ville d'Aix- en-Provence).
6 Xxxxxx Xxxxxxx et al., Estado de direito e interpretação: por uma concepção jusrealista e antiformalista do Estado de Direito (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005), 7.
7 XXXXXX, Xxxxx, “Respect for human dignity: an Anglo-French comparison” (Doutorado, Canterbury, University of Kent at Canterbury, 2004), p. 350.
DA ESSENCIALIDADE DO SERVIÇO E DA BOA FÉ OBJETIVA
Trata-se de um serviço prestado a título de MONOPÓLIO. Somente a CEDAE pode fornecer água encanada aos consumidores da região metropolitana do Rio de Janeiro, em que pese não tenha havido licitação prévia para a concessão dos serviços, nem haja contrato escrito, estabelecendo metas de universalização e padrões de qualidade dos serviços prestados, ao arrepio da lei e da Constituição.
O comportamento da CEDAE em não atender ao fornecimento legitimamente esperado pela população, com o fornecimento de água para necessidades básicas, inclusive para poderem se higienizar, prevenirem o contágio pelo coronavírus, traduz- se em um comportamento reprovável, em flagrante falha na prestação do serviço.
A CEDAE já é devidamente remunerada, na cifra de aproximadamente um bilhão de reais, a título de lucro líquido no ano, para prestar o serviço de abastecimento de água à população fluminense (balanço em anexo).
A boa-fé, em sentido amplo, diga-se, é um conceito essencialmente ético, que podemos definir com base no magistério de Xxxxxx Xxxxxxxx como “a consciência de não prejudicar a outrem e seus direitos”.
A boa-fé objetiva é norma de comportamento positivada nos arts. 4º, III e 51, IV, do CDC, que cria três deveres principais: um de lealdade e dois de colaboração que são basicamente, o de bem informar (caveat venditor) o candidato a contratante sobre o conteúdo do contrato e o de não abusar ou, até mesmo, de se preocupar com a outra parte (dever de proteção).
Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx, a propósito da aplicação da cláusula geral de boa-fé, pontifica que as pessoas devem comportar-se segundo tal desiderato antes e durante o desenvolvimento das relações contratuais. Esse dever, para ele, projeta-se na direção em que se diversificam todas as relações jurídicas: direitos e deveres. Os direitos devem exercitar-se de boa-fé; as obrigações têm de cumprir-se também de boa-fé.
Importante a observação social da boa-fé objetiva, em seus reflexos para a coletividade, na forma disposta pelo professor Xxxxxxx, vejamos:8
8 TARTUCE, Xxxxxx. A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS, A BOA-FÉ OBJETIVA E AS RECENTES
SÚMULAS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Arte Jurídica: biblioteca científica de Direito Civil e Processo Civil, v. 3, p. 195-206, 2005.
De qualquer forma, pertinente lembrar que, pela função social dos contratos, os negócios jurídicos patrimoniais devem ser analisados de acordo com o meio social. Não pode o contrato trazer onerosidades excessivas, desproporções, injustiça social. Também, não podem os contratos violar interesses metaindividuais ou interesses individuais relacionados com a proteção da dignidade humana, conforme reconhece Enunciado n. 23 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil.
Fica clara a ausência de boa-fé da empresa Ré, bem com de seus deveres anexos de cooperação e lealdade, além da legítima expectativa quebrada, já que em momento algum aponta medidas diretas ou mesmo alternativas para o acesso imediato à água pela população carente da cidade do Rio de Janeiro.
Pode-se verificar a necessidade de o Réu arcar com o pagamento de água por carros-pipa em caso de defeito na prestação de seu serviço de abastecimento de água (o que parece ser o caso também nesta situação, em uma proporção muito maior e mais trágica). Vejamos (grifos nossos):
0353098-67.2010.8.19.0001 – APELAÇÃO
1ª Ementa
Des(a). XXXX XXXX XXXXX XXXXXXXX - Julgamento: 11/02/2020 - DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. CEDAE. RELAÇÃO DE CONSUMO. SERVIÇO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA. ALEGAÇÃO DE QUE O SERVIÇO É PRESTADO DE FORMA ESCASSA E IRREGULAR, SENDO NECESSÁRIA A AQUISIÇÃO DE CARROS-PIPA, BEM COMO QUE O CONSUMO É COBRADO POR ESTIMATIVA, NO PATAMAR DE MAIOR VALOR, EM RAZÃO DE INEXISTÊNCIA DE HIDRÔMETRO NO IMÓVEL. SENTENÇA QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTES OS PEDIDOS, PARA DETERMINAR QUE A CONCESSIONÁRIA PROMOVA O REGULAR, CONTÍNUO E EFICIENTE FORNECIMENTO DO SERVIÇO, BEM COMO PROCEDA À INSTALAÇÃO DE HIDRÔMETRO NA UNIDADE CONSUMIDORA, ALÉM DE CONDENAR AO PAGAMENTO DE R$ 5.000,00 A TÍTULO DE DANO MORAL.
