ASSUNTOS:
Processo n.º 296/2003
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 13/Maio/2004
ASSUNTOS:
- Aplicação da lei no tempo no respeitante ao regime do arrendamento
- Contrato de arrendamento para fim especial transitório
- Prova do contrato de arrendamento
SUMÁRIO:
1. É de aplicar o novo Código Civil a um contrato de arrendamento no que respeita à sua extinção e regime, celebrado anteriormente à sua entrada em vigor, numa acção intentada depois desta data, vistas as normas de aplicação da lei no tempo e o disposto no artigo 17º do Dec.-Lei prembular nº 39/99/M de 3 de Agosto.
2. A interpretação do que seja um fim especial transitório para caracterizar os arrendamentos assim denominados deve respeitar situações particulares e transitórias, tais como sejam os arrendamentos para fins especiais, por curtos períodos ou para finalidades específicas
de curta duração, v. g. casas de praia, em termas ou outras formas de descanso ou gozo de férias. A duração, enquanto elemento do contrato, deve ceder perante a transitoriedade que se assume como elemento essencial do conceito, isto é, independentemente do tempo do contrato, releva-se aqui a utilização efectiva do locado pelo arrendatário.
3. Arrendar parte de uma fracção, por oito anos, para servir de sala de gás, em apoio a um restaurante, o que supõe um fornecimento permanente, ainda que tenha cessado o contrato de fornecimento de gás, mantendo-se ali equipamento do arrendatário, não deve integrar o conceito de natureza especial transitória.
O Relator,
Xxxx X. X. Gil de Oliveira
Processo n.º 296/2003
(Recurso Civil e Laboral)
Recorrente: (A) Companhia Limitada Recorrido: (B)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
(B), casado, residente em Macau na Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, x.x xx, Xxxxxxxx xx, xx andar “A”, intentou, nos termos do disposto nos artigos 929º e ss. do Código de Processo Civil, ACÇÃO ESPECIAL DE DESPEJO contra “(A) COMPANHIA LIMITADA”, sociedade comercial com sede na Avenida Horta e Costa, n.º xx, r/c, em Macau (cfr. doc. n.º 1),
alegando, em síntese, ser dono e ter dado de arrendamento à Ré, pelo prazo de 8 anos, a partir de 1 de Abril de 1991, parte da fracção autónoma para estabelecimento comercial com entrada pelos n.ºs x-A e x-B da Rua Xxxx Xxxxxxxx, descrito na Conservatória do Registo Predial
de Macau sob o n.º 21347, a fls. 6 verso do livro B 49, fracção essa registada a seu favor pela inscrição n.º 121946 dolivroGM-125 (cfr. doc. n.º 2).
Findo o prazo estipulado continuou a ocupar a parte arrendada da fracção autónoma sem pagamento de renda.
A final, veio a ser proferida douta sentença, tendo-se decidido condenado a Ré:
1. A despejar o locado que tomou de arrendamento e a entregá-lo ao Autor livre e devoluto de pessoas e coisas;
2. A pagar ao A. um montante equivalente ao dobro das rendas vencidas até a data da propositura da acção, que perfazem no total de MOP$414,720.00, e, ainda rendas vincendas desde a interposição da acção até efectiva entrega do locado, acrescida ainda do montante a liquidar em execução de sentença, a título de reembolso dos custos processuais e despesas de patrocínio do A.
É desta decisão que vem interposto recurso pela Ré, ora recorrente, (A) Companhia Limitada que alega, fundamentalmente:
Dispõe a alínea a) do n.° 1 do artigo 2º RAU que este não é aplicável aos arrendamentos para fins especiais transitórios.
A fracção em causa nos presentes autos destinava-se única e exclusivamente a sala de gás do Restaurante "The xx Court", destinando-se assim a um fim especial transitório.
Efectivamente, o contrato de "arrendamento" da fracção estava indissociavelmente ligado ao contrato de fornecimento de gás para o referido Restaurante (como resulta provado das respostas dadas aos quesitos 5º a 11º da base instrutória e dos contratos juntos à petição inicial sob o n.º 4 e juntos à contestação sob o n.º 2 e como parte integrante do documento com o n.º 3), razão pela qual os contratos de "arrendamento" e de fornecimento de gás tinham a mesma duração.
