O Contrato no Novo Código Civil Brasileiro. Aspectos Relevantes da Intervenção do Judiciário
O Contrato no Novo Código Civil Brasileiro. Aspectos Relevantes da Intervenção do Judiciário
Letícia de Xxxxx Xxxxxx
Desembargadora do TJ/RJ.
I – A QUESTÃO DA ÉTICA
O primeiro grande estudo sobre a ética foi realizado por Xxxxxxxxxxx, na Grécia antiga, há cerca de 2.350 anos.
É de Xxxxxxxxxxx o con¡unto das três obras de moral contidas nos “Corpos de Xxxxxxxxxxx" e denominadas A Ética, A Edeumo e A Ética Nicômano e A Grande Ética.
O ensinamento do filósofo grego1 pode ser resumido em única e curta frase: “O bem é o fim". Logo, a finalidade da ética é promover o bem estar.
A felicidade é posta como o fim supremo da atividade humana, e a virtude é definida como meio termo entre dois extremos.2
Em tempos de construção de responsabilidade social, nunca se falou tanto em ética, ou na falta dela, como atualmente.
Ética3 é, sem dúvida, um termo de grande destaque na Socieda- de de Informação, com a criação de um verdadeiro código de boa conduta, como uma forma de defesa contra a constante invasão da esfera da reserva da intimidade da vida privada dos novos habitantes deste novo mundo globalizado, preconceituoso, excludente, entrecortado pelas auto-estradas da tecnologia.
1 Uma empresa estará compartilhando o princípio básico da ética se estiver consciente que, antes de fabricar biscoitos, sapatos, gasolina, produtos ou serviços, o que ela produz inicial e fundamental- mente é o bem estar. (cf. Xxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx, in “Ética, transparência e responsabilidade social nas organizações", Cidadania e Justiça, Revista da AMB, nº 12, ano 5, p. 37:43.
2 Enciclopédia Larousse.
3 Para a intervenção da ética na Sociedade de Informação, os franceses criaram o termo netiquette.
A professora Xxxxx Xxxx, em recente exposição na Fundação Getúlio Vargas4, discorrendo sobre a ética nos negócios, referiu-se a duas grandes pesquisas realizadas nos anos 1999/2000.
A revista Newsweek realizou nos E.U.A. uma pesquisa em par- ceria com a Organização Harris.
Outra foi realizada pela Fundação Príncipe de Gales, no Reino Unido, e foi denominada “Pesquisa do Milênio".
Uma pergunta era sempre formulada aos entrevistados. Buscava- se saber com que afirmativa eles concordavam, “se as empresas deve- riam preocupar-se apenas com seus lucros ou se deveriam ter, também, algum tipo de preocupação com a comunidade, chegando até mesmo a sacrificar lucros".
A conclusão é significativa: 95% dos entrevistados apontou para a necessidade de uma responsabilidade social das empresas, sacri- ficando o lucro.5
A “Pesquisa do Milênio", realizada em 23 países, ouviu 25.000 pessoas de todas as camadas sociais, às quais era perguntado qual deveria ser a finalidade das empresas: somente o lucro; além do lucro, uma responsabilidade em relação à comunidade; ou uma alternativa intermediária.6
Em dois terços das respostas trazidas pelos 23 países participan- tes, optou-se pela finalidade social, além do lucro.7
4 A expositora é Phd da Universidade de Harvard e esteve no Brasil no ano de 2002, a convite da Fundação Fides.
5 Xxxxxx Xxxxxxxx, da Universidade de Chigaco, adotando uma posição tipicamente neoliberalista, em artigo de grande repercussão, denominado "The Social Responsability of Business is to Increase Proft", publicado no The New York Times Magazine, em 13 de Setembro de 1970, defendeu a tese de que a única e exclusiva responsabilidade social das empresas é maximizar o próprio lucro.
6 As notas referentes à palestra da professora Xxxxx Xxxx foram colhidas do artigo denominado
Ética nos negócios: a quantas andamos?, de Xxxxx Xxxxx.
7 O movimento denominado ética da responsabilidade social surgiu na Europa, de uma forma um tanto ou quanto negativa, através de boicote às empresas que privilegiavam o lucro, ou que praticavam atos antiéticos nas relações trabalhistas. A ONU, nos anos 70, contribuiu para a generalização deste movimento, ao editar resoluções referentes ao apartheid. O incidente da Nestlé na África foi outro fato determinante para a reflexão sobre a responsabilidade social das empresas. O case Shell na Nigéria tem fundamental importância na formação de organizações ambientalistas, tais como o Greenpeace, comprometidas com a ética ambiental.
O mundo exige ética nos negócios, ética nas profissões, ética na educação, ética na política8, ética sexual, ética na medicina, ética es- portiva, ética na imprensa, ética na sociedade da informação.
Mas afinal, o que é ética?9
Sabe-se que ética, em sua acepção ampla, está ligada ao termo grego ethiqué ou éthos e do latim ethica, ethicos10, que significa moral, tendo a ver com costume, uso, caráter, comportamento11.
Ética, para uns é a parte da filosofia que estuda os valores morais e princípios ideais da conduta humana; para outros, é o con¡unto de princípios que devem ser respeitados no exercício de uma profissão.12
Em todas as diferentes esferas da atividade humana, conceituar ética importa em determinar o alcance do mesmo problema: a distin- ção entre aquilo que é moralmente lícito e aquilo que é moralmente ilícito.13
A discussão será sempre sobre os princípios ou as regras que empresários, comerciantes, amantes, côn¡uges, ¡ogadores de pôquer ou de futebol, médicos, educadores, ¡ornalistas, internautas, devem se- guir no exercício de suas atividades.
Não se discute se existe ou não uma questão moral, se é ou não plausível colocar-se o problema da moralidade das condutas.14
8 No drama As mãos sujas, de Xxxx-Xxxx Xxxxxx, um dos personagens sustenta a tese de que quem desenvolve uma atividade política não pode deixar de su¡ar as mãos (de lama ou mesmo de sangue). Cf. Xxxxxxxx Xxxxxx, Elogio da Serenidade, p. 50.
9 Xxxxxxx Xxxxx, em entrevista concedida a Xxxx Xxxxxx, destacou que legislação não tem nada a ver com ética, esclarecendo que a lei impõe procedimentos, enquanto a ética pressupõe o livre arbítrio, a consciência, os compromissos morais.
10 O contraste que Xxxxxxxx contrapôs a Creonte, na conhecida tragédia grega, é uma representação marcante da ética grega.
11 “A preocupação com a ética é tão antiga quanto a própria humanidade, ¡á que, de acordo com o antropólogo francês Xxxxxx Xxxx-Xxxxxxx, a passagem do reino animal para o humano, isto é, a transição da natureza para a cultura, só aconteceu quando, em face da proibição do incesto, instau- rou-se a lei, estabelecendo-se, desse modo, as relações de parentesco, de grupo e, conseqüentemen- te, de alianças sobre as quais se soergueu a organização social humana".– cf. Ministro Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, Ética nas funções do Estado, FÓRUM, Revista da AMAERJ, n. 6.
12 Dicionário Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, Editora Xxxxx, 0000.
13 Xxxxxxxx Xxxxxx, obra citada.
14 Num clássico exemplo da ausência de discussão da própria questão moral, Xxxxxxxx Xxxxxx se refere a bioética, afirmando que no campo da animadíssima discussão entre os filósofos morais quanto à licitude ou ilicitude de certos atos, não se cogita de negar o problema mesmo. E acrescenta o pensador que, no exercício da atividade médica, surgem problemas que todos os que com eles lidam estão acostumados a considerar morais, e ao assim considerá-los entendem-se perfeitamente entre si, ainda que não se enten-
dam quanto a quais são os princípios ou as regras a serem observados e aplicados.(cf. obra citada, p. 51).
Para Xxxxxxx Xxxxx00 a ética pressupõe o livre arbítrio, a consciên- cia, os compromissos morais. É uma porção da Filosofia e da Moral 16, que não pode ser reduzida ou comprimida em um con¡unto de normas pragmáticas de conduta. Situa-se em uma esfera superior e íntima, mais abrangente e muito mais complexa.
