O Contrato de Fretamento de Navio por Viagem: O Regime das Estadias, Sobrestadias e Subestadias
O Contrato de Fretamento de Navio por Viagem: O Regime das Estadias, Sobrestadias e Subestadias
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx
Resumo: O presente artigo versa sobre o contrato de fretamento de navio para o transporte marítimo de mercadorias nas suas três modalidades – por viagem, a tempo e em casco nu -, bem como os critérios distintivos das mesmas. Abordar-se-á, sobretudo, o fretamento por viagem e os problemas que resultam das estadias do navio em porto para operações de carga e descarga de mercadorias, com especial incidência no problema da ultrapassagem do período convencionado de estadia, denominado sobrestadia, e as suas consequências. Dar-se-á ainda nota da situação de não utilização integral do período de estadia, denominada subestadia.
Palavras-chave: contrato de fretamento; estadias; aviso de navio pronto; frete; suplemento de frete; sobrestadias; subestadias.
Sumário: I. Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias e Contrato de Fretamento – Origem Comum e Pontos de Distinção | II. Contrato de Fretamento | 1. Regras Comuns | 2. Modalidades do Fretamento | 2.1. Fretamento por Viagem | 2.1.1. Obrigações das partes | 2.1.2. Estadias, sobrestadias e subestadias | § 1.º Estadias | § 2.º Sobrestadias | § 3.º Subestadias | III. Conclusão.
I. Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias e Contrato de Fretamento – Origem Comum e Pontos de Distinção
O transporte marítimo de mercadorias é, por definição, transporte internacional. A sua lógica original é a do transporte de grandes quantidades de mercadorias a longa distância1. Por decorrência, o direito marítimo é, essencialmente, direito internacional. Os interesses comerciais internacionais essencialmente comuns têm, porém, contribuído acentuadamente para um esforço de unificação do direito marítimo que, mais do que em outras áreas jurídicas, surge como uma realidade. Neste esforço, não é de mais salientar o papel preponderante que a IMO2, agência da ONU especificamente dedicada a lidar com questões marítimas (sobretudo ligadas à segurança da navegação, nomeadamente nas vertentes de prevenção de perdas e danos resultantes de fenómenos naturais e actos não intencionais [safety] e de actos intencionais, de origem humana [security], bem como de preservação eficaz do ambiente marinho), tem vindo a assumir nas últimas décadas.
Acresce a isto um outro factor de unificação resultante da prática secular: a utilização global da língua inglesa, como língua de base do shipping3 (muito embora não possa deixar de se atentar num certo caráter ambivalente deste factor, sendo considerado por certa doutrina, sobretudo francesa, como uma dificuldade, dadas as reações de alguns países no tocante à proteção das respectivas línguas nacionais e ao fomento do seu uso). O mundo marítimo não é, porém, um mundo de perfeição e harmonia. A unificação do direito marítimo tem, naturalmente, limites, mormente os que resultam das reações normativas de cada jurisdição nacional, colocando aos aplicadores do direito o encargo de resolver múltiplos problemas de conflitos de leis.
1 Muito embora, recentemente, preocupações de índole ecológica e energética tenham estado na origem de programas da União Europeia de fomento ao transporte marítimo de curta distância (o short sea shipping como modo de operação nas chamadas “auto-estradas do mar”) [xxxxx://xxx- xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/XXX/?xxxxXXXXX:00000XX0000&xxxxxXX].
2 Acrónimo inglês da Organização Marítima Internacional (International Maritime Organization).
3 XXXXXXXX XXXXXXXXXX, Droit Maritime, 13eme édition, 2014, Dalloz, e-book, § 43.
Em Portugal, desde finais do Séc. XIX, o direito (comercial) marítimo teve a sua sede normativa no Livro III do Código Comercial de 1888. Era aí que, entre outros, se encontrava previsto o contrato de transporte marítimo de mercadorias.
Por via desse diploma, até 1986, o contrato de transporte marítimo de mercadorias confundia-se com o contrato de fretamento, decorrendo do disposto no art.º 542.º do Código Comercial4, que o objeto do contrato designado por “fretamento” tanto poderia ser o navio, ou parte dele, como as mercadorias a transportar naquele.
XXXXX XXXXXX0 dá-nos notícia de ter sido na legislação francesa de 1966 que primeiro se sistematizou a diferenciação entre os conceitos de fretamento e de transporte marítimo. Decomposta na sua simplicidade máxima, a diferença entre os dois conceitos traduzir-se-ia no seguinte: o fretamento respeita a um navio; o transporte, a uma carga. Não querendo deixar margem a dúvidas, o legislador português deixou esta distinção bem vincada no riquíssimo preâmbulo do D.L. n.º 352/86, de 21 de Outubro6, demonstrando à saciedade a influência recebida nesta matéria da doutrina francesa, sobretudo de Xxxx Xxxxxxx.
É, portanto, recente, a distinção jurídica feita em Portugal entre duas figuras que, de facto e na prática, vinham sendo compreendidas como realidades distintas desde muito antes.
4 Cuja formulação era a seguinte:
O contrato de fretamento póde ser:
1.° Redondo, por todo o navio; 2.° Por uma parte do navio; 3.° Por uma ou mais viagens;
“Artigo 542.º
4.º Á carga, á colheita ou á prancha, quando o capitão recebe de todos quantos se lhe apresentam as fazendas que bem lhe parece para serem carregadas e transportadas ao porto do destino;
5.° Por objectos determinados ou designados somente pelo seu numero, peso e volume.
§. 1.° Na falta de declaração o contrato presume-se ser de fretamento redondo.
§. 2.° Declarando o fretador ser o navio de lotação superior ou inferior á sua lotação real, se a differenca exceder a vigesima parte d'esta, o afretador tem direito a indemnisação por perdas e damnos”.
5 Estudos Sobre o Novo Direito Marítimo, Fretamento e Transporte Marítimo, Algumas Questões, Coimbra Editora, 1999, 303.
6 Contudo, apenas com o D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril (art.º 49.º), o art.º 542.º do Código Comercial veio a ser expressamente revogado.
Esta raiz comum dos dois contratos, justificada por semelhanças do fim económico de ambos, não é, porém, original do direito português (ou, para este efeito, do francês). Ainda hoje, em alguma doutrina anglo-saxónica, é classificado genericamente como contrato de fretamento (contract of affreightment7) o que é celebrado pelo proprietário, armador ou fretador de um navio, diretamente ou através de um agente, e mediante o qual aquele se obriga a transportar mercadorias por mar ou a fornecer um navio para esse propósito8. Além-Mancha, este contrato de fretamento genérico poderá assumir diversas formas, sendo as duas mais tradicionais a carta-partida [charterparty] e o conhecimento de carga [bill of lading]9.