IRRESIGNAÇÃO DA PARTE RÉ. Laudo pericial conclusivo no sentido de que "... não há abastecimento e água para a unidade em exame (...) A unidade do Autor não possui hidrômetro (...) No momento da vistoria não havia abastecimento no ramal de abastecimento; (...) há anos, não fornece água para o trecho da Rua Xxxxxxx Xxxxxx; Em decorrência da ausência no fornecimento de água pela CEDAE, a Autor construiu, às suas expensas, uma cisterna e adquire água proveniente de carros pipa". Falha na prestação do serviço. Dano moral configurado. Verba compensatória que deve ser mantida, apesar de aquém dos valores arbitrados por este Tribunal em casos semelhantes. Ausência de hidrômetro na unidade consumidora. Ilegalidade da cobrança por estimativa. Aplicação da Súmula nº 152 deste Tribunal de Justiça: "A cobrança pelo fornecimento de água, na falta de hidrômetro ou defeito no seu funcionamento, deve ser feita pela tarifa mínima, sendo vedada a cobrança por estimativa". Sentença que não merece reforma. Verba sucumbencial que deve ser majorada em 2% a título de honorários recursais, nos termos do artigo 85, parágrafo 11, do Código de Processo Civil de 2015. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
0073875-37.2019.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO
1ª Ementa
Des(a). XXXXXXX XX XXXXXXX XXXX - Julgamento: 22/01/2020 - VIGÉSIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CEDAE. AÇÃO INDENIZATÓRIA COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. DECISÃO QUE DEFERIU A TUTELA DE URGÊNCIA PARA DETERMINAR QUE A PARTE RÉ PROVIDENCIE, EM 48 HORAS E SEMPRE QUE SOLICITADA, A ENTREGA DE UM CARRO PIPA NA RESIDÊNCIA DO AUTOR, SOB PENA DE PAGAMENTO DE MULTADE R$200,00 (DUZENTOS REAIS) POR CADA DESCUMPRIMENTO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO PROLATADA. Trata-se de agravo
de instrumento interposto em face de decisão que deferiu a antecipação dos efeitos da tutela para determinar que a agravante forneça água ao agravado, através de carros pipa, sempre que solicitado e no prazo de 48 horas, sob pena de multa de R$200,00 por descumprimento. Em suas razões recursais, a agravante arguiu que tal forma de abastecimento destina-se preferencialmente a instituições públicas. Alegou ainda que o prazo de 48 horas não é razoável. Frise-se que um dos requisitos para justificar a antecipação dos efeitos da tutela é o perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. No caso em exame, o fornecimento de água é tido como essencial sendo que a interrupção do serviço é mais gravosa do que sua manutenção. Por outro lado, sob a ótica da agravante, a demanda ostenta um caráter eminentemente patrimonial e não há qualquer perigo de irreversibilidade da decisão prolatada. A multa imposta ostenta um caráter eminentemente coercitivo. Por fim, só cabe revisão da decisão que aprecia concessão de antecipação de tutela se teratológica, contrária à lei ou à prova dos autos, conforme preconiza o verbete nº 59 de súmula do TJRJ. DESPROVIMENTO DO AGRAVO.
0050311-29.2019.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO
1ª Ementa
Des(a). JDS XXXXX XXXXX XXXXX XX XXXXXXX XXXXXXXXXX - Julgamento: 27/11/2019 - VIGÉSIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RELAÇÃO DE CONSUMO. TUTELA DE URGÊNCIA.
Ação indenizatória. Autores que pretendem o restabelecimento do serviço de água. Ação ajuizada em face da CEDAE e F AB ZONA OESTE. Decisão que defere a tutela antecipada e determina que a concessionária restabeleça os serviços de fornecimento de água no endereço da parte autora, ainda que através de carros pipa, garantindo, no mínimo 15m3 de água por mês, sob pena de pagamento de multa mensal no valor de R$ 3.000,00. Ilegitimidade ad causam alegada pela agravante, que deve ser analisada pelo juízo a quo, sob pena de supressão de instância. No mérito, sustenta que o serviço é prestado de forma eficiente, adequada e contínua e que a decisão, se mantida, lhe acarretará prejuízos, requerendo a revogação da decisão agravada. Decisão que se mantém. Verossimilhança das alegações autorais. Periculum in mora configurado pela natureza do serviço. Artigo 300 do CPC. Multa fixada em patamar razoável. Inteligência do Enunciado nº 59 da súmula do TJRJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
DOS PARÂMETROS DE ANÁLISE E CONTROLE DOS GASTOS PÚBLICOS DURANTE CALAMIDADE PÚBLICA DE SAÚDE
Os efeitos catastróficos da pandemia mundial do Coronavírus, já devidamente demonstrados nos fatos, levam à constatação de que o mundo mudou, jamais será como antes, e não é mais possível retroceder para corrigir deficiências estruturais de cada país, seja na saúde, segurança ou no planejamento urbano e ocupação do solo.
Por outro lado, também não é mais possível utilizar de tais argumentos para se eximir de efetuar planejamento de emergência adequado e, principalmente, célere e eficiente, para conter a disseminação da Covid-19 em todas as localidades do Rio de Janeiro, especialmente as áreas mais vulneráveis.
A discricionariedade do administrador na alocação de verbas públicas nunca foi ilimitada ou livre de controle, sempre teve como parâmetro os princípios constitucionais, por sua vez espelhados nos documentos internacionais de Direitos Humanos.