Relevante, no entanto, distinguir moral social de moral individual.
Quando se fala em moral social, estamos nos referindo à moral que diz respeito às ações de um indivíduo que interferem na esfera de atividade de outros indivíduos.
Fala-se em moral individual para identificar, por exemplo, as ações relativas ao aperfeiçoamento da própria personalidade, independente- mente das conseqüências que a busca deste ideal de perfeição possa ter para os outros.
Xxxxx, como adequadamente ressaltado por Xxxxxxxx Xxxxxx, a ética tradicional sempre distinguiu os deveres para com os demais dos deveres para consigo próprio
Para finalizar este tópico, em que buscamos fixar uma noção ge- nérica de ética, para posterior análise contextualizada, podemos dizer, tomando as palavras do filólogo Xxxxxxx Xxxxxxx de Holanda17, que
15 Citando o professor Xxxxx Xxxxx, o ¡ornalista disse que no Brasil confunde-se deontologia com ética e relatou que viveu e trabalhou sete anos em Portugal, constatando que a noção de deontologia aparece, neste país, com freqüência quando se discutem comportamentos e procedimentos corporativos ou gremiais. Ninguém em Portugal ousaria falar em código de ética, mas em código deontológico, como disciplina apropriada para o estudo das regras do exercício e do uso profis- sional. (cf. Ética Cidadania e Imprensa, p. 15).
16 Em articulado denominado Breves Considerações sobre a Ética, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx ressaltou que a discussão intelectual sobre as semelhanças e as diferenças entre os conceitos da ética e da moral lembra, de algum modo, a pergunta sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Pedindo desculpas aos leitores pela figuração, o renomado professor brasileiro acrescen- tou: "A verdade é que o debate entre estudiosos da filosofia e das ciências sociais vai muito longe de uma definição que todos aceitem. A noção mais comum é a de que o conceito de ética tem precedên- cia não temporal, mas hierárquica sobre o de moral. Esta última, no dizer de muitos comentaristas, seria menor do que a ética, tipo de fenômeno ético limitado a certas situações agudas por falta de consenso favorável a respeito de condutas humanas. O âmbito da moral é habitualmente apontado como igual ao dos fenômenos éticos. Desses, existem manifestações a respeito das quais os preceitos amplos do bom e do equânime lembram a definição de Ulpiano de que o direito é “ars boni et aequi". Tal fato mostra que a confusão conceitual é maior do que parece à primeira vista. Já agora o direito é apontado como a “arte" do que é bom e justo, o que significa, em primeiro lugar, que os preceitos jurídicos exprimem uma “arte" (e não uma ciência) do universo das coisas justas“.
17 Xxxx Xxxxxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxxxx, 0000.
“... ética é o estudo dos juízos de apreciação que se refe- rem à conduta humana, susceptível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determina- da sociedade, seja de modo absoluto."
II – EVOLUÇÃO DOS CONTRATOS
Contratos são negócios jurídicos18 bilaterais.
A noção de negócio jurídico assenta na idéia de um pressuposto de fato, não só querido ou posto em ¡ogo pela vontade das partes, mas, também, reconhecido como base do efeito ¡urídico perseguido.
O negócio jurídico tem por fundamento ético a vontade humana e tem como habitat a ordem legal19.
O acordo de duas ou mais vontades20 é o fato gerador do vínculo obrigacional.
A autonomia xxxxxxx00 , no sentido substancial, é um dos pilares da ordem ¡urídica.
Os contratos criam, modificam, transferem, extinguem e provo- cam outros efeitos relativos a obrigações.22
A história dos contratos remonta ao direito romano, num clima de extremo formalismo e de fecunda inspiração religiosa, assegurando à vontade humana a possibilidade de criar direitos e obrigações.
18 Para Xxxx xx Xxxxxxxx Ascensão (Direito Civil - Teoria Geral), o negócio ¡urídico, que é uma modalidade particular de ação, pode ser classificado como unilateral, plurilateral ou contra- to. O critério classificatório é dado pela existência de uma só parte ou duma pluralidade de partes. Parte, no entanto, não é a mesma coisa que pessoa, pois uma parte pode ser constituída de diversas pessoas. O que define a parte é a titularidade dos interesses que se atuam nos negócios ¡urídicos. O contrato é um negócio ¡urídico plurilateral.
19 Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, Instituições de Direito Civil, v. III, Editora Forense, 10ª. Edição, Rio de Janeiro, 1998.
20 “O negócio ¡urídico é pois um acto finalista, como certeiramente xxxxxxx Xxxxxx. A intenção de produzir conseqüências ¡urídicas é-lhe essencial“. (cf. Xxxxxxxx Xxxxxxxx, obra citada, p. 61)“.
21 O direito atribui à vontade humana o efeito formador do contrato, mesmo que o agente atue unilateralmente, ou quando a declaração volitiva marcha na conformidade de outra congênere, concorrendo dupla emissão de vontade, em coincidência, para a formação do negócio ¡urídico bilateral. (Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, obra citada).
22 Do contrato não derivam só obrigações, brotam, também, efeitos reais, sucessórios, familiares e quaisquer outros. Há contratos de Direito Administrativo e de Direito Processual. Desta forma Oliveira Ascensão entende que o contrato é uma figura de Teoria Geral, não podendo estar restrito ao campo do Direito das Obrigações.
Coube ao Direito Romano a estruturação do contrato, conside- rando-o como um acordo de vontades sobre o mesmo ponto.23
Ao lado do contractum, o Direito Romano criou o pactum, que não autorizava a rem persequendi in iudicio, não conferia ação às partes, logo, não era dotado de força cogente, gerando unicamente a exceptiones.
O contractum e o pactum eram considerados espécies do gênero
conventio.24
Para Xxxxxxx Xxxxx00, não é no direito romano que se deve buscar a origem histórica da categoria ¡urídica que ho¡e denominamos de contrato.
O respeitado doutrinador brasileiro, adotando a posição de Xxxxxxxx00, assegura que o contractum romano era somente um especi- al vínculo ¡urídico (vinculum iuris), que consistia na obligatio, que, por sua vez, para ser criada, dependia de atos ¡urídicos solenes, tais como
o nexum, sponsio, stipulatio.
23 “Entendia o romano não ser possível contrato sem a existência de um elemento material, uma exteriorização de forma, fundamental na gênese da própria obligatio. Primitivamente, eram as cate- gorias de contratos verbis, re ou litteris, conforme o elemento formal se ostentasse por palavras sacramentais, ou pela efetiva entrega do objeto, ou pela inscrição no codex. Somente mais tarde, com a atribuição de ação a quatro pactos de utilização freqüente (venda, locação, mandato e sociedade), surgiu a categoria dos contratos que se celebravam solo consensu, isto é, pelo acordo das vontades". (cf. XXXXXX, Droit Xxxxxxx, p. 453, citado por Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx, Contrato, Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1999).
24 A principal distinção entre o contractum e o pactum era a actio, presente no primeiro e ausente no segundo. O que mais distingue o contrato romano do contrato moderno é a relação ¡urídica criada, vez que nos contratos romanos, em decorrência do caráter personalíssimo da obligatio, o elo se estabelecia entre as pessoas dos contratantes (nexum), su¡eitando até mesmo seus próprios corpos. No direito moderno, a execução não mais incide sobre a pessoa do devedor, mas sobre seus bens.
25 Contratos, Editora Forense, Rio de Janeiro, 17ª. Edição, 1997.
26 “Xxxxxx XXXXXXXX (1864-1932) é reputado um dos maiores ¡uristas italianos do período que abrangeu as últimas décadas do Século XIX e as primeiras do Século XX. Teve particular predileção pelos estudos romanistas, mas também versou com grande profundidade outros ramos do Direito, especialmente no domínio histórico. Servido por vasta cultura, sobretudo humanística, pôs essa cultura ao serviço de suas investigações ¡urídicas. Membro de várias Academias era doutor honoris causa por diversas Universidades". (cf. Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, obra citada, nota 27, p. 36).