II. Contrato de Fretamento
1. Regras Comuns
O art.º 1.º do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, define o contrato de fretamento de navio como aquele em que uma das partes (o fretador) se obriga em relação à outra (o afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete.
Como decorre da definição legal, o objeto imediato do contrato de fretamento é, pois, um navio. De acordo com o disposto no art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, do D.L. n.º 201/98, de 10 de Julho (Estatuto Legal do Navio), o navio é o engenho flutuante destinado à navegação por água, do qual fazem parte integrante, além da máquina principal e das máquinas
7 Esta designação não é, todavia, unívoca ou pacífica, dado que a mesma é também comummente, e até sobretudo, utilizada para designar o contrato de volume, inclusivamente em alguns dos contratos- tipo mais comuns no mercado, e.g., o GENCOA, da BIMCO, ou o INTERCOA, da INTERTANKO. Veja- se a propósito, para referência, XXXXX XXXXXX, Sobre os Trabalhos Preparatórios da Lei Marítima de Macau, in Estudos Sobre Arbitragem Comercial e Direito Marítimo, Almedina, 2006, 224-225.
8 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, The Contract of Affreightment as Expressed in Charterparties and Bills of Lading, Eigth Edition, Sweet and Maxwell, Limited, London, 1917, 1; XXXX X. XXXXXX, Carriage of Goods by Sea, Pearson Education Limited, 7th Edition, 3; a própria UNCTAD assim o considerou no seu Charter Parties, Report by the Secretariat of UNCTAD, 1974, NY, § 20.
9 XXXXX XXXXXXX (Shipping Law, 6th Edition, Routledge, 8) considera a carta-partida (embora apenas correspondente ao fretamento por viagem) e o conhecimento de carga como as principais formas do contrato de transporte de mercadorias por mar (contracts of carriage of goods by sea).
auxiliares, todos os aparelhos, aprestos, meios de salvação, acessórios e mais equipamentos existentes a bordo necessários à sua operacionalidade. Trata-se, assim, de uma coisa móvel dotada de certas características funcionais (engenho destinado à navegação por água)10, as quais serão indispensáveis, do ponto de vista da finalidade pretendida pelo afretador, para que o contrato possa ser considerado como de fretamento (com efeito, o próprio preâmbulo do D.L. n.º 191/87 exclui do âmbito do fretamento a utilização do navio para fins não relacionados com a navegação marítima). Da definição da lei resulta ainda que o contrato de fretamento é um contrato bilateral, sinalagmático e formal11. Com efeito, esta última característica, que resulta do disposto no art.º 2.º do D.L. n.º 191/87, decorre da exigência de redução do contrato a escrito através de documento particular designado carta-partida.
Concatenando os artigos 6.º, n.º 1, 23.º e 34.º, do D.L. n.º 191/87, em qualquer das modalidades de fretamento, a carta-partida deve conter os seguintes elementos:
a) a identificação do navio, através do nome, nacionalidade e tonelagem;
b) a identificação do fretador e do afretador;
c) o frete.
Tradicionalmente, tem vindo a ser considerado pela doutrina12 que, no fretamento, a relação entre o fretador e o afretador é de equilíbrio, pautando-se essencialmente pela isometria económica das partes. Como tal, não se justificaria aqui a protecção jurídica que o direito interno e o internacional vêm dispensando aos pequenos e médios carregadores no âmbito do transporte marítimo de mercadorias. É este entendimento que justifica que o regime legal seja sobretudo supletivo, deixando às partes a regulação na carta-partida dos termos do contrato (art.º 3.º do D.L. n.º 191/87).
10 XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, Da Natureza Jurídica do Navio, in II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo, O Navio, Almedina, 2012, 11.
12 XXXX XXXXXXX, Droit Maritime, Neuvième édition, 1982, Dalloz, 284.
Ora, em qualquer das suas modalidades, a obrigação principal do fretador é a de apresentar, na data e local acordados com o afretador, um navio concreto em estado de navegabilidade (art.º 7.º, al. b), do D.L. n.º 191/87).
O estado de navegabilidade pressuposto pela lei implica que, na data em que deva iniciar a ou as viagens, o navio reúna as condições, quer náuticas quer comerciais, necessárias ao fim para que se destina, de acordo com o estipulado na carta-partida, isto é, que não só seja adequado a enfrentar razoavelmente os perigos do mar que sejam previsíveis na viagem ou viagens que visa empreender [seaworthiness] como seja também adequado a transportar a mercadoria convencionada [cargoworthiness]13. A falta de qualquer uma destas condições determina a inavegabilidade do navio e, consequentemente, o incumprimento do contrato de fretamento14.
Sem prejuízo do exposto, em função da modalidade de fretamento que esteja em causa, o conceito de navegabilidade poderá ser objecto de maior ou menor concretização, podendo ser mais denso - no caso do fretamento por viagem - ou menos denso - no caso do fretamento em casco nu.
No que tange à obrigação principal do afretador, ela é sempre a de pagamento do frete, cuja forma de determinação, contudo, varia em função da modalidade de fretamento que esteja em causa (no fretamento por viagem, o frete será determinado em função das concretas viagens contratadas e da quantidade de mercadoria a transportar; no fretamento por tempo e no fretamento em casco nu, o frete será, à partida, determinado em função do tempo de duração do contrato).
Refira-se, ainda, que o fretamento é um instrumento jurídico adequado a servir qualquer finalidade lícita do afretador, com exceção do fretamento por viagem, que
13 XXXXXXXXXXX XXXXXXX, Fretamento de Navio para Transporte de Mercadorias, in I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo, O Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias, Almedina, 2008, 313; no âmbito da explicação da obrigação implícita de navegabilidade do navio na common law, veja-se também XXXXXX, ob. cit., 9-10; XXXX XXXX, Principles of the Carriage of Goods by Sea, Routledge, 2016, 61-63; e XXXXXX XXXXX, Maritime Law, 3rd edition, Routledge, 125-129.
14 XXXX XXXXXXX, ob. cit., 286.
apenas se mostra apto para o transporte de mercadorias, conforme decorre dos art.ºs 5.º e 6.º, n.º 1, al. c), do D.L. n.º 191/8715.
2. Modalidades do Fretamento
A lei portuguesa reconhece as três modalidades de fretamento tradicionalmente aceites na doutrina internacional: (i) o fretamento por viagem; (ii) o fretamento a tempo; e (iii) o fretamento em casco nu.
Para além de outras circunstâncias atinentes às prestações concretas de cada uma das partes, a lei recorre à determinação do titular da gestão náutica e da gestão comercial do navio como critério distintivo destas três modalidades.