E o acesso à água, como se sabe, é um direito humano fundamental, decorrente do direito à vida e à saúde. Apenas para corroborar tal conclusão, no ano de 2002 o Comitê da ONU elaborou a Observação Geral nº 15 que adota o direito de acesso à água como um direito incluído no âmbito dos direitos humanos à saúde, à vida digna e à alimentação, dispondo que: “o acesso a quantidades suficientes de água limpa para uso pessoal e doméstico é um direito fundamental de todos os seres humanos” (ONU, 2002). E como já dito, oito anos depois, em julho de 2010, a Assembleia Geral ONU reconheceu formalmente a existência do direito humano à água.
Assim, em tempos de calamidade em saúde é de se analisar com maior rigor as escolhas da Administração, sua omissão ou demora em agir, em cada área de atuação, notadamente quando sacrifique ou tenda a tornar ineficaz todo o planejamento de saúde efetuado para enfrentamento da calamidade.
E, sabidamente, da análise da resposta da CEDAE, confrontando-se com os documentos contidos no processo regulatório da AGENERSA, é evidente que a empresa pública poderia, mas não se planejou para a gravidade da emergência do reparo necessário na Elevatória do Lameirão, colocando dolosamente em risco a sáude das pessoas, mantendo práticas incompatíveis com o atual estado de
calamidade, que remontam à 2019, nem demonstrou, com informações transparentes, que a ordem constitucional foi observada, pelo contrário.
De toda a argumentação da CEDAE para informar que não existe deficiência na prestação ou não lhe cabe responsabilidade por essa dificuldade tem-se, inegavelmente, que a concessionária não compreendeu a gravidade da situação, a nova realidade e o papel que lhe cabe nela, uma vez que o fornecimento regular de água é primária à sobrevivência das pessoas, além de ser medida preventiva para adiar o número de casos graves de Covid-19 na população e, por consequência, o colapso do sistema de saúde do Estado.
Também não há desculpa para a deficiência no serviço de fornecimento de água ao argumento da dificuldade operacional e alto custo para o reparo da Elevatória do Lameirão, uma vez que o problema já se apresentou ao longo dos últimos anos, e nenhuma providência necessária foi tomada pela companhia para prevenir o problema que acontece hoje aos milhões de consumidores de água da empresa (doc. Agenersa).
Ainda que a CEDAE insista, perfilhando teses mais conservadoras da doutrina fazendária, que buscam evitar um agravamento da crise econômica que já enfrentam, e que tal quadro configuraria justo motivo objetivamente aferível a justificar o sacrifício do direito fundamental à saúde dos munícipes, a tese não se sustenta, na medida em que sua omissão ou demora em agir ante a constatação de falha na Elevatória do Lameirão há anos, foi a própria conduta omissiva e negligente da companhia que sacrificou todo o planejamento domiciliar de acesso à água e de planejamento público de saúde efetuado para enfrentamento da calamidade, e acabou resultando em gastos infinitamente maiores para os consumidores, tendo de ficar sem água ou comprar água de outras fontes (mesmo com suas contas em dia) do que eventual economia com a realização dos ajustes, reparo da elevatória, manobras na rede, reforço na vazão de água em equipamentos públicos que possam ser utilizados pelos moradores como pontos de apoio/fornecimento ou o próprio fornecimento de caminhões pipa, razão pela qual se faz necessária a tutela judicial para evitar que a CEDAE assuma a responsabilidade imediata pelos danos que estão sendo causados aos consumidores.
DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
A questão refere-se à responsabilidade civil atribuída à CEDAE, sociedade de economia mista, prestadora de um serviço público e aos demais entes públicos do pólo passivo. No plano constitucional, a regra básica sobre a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e também das prestadoras de serviços públicos está no artigo 37, § 6º, da CRFB:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Não obstante a previsão constitucional, os serviços públicos igualmente estão sujeitos ao Código de Defesa do Consumidor, a exemplo do previsto no artigo 22, como segue:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
Já o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor disciplina:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
Para o fim de delimitação da responsabilidade da CEDAE igualmente não se pode olvidar a regra do artigo 6º da Lei nº 8.987/95, segundo o qual:
Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
A partir das alegações contidas nesta petição inicial, o caso em julgamento é típico de ‘fato do serviço’, em virtude de defeito de prestação. Como adverte Xxxxxxx Xxxxxxxx:
O serviço mal feito ou executado pode provocar acidentes externos ou fatos que causem danos à aqueles para quem foi prestado. A pessoa junto à qual se contrata o serviço o realiza com defeitos ou imperfeições tais que advém não apenas perigo, mas prejuízos, ofendendo, assim, o dever de segurança.
(...)
A deficiente ou precária prestação de serviços é freqüente e comum, constituindo um dos fatores de constantes insatisfações e reclamações. Acontece em todos os campos de serviços, tanto os manuais como os intelectuais. (Responsabilidade Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 417.)
Assim sendo, a responsabilidade decorrente desta relação é objetiva, e aperfeiçoa-se mediante o concurso de três pressupostos: a) o fato do serviço; b) evento danoso, e; c) relação de causalidade entre o defeito do serviço e o dano.
Diante da comprovação da ausência de fornecimento de serviço adequado de abastecimento de água, conclui-se que o serviço prestado pelo réu é inadequado, pois coloca a saúde da população em risco, não atende às legítimas expectativas dos cidadãos, impondo-se o dever não só de indenizar, mas também de ser compelido a sanar os vícios.
DOS DANOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Além da obrigação de prestar um serviço eficiente e fornecer informações claras e adequadas quanto ao fornecimento e qualidade da água consumida pela população por ela abastecida, a ré também deve ser condenada a ressarcir os consumidores – considerados em caráter individual e coletivo - pelos danos, materiais e morais, que vem causando com as suas condutas.