Não sendo o RAU aplicável aos contratos de arrendamento para fins especiais transitórios, não é igualmente a acção de despejo o meio próprio para a denúncia desse contrato.
O tribunal a quo errou ao aplicar o RAU, ao invés das regras gerais da locação previstas nos artigos 1022º ss. do Código Civil à data em vigor, como resulta do n.º 2 do artigo 1º RAU.
Foi dado como provado em sede da acção ordinária que corre os seus autos no segundo juízo do Tribunal Judicial de Base com o n.º CAO-015-01-2, a qual opõe igualmente A. e Ré, ainda que em posições opostas, aquando da inspecção judicial realizada no dia 9 de Maio de 2003 ao mesmo local, que a Ré não possuía a chave do locado, sendo necessário recorrer ao arrombamento da porta de acesso ao local.
Só nessa data foi à representante legal da Xx entregue a chave das novas fechaduras, pelo que só nessa data entrou a ré na posse do locado, estando apenas desde então em condições de dele retirar os seus pertences, como vinha reclamando à longa data.
Não tendo a posse do locado, nem o seu gozo, falta um elemento essencial do contrato de arrendamento (cfr. artigo 3° RAU) ou de locação
(cfr. artigo 1022º CC), pelo que não era a acção de despejo o meio próprio para a denúncia desse contrato.
Pelo que errou o tribunal ao aplicar as regras previstas no artigo 929º ss. CPC.
Termos em que, conclui, no sentido de ser a acção julgada improcedente e de ser alterada aquela decisão.
(B), ora recorrido, contra alega, formulando as seguintes conclusões:
A qualificação do contrato objecto dos presentes autos como de "arrendamento para fim especial transitório" não foi suscitada perante a primeira instância judicial, seja nos articulados, seja em audiência de julgamento, como também a Ré não carreou para os autos quaisquer factos que pudessem sustentar tal qualificação.
Nenhuma das respostas aos quesitos 5° a 11° da Base Instrutória, que a Ré invoca como demonstrativos da dita "qualificação", contém qualquer referência ao teor do contrato, à vontade das partes no momento da sua celebração, ao alegado propósito ("especial") que as mesmas desejaram para o referido contrato de arrendamento ou mesmo à transitoriedade do dito contrato, antes, pelo contrário, nas referidas respostas (aos quesitos 5° a 11°) apenas se relatam meras vicissitudes da utilização do imóvel locado.
O conceito de "contrato de arrendamento para fim especial transitório" constava já do Código Civil anteriormente em vigor em Portugal (artigo 1083°, n.° 2) e do posterior Regime de Arrendamento Urbano aprovado para substituir aquele (no respectivo artigo 5°). Xxxxxx o citado artigo 1083° que o regime geral do arrendamento previsto no Código Civil não era aplicável aos "arrendamentos para habitação, por certos períodos, em praias, termas ou outros lugares de vilegiatura ou para outros fins especiais transitórios" - assim se definindo, de forma expressa, a maior parte dos casos (específicos) em que um contrato de arrendamento era celebrado para "fim especial transitório".
As elaborações que a jurisprudência produziu na aplicação do referido normativo, não contêm qualquer referência a contratos como o "sub-judice", antes as decisões da jurisprudência reiteram que os arrendamentos para fins especiais transitórios são arrendamentos celebrados para curtos períodos ou para finalidades específicas de curta duração.
Quando a jurisprudência faz a precisão referido pela recorrente quanto à duração como elemento de caracterização deste tipo especial de contrato, não está a excluir a transitoriedade como elemento essencial do conceito, mas sim a clarificar que o essencial quanto à duração, não é o termo do contrato mas sim a da utilização efectiva do locado pelo arrendatário.
Em absoluto, o documento junto pela Ré não contém qualquer elemento que permita aferir da posse da fracção locada, a quem pertencia
nem a quem foi entregue, pelo que não há base factual, nem legal para a Ré extrair as ilações que verteu nesta matéria em sede de alegações.