A gestão náutica de um navio refere-se ao conjunto de operações e despesas relativos aos cuidados com o navio e suas partes componentes e à navegação propriamente dita, equipagem16, armamento17, salários da tripulação, manutenção, reparação e seguros do navio; a gestão comercial refere-se ao conjunto de operações e despesas relativos à carga
- desde a sua captação até à entrega -, nomeadamente o aprovisionamento de combustível, despesas de escalas e de portos18. Menos clara, no entanto, se apresenta a inserção das operações de carga e descarga, estivagem e amarração, sobretudo no fretamento por viagem.
Assim, no fretamento por viagem, o fretador põe à disposição do afretador um navio (fretamento total), ou parte dele (fretamento parcial), para que este o utilize numa ou mais viagens previamente definidas, para o transporte de mercadorias determinadas. Nesta modalidade, cabe ao fretador a gestão náutica e comercial, o que contribui para
15 XXXXX XXXXXX, O Novo Direito Comercial Marítimo Português, in Estudos Sobre o Novo Direito Marítimo, Coimbra Editora, 1999, 238.
16 O art.º 3.º do Código Penal e Disciplinar da Xxxxxxx Xxxxxxxx (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 33.252, de 20.11.1943) define a equipagem como o conjunto dos inscritos marítimos que a bordo prestam serviços que constam do documento denominado rol de matrícula.
17 De acordo com o disposto no art.º 1.º, al. d), do D.L. n.º 202/98, de 10 de Julho, o armamento consiste no conjunto de actos jurídicos e materiais necessários para que o navio fique em condições de empreender viagem.
18 XXXX XXXXXXX, ob. cit., 280; e XXXXXXXXXXX XXXXXXX, ob. cit., 309.
dificultar, por vezes, a distinção deste contrato com o contrato de transporte, em que sucede uma alocação similar de responsabilidades.
Para além do fretamento por viagem única, é reconhecida igualmente uma outra espécie deste contrato, o fretamento por viagens consecutivas, que partilha com a primeira as características essenciais. A distinção principal entre ambas assenta apenas, como se intui, no número de viagens abrangido pelo contrato de fretamento por viagens consecutivas. Como já se referia no preâmbulo do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, abrangerá esta espécie de fretamento “um número determinado de viagens ou as que o navio possa realizar num certo período de tempo, contado desde o início da primeira, sem poder exceder uma data fixada para o último carregamento”.
No fretamento a tempo, o fretador põe à disposição do afretador um navio para que este o utilize durante um período de tempo convencionado. Nesta modalidade, cabe ao fretador a gestão náutica e ao afretador a gestão comercial. Trata-se, pois, principalmente, de um instrumento adequado para quem (afretador) pretenda ter à disposição durante um certo período de tempo uma determinada capacidade de transporte marítimo sem ter de suportar os encargos financeiros de aquisição de um navio ou as responsabilidades do armamento, manutenção e navegação.
Por fim, no fretamento em casco nu, o fretador põe à disposição do afretador um navio não armado nem equipado, para que este o utilize durante um período de tempo convencionado. Nesta modalidade, cabe ao afretador a gestão náutica e comercial. A principal distinção entre o fretamento em casco nu e o fretamento por viagem ou a tempo reside na circunstância de, no primeiro, o afretador ter o controlo do próprio navio enquanto nas últimas modalidades, o afretador ter apenas algum controlo sobre o uso do navio.
Alguma doutrina vem reconhecendo, no seguimento dos ensinamentos provenientes de além-Mancha, que o fretamento em casco nu pode revestir-se de duas modalidades, sendo a mais simples a prevista no art.º 33.º do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, ou seja, a colocação à disposição do afretador de um navio não armado ou equipado [bareboat
charter] ou com um armamento ou equipagem incompletos [bareboat by demise charter]. De todo o modo, realce-se que, mesmo entre os autores britânicos, esta distinção não se afigura pacífica, sendo mais comum a posição que se refere a um conceito unitário, de modo a coincidir sensivelmente com a definição adoptada pelo legislador português.
Refira-se ainda que esta distinção é relevante no caso de serem emitidos conhecimentos de carga a coberto da carta-partida, sendo também distinta a solução em termos de responsabilidade quanto ao navio e quanto à carga em cada modalidade de fretamento. Abordaremos, seguidamente, o regime do fretamento por viagem e, mais particularmente, a matéria das estadias e do seu excesso.
2.1. Fretamento por Viagem:
2.1.1. Obrigações das partes
Nesta modalidade do fretamento, as obrigações do fretador podem ser divididas em obrigações referentes ao próprio navio e obrigações relativas à viagem. Sumariamente, em face da lei, são as seguintes as obrigações do fretador:
1.º Obrigação de apresentação de um navio em estado de navegabilidade; 2.º Obrigação de realização da viagem convencionada.
Já as obrigações principais do afretador são também de dois tipos, embora distintos: 1.º Obrigação de pagamento do frete;
2.º Obrigação de apresentação da carga, carregamento e descarga;
2.1.2. Estadias, sobrestadias e subestadias:
Na aventura marítima que o fretamento por viagem pressupõe, poderemos encontrar pelo menos quatro etapas, perfeitamente autonomizáveis: (i) a deslocação da carga até ao porto de embarque; (ii) o embarque da carga; (iii) a viagem até ao porto de destino; e (iv) o desembarque da carga.
A matéria de que agora nos ocupamos tem impacto nas etapas (ii) e (iv), ou seja, nas fases de carga e descarga da mercadoria transportada.
Já sabemos que o navio de transporte de mercadorias é jurídica e economicamente um estabelecimento comercial, vocacionado para a obtenção de lucro para o seu explorador. Ora, o navio só gerará rendimento, e lucro, se estiver em atividade, isto é, se e enquanto transportar mercadorias de um porto para outro. Por isso, o fretador pretenderá sempre fazer um uso intensivo da sua embarcação. As imobilizações em porto, pese embora necessárias, são, por isso, momentos que o proprietário, armador ou fretador pretende reduzir ao mínimo, diminuindo tanto quanto possível a perda de rentabilidade19.
Sucede, porém, que o afretador necessita de tempo suficiente para carregar, descarregar, estivar e arrumar a sua mercadoria. No cálculo do tempo necessário, o afretador considerará não só o tipo e a quantidade de mercadoria, mas também as regras e usos dos portos de carga e descarga, em que se incluem os dias e as horas de trabalho e, bem assim, os equipamentos disponíveis para as operações de estiva.