O Código de Defesa do Consumidor consagra o princípio da responsabilidade do fornecedor independentemente de culpa. Irrefutável a obrigação de reparar os danos causados aos consumidores, já que constatada a permanente ofensa aos mais comezinhos direitos dos consumidores.
Tal preceito está positivado no CDC, art. 22, parágrafo único, combinado com o art. 6º, VI, que trata da forma de reparação dos danos:
Art. 22 Os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo Único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista nesse código. (grifouse).
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
Tal imposição legal se deve, in casu, à essencialidade do serviço público de abastecimento de água, do qual dependem diariamente 9 milhões de consumidores
abastecidos pela ETA Guandu e que estão sendo afetados pelo regime de manobras em razão do problema ocorrido na Elevatória do Lameirão.
Os danos decorrentes da inadequação e ineficiência do serviço prestado são inerentes à própria conduta da ré, consistente em não realizar as medidas de prevenção devidas (tinha ciência do problema na Elevatória e nada fez por anos), bem como pela demora em prestar as informações necessárias e claras sobre o regime manobras por bairros, com o único intuito de dificultar a organização da vida do consumidor e/ou evitar eventuais reclamações, ainda que em detrimento dos usuários/consumidores do serviço.
Além disso, evidentes e notórios os danos decorrentes da falta de abastecimento de água regular, tanto de natureza material, com a necessidade do consumidor arcar com formas alternativas de acesso à água, como a compra de carro pipa e água mineral para poder beber água ou poder realizar suas necessidades básicas, bem como de ordem moral, todos fatores que importam em uma responsabilização necessária da CEDAE com relação a todos os seus consumidores afetados, individualmente considerados.
Para tanto, deverá o réu ser condenado a ressarcir, sugerido mediante crédito na conta de consumo, as despesas de todos os consumidores afetados que tiveram que arcar com caminhão pipa, ou compra de água potável por outro meio durante esse período de falha na prestação do serviço. Tal obrigação a ser reconhecida judicialmente através do presente feito, determinará ainda que a Companhia crie canal administrativo próprio para recebimento de tais demandas, mediante protocolo e crédito na fatura seguinte, sob pena de liquidação individual da condenação por cada consumidor.
Ademais, tendo em vista a redução de operação da Elevatório no patamar de 25% de sua capacidade, o que produziu e continua produzindo efeitos nas mais diversas localidades da cidade do Rio de Janeiro, deverá a ré ser condenada a promover a redução de 25% da fatura de cobrança relativo ao período de 15 de novembro até a data do completo restabelecimento do serviço, tudo como forma de reparar os danos individualmente considerados aos consumidores.
Tal forma de reparação a ser adimplida através de desconto na conta de consumo de água, representa a forma mais adequada para se evitar a judicialização individual em massa, trazendo real utilidade ao provimento da presente ação coletiva.
Note-se também que tal metodologia de compensação de pagamento de água fornecida por terceiro ao invés da CEDAE encontra fundamento, de maneira análoga, na jurisprudência do TJRJ, em que decide-se que compete à CEDAE arcar com o pagamento de carros-pipa pela CEDAE para a prestação do serviço de abastecimento de água em situações de defeito no funcionamento do seu serviço na localidade, vejamos:
0006931-27.2008.8.19.0004 - APELAÇÃO
1ª Ementa Des(a). XXXXXX XXXXXX XXXXXXX XXXX - Julgamento: 29/01/2020 - VIGÉSIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL DIREITO DO CONSUMIDOR E DIREITO PROCESSUAL CIVIL.
CEDAE. FORNECIMENTO DE ÁGUA. ALEGAÇÃO DE COBRANÇA, INOBSTANTE A AUSÊNCIA DE FORNECIMENTO. PRETENSÃO CONDENATÓRIA EM OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM COMPENSATÓRIA DE XXXX XXXXX. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. IRRESIGNAÇÃO DAS PARTES. 1.
Hipótese submetida ao campo de incidência principiológico-normativo do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, vez que presentes os elementos da relação jurídica de consumo. 2. O laudo pericial técnico, a e-fls. 408/418, produzido sob o crivo do contraditório, assim concluiu: "Existe rede de abastecimento de água no local, mas não existe fornecimento de água na localidade. Não está sendo feito a cobrança pelo serviço de fornecimento de água devido o estado precário de fornecimento de água. Existe hidrômetro de numeração A 1 0C101940 montado em cavalete de 'A" com dois registros (antes e após o hidrômetro). Nenhuma irregularidade foi constatada no imóvel, assim como desvios ou ligações clandestinas." 3. Outrossim, verifica-se que, embora tenha a concessionária Ré alegado que o imóvel não possui reservatório de água, o i. expert do juízo, afirma que existe uma cisterna com capacidade de 13.000 litros que assiste a unidade. 4. Ante a existência de reservatório no imóvel, é possível o cumprimento da obrigação de fornecer água através de meios alternativos (carro pipa), conforme bem decidido pelo r. juízo a quo. 5. Não há nenhuma dúvida de que os serviços de utilidade pública devem ser prestados de maneira adequada, eficiente, segura e, em se tratando de serviço essencial, de modo contínuo. Tais atributos, com efeito, não constituem um plus, mas, sim, verdadeiros deveres do prestador, com os quais não pode transigir o aplicador do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 6. A prova dos autos aponta, inequivocamente, para a inobservância dos atributos antes referidos e, consequentemente, de deveres jurídicos básicos, do que resulta a lesão a direitos fundamentais dos consumidores. 7. Desta feita, a Ré não trouxe qualquer prova no sentido de provar cabalmente fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do Autor, a teor do art. 373, II, do CPC. 8. Violados
deveres jurídicos originários, exsurge, nítido, o dever jurídico sucessivo de recompor os danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes. 9. Os danos morais encontram-se devidamente configurados, aplicando-se ao caso o verbete da Súmula nº 192, desta e. Corte. 10. Verba compensatória arbitrada com moderação e prudência (R$15.000,00, sendo R$ 5.000,00, para cada Autor), em conformidade com o princípio da proporcionalidade, bem observando o caráter punitivo-pedagógico de que deve se revestir a mesma. Incidência do verbete da Súmula nº 343, desta e. Corte. 11. RECURSOS NÃO PROVIDOS.