O contractum romano, - apesar do grande prestígio do Direito Romano27 -, sofreu alterações e a teoria da autonomia da vontade28, surgida da inspiração canônica, desenvolveu-se através dos estudos de filósofos e ¡uristas, nos tempos que antecederam a Revolução Francesa, afirmando dogmas tais como a obrigatoriedade das convenções e a equiparação da vontade das partes à força da lei.29
Do con¡unto destas regras, surge o princípio denominado pacta sunt servanda, ou se¡a, os pactos devem ser observados.
Com o Contrato Social de Xxxxxxxx, os ¡usnaturalistas levaram o contrato ao seu apogeu, erigindo-o à própria base estrutural do Estado. O contrato não mais estava limitado a criar obrigações. Era ago-
ra o instrumento hábil para modificar ou extinguir qualquer direito.30 O Código Napoleão, maior e mais representativo monumento
legislativo do individualismo do Século XIX, reduzindo ao mínimo a in- terferência estatal 31, priorizou a liberdade da vontade humana, que só por si mesma, em decorrência das obrigações assumidas, poderia so- frer limitação ou restrição.
Os modernos dogmatistas priorizaram a distinção entre liberdade contratual e liberdade de contratar.
27 POTHIER (Traité des Obligations) buscou inspiração no Direito Romano para definir contra- to: “convention par laquelle lês deux parties réciproquement, ou seulement l’ une des deux, promettent et s’engagent envers l’autre, à lui donner quelque chose, ou à faire ou ne pas faire quelque chose"
– Oeuvres de Xxxxxxx, ed. xx Xxxxx, 1831, p. 2:3, citado por Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx (Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 4ª, edição, 2002).
28 O princípio da autonomia da vontade serviu de inspiração para o Código Civil francês, estando disposto no art. 1.134 que as convenções têm valor de lei entre as partes.
29 A moderna concepção do contrato como acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vínculo ¡urídico a que se prendem, se esclarece à luz da ideologia individualista dominante na época de sua cristalização, do processo econômico de consolidação do regime capitalista de produção (cf. Xxxxxxx Xxxxx, obra citada).
30 No sistema ¡urídico franco-italiano, o contrato opera a transferência dos direitos reais, enquan- to ao contrário, na tradição romanista mantida pelo direito alemão e pelo direito brasileiro, o contrato só cria obrigações, transferindo-se propriedade em virtude da tradição para os móveis e do registro imobiliário para os imóveis. (cf. Xxxxxxx Xxxx, Curso de Direito Civil Brasileiro)
31 A reação do liberalismo individualista do Século XIX contra as limitações impostas pelo Estado, durante a Idade Média, consagrou o postulado da liberdade dos homens no plano contratual. Ocorreu a denominada mística contratual, expressão utilizada por Xxxxxxx Xxxx, deixando ao arbítrio de cada um as decisões de todas as questões econômicas, sem qualquer interferência por parte de cada sociedade. (cf. obra citada, p. 162).
Fala-se em liberdade contratual para se referir à faculdade de contratar ou não determinadas obrigações.
Liberdade de contratar é o termo utilizado para determinar a pos-
sibilidade de se estabelecer o conteúdo do contrato.
Em resumo, a primeira se refere à possibilidade da realização do negócio, enquanto que a segunda é a modelação do contrato, tema que, por sua relevância, abordaremos em tópico distinto.32
Diversas causas concorreram para a modificação da noção de contrato no mundo moderno.
A preconizada igualdade formal dos indivíduos foi desacreditada na vida real, tornando evidente o desequilíbrio, especificamente no cam- po do direito do trabalho.
A intervenção estatal na vida econômica deu origem à limitação legal da liberdade de contratar, diminuindo a esfera da autonomia pri- vada e ocasionando, em conseqüência, a restrição da liberdade de determinar o conteúdo da relação contratual.
A sociedade moderna ganhou novos contornos, novas condutas são exigidas, novos anseios devem ser protegidos.
Surgiu uma nova técnica de contratação, derivada da simplifica- ção do processo de formação do contrato, e os denominados contratos em massa geraram o fenômeno da despersonalização dos contratos.
A estrutura básica, o regime legal e a interpretação dos contratos ganharam novas cores.33
O dirigismo contratual, também denominado de intervenção do Estado na vida do contrato34, é exercido pelo Estado através de leis que
32 Segundo Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx (Contratos I – conceito, fontes e formação), durante o Século XX, a literatura jurídica portuguesa produziu uma única obra sobre a teoria geral dos contratos – o Manual dos contratos em geral, da autoria do Professor Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, do qual se publicaram três edições datadas de 1947, 1962 e 1965. Até há pouco tempo não havia, portanto, nenhum texto universitário que abordasse a teoria geral dos contratos à luz do direito português vigente.
33 Importantes e abundantes leis dispensaram especial proteção a determinadas categorias de pessoas para compensar ¡uridicamente a debilidade da posição contratual de seus componentes e eliminar o desequilíbrio. Desenvolveu-se uma legislação de apoio a essas categorias, com estímulo à sua organização. Determinado a dirigir a economia, o Estado ditou normas impondo o conteúdo de certos contratos, proibindo a introdução de certas cláusulas, e exigindo, para se formar, sua autorização, atribuindo a obrigação de contratar a uma das partes potenciais e man- dando inserir na relação inteiramente disposições legais ou regulamentares. (Xxxxxxx Xxxxx, obra citada).
34 Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, obra citada, p. 12.
impõem ou proíbem o conteúdo de determinados contratos, su¡eitando a conclusão e a eficácia do contrato a uma autorização do poder público. Este movimento ganha incrível dimensão, na medida em que a intervenção do Estado aumenta a extensão ou a intensidade das nor- mas de ordem publica, levando os ¡uristas tradicionais a acreditar no
desprestígio e morte do contrato.
Seria o fim do contrato?
III – A ABUSIVIDADE NO CONTRATO
O crescente repúdio às denominadas cláusulas abusivas, que desequilibram o contrato, tornando-o extremamente oneroso para uma das partes e, ao mesmo tempo, numa natural contrapartida, extrema- mente vanta¡oso para a outra parte, levou Xxxxx de Xxxxx Xxxxx Xxxxx- ro, então Ministro da Justiça no Brasil, a enunciar cinco fatos que ferem os direitos básicos dos consumidores.
Com esta declaração, o Ministério da Justiça considerou abusivas as seguintes cláusulas contratuais:
• As que autorizam o envio do nome do consumidor, ou de seus
fiadores, aos bancos de dados ou aos cadastros negativos de consumidores, sem que ha¡a prévia notificação do contraente;
• As que impõem ao consumidor, nos denominados contratos
de adesão, a obrigação de manifestar-se contra a transferência de seus dados pessoais para bancos de dados de terceiros, mes- mo que esta transferência efetuada pelo fornecedor se¡a gratuita;
• As que autorizam que o fornecedor realize uma investigação da vida privada do consumidor;
• As que impõem nos contratos de seguro-saúde35, a limitação
temporal para as internações hospitalares;36
35 Tem sido destacada no mundo ¡urídico, uma recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em que se reconheceu o direito dos consumidores à cobertura do plano de saúde para a realização de cirurgia de estômago na hipótese de obesidade mórbida. O desembargador Xxxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxx, interpretando a cláusula contratual que exclui, expressamente, o tratamento de emagrecimento, afirmou que não está incluída a cobertura do trata- mento de obesidade mórbida. Na hipótese concreta, tratava-se de uma adolescente, com 15 anos, 1.70m de altura, pesando 145 quilos, o que, à evidencia, lhe comprometia a saúde. Garantindo a realização da finalidade do contrato, a decisão ¡udicial considerou que a cirurgia levaria à perda de peso por conseqüência e que não se podia falar em simples tratamento de emagrecimento, e sim de tratamento de doença grave, com sério comprometimento do funcionamento de órgãos vitais.
36 Em referência expressa a esta cláusula abusiva, o Ministro da Justiça afirmou que somente o médico pode dizer o tempo necessário para a internação e para o tratamento de um ser humano, acrescen- tando que é impossível aceitar-se a mercantilização da medicina, que envolve a saúde das pessoas.
• As que, nos contratos de seguro-saúde ou nos contratos de plano de saúde, estipulam a falta de cobertura para as doenças de notifi- cação compulsória, tais como febre amarela, dengue e malária.