Gera-se, portanto, entre os interesses conflituantes de fretador e afretador nesta matéria uma tensão evidente e sensível, que não só se observa no momento da realização das operações físicas de carga e descarga, mas que se revela logo na fase pré- contratual da relação, com a negociação (quando possível, dada a generalizada utilização neste sector de clausulados pré-elaborados) e consagração no contrato de fretamento de uma cláusula prevendo o período admitido para as estadias do navio e o valor para as sobrestadias.
Já em 1990, o Secretariado da UNCTAD20, em relatório produzido acerca do contrato de fretamento21, afirmava que grande parte dos seus inquiridos identificava as cláusulas
19 Daí que se compreenda que, por vezes, as partes no contrato de fretamento estipulem um prémio para as situações de não utilização integral do tempo convencionado para a estadia, chamado dispatch money na doutrina anglo-saxónica. Também a lei portuguesa prevê esse prémio de subestadia no art.º 13º, n.º 2, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril. Cfr. infra, § 3.
20 Acrónimo inglês da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development).
21 Charter Parties, A Comparative Analysis, Report by the UNCTAD Secretariat, 1990, 59.
de estadia e sobrestadia previstas naquele tipo de contrato como estando na origem da maior parte dos litígios no âmbito dos contratos de fretamento por viagem22. É este, na verdade, o ponto de maior atrito entre fretadores e afretadores e que, na prática, maiores problemas gera para os juristas, de tal forma que, visando mitigar este potencial litigioso, uniformizando a interpretação das aludidas cláusulas, o Comité Marítimo Internacional e algumas associações privadas ligadas à indústria do shipping, emitiram, em 1980, um documento designado “Laytime Definitions for Charter Parties”, que integra um conjunto de definições das expressões mais comuns utilizadas naquelas23) Vejamos, então, mais em detalhe o que são e qual o regime das estadias, sobrestadias e subestadias.
§ 1.º Estadias:
Chamam-se estadias [laytime] aos períodos temporais que o afretador dispõe para as operações de carga e descarga do navio, ficando este disponível para esse efeito sem que haja lugar ao pagamento de qualquer suplemento de frete.
Como referimos, os períodos de estadias – também chamados “de prancha” -, para carga e descarga são habitualmente fixadas pelas partes na carta-partida. No entanto, na falta de convenção específica, a lei portuguesa prevê uma norma supletiva, determinando que compete ao fretador fixar as estadias segundo critérios de razoabilidade, tendo em conta as circunstâncias do caso e os usos do porto (art.º 12.º, n.º 1, do D.L. 191/87, de 29 de Abril).
Tomando em consideração a especial susceptibilidade litigiosa que a determinação dos períodos de estadias apresenta, temos algumas dúvidas sobre a real operacionalidade do critério propugnado pelo legislador português. Não está em causa um eventual desajustamento axiológico, mas apenas a real relevância e eficácia deste critério no momento da negociação das condições da carta-partida e, sobretudo, a sua efectiva
22 Também assim, DELEBECQUE, Droit Maritime, § 657.
23 Cuja versão actual data de 2013, podendo ser consultada em xxxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxx- clauses/bimco-contracts/laytime-definitions-for-charter-parties-2013.
susceptibilidade de fomentar a paz social, fim último de todo o Direito. Da leitura do preâmbulo do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, resulta claro que o próprio legislador não foi insensível às dificuldades que este ponto apresenta, tendo optado pela solução que se lhe afigurou mais praticável, consagrada no art.º 12.º, n.º 1, por influência do Código de Direito Marítimo Privado grego de 19582425.
Como vimos, a determinação dos períodos de estadias constitui habitualmente um ponto de tensão entre fretadores e afretadores. Compreende-se que, na falta de acordo, a lei tenha querido entregar a definição a quem, na relação jurídica de fretamento, em abstracto, melhor conhece o mercado e os usos dos portos, isto é, ao fretador. Também pela atribuição desta vantagem ao explorador do navio se pode vislumbrar aqui um evidente indício de favorecimento do comércio.
Porém, a solução legal acaba por ser susceptível de conduzir à definição de períodos de estadias muito curtos, por vezes insuficientes para as operações de carga e descarga, o que levará o afretador a ter de suportar o suplemento de frete inerente às sobrestadias ou, mais provavelmente - dado o elevado valor diário do suplemento de frete, que facilmente poderá ultrapassar os milhares de euros ou dólares - a contestá-lo nas instâncias judiciais ou arbitrais, com o consequente incremento da litigiosidade.
Aceita-se que o problema não é de fácil resolução. Afigura-se, porém, que neste ponto o legislador não terá ido tão longe como poderia, nomeadamente, e pelo menos, fornecendo pistas ou balizas para a compreensão da razoabilidade pretendida. A título meramente exemplificativo, poder-se-ia admitir como vantajosa, nesta situação, por cercear alguma potencial arbitrariedade, a adopção de uma concreta fórmula de cálculo do período de estadias26. Contudo, haverá que reconhecer que sendo este mercado muito diversificado, dinâmico e competitivo, onde a vinculação a soluções resultantes da prática comercial antecede normalmente a criação de normas jurídicas positivas,
24 Lei n.º 3816, de 26/28.2.1958.
25 Também em França esta solução havia sido adoptada pelo art. 10.º do Decreto n.º 66-1078, de 31 de Dezembro de 1966.
26 Cfr. infra, § 2.º.
dificilmente as regras legais – ainda para mais com carácter supletivo – poderiam suplantar tais práticas sempre e quando se apresentassem contrária ou distintas destas. Resta, por isso, a expectativa de que o funcionamento regular do mercado do fretamento de navios possa constituir um factor de ajustamento das necessidades de transportadores e carregadores e de razoabilidade na definição das cláusulas mais sensíveis. Se assim for, as próprias partes poderão e deverão encontrar as soluções contratuais que melhor sirvam os seus interesses, evitando a imposição de cláusulas desadequadas ou mesmo abusivas. Sem prejuízo, não deixaremos de nos referir infra [§ 2] aos possíveis critérios de determinação da razoabilidade de tais prazos.
Na economia deste trabalho é da maior importância definir quando começa o período de estadia do navio. A relevância desta questão é central para o problema que abordamos, já que, essencialmente, se visa aqui determinar quando ocorre o termo inicial do período de carga ou descarga, ou seja, quando começa o relógio a contar.
O art.º 12.º, n.º 4, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, estabelece que a contagem das estadias se inicia no primeiro período de trabalho normal que se siga à entrega ao afretador do aviso de navio pronto, desde que este aviso tenha sido entregue até ao termo do período de trabalho normal antecedente.
É possível descortinar no critério legal um conceito nuclear, o aviso de navio pronto, que o legislador não definiu, antes tendo remetido a sua definição prática para os usos do porto (art.º 12.º, n.º 6).