Outrossim, importante apontar que o valor que se pretende ver reparado individualmente através da presente ação se mostra razoável e proporcional.
Por outro lado, para além do dano indivualmente considerado, na forma acima apontado, com relação ao dano moral coletivo, cabem as seguintes considerações:
A Constituição Federal de 1988 alçou o direito à reparação do dano moral à categoria de direito fundamental, previsto no próprio artigo 5º da Carta Magna em dois de seus incisos:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O Código Civil de 2002, por sua vez, assevera que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186). Esse dispositivo encontra complemento na seara da responsabilidade civil no art. 927, no qual é estabelecido que o cometimento de ato ilícito, nos termos dos arts. 186 e 187, gera a obrigação de repará-lo.
Em sua modalidade dano moral coletivo, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx o define:
(...) O dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa,
devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa). (XXXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro):
Segundo a doutrina e jurisprudência, constitui dano moral coletivo a lesão a interesses metaindividuais, tais como: publicidade enganosa, publicidade abusiva, acidentes de consumo, o dano ambiental, etc.
Da mesma forma, no presente caso, em que existe ofensa à coletividade dos consumidores, atingida pela má prestação do serviço de (des)abastecimento de água potável adequada, sendo disponibilizado por muitos dias para uma pessoa poder atender às suas necessidades básicas, ainda mais num período de forte calor e com efeitos da pandemia do coronavírus, trata-se, pois, de hipótese de dano moral coletivo, cuja reparação deve ter efeito pedagógico para dissuadir os ofensores de práticas semelhantes, tudo em razão de uma conduta negligente de gestão que causou todo este prejuízo à população, com medidas preventivas que poderiam e deveriam ter sido evitadas.
Ressalta-se o perigo de outra bomba da Elevatória do Lameirão apresentar defeito e toda a Cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana ficar sem água por semanas... a prevenção neste sistema de abastecimento de água é vital, e a aplicação do dano moral coletivo nesta vertente preventiva também se revela educativo.
O CDC é claro ao estabelecer como direito do consumidor a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, coletivos e difusos.
Assim sendo, não parece adequado entender que apenas os danos individuais mereçam reparação, sob uma perspectiva estreita de vincular a aferição do dano moral ao dever de reparação do sentimento da “dor” e “constrangimento” de as pessoas ficarem sem água para necessidades básicas, contando com a ajuda de terceiros, quando não tiverem condições financeiras de comprar água por outras fontes (mesmo em dia com suas contas de consumo com a CEDAE).
Tal visão adotada pelo Código Civil e Código de Processo Civil possui cunho eminentemente individualista e, portanto, deve ser adequada à determinação constitucional que resguarda os direitos metaindividuais.
Daí por que o dano moral coletivo não leva em conta apenas os aspectos “dor e constrangimento” resultantes da violação do Princípio da Dignidade Humana, para reparar o bem difuso. A imposição do dever de reparar tem cunho não apenas
preventivo e/ou punitivo, mas também caráter pedagógico e reparador. Não se pode ignorar a premissa de que também a comunidade sofre os efeitos de um dano extrapatrimonial, e, assim sendo, deve haver efetiva proteção coletiva assegurada pela norma fundamental do ordenamento jurídico brasileiro.
Tendo isso em vista, a doutrina e jurisprudência nacional, têm admitido a configuração dessa “nova subespécie’ de dano moral, cumprindo salientar que o Superior Tribunal de Justiça vem a reconhecendo, reiteradamente, em suas decisões, tais como: I - REsp 866.636, caso que ganhou repercussão nacional, a 3ª turma do STJ manteve a condenação do laboratório Schering do Brasil ao pagamento de danos morais coletivos no importe de R$ 1 milhão de reais, em decorrência da comercialização do anticoncepcional Microvlar sem o princípio ativo; II - REsp 1.221.756, um banco foi condenado ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 50 mil por manter caixa de atendimento preferencial somente no segundo andar de uma agência, o que restringia o acesso de indivíduos que possuíam dificuldades em se locomover; III - REsp 1.180.078, a 2ª Turma do STJ reconheceu a existência de dano moral coletivo que serviria como reparação pecuniária pelos danos reflexos e pela perda da qualidade ambiental.