Na oportunidade, Xxxxx xx Xxxxx ressaltou que o consumidor deve ser alertado37 de que estas cláusulas, mesmo que este¡am estipuladas nos contratos, não têm qualquer validade, vez que são ilegais, não pro- duzindo qualquer efeito contra o consumidor.
O Ministro da Justiça, enfatizando o repúdio do órgão governa- mental, afirmou a necessidade de se restabelecer a ética nas relações de consumo, orientando que os consumidores que se sintam lesados busquem o auxílio dos Procon's, órgãos responsáveis pela defesa dos direitos individuais violados e pela fiscalização das empresas que se utilizam destes artifícios lesivos.
O Ministério da Justiça tem divulgado, anualmente, uma relação de cláusulas abusivas.38
As multas aplicadas às empresas que lesam os direitos dos con- sumidores variam de 200 a 3 milhões de Ufirs.
Recentemente o Ministério da Justiça enunciou 16 situações de
cláusulas abusivas, destacando-se, nesta ocasião, a que estipula ¡uros
37 Em conhecido precedente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o desembargador Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx referiu-se a um dos deveres anexos, destacando o dever de particularizar, ao dispor no acórdão: “BOA FÉ DO SEGURADO. Base para a celebração de qualquer contrato e, principalmente, do contrato de seguro-saúde, é a boa-fé que deve estar presente não somente quando da celebração do contrato, mas, também, quando de sua execução, consistente na inter- pretação de seus termos e na determinação do significado dos compromissos que as partes assu- miram. O segurado é um leigo, que quase sempre desconhece o real significado dos termos, cláusulas e condições constantes dos formulários que lhe são apresentados. As cláusulas de ex- clusão, restritivas de direito, devem ser particularizadas. A expressão casos crônicos¸ visando a excluir a responsabilidade da seguradora, é de conceituação duvidosa, não sendo de compreen- são do homem médio, daí não ter noção do que realmente contratou com o segurador".
38 “A alma do contrato que visa a assegurar o direito à saúde, é, sem dúvida, a boa-fé ob¡etiva. Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em antigo e ainda atual artigo publicado na Ajuris – Revista da Associação dos Magis- trados do Rio Grande do Sul, adverte que a cláusula abusiva viola a boa-fé ob¡etiva, a alma do contrato, gerando: “... o descompasso de direitos e obrigações entre os contratantes, direitos e obrigações típicas daquele tipo de contrato, é a unilateralidade excessiva, é o desequilíbrio contrário à essência, ao objetivo contratual, aos interesses básicos presentes na- quele tipo de relação, é a autorização da atuação desleal, maliciosa, de má-fé subjetiva, que esta cláusula, se cumprida, irá ocasionar." (cf. artigo de nossa autoria publicado em Cidada- nia e Justiça, Revista da AMB, ano 5, n.12, p. 204:206).
capitalizados (¡uros sobre ¡uros)39 nos contratos civis; a que autoriza o não fornecimento de informações, tais como histórico escolar ou ficha médica, se o consumidor estiver inadimplente; a que autoriza a remessa de dados ao cadastro negativo dos consumidores (SERASA e SPC) en- quanto houver discussão em ¡uízo, relativa ao contrato.
A questão não é nova, e o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, tem regra expressa de vedação às cláusulas abusivas, dis- pondo o artigo 51:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
§ 1° Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que:
I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natu- reza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, consi- derando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso."
39 Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, na instigante obra denominada Lesão nos Contratos, ressaltou o nascimento de uma instituição que continha uma solução de eqüidade, uma verdadeira quebra no respeito sagrado à fórmula instrumental, uma brecha no ius civile. No contrato de empréstimo – mutuum – além de proibir a lei a contagem de ¡uros dos ¡uros (anatocismus), chegou-se à tarifação das taxas permitidas, limitando a liberdade contratual. Desta sorte, a usura conventinalis não podia ultrapassar cifras consideradas razoáveis: quatro por cento para as personae illustres, oito para os negociantes e fabricantes, seis para quaisquer outras pessoas. A fim de burlar a lei, contornar a nulidade que fulminava a convenção excedente das taxas permitidas e também evitar as penas cominadas para a infração, o mutuante fazia mencionar no instrumento quantia maior do que a realmente emprestada. Sendo o instrumentum prova bastante do contrato, ficava o devedor necessi- tado à mercê do credor, que tinha em seu poder o chirographum, contra o qual nada podia alegar a vítima. Nesse caso, como em qualquer hipótese de o instrumento estar em desacordo com a quantia mencionada, podia o devedor, signatário do documento, valer-se de um remédio instituído por constituições imperiais, através de uma defesa oponível ao credor: exceptio non numeratae pecuniae. O mutuário, quando demandado, alegava não ter recebido na verdade a quantia men- cionada no instrumento. O que há de mais imaginoso nesta contestação é a inversão do ônus probandi. O credor, que tinha por si o escrito, ficava ainda obrigado a provar que o excipiente de fato recebera a importância constante do quirógrafo. (cf. obra citada, p. 8:9).
A par do texto legal inserido na legislação específica, a ¡urispru- dência brasileira tem desempenhado um relevante papel no combate às cláusulas abusivas em todo e qualquer tipo de relação ¡urídica, e não somente naquelas tipicamente consumeristas.
Especificamente nas hipóteses dos planos privados que se propõem a fornecer a proteção da saúde dos seus associados, a ¡urisprudência tem sido um importante alicerce na defesa dos direitos dos consumidores.
Importante ressaltar que a conhecida falência dos serviços da saúde pública no Brasil serviu de palco ao incremento dos planos priva- dos de saúde.
Premido pela necessidade, e sem os necessários e imprescindíveis esclarecimentos, os consumidores aderem aos contratos previamente pre- parados40, quiçá com cláusulas obscuras ou até mesmo desprovidas de esclarecimentos e, no momento em que buscam o serviço contratado41, se deparam com as mais estapafúrdias desculpas das empresas.
Neste contexto, as decisões proferidas pelos tribunais brasileiros têm refletido a constante preocupação de garantir a concretização dos contratos de seguro-saúde.
Através das reiteradas decisões ¡udiciais, tem se formado a cons- ciência de que a prestação nos contratos de assistência médica ou de seguro-saúde, quando necessária, deve ser prestada com a devida qua- lidade, com a devida adequação, de forma que o serviço ob¡eto do contrato que uniu o consumidor e o fornecedor do serviço possa atingir os fins que razoavelmente dele se espera.
Em recente palestra que proferimos no “Seminário sobre Cláusu- las Limitativas e Excludentes nos contratos de Plano de Saúde", realizado em Salvador, na Bahia, tivemos oportunidade de afirmar que o estudo e a aplicação das cláusulas limitativas ou de exclusão da responsabilida-
40 Como tivemos oportunidade de realçar no artigo denominado Cláusulas Limitativas ou de Exclusão de Cobertura de Risco Médico-Hospitalar, publicado em Cidadania e Justiça, Revista da AMB, "não se pode olvidar que as cláusulas abusivas, quer sejam limitativas ou excludentes dos direitos dos associados, são concomitantes com a celebração dos contratos, mas a descoberta da abusividade é geralmente posterior“.
41 A professora Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx tem destacado que a efetiva cobertura dos riscos futuros à sua saúde, assim como à saúde de seus dependentes e a adequada prestação direta ou indireta dos serviços de assistência médica, é o que ob¡etivam os consumidores que contratam com as empresas prestadores dos serviços de saúde.
de pela prestação de saúde têm sido um dos grandes embates entre o Poder Judiciário – que tem sido cada vez mais chamado a assegurar os mais variados direitos – e os planos de saúde, que tomaram para si o risco de preservar vidas, num papel de coad¡uvante do Poder Público.
Vivemos em um momento de mudanças, em uma crise na qual os antigos paradigmas civilistas, fundados no princípio da autonomia da vontade ¡á não mais resolvem as questões cotidianas.
O Código de Defesa do Consumidor trouxe novos ventos. Estes ventos sopraram direitos mais racionais. Sopraram direitos mais éticos. Sopraram direitos fundados, basicamente, na boa-fé.