Nem sempre seria fácil, porém, aceder ou conhecer estes usos dos portos. Todavia, com o advento da informatização, vem sendo mais simples chegar ao seu conhecimento, dado que estes usos se encontram normalmente plasmados em documentos devidamente publicitados de natureza regulamentar dos portos ou dos próprios terminais portuários. Podemos encontrar um exemplo desses usos, já vertido em escrito, no art.º 12.º do Regulamento de Exploração do Terminal de Granéis Líquidos (Sapec-Mitrena) do Porto de Setúbal27.
27 Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxx.xx/xxxxx/XXX.xxx, aí rezando o seguinte:
Porém, o n.º 6 do art.º 12.º do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, também tem caráter supletivo. As mais das vezes, o envio do aviso de navio pronto (N.O.R. ou Notice of Readiness) encontra-se sujeito às estipulações convencionadas pelas partes na carta- partida.
Mesmo sujeitando o regime do envio da N.O.R. à vontade das partes, podemos, no entanto, com base nos usos da atividade, assentar, em linhas gerais, no seguinte: “para que a contagem seja iniciada, o navio tem de estar no porto e local indicados na carta- partida ou tão próximo quanto lhe permitirem as condições de segurança (“so near as she may safely get”) e preparado sob todos os aspectos para iniciar as operações de carregamento e/ou descarga, ou seja, em situação de “cargoworthiness”. Reunidas estas condições, considera-se o navio como um arrived ship devendo o capitão enviar ao afretador o aviso de “navio pronto” (“notice of readiness”)”2829.
Para que se possa, então, considerar validamente iniciada a contagem dos prazos de carregamento e descarga, é necessário, antes de mais, analisar os termos da carta- partida e constatar qual o local de descarga aí indicado pelo afretador. O local pode ser um porto [port charter party], uma doca, cais ou um ancoradouro específico [berth charter party]. Refira-se que este não é um pormenor de somenos importância, já que, para efeitos do contrato de fretamento, se for feita a indicação de uma doca, cais ou ancoradouro específico na carta-partida, ainda que o navio se encontre no porto onde
“Artigo 12.º (Aviso de navio pronto)
O aviso por escrito, de navio pronto ou NOR (Notice of Readiness), deverá ser entregue à Concessionária, durante as horas normais de expediente, que o aceitará nas seguintes condições:
a) Possuir livre prática;
b) Ter certificado de aceitação de porões passado por organismo de peritagem de navios;
c) Sempre que exigido pela Capitania do Porto, ter certificado, passado por entidade independente, de peritagem de cargas, comprovando a segurança da carga ou descarga, ou recomendando as preocupações específicas a tomar.”
28 XXXXXXXXXXX XXXXXXX, ob. cit., 317.
29 O aviso de navio pronto (N.O.R.) não se confunde com o pré-aviso de chegada ou ETA (Expected Time of Arrival), que se limita a ter um caráter informativo, destinando-se a indicar ao afretador a data provável de chegada do navio. A ETA não despoleta o início do período de estadia (DELEBECQUE, Droit Maritime, § 657, Nota 1171).
aqueles se situem, não se considerará, mesmo assim, como estando no local indicado até atingir a doca, cais ou ancoradouro designado.
Já quando a carta-partida define como local de destino da viagem um porto, em que momento se considera o navio chegado ao mesmo?
Para além da relevância teórica, a resposta a esta questão é também de suma importância prática, sobretudo nas situações em que, ao chegar ao porto de destino, o navio fretado não encontre um cais ou embarcadouro disponível. Poder-se-á considerar o navio como chegado ao porto mesmo nessas circunstâncias? Vejamos.
XXXXXXXXXXX XXXXXXX00, citando X. Bes, refere que “o termo porto designa uma zona do porto onde são geralmente efectuadas as operações de carregamento e descarga e onde os navios costumam esperar a sua vez para atracar ao cais a fim de carregar ou descarregar”. Contudo, conclui que “não é fácil responder a esta questão e a jurisprudência não é unânime. O nosso legislador entendeu, e bem, remeter a solução para os usos do porto (n.º 6 do artigo 12.º)”.
Temos, portanto, aqui uma das situações de relevância jurídica dos usos prevista no art.º 3.º, n.º 1, do Código Civil. Estes “usos do porto” darão, à partida, solução ao problema colocado.
Admite-se que a remissão legal para os usos possa ter o inconveniente de dispersar e diversificar o regime jurídico, multiplicando as respostas à questão em apreço (admitindo-se, no limite, uma resposta por cada porto), dada a autonomia de cada administração portuária, porém, concede-se que tal seja preferível à construção de uma norma de carácter geral que se mostre de difícil aplicação a todos os portos nacionais. Não obstante, importa tentar alcançar, na medida do possível, um critério geral que permita definir a legitimidade para a entrega do aviso de navio pronto.
Nesta perspetiva, dada a riqueza da experiência adquirida em resultado de décadas de debate, parece interessante recolher na common law alguns subsídios para a construção dogmática da resposta à questão, a qual, adiante-se, não é ali, ainda assim, totalmente
30 Ob. cit., 317.
pacífica. Vem-se, no entanto, entendendo maioritariamente que o navio se considera chegado ao porto quando ele atinge uma posição, desde que dentro da área do próprio porto, e ainda que não tenha um cais disponível, em que possa considerar-se estar à disposição imediata e efectiva do afretador31.
Esta resposta é, todavia, complexa e obriga a compreender melhor dois aspetos atinentes aos seus elementos constitutivos: (i) o que deverá considerar-se por área do porto; e (ii) o que é a disponibilidade imediata e efectiva do navio pelo afretador.
No tocante ao primeiro, a área do porto relevante para o efeito da questão de que tratamos é a definida pelos limites geográficos e legais deste. Se, desde logo, a lei definir estes limites, serão estes os relevantes; se o não fizer, deverá tomar-se em conta o critério da delimitação geográfica dos poderes da autoridade portuária.
Relativamente ao segundo elemento, o navio estará à disposição imediata e efectiva do afretador quando estiver ancorado num local que lhe permita dirigir-se rapidamente para um cais ou embarcadouro do porto de destino quando for informado de que um se encontra disponível. Na common law, presume-se estar à disposição imediata e efectiva do afretador o navio que se encontre ancorado em local onde as embarcações habitualmente aguardem que um cais ou embarcadouro fiquem disponíveis no porto de destino32. Diga-se, a propósito, que entre nós são vários os exemplos presentes em instrumentos regulamentares administrativos onde se encontram definidos os locais no exterior e no interior dos portos destinados a fundeadouro.