Ainda no campo jurisprudencial, merece destaque o entendimento da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx que prescreve: “nosso ordenamento jurídico não exclui a possibilidade de que um grupo de pessoas venha a ter um interesse difuso ou coletivo de natureza não patrimonial lesado, nascendo aí a pretensão de ver tal dano reparado”.
Colacionando julgado mais recente acolhendo a necessidade de reparação do dano moral coletivo, veja-se didático julgado do STJ:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR. TELEFONIA. VENDA CASADA. SERVIÇO E APARELHO. OCORRÊNCIA. DANO MORAL COLETIVO. CABIMENTO. RECURSO
ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Trata-se de ação civil pública apresentada ao fundamento de que a empresa de telefonia estaria efetuando venda casada, consistente em impor a aquisição de aparelho telefônico aos consumidores que demonstrassem interesse em adquirir o serviço de telefonia. (...) A possibilidade de indenização por dano moral está prevista no art. 5º, inciso V, da Constituição Federal, não havendo restrição da violação à esfera individual. A evolução da sociedade e da legislação têm levado a doutrina e a jurisprudência a entender que, quando são atingidos valores e interesses fundamentais de um grupo, não há como negar a essa coletividade a defesa do seu
patrimônio imaterial. 8. O dano moral coletivo é a lesão na esfera moral de uma comunidade, isto é, a violação de direito transindividual de ordem coletiva, valores de uma sociedade atingidos do ponto de vista jurídico, de forma a envolver não apenas a dor psíquica, mas qualquer abalo negativo à moral da coletividade, pois o dano é, na verdade, apenas a consequência da lesão à esfera extrapatrimonial de uma pessoa. 9. Há vários julgados desta Corte Superior de Justiça no sentido do cabimento da condenação por danos morais coletivos em sede de ação civil pública. Precedentes: EDcl no AgRg no AgRg no REsp 1440847/RJ, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 15/10/2014, REsp
1269494/MG, Rel. Ministra XXXXXX XXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe 01/10/2013; REsp 1367923/RJ, Rel. Ministro XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 06/09/2013; REsp 1197654/MG, Rel. Ministro XXXXXX XXXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado
em 01/03/2011, DJe 08/03/2012. 10. Esta Corte já se manifestou no sentido de que "não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso, que dê ensanchas à responsabilidade civil. Ou seja, nem todo ato ilícito se revela como afronta aos valores de uma comunidade. Nessa medida, é preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. (REsp 1.221.756/RJ, Rel. Min. XXXXXXX XXXXX, DJe 10.02.2012). (...). 12. Afastar, da espécie, o dano moral difuso, é fazer tabula rasa da proibição elencada no art. 39, I, do CDC e, por via reflexa, legitimar práticas comerciais que afrontem os mais basilares direitos do consumidor. 13. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1397870/MG, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA
TURMA, julgado em 02/12/2014, DJe 10/12/2014)
Uma vez evidenciado o dano moral coletivo, resta agora quantificar o valor da condenação a título de compensação, tarefa esta tormentosa entre os operadores do direito, mas que a jurisprudência cuidou de tratar, estabelecendo critérios para tanto, quais sejam, a extensão do dano, as condições socioeconômicas e culturais dos envolvidos, o grau de culpa do agente, de terceiro ou da vítima.
Evoluindo a jurisprudência sobre a metodologia para quantificar o dano moral, a partir dos já citados critérios, atualmente, vem-se aplicando o método bifásico de fixação do quantum indenizatório. Assim, na primeira fase, é fixado um valor básico de indenização de acordo com o interesse jurídico lesado e em conformidade com os
precedentes jurisprudenciais. Na segunda fase, há a fixação definitiva da indenização de acordo com as circunstâncias particulares do caso concreto.
Entende-se como adequado à título de fixação do dano moral coletivo, o parâmetro de 5% do lucro líquido da empresa declarado no último ano em que o balanço foi divulgado. No caso, no balanço de 2019 divulgado pela própria empresa foi apurado como lucro líquido o valor de R$ 1.022.034.000,00 (um bilhão e vinte e dois milhões e trinta e quatro mil reais). Assim, os autores postulam a título de DANOS MORAIS COLETIVOS a quantia de, no mínimo, 5% do referido valor (proporcional ao período afetado), representado em R$ 51.101.700,00 (cinquenta e um milhões, cento e um mil e setecentos reais).
A conduta da CEDAE se enquada em uma ilicitude lucrativa, e deve ser reparada integralmente, de acordo com Xxxxxx Xxxxxxxxx:
“Uma condenação com base em disgorgement requer a demonstração de excepcional circunstância que justifique a expropriação dos benefícios do demandado, impedindo uma atividade lucrativa. Danos sociais de cunho não correlativo – posto desvinculados de quaisquer perdas do ofendido – que evidenciem a desaprovação da sociedade quanto a condutas antijurídicas movidas pela realização de lucros. Mesmo sendo certo que não há nenhum vínculo entre o demandante e o ganho, além do fato de que esse ganho foi consequência de um ilício no qual aquele foi a vítima, juízes e tribunais podem se servido do disgorgement como uma poderosa ferramenta social em nome de toda a coletividade (...)”
Entendem os autores que a referida reparação por dano moral coletivo, poderá ter melhor aderência aos consumidores lesados se revertidos diretamente, in natura, na conta dos consumidores individuais, através de desconto proporcional entre todas as contas de consumo abastecidas pela Estação do Guandú e atingidas pelo plano de manobra da Companhia, a ser acrescido ao dano individualmente considerado.