O mundo pós-industrial se humanizou. As relações contratuais modernas têm características especiais. Da acumulação dos bens materi- ais, passamos para uma outra fase, a da acumulação dos bens imateriais. Os contratos de dar, corriqueiros no século passado, ¡á não re- solvem os anseios das civilizações modernas, interessadas nos contra-
tos de fazer, nos contratos de prestação de serviços.
A Revista VEJA, recentemente destacou em matéria de capa o denominado “sonho da classe média".
O chamado da capa mostra, exatamente, essa mudança conceitual dos contratos modernos, ao afirmar que a classe média não tem mais como sonho principal a aquisição da casa própria.
O sonho da classe média está, atualmente, fundado na aquisição de bens e direitos imateriais. A classe média quer planos de saúde, prioriza a educação, preocupa-se com a previdência privada.
A questão que se coloca com prioridade é encontrar soluções para os modernos contratos de prestação de serviços, que envolvem obrigações de fazer contínuas e de longa duração, envolvendo os bens maiores protegidos constitucionalmente, que são a saúde e a vida.
Os profissionais do Direito foram acostumados a analisar contra- tos comutativos. Os modernos contratos de plano de saúde são contra-
tos aleatórios42, em que a contraprestação principal do fornecedor de serviços de saúde depende da ocorrência de evento futuro e incerto, que é a doença do consumidor/cliente ou de seus dependentes.
42 A base econômica do contrato é o mutualismo. Quando falamos em mutualismo estamos nos referindo a uma comunidade submetida aos mesmos riscos, o que leva, imediatamente, ao cálculo das probabilidades. O valor da contribuição de cada um dos associados – integrantes de uma comu- nidade submetida a riscos idênticos- dependerá do prévio conhecimento do número de sinistros que poderão – e aí entra o elemento aleatório destes contratos – ocorrer num determinado período. Através deste cálculo atuarial avalia-se o total dos prêmios a serem rateados entre os associados.
O Código de Defesa do Consumidor tem feito a aproximação entre os contratos comutativos e os aleatórios, criando uma mais nova e abrangente noção de vício do produto (art.18) e de vício do serviço (art. 20).
Com estas novas noções introduzidas pelas normas consumeristas, as prestações nos contratos dos planos de saúde, quando necessárias, devem ser prestadas com a devida adequação, para alcançar o fim a que se destinam.
A relação contratual nos contratos de prestação do serviço de saúde é tipicamente de resultado. O que se espera do prestador de serviço é um fato; um ato preciso, certo e determinado: “... prestar ser- viço médico, reembolsar quantias, fornecer exames etc.".
Se ocorre o evento futuro e incerto, o prestador do serviço está obrigado a tratar o consumidor. A interná-lo. A propiciar serviços de assistência médica ou hospitalar.
A obrigatoriedade da contraprestação do fornecedor de serviços é perfeitamente conhecida. Ele só não sabe se vai prestá-la e quando vai prestá-la.43
O consumidor, ao pagar mês a mês a sua contribuição, visa à cobertura do risco. Anos podem se passar sem que os serviços ofereci- dos e contratados se¡am prestados.
Para evitar que as cláusulas capazes de desfigurar o contrato típi- co se multipliquem, os deveres anexos, também denominados de deve- res secundários44, se agregam aos contratos principais, indicando que a relação contratual obriga não só o cumprimento das obrigações clausuladas, como o cumprimento das obrigações acessórias.45
A preocupação da Comunidade Européia com o abuso no
43 O contrato de plano de saúde envolve uma relação ¡urídica dinâmica, que nasce, vive e se desenvolve vinculando, durante anos, o fornecedor de serviços e o consumidor, assim como seus dependentes.
44 Os deveres anexos aos contratos de plano de saúde são, basicamente: o dever de informar; o dever de esclarecimento (subdivisão do de informar. Ex. Riscos do plano); o dever de cuidado; o dever de cooperação (agir com lealdade, sem obstrução).
45 O Código de Defesa do Consumidor brasileiro dispõe: “Art. 24 – A garantia de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor".Este texto legal se refere aos denominados deveres anexos, que se agregam aos deveres principais e não permitem que as cláusulas limitativas ou de exclusão de cobertura descaracterizem o contrato típico.
descumprimento dos contratos46 culminou com a Directiva do Conselho de Ministros da CEE n. 13/93, de 5 de Abril, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.47
Esta directiva estabeleceu o dia 31 de dezembro de 1994 como data limite para a adoção, pelos Estados Membros, das disposições legislativas, regulamentares e administrativas destinadas a dar-lhe cumprimento.
A proteção do aderente em face das cláusulas abusivas está garantida em Portugal pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro, modificado em 31 de agosto de 1995, pelo Decreto-Lei nº 220/95 e, posteriormente, nova- mente modificado pelo Decreto-Lei nº 249/99, de 7 de ¡ulho.
O Decreto-Lei nº 249/99, de 7 de ¡ulho, veio sanar divergência de transposição da Directiva 93/13/CEE, de 15 de abril, apontada pela Comissão Européia.48
Xxxxx Xxxxxxxx00 ressaltou, com propriedade, que a Directiva da CEE somente limitou o âmbito aos contratos de adesão entre profissio- nais e consumidores, acrescentando que, no entanto, o problema não
46 Nas décadas de 1970 e 1980 desenvolveu-se um movimento internacional e supranacional buscando a criação de uma disciplina específica de tutela do aderente. O Conselho da Europa, através da Resolução de 1976, recomendou a criação de instrumentos legislativos eficazes para proteção dos consumidores neste domínio. Também apontavam no mesmo sentido imperativo da Constituição da República Portuguesa, como o constante do artigo 81º. alínea j), a que corresponde, depois da revisão constitucional de 1997, o artigo 99º, alínea e).- Cf. Manual dos Contratos em Geral, de Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxx, p. 318.
47 “No plano doutrinal, a actualidade do tema é também evidente, como se comprova pelos inúme- ros artigos de revista, monografias, conferências, colóquios e congressos que o tomam por objecto" (cf. Xxxxxxx XXXXX XXXXXXXX, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais: Proble- mas e Soluções", in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001).
48 Estava em causa o problema da Directiva abranger todos os contratos de adesão entre empre- sários e consumidores, enquanto que a lei portuguesa, sendo uma lei sobre cláusulas contratuais gerais, só se aplicaria aos contratos de adesão celebrados através desta via, isto é, aos contratos de adesão que tivessem por base cláusulas contratuais gerais. Em decorrência, aparentemente pelo menos (contrariando a legislação comunitária), a lei portuguesa não se aplicava quando às cláusulas pré-elaboradas faltassem os requisitos da generalidade e indeterminação (ainda que o contrato fosse de adesão, verificando-se os requisitos de pré-diposição, unilateralidade e rigidez).
– Cf. Xxxxxxx XXXXX XXXXXXXX, obra citada, p. 1125:1126.
49 Cf. obra supracitada
se restringe às relações de consumo, colocando-se também nas rela- ções contratuais entre empresários.50
IV – MODELAÇÃO DO CONTRATO
O fascínio do tema que envolve a abusividade nos contratos, e, portanto, o atualíssimo tema da boa-fé, obriga-nos a adentrar em outro tema que tem sido denominado de modelação do contrato.51
O novo Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de ¡aneiro de 2002, que entrou em vigor em ¡aneiro de 2003, estabeleceu no art. 421: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato".
Permite, ainda, que as partes estipulem contratos atípicos, dis- pondo no art. 425:
“Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código".
A liberdade contratual está também expressamente autorizada na codificação civil portuguesa, constando do artigo 405º.:
“1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhe aprouver.
“2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei".
Estes textos legais encerram o princípio da autonomia da vontade, o que significa dizer que encerram as regras que determinam o poder dos indivíduos de traçar uma determinada conduta para o futuro.
50 Para o professor da Faculdade de Direito de Coimbra, inexiste no direito brasileiro qualquer referência legislativa às cláusulas contratuais gerais ou cláusulas gerais dos contratos. Assim, pare- ce-lhe que o regime adotado nos artigos 51, 52 e 53 do Código de Defesa do Consumidor, relativamente às cláusulas abusivas, não depende, para a sua aplicação, do modo de celebração do contrato, ou se¡a, se por adesão ou não, nem do requisito de generalidade e indeterminação de eventuais cláusulas pré-estabelecidas. Desta forma, entende que a legislação brasileira vai além dos direitos que incluem no elenco das cláusulas abusivas apenas as que se¡am cláusulas contratuais gerais ou que, pelo menos, façam parte de um contrato de adesão. (cf. obra citada, p. 1110).