Parece-nos, pois, que este critério é adaptável à nossa realidade (dada a internacionalização inerente ao transporte marítimo de mercadorias, a tendencial uniformização das legislações nacionais e dos procedimentos práticos de cada porto são cada vez mais evidentes), podendo servir de base à compreensão do que deve entender- se por navio pronto.
31 XXXX XXXXXXXXX, Laytime and Demurrage, 6th edition, Routledge, 82; WILSON, ob. cit., 54; XXXXXX XXXXX (and seven others), Voyage Charters, 4th edition, Informa Law from Routledge, 2014, 387-388.
32 XXXXXX, ob. cit., 54; XXXXXX XXXXXX, Commencement of Laytime, 4th edition, Informa Law, 39.
Resulta, portanto, do exposto que o conceito de “navio pronto” é central na problemática inerente ao início da contagem do tempo de estadia ou de prancha. Na falta de convenção das partes, poderá então concluir-se que os riscos de demora na viagem contratada correrão sempre pelo fretador, como, nas mesmas circunstâncias, correrá o risco de congestionamento do porto, cais ou ancoradouro de destino, ou melhor, da impossibilidade de o navio fretado aí aceder e atracar. Todavia, são já raros, hoje em dia, os casos em que um fretamento não esteja formalizado através de um dos vários contratos-tipo existentes no mercado, que habitualmente definem o início do laytime.
Não podemos, no entanto, deixar de salientar que a lei portuguesa prevê a hipótese de o navio fretado se ver afectado por impedimento prolongado, superior a cinco dias, na entrada no porto de descarga ou de aí não conseguir desenvolver as suas operações comerciais, por facto não imputável ao fretador. Neste caso, o art.º 17.º, n.º 2, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, permite que o fretador possa desviar o navio para um porto próximo ao inicialmente indicado como destino, que ofereça condições idênticas e efetuar aí a descarga, com o que se considera cumprido o contrato.
Mostrando-se validamente emitida a N.O.R. (ou aviso de navio pronto), inicia-se, então, o período de prancha, destinado à carga ou descarga da mercadoria a transportar.
Já vimos que, na falta de convenção das partes, o legislador oferece, no art.º 12.º, n.º 1, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, um critério supletivo para a determinação do período das estadias, mediante o recurso às circunstâncias do caso e aos usos do porto.
Frequentemente, porém, o período de duração das estadias é definido mediante a utilização de algumas fórmulas de uso corrente no mercado dos transportes marítimos33. Habitualmente, estas fórmulas dividem-se entre as que definem prévia e concretamente o tempo das estadias, seja por referência a unidades de tempo (por
33 XXXXXXXXX, ob. cit., 11 e 38-42, 52-57; XXXXXX, ob. cit., 72-73; XXXXX (and seven others), ob. cit., 379-380; XXXXXXX, ob. cit., 223-224; XXXXX XX XXXXXX, A Xxxxxx´s Guide to Laytime, Arklow, Co., 2007, 24-26, 59-65; XXXXXX XXXXX, ob. cit., 170-171.
fixação de dias ou horas34, por cálculo de tempo35, por total de horas36) ou a quantidades de mercadoria carregada ou descarregada por dia (por escotilha de carga manejável por dia37) e as que não definem esse tempo (CQD/COP38 e TMS39), sendo estas últimas, no entanto, de uso muito residual.
§ 2.º Sobrestadias:
Se o navio for retido nas operações de carga ou descarga por um período de tempo superior ao convencionado para o efeito, considera-se que entra em sobrestadia. Neste caso, de acordo com o disposto no art.º 13.º, n.º 1, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, o fretador terá direito a um suplemento do frete proporcional ao tempo excedente.
Em Portugal, o legislador optou pelo entendimento dogmático da sobrestadia como um suplemento do frete, retirando-lhe a carga indemnizatória. Refere-se expressamente no preâmbulo do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril - que pela sua riqueza doutrinal não resistimos a citar - que “(...) realmente, a ultrapassagem do tempo de estadia ou de prancha (laytime), se corresponderá a uma demora, não deverá ser entendida como uma situação de mora por parte do afretador. Diverge-se, pois, da teoria indemnizatória e dos seus implícitos corolários. É que, apuradas bem as coisas, a sobrestadia não integrará a violação de um dever contratual, mas o normal exercício de um direito do afretador; só
34 Estipula um número concreto de horas para a carga ou para a descarga.
35 Estipula um determinado número de toneladas de mercadoria carregada ou descarregada por dia. 36 Estipula um número concreto de horas para a totalidade das operações de carga e de descarga, sem discriminação.
37 Estipula um determinado número de toneladas por cada escotilha de carga (ou de porão) do navio suscetível de permitir através da mesma as operações de carga ou descarga. Calcula-se dividindo a quantidade de carga pelo produto da multiplicação da quantidade diária de mercadoria (carregada ou descarregada) acordada pelo número de escotilhas de carga [xxx.xxxxx.xxx/Xxxxxxxxxx/Xxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxx/Xxxxxxx/Xxxxxxx_Xxxxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxx_Xx rties_2013.aspx].
38 Costumary Quick Despatch/Custom of Port. O tempo destinado às operações de carga e descarga será o que os serviços portuários habitualmente empregam, utilizando uma rapidez medianamente elevada, tendo em conta os concretos tipos de carga e de navio.
39 Taxi Meter System, assim chamado por replicar o sistema de taxímetro na contagem de tempo despendido pelo navio nos portos de carga e descarga. O afretador/carregador pagará um valor correspondente ao tempo de permanência do navio em porto, com um montante diário pré-definido, habitualmente distinto e mais elevado do que valor diário do frete.
que, obviamente, o fretador deverá ser compensado do sacrifício económico que daí lhe advém. (...) A transição do tempo de estadia para a fase da sobrestadia não significa uma mudança qualitativa; um salto de um período de cumprimento para outro de incumprimento. O que se processa é a transição de uma prestação fixa predeterminada (frete) do afretador para uma prestação variável (suplemento do frete)”.
É também este o entendimento da doutrina e jurisprudência francesas (entendimento vertido na lei de 1966 que, como se sabe, esteve na origem da maior parte das soluções vertidas na lei portuguesa relativa ao fretamento). “La jurisprudence française (et américaine) n´a pas analysé ainsi (como uma indemnização) les surestaries. Considérant que le terme désigne tout aussi bien le temps supplémentaire employé par l´affréteur que l´indemnité afférente à ce temps, elle a consideré que l´indemnité est em réalité un supplément de fret. Cette solution est exacte: les surestaries sont un élément de l´économie du contrat comme l´est le fret”40.