Tal valor é razoável considerando as conclusões das investigações demonstradoras da conduta evitável pela CEDAE, ao não adotar condutas mínimas para se evitar o problema anunciado da Elevatória do Lameirão, além do fato de, em sua “discricionariedade”, ter escolhido prejudicar somente os bairros pobres afetados na região, em uma conduta recriminável à luz de uma nítida discriminação por classe
social, incompatível com o princípio da igualdade em um Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, decorrido quase um mês do início do problema, com o fornecimento diário de água irregular para uma boa parcela da população, com a negativa da CEDAE em assumir a responsabilidade pelo seu erro, seja individualmente a cada pessoa afetada, seja coletivamente, o problema ainda persiste em muitas localidades, apesar de já estarmos chegando próximo às festas de final do ano.
- INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Tratando-se da peculiaridade da causa, além da situação também inerente a uma relação de consumo, aplicam-se as regras insertas no CDC e no CPC, em especial àquelas que atribuem a inversão do ônus da prova:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
Art. 373 do CPC.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
Cumpre destacar que pela possibilidade do juiz inverter o ônus da prova, em respeito à teoria dinâmica do ônus da prova, tal também constitui um direito necessário frente a uma situação de prova negativa, dificuldade de locomoção e demais diligências frente à pandemia e ao isolamento social imposto nacionalmente, ao domínio das informações relevantes pelos réus, e dos meios para a efetivação deste direito discutido, além do direito do consumidor com o fim de se facilitar sua defesa no processo, desde que presente, conforme leitura do dispositivo legal supratranscrito, um dos seguintes requisitos: a) Verossimilhança da alegação do consumidor (é
incontroversa a ausência da prestação do serviço essencial); ou b) sua hipossuficiência (dificuldade em provar o ocorrido, pois a empresa e o poder público possuem a maior parte da documentação), aferida segundo as regras ordinárias de experiência.
Não se pode olvidar da possibilidade de ampliação da inversão do ônus da prova admitida no parágrafo 3º do Art. 373, sempre objetivando a melhor produção da prova:
§3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Nesse sentido, verifica-se sem maiores dificuldades a consubstancialidade nestas previsões legais, através da análise do caso em tela, sendo, portanto, imperiosa a inversão do ônus da prova.
- DA TUTELA DE URGÊNCIA:
Os documentos e as considerações feitas no decorrer da exordial, em especial as diversas tentativas de composição extrajudicial no âmbito da Defensoria Pública e do Ministério Público, a demonstração de falta de interesse em se chegar a uma solução eficiente para que a população do Rio de Janeiro possa ter acesso à água para suas necessidades básicas, o risco a que estão expostos sem poder se higienizar como proteção ao coronavírus, e todo o prejuízo da população afetada, evidenciam a presença de prova inequívoca e da verossimilhança das alegações ora expostas no que concerne a violação do princípio da Legalidade Estrita, das normas do Código de Defesa do Consumidor, e da Constituição da República de 1988.
A probabilidade do direito restou demonstrada diante das considerações acerca da violação às normas já trazidas à colação na exordial.
Está presente o perigo de dano e risco ao resultado útil do processo, uma vez que a ausência do fornecimento de água de maneira adequada para o consumo e higiene, obrigando as pessoas a, mesmo com suas contas em dia, terem de gastar mais uma quantia significativa de seu orçamento doméstico, muitas vezes inexistente, para adquirir água por outras fontes para as necessidades básicas diárias da pessoa.
Ressaltando a indefinição gerada em razão da saúde financeira futura da empresa, ante a notório iminente licitação em curso do sistema de distribuição de água e serviço de esgotamento sanitário no Estado do Rio de Janeiro.
De plano, vê-se que a documentação juntada aos autos constitui prova inequívoca dos fatos alegados, evidenciando-os de maneira inconteste que inexiste abastecimento regular e adequado de água em diversas regiões do Rio de Janeiro. Eis a cristalina verossimilhança das alegações.
A tutela de urgência faz-se necessária para garantir a indenização futura, e também a efetivação de uma redução proporcional na conta de consumo dos usuários abastecidos pela Elevatório do Lameirão, que estão com redução da capacidade de abastecimento em 25%, fazendo com que muitos consumidores tenham que arcar com valores extras (muitas vezes que não possuem) para adimplir com suas necessidades básicas e conseguir meios alternativos de acesso à água, não podendo aguardar o tramite regular do feito para, arcando agora com tais despesas, apenas ver qualquer redução de sua conta após a sentença.