Ficou provado nos presentes autos que a posse jurídica e material da fracção locada é, obviamente, da Ré, que recebeu a posse com a celebração do contrato e desde então não restituiu o locado ao A., no termo do contrato, como era sua obrigação enquanto locatária.
Por outro lado, ainda que o documento em questão tivesse o teor que a Ré lhe atribui (e que, manifestamente, não contém), sempre o mesmo seria insuficiente, de per se, para ter o efeito jurídico de atribuir ou retirar a posse do locado à Ré. Nos referidos autos (CAO-015-01-2) ainda não se iniciou a audiência de julgamento, não tendo sido produzida qualquer prova a esse respeito.
Qualquer facto que se venha a provar na referida acção ordinária (CAO-015-01-2) não produz quaisquer efeitos entre A. e Ré por não existir nem identidade de partes, nem identidade dos demais elementos processuais, nomeadamente do objecto.
O contrato objecto dos presentes autos qualifica-se como contrato de arrendamento normal e, por isso, sujeito ao regime do RAU.
A sentença contém omissão qualificável como "omissão ou lapso manifesto" para os efeitos do artigo 570° CPC, que admite rectificação por esse douto tribunal, nomeadamente por a parte dispositiva do acórdão não conter também a condenação da Ré a pagar ao A. indemnização correspondente ao dobro da renda, desde a interposição da acção até efectiva restituição da fracção locada, conforme resulta da parte expositiva
do acórdão em consonância com a indemnização prevista nos artigos 19° e 35° do RAU.
Termos em que, entende que deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida, com todos os efeitos legais, devendo a sentença ser rectificada de forma a dela passar a contar, não só a condenação da Ré a pagar ao A. um montante equivalente ao dobro das rendas vencidas até à data da proposição da acção, que perfaz o total de MOP$ 414.720,00, mas também a condenação da Ré a pagar ao A. uma indemnização correspondente ao dobro das rendas venci das e vincendas desde a data da proposição da acção até efectiva restituição da fracção locada, valor a liquidar em execução de sentença (a par da condenação já expressa de fazer o reembolso dos custos processuais e despesas de patrocínio do A.).
*
Oportunamente foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os seguintes factos:
Da Matéria de Facto Assente
- O Autor é dono e legítimo proprietário da fracção autónoma para estabelecimento comercial com entrada pelos n.ºs x-A e x-B da Rua Xxxx Xxxxxxxx, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.° 21347, a fls. 6 verso do livro B49, fracção essa
registada a seu favor pela inscrição n.º 121946 do livro GM-125 (alínea A da Especificação).
- A referida fracção autónoma encontra-se inscrita na matriz predial sob o n.º 7292, em nome do autor (alínea B da Especificação).
- O Autor celebrou com a Ré no dia 9 de Julho de 1992 um contrato de arrendamento nos termos do qual o Autor arrendou parte da referida fracção autónoma à Ré, pelo prazo de 8 anos, com efeitos retroactivos a partir de 1 de Abril de 1991 (alínea C da Especificação).
- O Autor e a Ré acordaram igualmente, nos termos daquele contrato, que a renda mensal a pagar pela Ré, na qualidade de arrendatária, seria de MOP$4.000,00 (quatro mil patacas), e que o valor da renda seria elevado em 20% de dois em dois anos (alínea D da Especificação).
- A Ré obrigou-se de igual modo a pagar adiantadamente ao Autor, de uma só vez, as rendas correspondentes aos oito anos de arrendamento, no montante de MOP$15.328,00 (quinze mil trezentas e vinte e oito patacas) (alínea E da Especificação).
- A Ré já tinha pago adiantadamente as rendas correspondentes a um período de 8 anos ao anterior proprietário do prédio (alínea F da Especificação).
- Por decisão do então Tribunal de Competência Genérica, e confirmado com outros fundamentos pelo Tribunal e 2ª Instância, reconheceu-se razão à Ré, considerando que tendo a Ré pago
antecipadamente as rendas ao anterior proprietário, já nada teria que pagar ao autor (alínea G da Especificação).
- Se 1/04/97 a 31/03/99 a importância da renda seria de MOP$165.588,00 quer dizer que o valor da renda mensal seria de MOP$6.912,00 mensal. Esse valor acrescido de 20% dá um valor mensal de MOP$8.294,40 (alínea H da Especificação).