Não é este, porém, o entendimento da doutrina e jurisprudência britânicas4142. Aí, a sobrestadia [demurrage] é considerada um incumprimento do contrato, ainda que de natureza especial. Se o afretador se comprometeu a carregar ou descarregar o navio dentro de um determinado período de tempo, a inobservância do mesmo constitui-o em responsabilidade contratual.
A posição do legislador português vai no sentido de assegurar a estabilidade do contrato através do necessário alargamento do âmbito de direitos e deveres das partes. Neste prisma, a sobrestadia apresenta-se como um mecanismo destinado a salvaguardar a efectiva satisfação dos interesses económicos das partes, fim último do contrato, mormente permitindo que o afretador proceda à carga ou descarga das mercadorias ainda que com inobservância relativamente ao prazo convencionado. A lei atribui assim ao afretador, e para essa finalidade, o direito a reter o navio fretado para além do
40 DELEBECQUE, Droit Maritime, § 660.
41 XXXXXX, ob. cit., 72-78; BAATZ, ob. cit., 171-173.
42 Para uma resenha, embora datada, dos diversos posicionamentos legislativos nacionais acerca desta matéria, veja-se Charter Parties, A Comparative Analysis, Report by the UNCTAD Secretariat, Cit., 69- 70.
período da estadia. Correspetivamente, o fretador fica obrigado a não retirar o navio da esfera de disponibilidade do afretador, ficando com o direito a receber deste o suplemento do frete.
Parece-nos que uma e outra das concepções dogmáticas asseguram de forma eficaz o interesse do fretador no que respeita especificamente ao aspeto económico do próprio contrato, quer através do suplemento de frete quer através de uma prestação indemnizatória. De igual forma, ambas salvaguardam o interesse específico do afretador de ver as suas mercadorias carregadas ou descarregadas ainda que ocorra um atraso em qualquer uma destas operações. Mais delicado nos parece, porém, o enquadramento das sobrestadias excessivas e a possibilidade de resolução do contrato pelo fretador por esse motivo.
Na common law, a demurrage constitui um incumprimento contratual de natureza especial, pois, como dissemos, durante o período de duração daquela, o fretador não poderá resolver o contrato nem retirar o navio fretado da disponibilidade do afretador (tal como, de resto, na ordem jurídica portuguesa). Por outro lado, a indemnização habitualmente convencionada na carta-partida, também chamada de demurrage, é devida independentemente da prova da existência de danos (correspondendo, nesta medida, a uma espécie de cláusula penal). Se não houver fixação prévia de demurrage, ainda assim o fretador poderá reclamar o pagamento de uma indemnização pela retenção do navio para além dos dias convencionados de estadia, tendo, no entanto, neste caso de provar os danos correspondentes à indemnização reclamada [detention for damages]. Mais importante, findo o período estipulado na carta-partida (quando tal estipulação exista) para as sobrestadias sem que o navio se mostre carregado ou descarregado, conforme o caso, assistirá ao fretador o direito de resolver o contrato e de retirar o seu navio da esfera de disponibilidade do afretador, ficando com a liberdade de o afectar a outro contrato.
Não é assim tão simples no nosso ordenamento jurídico.
Como já referido, o legislador português considera a sobrestadia, não como uma situação de mora ou incumprimento contratual, mas como “(...) o normal exercício de um direito do afretador”, afastando o preâmbulo do D.L. 191/87, de 29 de Abril, a teoria indemnizatória e os seus implícitos corolários. Não obstante, naquilo que poderá ser um lapsus linguae ou um “ato falhado”, no mesmo diploma em que assume tal posição [art.º 6.º, n.º 1, al. f)], o legislador estipula que, entre os elementos que a carta-partida deverá conter, se conta a previsão da “indemnização convencionada em caso de estadia”. Ora, se as sobrestadias não configuram qualquer inadimplemento, não fará sentido, juridicamente, falar em indemnização. Aliás, mais à frente no referido diploma, mormente no art.º 13.º, n.º 1, o legislador retoma a terminologia “suplemento de frete”. Na verdade, a qualificação como suplemento de frete do valor correspondente aos períodos de sobrestadia permite, à luz da lei portuguesa, um conjunto de consequências que a qualificação como indemnização não permitiria. Falamos, por exemplo, do direito de retenção de que o frete (incluindo o suplemento de frete) beneficia sobre a carga do navio (art.º 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 191/87); falamos também das dívidas que têm privilégio sobre o frete – que inclui, naturalmente, o suplemento (art.º 582.º do Código Comercial).
Mas a verdade é que, com a solução adoptada no D.L. n.º 191/87, o legislador alargou as fronteiras do cumprimento contratual e tornou-as mais vagas e ténues, nomeadamente no que respeita à questão dos prazos de cumprimento por parte do afretador. A intenção confessa da lei é de a sobrestadia não constituir um período qualitativamente distinto da estadia. A diferença entre ambos os períodos radica na distinta natureza da retribuição devida ao fretador: fixa durante o tempo de prancha e variável durante o tempo de sobrestadia.
Compreende-se a intenção do legislador. A lei visa salvaguardar o integral cumprimento do contrato, isto é, a satisfação do interesse económico do afretador – no fundo, o motor da atividade de transporte marítimo subjacente à relação de fretamento
– sem prejudicar excessivamente a posição económica do fretador. Propugna-se a
construção de um cenário que permita ao afretador efetuar as operações de carga e descarga do navio, concluindo a fase de transporte marítimo da mercadoria, à custa de algum sacrifício do direito do fretador de dispor da sua embarcação [retentive function], não sem uma retribuição justa. Mais uma vez, numa situação de conflito de direitos, a lei opta pelo favorecimento do comércio.
Porém, o sacrifício do direito do fretador só parece ser admissível até um certo ponto temporal, sob pena de podermos cair no excesso. Dizendo de outra forma, até quando poderá o afretador exercer esse seu normal direito de reter o navio fretado?
O problema parece poder resolver-se sem grandes empecilhos sempre que o contrato de fretamento preveja períodos concretos (por exemplo, em dias, horas ou tonelagem de carga) de estadias e sobrestadias. Excedidos os períodos convencionados para as estadias e para as sobrestadias, o afretador entrará em mora (salvo se, na carta-partida, se estipular a essencialidade do prazo, situação em que se verificará desde logo o incumprimento).
Menos clara se afigura a solução quando a carta-partida nada dispuser acerca das sobrestadias. Neste caso, esgotado o tempo das estadias (seja por definição concreta na carta-partida seja pelo recurso a critérios de razoabilidade), ficamos perante um outro período, que não é de mora ou incumprimento, sublinhe-se, e cuja duração não se encontra também ela definida.