51 “... a liberdade contratual, na sua vertente de liberdade de modelação do conteúdo contratual (Gestaltungsfreiheit), permite que cada parte decida livremente acerca dos deveres que assume, das obrigações que contrai, desde que obtenha o acordo do outro contratante" Cf. Xxxxxxx XXXXX XXXXXXXX, Cláusulas Limitativas do Conteúdo Contratual - em Estudos de Direito da Comu- nicação, p. 194.
No clássico conceito, o princípio da autonomia da vontade mani- festa-se sob um tríplice aspecto: a liberdade de contratar propriamente dita, a liberdade de estipular o contrato, a liberdade de determinar o conteúdo do contrato.
A liberdade de contratar permite que as partes regulem seus inte- resses por formas diversas, não estando obrigadas a obedecer, sequer, as linhas gerais de estrutura de cada contrato.
São livres, não só para determinar o conteúdo dos contratos, como os limites legais do contratado.
Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx, na obra denominada Acções e Factos Jurídicos destacou a crise da autonomia da vontade no século XX, lem- brando que a concentração do poder econômico, assim como o crescente intervencionismo estatal, aliado à formação da sociedade de massas, le- vou ao obscurecimento do princípio da autonomia da vontade.
Para o professor de Lisboa, a liberdade de criação sofreu novas restrições, quer direta, como nos contratos de seguro, quer indiretas, nas hipóteses das situações ¡urídicas a que as partes podem dar vida, criando novas tipificações de contratos.
Afirmou, ainda, que o contrato de xxxxxx, típico daquele século, suprimiu completamente a liberdade de estipulação e, em conseqüên- cia, mutilou a liberdade de negociação.
Xxxxxxx o professor que sempre houve contratos em que não existia liberdade de estipulação; a novidade no contrato de adesão é a imposição do conteúdo do contrato genericamente imposto pela unila- teral vontade de uma das partes.
Com as novas regras do Código Civil Brasileiro, agora regido pelos princípios da sociabilidade, da eticidade e da efetividade ou operabilidade, tem-se, apressadamente, afirmado a morte do princípio da autonomia da verdade e da força obrigatória do contrato.
No entanto, esta não é, com certeza, a intenção do legislador bra- sileiro e, como adequadamente refletido no pensamento de Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx00, estes princípios continuarão sendo os pilares de sustentação de todo o direito das obrigações, cabendo aos magistrados o grande desafio de compatibilizá-los com os novos princípios.
52 “O Novo Código Civil e a Reformulação da Teoria das Obrigações e dos Contratos".– AMAERJ Notícias Especial, nº 07, maio de 2003.
Desta forma, nos estritos termos do textos codificados quer na legislação brasileira, como na portuguesa, as partes podem definir o ob¡eto do contrato53, precisando seu conteúdo e sua extensão, sem que esta modelação do contrato importe em qualquer excludente de respon- sabilidade.
Não se pode olvidar, no entanto, que a liberdade de contratar é uma faculdade concedida às partes para precisar o conteúdo das obri- gações assumidas, balizando os limites da relação contratual, median- te a inclusão ou a exclusão de certas obrigações. 54
A hipótese codificada, repita-se, não é a de excludente de res- ponsabilidade e sim de modelação do contrato, através da supressão (ou da inclusão) de obrigações.55
A informalidade e a liberdade de escolher o que, como e com quem contratar são fundamentais para o bom desenvolvimento dos contratos, assegurando às partes o necessário equilíbrio, como uma eficaz proteção contra a vulnerabilidade e a hipossuficiência natural nas relações humanas.
53 Discorrendo sobre a auto-regulação de interesses, Xxxxxxxx Ascensão apresenta uma interes- sante distinção entre as relações de cortesia e os acordos de cavalheiros, exemplificando: “Xxxxxxx combina com Xxxxxxxx dar-lhe boleia no dia seguinte. Mas esquece-se, ou prefere outro conviva, ou tem outra coisa para fazer. Xxxxxxxx chega tarde e sofre prejuízo com isso. Xxxxx um negócio jurídi- co entre ambos? E quais as conseqüências da falta? Para o referido doutrinador, a hipótese é de relação denominada de cortesia ou de obsequiosidade. E, em seguida, formula outras duas ques- tões: “podem as partes constituir sobre elas verdadeiras relações jurídicas?" “Pode haver uma responsabilização de quem se comprometeu?" As respostas não deixam dúvidas. O principal sen- tido da autonomia da vontade privada é o de admitir que as partes possam criar as vinculações que entenderem. Assim, as partes podem se obrigar a receber para ¡antar, a convidar para férias, a ensinar a dançar, ... O que não é possível é que se possa contestar a validade de uma obriga- ção livremente assumida, desde que corresponda a um interesse “digno de protecção legal". Para
¡ustificar a resposta é pertinente a indicação do artigo 398º nº 2, do Código Civil Português: “A prestação não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de protecção legal".Nos acordos de cavalheiros, no entanto, a situação é inversa. A matéria que poderia ser ¡urídica, é tratada nos termos de um acordo.
54 O professor de Coimbra ressaltou que na esfera da liberdade de contratar ninguém poderá ser responsabilizado pelo não cumprimento de uma obrigação que não faz parte do contrato.
55 No estudo indicado, Xxxxx Xxxxxxxx , citando Xxxx Xxxxxx (Des conventions d’ irresponsabilité) ressaltou que uma coisa é assumir-se determinada obrigação, ainda que afas- tando previamente a responsabilidade pelo seu não cumprimento, e, outra, diferente, é nem sequer assumir o devedor essa obrigação, afirmando que neste último caso não há responsabilidade por- que não há, sequer, incumprimento, visto que a obrigação não faz parte do contrato.
Em trabalho publicado pelo Instituto Jurídico da Comunicação, o professor Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx00 discorreu sobre as cláusulas de ex- clusão de responsabilidade, fazendo uma perfeita delimitação diferenciadora de outras figuras, com as quais são comumente confun- didas, tais como, as cláusulas limitativas do conteúdo contratual.57
Em tempo de conceitos, disse o feste¡ado professor que as cláusulas de exclusão de responsabilidade constituem um meio de o devedor se pre- venir das conseqüências desfavoráveis que a situação de não cumprimento lhe acarretará, ou se¡a, configuram a hipótese em que o devedor previa- mente se furta à responsabilidade que sobre ele poderá recair.58
Xxxxxxxxxx, no entanto, para que a também denominada cláusu- la de irresponsabilidade se¡a capaz de desonerar o devedor, que, sem ela, tivesse de indenizar o devedor.
Ou se¡a, com a cláusula de exclusão de responsabilidade, como o próprio nome está a sugerir, as partes afastam uma obrigação que, normalmente, faria parte do contrato.
Para finalizar este tópico de nosso estudo, podemos dizer, sem medo de errar, que a grande modificação advinda do novo Código Civil Brasilei- ro é a passagem de um modelo individualista, solidamente alicerçado nos conhecidos e vetustos dogmas do Estado liberal, com os princípios da au- tonomia da vontade e da imutabilidade dos contratos considerados como valores absolutos, para um modelo comprometido com a função social do direito, preocupado com a construção da dignidade humana, inserido na busca da formação de uma sociedade mais ¡usta e igualitária.59
56 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Presidente da Direção do IJC
– Instituto Jurídico da Comunicação.
57 Cf. “Cláusulas Limitativas do Conteúdo Contratual" - Estudos de Direito da Comunicação, Instituto Jurídico da Comunicação, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2002.