Da Base Instrutória
- O prazo do contrato de arrendamento terminou em 1/04/99 ( 1991 a 1999=8 anos) (Resposta ao quesito 1º).
- Findo prazo estipulado, a Ré continuou e continua a ocupar a parte arrendada da fracção autónoma sem pagar qualquer quantia (Resposta ao quesito 2º),
- O Autor solicitou por diversas vezes antes e após 1/04/99, quer directamente, quer por via do mandatário da Ré, a efectiva desocupação da parte ocupada do prédio e a sua efectiva restituição (Resposta ao quesito 3º),
- Desde 1/04/99 até 1/05/01, a Ré não pagou ao Autor a quantia de MOP$207,360,00, correspondente ao valor total das rendas reclamadas pelo Autor, calculadas da seguinte forma: MOP$8,294,40 x 25 meses (Resposta ao quesito 4º),
- Aquando da compra da fracção o Autor tinha perfeito conhecimento da existência do contrato de fornecimento de gás e do uso da respectiva "sala da gás" pela Ré (Resposta ao quesito 5º),
- O Autor deixou de encomendar gás à Ré, durante os meses de Novembro de 1991, Dezembro de 1993, Janeiro e Fevereiro de 1994 e de Agosto de 1994 até ao final do prazo estipulado no contrato de fornecimento de gás, isto é, até Março de 1999, num total de 89 meses (fls. 133 a 251) (Resposta ao quesito 6º),
- Assim, apesar de ter cumprido a sua parte do acordo, pagando MOP$515,328,00, equivalente a 8 anos de utilização da sala de gás, a Ré ficou impossibilitada de fornecer, como contrapartida, gás durante esse período (Resposta ao quesito 7º).
- Desde, pelo menos, Agosto de 1994 que o fim para o qual foi arrendada a fracção afecta à colocação dos equipamentos de fornecimento de gás deixou de existir (Resposta ao quesito 8º) .
- Face ao não consumo de gás por parte do Autor, deixou de se servir dos aparelhos colocados na fracção, logo, da própria fracção, atento a sua afectação exclusiva aos referidos aparelhos (Resposta ao quesito 9º).
- A referida fracção encontra-se fechada, há muito tempo, com um cadeado, o que torna impossível o acesso da Ré (Resposta ao quesito 10º).
- No locado encontram-se guardados aparelhos da Ré (Resposta ao quesito 11º).
- A Ré não usou o local há muito tempo (Resposta ao quesito 12º).
III – FUNDAMENTOS
O objecto do presente recurso passa, no essencial, pelas seguintes questões, tantas quantas as levantadas no recurso sob apreciação:
- Da inaplicabilidade do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 12/95/M, de 14 de Agosto (doravante “RAU”);
- Das consequências a retirar da junção da certidão judicial, emitida em 15 de Julho de 2003, relativa a uma inspecção ao local.
*
1. Quanto à alegada irregularidade apontada pelo recorrido no que concerne ao cumprimento do disposto noo ao artigo 598º do CPC que, sob a epígrafe “Ónus de alegar e formular conclusões”, determina, nomeadamente, que “versando o recurso sobre matéria de direito” deve o Recorrente indicar a norma jurídica que, no seu entendimento, deveria ter sido aplicada, não se deixará de remeter para o que adiante se disser sobre essas matéria.
2. Sustenta a recorrente nas suas alegações de recurso que a fracção em causa se destinava inequivocamente a um “fim especial transitório”, a que se refere a alínea a) da Lei n.º 12/95/M, de 14 de Agosto (RAU), na medida em que se destinava única e exclusivamente a “sala de gás”, cuja finalidade era servir de apoio logístico ao fornecimento de gás ao Restaurante “The xx Court”, razão pela qual os contratos de “arrendamento” e de fornecimento de gás tinham a mesma duração.
Não sendo o RAU aplicável aos contratos de arrendamento para fins especiais transitórios, não seria igualmente a acção de despejo o meio
próprio para a denúncia desse contrato, pelo que errou o tribunal a quo, ao aplicar esta lei, ao invés das regras gerais da locação previstas nos artigos 1022º ss. do Código Civil à data em vigor, como resulta do n.º 2 do artigo 1º RAU.