Convém referir que a passagem para o período de sobrestadia ocorre automaticamente, sem necessidade de qualquer acto do fretador, logo que decorra integralmente o período de laytime convencionado ou definido mediante os critérios supletivos de razoabilidade previstos na lei. Esta, porém, não dá resposta à questão de saber quando pode o fretador constituir o afretador em mora quanto à sua obrigação de efectuar as operações de descarga do navio.
Na common law o início da sobrestadia marca o surgimento da mora do afretador, havendo, portanto, um termo inicial concreto e definido para o período moratório que culminará ou com a conclusão das operações de carga ou descarga ou com o
incumprimento definitivo do contrato por parte do afretador, que justifica a sua resolução. Em virtude das suas particularidades dogmáticas, no nosso ordenamento é necessário descortinar dentro do período de sobrestadia o início da mora do afretador. E isto, na prática, poderá revelar-se uma tarefa difícil.
Na falta de qualquer marco temporal que possa servir de orientação, e na medida em que, como refere o preâmbulo do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, não há uma mudança qualitativa na passagem do período de estadia para o de sobrestadia, estando em causa, substancialmente, duas fases de um mesmo prazo, cremos que o critério nuclear na matéria da determinação do início da mora do afretador apenas poderá ser, novamente, o da razoabilidade, tendo em conta as circunstâncias do caso e os usos do porto. Mesmo assim, não será simples, com um critério tão vago, atingir o objetivo concreto pretendido. Porém, parece-nos haver sempre a possibilidade de recortar o território fatual de aplicação do critério, expondo situações cuja falta de razoabilidade seja patente, ou seja, definir pela negativa o aludido critério. Nesta medida, cremos poder afirmar, em tese geral, não ser razoável – sem prejuízo da ponderação das circunstâncias concretas do caso – que o período da sobrestadia se estenda por tempo superior ao da estadia. Isto, no entanto, não exclui que, em determinadas circunstâncias, um concreto período de sobrestadia, ainda que inferior ao da estadia, não se possa revelar também irrazoável.
Refira-se, por fim, que apesar de a determinação concreta do período das sobrestadias poder ser efetuada com o recurso ao mesmo critério legal da definição do tempo das estadias, a contagem de um e de outro desses períodos não é feita de forma igual. Na prática do shipping, a contagem dos prazos das sobrestadias tem especialidades próprias que a distinguem da contagem das estadias, nomeadamente no que tange à quase inexistência de causas de suspensão do prazo, que encontra reflexo no adágio anglo-saxónico: “once on demurrage, always on demurrage”. XXXX XXXXXXX00 explica que a sobrestadia representa uma imobilização indevida do navio, que poderia sempre
43 Ob. Cit., 301.
navegar nos dias feriados e de inactividade portuária. A sua retenção pelo afretador por prazo superior ao convencionado ou razoável é susceptível de causar um prejuízo ao fretador, que terá de ser compensado44. Será este o motivo pelo qual o legislador nacional, na esteira da lição de RODIÈRE, apenas previu para a contagem do período de estadias a exclusão dos dias em que, por interrupção legal da actividade portuária ou por quaisquer outros factos objectivamente relevantes, as operações de carregamento e de descarga não se possam realizar (art.º 12.º, n.º 3, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril), omitindo essa mesma exclusão para os períodos de sobrestadia, previstos no art.º 13.º (com a epígrafe “sobrestadias e subestadias”), dizendo-se aí, com relevância para o tema, apenas que o suplemento de frete é proporcional ao tempo excedente (nada se dizendo quanto a quaisquer exclusões de prazo).
§ 3.º Subestadias:
Referimo-nos no ponto anterior às situações em que o tempo de prancha é excedido pelo afretador. Existem também, todavia, as situações opostas, e bem menos comuns, chamadas de subestadia, em que o tempo de prancha não é utilizado inteiramente.
Inversamente ao sucedido no caso das sobrestadias, quando ocorre uma situação de subestadia, o afretador tem direito a um prémio proporcional ao tempo não gasto, correspondente a metade da taxa de sobrestadia [art.º 13.º, n.ºs 2 e 3, do D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril]. É que, nestes casos, o fretador fica livre para afectar o seu navio a um novo contrato, possibilitando-lhe a sua rentabilização antecipada.
À luz do ordenamento jurídico português, estamos perante uma disposição legal supletiva, que poderá ser afastada por convenção das partes. No entanto, tal como relativamente a outros aspetos do contrato de fretamento, por regra, este também se encontra especificamente regulado na maior parte dos contratos-tipo mais usados no mercado.
44 Entre nós, no mesmo sentido, XXXX XX XXXX XXXXXXXX, O Porto no Fretamento à Viagem, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 75, III-IV, Jul./Dez. 2015, 570.
III. Conclusão
A lei portuguesa reconhece as três modalidades de fretamento de navio tradicionalmente aceites na doutrina internacional: (i) o fretamento por viagem; (ii) o fretamento a tempo; e (iii) o fretamento em casco nu.
Dentre os vários problemas suscitados pelo contrato de fretamento por viagem, o das estadias e sobrestadias apresenta-se como um dos que maior litigiosidade gera.
O D.L. n.º 191/87, de 29 de Abril, aborda essa matéria em termos não isentos de dúvidas e críticas, essencialmente relacionadas com o conceito de aviso de navio pronto (N.O.R. ou Notice of Readiness) e com a definição do momento da passagem da fase da sobrestadia para a da mora do afretador. Todavia, reconheça-se que qualquer outra solução que viesse a ser desenhada pelo legislador apenas com muita dificuldade se poderia vir a impor ao carácter dinâmico e inovador do mundo comercial marítimo, sempre atreito a criar as suas próprias normas sem aguardar pela positividade normativa estatal.
É certo, porém, que a maior parte dos contratos de fretamento por viagem a que a lei portuguesa seria abstractamente aplicável são já regidos por um dos vários modelos de carta-partida disponíveis no mercado, sendo, pois, residual a aplicação daquela. Tal não obsta, contudo, à elevada potencialidade litigiosa das respectivas cláusulas de estadias e sobrestadias (para tentar obviar a tal, o Comité Marítimo Internacional e algumas associações privadas ligadas à indústria do shipping, emitiram, em 1980, um conjunto de definições das expressões mais comuns utilizadas naquelas cláusulas, com vista à uniformização da respectiva interpretação - “Laytime Definitions for Charter Parties”, cuja versão mais actual data de 2013).
(O autor opta por escrever ao abrigo do sistema ortográfico vigente nos termos do acordo aprovado pelo Decreto n.º 35 228, de 8 de Dezembro de 1945.)