58 No supracitado artigo, que nos serve de apoio para a complementação do tema, Xxxxx Xxxxxxxx formulou alguns exemplos práticos. Uma oficina de reparação de automóveis, uma garagem de recolha de automóveis (de um hotel, por exemplo) ou um qualquer parque de estacionamento (no interior da cidade, num aeroporto, num centro comercial, etc), declara, através de um aviso ou letreiro afixado no local de cumprimento do contrato ou no ticket destinado ao utente do mesmo, que “não se responsabiliza pelo desaparecimento de objectos deixados no interior dos veículos"; ou que “não responde pelo furto dos veículos"; ou, ainda, de um modo mais explícito, que “a empresa não assume a obrigação de vigilância", que “a empresa limita-se a proporcionar um espaço para estacionamento da viatura", que “não há contrato de depósito".
59 Cf. Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, obra citada.
V – A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Xxxxxx Xxxxx00, um dos maiores articuladores do novo Código Civil Brasileiro, tem ressaltado que em todo o ordenamento ¡urídico há artigos-chaves, isto é, normas fundantes que dão sentido às demais, sintetizando diretrizes válidas para todo o sistema.
Nesse contexto, o doutrinador referiu-se ao artigo 11361 do novo Código Civil Brasileiro, afirmando que o texto consagra a eleição espe- cífica dos negócios ¡urídicos como disciplina preferida para regulação genérica das relações sociais.
Como ¡á tivemos oportunidade de destacar nestas breves linhas, de um modelo individualista, solidamente alicerçado nos dogmas do Estado Liberal, que transformava os princípios da autonomia da vonta- de e da imutabilidade dos contratos em valores absolutos, o sistema civil brasileiro passou para um sistema profundamente comprometido com a função social do direito, preocupado com a construção da digni- dade humana e com a solidificação de uma sociedade não só mais
¡usta, como também igualitária.62
Vista sob este aspecto regulador, a norma fixou os princípios da
eticidade, da sociabilidade e da operabilidade.
Denomina-se de função social do contrato63 o fenômeno que de- termina o equilíbrio das partes contratantes, de tal forma que os social- mente mais fortes não se sobreponham aos socialmente mais fracos.
60 No Congresso Internacional sobre o Novo Código Civil, realizado na EMERJ, Escola da Magistra- tura do Rio de Janeiro, em dezembro de 2002, o professor Xxxxxx Xxxxx, amplamente aplaudido pela platéia, relatou os incidentes ocorridos durante a tramitação do pro¡eto na Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, afirmando que “... jamais a vaidade nos impediu de lançar mão de todos os meios de elaboração de um anteprojeto plenamente satisfatório, podendo-se afirmar que, em virtude das numerosas emendas aprovadas no Congresso Nacional, a redação final do novo Código Civil consubstancia o que há de mais significativo na civilística nacional".
61 Art. 113. Os negócios ¡urídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
62 Conceitos refundidos do artigo escrito pelo desembargador Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx para o
AMAERJ Notícias Especial - 7.
63 Em excelente estudo do para quê do negócio, XXXXXXXX ASCENSÃO destacou que a doutrina italiana foi a que mais profundamente tratou da matéria relativa ao fim do negócio jurídico. Acrescen- tou que Xxxxxxxxxx em vez de causa, vontade e forma de negócio, falou de fim, intenção e atuação, discutindo o fim em termos estritamente ob¡etivos, distinguindo-o da intenção do agente, mas entrando em conflito com a utilização diversa que a lei faz do termo fim. Para o professor de Lisboa, parece mais conveniente manter a utilização da palavra causa. (obra citada, p. 270).
O novo Código Civil Brasileiro inseriu, expressamente, a função social do contrato, dispondo no art. 421:
“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato."
Por sua evidente similaridade, o texto da nova codificação brasi- leira remete para o art. 5º., inciso XXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que limita o âmbito do direito de propriedade, utilizando a mesma expressão, em atendimento à função social.
Com esta introdução de conceitos na legislação infraconstitucio- nal, o legislador brasileiro demonstrou a intenção de limitar o campo da liberdade da vontade, nas contratações de direito privado, à conse- cução do escopo social.
Para Xxxxxxxx Ascensão, todo negócio ¡urídico deve ter uma fun- ção socialmente relevante. Mas esta afirmação tem pouco valor quan- do se está no campo dos contratos típicos, vez que a valoração da função social destes negócios ¡urídicos ¡á está consagrada na lei que os criou.
O significado da inserção da exigência do cumprimento da fun- ção social do contrato é importante nos denominados contratos atípicos, em que a modelação do contrato, pela vontade das partes, se faz abso- lutamente presente.
Nesta hipótese, portanto, será necessário valorar a presença ou a ausência da função social em relação a cada um dos negócios ¡urídicos concretamente realizados.
Ou se¡a, nestes novos tempos, a manifestação de vontade de- verá ser não só exercida, mas também valorada, em razão do ob¡e- tivo social.64
A função social do contrato retrata a preocupação do legislador deste novo século, buscando, primordialmente, assegurar o equilíbrio entre as partes contratantes e ¡á encontrava dispositivos no Código de Defesa do Consumidor, que contém dispositivos destinados à defesa dos hipossuficientes técnicos ou econômicos.
Regra de expressivo significado social está inserida no artigo 317 do novo Código Civil Brasileiro:
64 San Thiago Dantas, atento ao liberalismo econômico do início do Século XIX, afirmou que o direito contratual do início deste século deixou de proteger os socialmente fracos, mas criou oportunidades para os socialmente mais fortes, aceitando riscos e dando ense¡o ao aparecimento de novas riquezas.
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier despro- porção manifesta entre o valor da prestação devida e do mo- mento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação."
Com este dispositivo, o ¡uiz passa a assumir o papel de equilibrador técnico das relações obrigacionais.
Dele será a função de velar pela equação financeira dos negóci- os ¡urídicos, mantendo a comutativa inicial do contrato.65
Em concreto, todo ato ¡urídico deverá ser valorado, para uma apreciação da função social, quer se trate de negócio típico ou de ne- gócio atípico.
O problema interpretativo da função social está na valoração em abstrato, vez que imprescindível determinar a categoria em que o negó- cio atípico se enquadra e se desempenha uma função capaz de ¡ustifi- car sua admissão social.
Ao ¡uiz caberá perguntar se o negócio ¡urídico desempe- nha um fim útil, ou se, serve de instrumento para um interesse ob¡etivo.
A visão não é mais meramente individualista.
Está em causa, primordialmente, a função econômico-social do contrato inteiro.
VI – A ETICIDADE E OS CONTRATOS
Em evidente transformação de um modelo individualista, para um sistema preocupado com a dignidade humana e com a formação de uma sociedade mais ¡usta e, principalmente, igualitária, estabelece o artigo 422 do novo Código Civil Brasileiro:
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na con- clusão do contrato, como em sua execução, os princípios de pro- bidade e boa-fé."
65 Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx afirmou que pessoalmente sempre tinha entendido que esta revisão superveniente poderá ser feita, mesmo que o desequilíbrio resultasse de um fato previsível, desde que imprevisíveis seus efeitos, posição que foi adotada pela maioria dos participantes de encontro realizado pelo Superior Tribunal de Justiça, do qual resultaram os primeiros enunciados interpretativos do novo Código Civil Brasileiro. (cf. artigo citado).
Com este texto legal, a boa-fé ob¡etiva66 transformou-se, na le- gislação brasileira, em dever ¡urídico, em cláusula geral implícita em todos os contratos, exigindo dos contratantes uma efetiva conduta ho- nesta, leal e transparente.
Tem-se afirmado, com fundamento na teoria da boa-fé ob¡e- tiva desenvolvida no direito alemão, e agora adotada pelo legisla- dor brasileiro, que a hipótese é de princípio, logo, provido de normatividade.
Esta afirmação provém da interpretação do § 242 do Código Civil alemão, que tem servido de esteio à expressão alemã Treu und Glauben, que engloba os conceitos de lealdade e de crença, invocando um dever, uma obrigação socialmente recomendada.
A regra de conduta individual deve estar fundada na lealdade (Treu), na confiança, na lisura, na retidão, na consideração dos inte- resses do alter.
O dever de conduta, agora regido pelo princípio da eticidade,
não deve frustrar a confiança xxxxxx.
O contratante é visto como um membro de um con¡unto social que é ¡uridicamente tutelado.