Antes de mais, não se deixa de constatar que não resulta da douta sentença recorrida que tenha sido o anterior regime do arrendamento urbano o aplicado, bastando ver as inúmeras referências ao Código Civil vigente, em que a mesma se louvou, aliás, dentro da correcta interpretação das normas de aplicação da lei no tempo e do disposto no artigo 17º do Dec.-Lei prembular nº 39/99/M de 3 de Agosto.
De qualquer modo, assinala-se que o contrato inicial em análise se integra no género do contrato de locação, na medida em que uma das partes, o A., se obrigou a proporcionar à Ré o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (artigo 969° do Código Civil), pelo período de 8 anos, contrato que se tipifica como arrendamento por versar sobre coisa imóvel (artigo 970° do Código Civil) e, ainda, como arrendamento comercial porquanto se relaciona com o exercício da empresa comercial da Ré (artigo 1045º do Código Civil).
Anota-se ainda que, tanto nos termos do Código Civil (CC) em vigor, como do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), anteriormente aplicável, os direitos do senhorio (ora recorrido) têm o mesmo enquadramento e a mesma protecção, lançando mão do mecanismo de acção de despejo para defender o seu direito.
E tanto o regime do RAU como o do CC excepcionam a aplicação de certas normas do regime jurídico próprio do arrendamento àqueles que sejam celebrados para fins especiais transitórios (cfr. art. 1029, nº2 do CC e 2º, nº1, a) do RAU.
Pretende a recorrida integrar o arrendamento em causa nesta espécie, como sendo um contrato de arrendamento para fim especial transitório.
Não lhe assiste qualquer razão.
O conceito de "contrato de arrendamento para fim especial transitório" constava já do Código Civil anteriormente em vigor em Portugal (artigo 1083° n.º 2) e do posterior Regime de Arrendamento Urbano, aprovado para substituir aquele (no respectivo artigo 5°). Previa o citado artigo 1083° que o regime geral do arrendamento previsto no Código Civil não era aplicável aos "arrendamentos para habitação, por certos períodos, em praias, termas ou outros lugares de vilegiatura ou para outros fins especiais transitórios" - assim se definindo, de forma expressa, a maior parte dos casos (específicos) em que um contrato de arrendamento era celebrado para "fim especial transitório". Na evolução legislativa subsequente, tanto no RAU de Macau, como no novo CC, a previsão normativa passou a consagrar apenas a previsão, por totalmente abrangente, respeitante a “arrendamentos para fins especiais transitórios”.
A interpretação daquele preceito deve respeitar situações particulares e transitórias, tais como sejam os arrendamentos para fins especiais, por curtos períodos ou para finalidades específicas de curta
duração, v. g. casas de praia, em termas ou outras formas de descanso ou gozo de férias. A duração, enquanto elemento do contrato, cede perante a transitoriedade que se assume como elemento essencial do conceito, isto é, independentemente do tempo do contrato, releva-se aqui a utilização efectiva do locado pelo arrendatário. Independentemente do prazo do contrato de arrendamento, se o locado só for utilizado durante um mês por ano, pelo inquilino em gozo de férias, está preenchido o conceito de arrendamento para fim especial transitório.
Esta interpretação, como refere o Prof. A. Xxxxxx0, extrai-se exactamente da expressão utilizada pelo legislador, já que “a referência genérica da parte final da alínea (outros fins especiais transitórios) revela a verdadeira ratio legis do preceito: a lei recusa a tutela própria da legislação vinculística, nomeadamente o princípio da relocação obrigatória imposta ao senhorio pelo arrendatário, aos arrendamentos destinados a ocupar o imóvel, pelo seu fim, não durante o ano inteiro, mas apenas por períodos ou épocas de curta duração na roda do ano.”