- DOS PEDIDOS
Diante das razões acima expostas, requer a Vossa Excelência:
a) A CONCESSÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA, inaudita altera parte, para:
a.1- Determinar o bloqueio judicial nas contas da Ré no valor de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais), como forma de tutela cautelar, com o fim de garantir o pagamento das indenizações aos consumidores individual e coletivamente considerados.
a.2- Determinar que a ré providencie a redução mensal na conta de consumo de água da CEDAE aos consumidores da Região Metropolitana, atingidos pelo desabastecimento e respectivo Plano de Manobra, no valor de 25% (vinte e cinco por cento) do valor correspondente ao consumo de água, do período de 15 de novembro de 2020 até o completo restabelecimento do serviço, patamar este proporcional à redução da capacidade do Lameirão, sob pena de multa diária, sugerida no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), em caso de
descumprimento e/ou outras medidas eficazes a serem determinadas por V. Exa.;
a.3 – Determinar que a ré exclua da conta de consumo, inclusive sobre o valor da fatura mínima, tanto dos consumidores com ou sem hidrômetro, os dias em que a localidade de domicílio do consumidor permaneceu sem qualquer abastecimento de água, durante o período de manobra da CEDAE, iniciado em
15 de novembro de 2020 até o completo restabelecimento do serviço, devidamente demonstrado pela companhia nos autos, sob pena de multa diária, sugerida no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), em caso de descumprimento e/ou outras medidas eficazes a serem determinadas por V. Exa.;
b) Seja concedida a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, a vista do que dispõem o artigo 18 da Lei n. 7.347/85 e artigo 87 da Lei n. 8.078/90;
c) A designação de audiência de conciliação/mediação a ser realizada no prazo de trinta dias, bem como a citação dos Réus, com a antecedência mínima de vinte dias, para, querendo comparecer viabilizando a conciliação ou responder aos termos da presente, nos moldes dos artigos 334 e 335, do CPC;
d) Requerem, ainda, sejam as intimações eletrônicas dirigidas aos seguintes órgãos: CAP. DEFENSORIA PUB. NUDECON e a 5ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE TUTELA COLETIVA DO CONSUMIDOR DA CAPITAL (para os devidos fins, no primeiro grau de jurisdição), nos termos dos arts. 186, §1º e 272,
§5º do CPC, sob pena de nulidade.
e) A PROCEDÊNCIA do pedido para, confirmar os efeitos da tutela de urgência, e emitir preceito definitivo, determinando que a ré seja condenada a:
e.1 – ressarcir, da forma mais ampla e completa possível, os danos materiais e morais de que tenham padecido os consumidores, individualmente considerados, em virtude dos fatos narrados, a serem apurado em liquidação, em especial:
e.1.1- relativo às despesas dos consumidores da Região Metropolitana, atingidos pelo desabastecimento e respectivo Plano de Manobra, para aquisição de carro pipa ou outro meio de aquisição de água potável, durante o período de manobra da CEDAE em razão dos problemas técnicos da Elevatória do Lameirão, iniciado em 15 de novembro de 2020 até o completo restabelecimento do serviço, requerendo que a indenização seja efetuada através de crédito nas contas futuras, devendo ser determinado que a Companhia, para efetivação da presente condenação, estabeleça canal administrativo próprio para recebimento de tais demandas e comprovantes de despesas (mediante protocolo e crédito na fatura seguinte), sob pena de liquidação individual da condenação por cada consumidor;
e.1.2 – em confirmação dos efeitos da tutela de urgência, promover a redução na conta de consumo de todos os consumidores da Região Metropolitana no percentual de 25% da fatura de cobrança relativo ao período de 15 de novembro até a data do completo restabelecimento do serviço;
e.1.3 – Determinar que a ré exclua da conta de consumo, inclusive sobre o valor da fatura mínima, tanto dos consumidores com ou sem hidrômetro, os dias em que a localidade de domicílio do consumidor permaneceu sem qualquer abastecimento de água, durante o período de manobra da CEDAE, iniciado em
15 de novembro de 2020 até o completo restabelecimento do serviço, devidamente demonstrado pela companhia nos autos, sob pena de multa diária, sugerida no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), em caso de descumprimento e/ou outras medidas eficazes a serem determinadas por V. Exa.;
e.2 - Condenar a ré a indenizar os danos morais coletivos, a serem determinados pelo prudente arbítrio desse MM. Juízo em valor que sugerimos não inferior a valor de R$ 51.101.700,00 (cinquenta e um milhões, cento e um mil e setecentos reais) ou outro valor razoável determinado pelo juízo, devendo tal montante ser, preferencialmente, revertido diretamente, in natura, na conta do consumidor através de desconto proporcional para todas as contas de consumo da Região Metropolitana, atingidos pelo desabastecimento e respectivo Plano de Manobra, a ser acrescido ao dano material. Caso se entenda pela impossibilidade de sua reversão in natura, mediante desconto aos consumidores, deverá ser revertido em favor do Fundo Estadual de Defesa do
Consumidor ou outro projeto especificamente revertido em proveito dos consumidores afetados.
f) Condenar a Ré ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, a serem revertidos para o CEJUR de cada órgão autoral, através de depósito em conta vinculada ao órgão, nos termos da lei 1146/87;
Finalmente, protestam, nos termos do artigo 332, do Código de Processo Civil, pela produção de todas as provas em direito admissíveis, notadamente a documental e pericial, sem prejuízo da inversão do ônus da prova previsto no art. 6o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor.
Em especial, requerem a intimação da Fiocruz e UFF para tomarem ciência do processo e intervirem como amicus curiae, caso assim desejem.
Dá-se à causa, por força do disposto no artigo 258, do Código de Processo Civil, o valor de R$ 51.101.700,00.
Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2020
assinado eletronicamente
XXXXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX
Promotor de Justiça
Mat. 1.819
(5ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE TUTELA COLETIVA DO CONSUMIDOR DA CAPITAL)
assinatura eletrônica XXXXXXX XXXX DE XXXXXXX XXXXXX
Defensor Público Coordenador do NUDECON Mat. 969.598-2
assinatura eletrônica
THIAGO BASILIO