Ora, arrendar parte de uma fracção, por oito anos, para servir de sala de gás, em apoio a um restaurante, o que supõe um fornecimento permanente, ainda que tenha cessado o contrato de fornecimento de gás, - havendo sempre que distinguir, ainda que se trate da mesma pessoa, entre senhorio e dono do restaurante -, não pode, de forma alguma, considerar-se que esse contrato tem a natureza especial transitória de que fala o normativo acima referido.
1 - CC Anot.3ª ed., II, 528
Assim, não se acolhe a qualificação que a recorrida veio fazer do respectivo contrato, como contrato de arrendamento para fim especial transitório.
Acresce que, ao defender a inadmissibilidade da acção de despejo nestas situações, limitando-se a remeter para o regime geral de locação, estatuído no Código Civil (artigo 1022° e seguintes), é verdade que a recorrida não explicitou quais as consequências da aplicação do regime do Código Civil, quais as normas que, em concreto, deveriam ser aplicadas pelo Tribunal a este caso e quais os efeitos jurídicos daí resultantes, isto é, se, em concreto, por causa disso, o despejo não devia ter sido decretado.
Muito embora o erro na forma de processo não gere o indeferimento do pedido - cfr. art. 145º do CPC - , não se deixará de dizer que, se era esta conclusão que pretendia retirar dessa argumentação, o certo é o que o não referiu expressamente, pelo que ao omitir esta parte essencial da sua argumentação, a recorrida, faltando ao cumprimento do disposto no artigo 598°, n.° 2 al. c) do Código de Processo Civil, não forneceu os elementos necessários conducentes à conclusão de que foram preteridos actos ou formalidades que abalaram o seu direito de defesa ou do contraditório, ou quais os elementos em concreto que de alguma forma abalaram os fundamentos subjacentes à decisão de despejo e consequente entrega da coisa arrendada, de forma a considerar que o pedido devia ter sido desatendido. É questão, contudo, que se mostra ultrapassada, face à posição que se tomou quanto à qualificação do contrato.
Mas não se deixará ainda de dizer que, mesmo que se entendesse que se tratava de um contrato de arrendamento para fins especiais transitórios, não é seguro que a tal contrato se lhe não aplique a acção de despejo, face ao disposto no nº 3 do artigo 1029º do CC e artigo 929º do CPC.
3. Importa agora analisar a questão que se prende com as consequências que se pretendem retirar da junção da certidão judicial, emitida em 15 de Julho de 2003, relativa a uma inspecção ao local (cfr. fls 410 e v.).
Pretende a recorrente retirar desse documento e pelo facto de a Ré não possuir a chave do locado, tendo sido necessário recorrer ao arrombamento da porta de acesso ao local, que não estaria na posse do locado, só então passando a estar em condições de dele retirar os seus pertences. Pelo que, não tendo a posse do locado, nem o seu gozo, faltando um elemento essencial do contrato, não podia haver contrato de arrendamento ou sequer de locação.
Xxxxx simplesmente se dirá que o referido documento comprova apenas aquilo que ali se descreve, não estando em causa a existência de um contrato de arrendamento devidamente comprovado nos autos e como tal, correctamente qualificado e tratado na douta sentença recorrida.
Não é pelo facto de se ter de arrombar a porta do locado e, aparentemente, o locatário não estar a utilizar o local arrendado que se pode concluir pela inexistência do contrato. Em todo o caso, sempre ali
xxxxxxxx aparelhos seus e sempre podia fazer uso do arrendado, removendo os obstáculos a essa utilização. A posse jurídica e material pertence à Ré, ora recorrente, como ficou provado nos presentes autos, sendo-lhe conferida a posse com a celebração do contrato, sendo que não restituiu o locado ao A., no termo do contrato, como era sua obrigação.
A relação jurídica eventualmente existente com terceiros (recorrente e restaurante), tanto quanto se alcança da identificação das partes na acção ordinária n.º CAO-015-0-2, donde a aludida certidão foi extraída, em nada interfere na presente acção, até porque nada foi alegado nesse sentido.
Não merece, pois, a sentença recorrida qualquer censura, mostrando-se atempadamente feita a rectificação pretendida que não vem, aliás, posta em crise
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 13 de Maio de 2004, Xxxx X. X. Gil de Oliveira (Relator) – Xxxx Xxx Xxx – Xxx Xxx Xxxx