É sabido que as partes gozam, no domínio contratual, de uma ampla liberdade, o que lhes permite adequar as relações ¡urídicas à medida de seus interesses, criando instrumentos negociais aptos à ob- tenção dos ob¡etivos traçados.
A liberdade contratual é, sem dúvida, a expressão mais relevante do princípio da autonomia da vontade, que, como ¡á tivemos oportuni- dade de defender, não está abolido com a reformulação da teoria das obrigações e dos contratos no novo Código Civil Brasileiro.
Em tempos de valoração da dignidade humana, o direito só pode estar a serviço do homem (hominum causa omne ius constitutum), não mais no seu sentido individualista, mas agora como um integrante de uma sociedade que se quer, antes de tudo, mais igualitária.
66 O princípio da boa-fé tem raízes no Direito Alemão, com a teoria da confiança nas declarações, pela qual se fazia necessário presumir a boa-fé dos contratantes. Assim, fixou-se neste país, pela primeira vez, um conceito ob¡etivo para a boa-fé. A partir daí o princípio da boa-fé vem sendo enfatizado, mormente por emprestar conteúdo ético ao direito contratual. (Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx xx XXXXXXXX, "A Evolução do Direito Privado e os Princípios Contratuais“- Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 328, p. 28, 1994)".
A liberdade contratual ganha novos contornos, assume a feição de um meio indispensável para o livre desenvolvimento da personalidade humana67, perante as aceleradas transformações econômico-sociais.
Está ultrapassada a fase da boa-fé sub¡etiva, que traduzindo mera exortação ética, muito pouco contribuía para a garantia de equações econômicas mais ¡ustas.
A boa-fé é o cerne ou a matriz da eticidade, que não existe sem o elemento psicológico da intenção ou do propósito de guardar fidelida- de ou lealdade ao contratado.
Dessa intencionalidade resulta a boa-fé ob¡etiva, como norma de conduta que deve resguardar a veracidade do que foi estipulado.
Pode-se, desta forma, afirmar que a boa-fé é uma das condições essenciais da atividade ética, assim como da atividade ¡urídica, carac- terizando-se pela sinceridade e pela probidade de todos aqueles que dela participam.
Em decorrência da boa-fé pode-se esperar o cumprimento do pactuado sem distorções, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim visado ou declarado pelas partes contratantes. Sob este aspecto, a boa-fé se apresenta não só como norma de conduta, mas também, e principalmente, como norma de comporta-
mento, numa perfeita correlação entre meio e fim.
Apresenta-se, ainda, como exigência de adequada e fiel execu- ção do que tenha sido acordado pelas partes, o que importa em dizer que a intenção dos contratantes deve ser endereçada ao ob¡etivo a ser alcançado, da forma que se encontra configurado nos documentos que o legitimam.
Fácil concluir que no novo ordenamento ¡urídico brasileiro68, a eticidade, representada pela boa-fé, simboliza o imperativo do que no plano psicológico se pôs como intenção leal e sincera, imprescindível e essencial à ¡uridicidade do contrato.
67 XXXXX XXXXXXXX, Coimbra, abril de 1986, noção refundida do trecho referente à função e importância prática dos contratos, no artigo denominado Contrato de Agência.
68 No revogado código civil brasileiro de 1916, a inspiração legislativa para a consideração da boa-fé nas relações obrigacionais achava-se quase que isoladamente consignada no artigo 85, de onde se depreende a vontade Estatal que: o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível. (Xxxxxxx Xxxxx)
Como se não bastasse, converte-se a boa-fé em primeiro critério de hermenêutica dos negócios ¡urídicos, o que, sem dúvida, representa- rá sua louvável e necessária purificação ética.69
Para Judith Martins Costa, autora de um dos mais completos estu- dos sobre o princípio da eticidade, a boa-fé, funcionando como cânone hermenêutico integrativo do contrato, como norma de criação de deve- res jurídicos e como norma de limitação ao exercício de direitos subjeti- vos, transformou-se em “topos subversivos do direito obrigacional".
Importante ressaltar as conseqüências inseridas no art. 187 do novo Código Civil Brasileiro, dispondo:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
O texto legal, punindo com a pecha da ilicitude do ato o excesso dos limites impostos pela boa-fé, bem demonstra a importância do prin- cípio da eticidade, pela primeira vez claramente expresso na codificação civil brasileira.
Serve, ainda, de preceito interpretativo do art. 422, autorizando a intervenção do Estado a sancionar a parte que violar a eticidade do contrato, fomentando o desequilíbrio da parte.
O princípio da eticidade agora tem sanção específica, estando claro que a má-fé contratual será punida através da concessão de inde- nizações por danos morais ou materiais.
A aplicação do princípio inserido no art. 422, con¡ugado com o preceito sancionador do art. 187, todos do novo Código Civil Brasilei- ro, autoriza e legitima a intervenção do Poder Judiciário na vontade das partes, para compeli-las a seguir os ditames da eticidade.
Importante ressaltar que a eticidade se aplica não só às cláusulas principais dos negócios ¡urídicos, como se estende e se aplica aos deno- minados deveres anexos do contrato, dentre os quais se pode destacar o dever de informar, o dever de cuidado, o dever de cooperar.
A eticidade tutela a confiança de quem acreditou que a outra parte procederia em conformidade com os padrões de conduta exigíveis, que são determinados pelo comportamento exigível do bom pai de fa- mília, do bom cidadão.
O princípio adotado na legislação brasileira, no limiar do novo
69 A expressão é de Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, obra citada.
século, ¡á se encontrava inserido em grande parte da legislação civil mais atualizada com o respeito ao conceito de ética social.
Assim, o Código Civil espanhol dispõe no art. 7º, inciso I, que os direitos deverão exercitar-se conforme as exigências da boa-fé.
O Código Civil italiano de 1942, por seu turno, dispõe no artigo 1.337, que as partes, no desenvolvimento das tratativas na formação do contrato, devem comportar-se segundo a boa-fé.
O Código Civil português, que sem dúvida serviu de valioso contributo para a modificação da teoria das obrigações e dos contratos no Brasil, tem regra expressa e clara de adoção do princípio da eticidade, dispondo no artigo 227º.:
“Art. 227°. Culpa na formação dos contratos.
1. Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte."
VII – O PAPEL DO JUDICIÁRIO EM TEMPO DE REMATE
Com a exposição de temas tão palpitantes, uma pergunta se impõe: Há, de fato uma nova teoria contratual?
Xxxxxxx Xxxxxxxx formula esta pergunta em “As Relações de Con- sumo e a Nova Teoria Contratual", uma publicação da UERJ, Universi- dade do Estado do Rio de Janeiro, para analisar especificamente as relações de consumo, mas pensamos que a dúvida não está limitada às relações consumeristas, vez que é mais abrangente, alcançando todas as relações negociais.70
70 Esta é a posição adotada por XXXXX XXXXXXXX, no artigo intitulado “Contratos de Xxxxxx e Cláusulas Contratuais Gerais: Problemas e Soluções", a que ¡á tivemos oportunidade de nos reportar nas notas 47/50. No texto citado, o renomado professor chamou a atenção para o problema, advertindo que não está restrito às relações de consumo e acrescentou: “Se é verdade que a protecção do consumidor passa pelo controlo dos contratos de adesão, os problemas não devem, de todo modo, confundir-se nem identificar-se. Pois se é certo que a necessidade de contro- lar tais contratos é maior quando a contraparte da empresa for um consumidor, a verdade é que o problema é mais amplo, não se esgota na protecção do consumidor, colocando-se também nas relações contratuais entre empresários “. - p. 1109.
De qualquer sorte, a resposta será sempre sim.71
Sim, porque são evidentes as mudanças ocorridas nas relações contratuais neste mundo globalizado.
A sociedade clama por negócios relacionados à prestação de serviços, tais como, saúde, educação, previdência.
A doutrina tradicional, fundada na imutabilidade de conceitos e dogmas ¡urídicos, cede lugar à função social dos contratos.
A relativização dos conceitos ¡urídicos, conquista da nossa era, tem alterado a compreensão do fenômeno ¡urídico contemporâneo, tra- çando raízes na própria dogmática.
Sim, porque o Estado de Direito em que vivemos, pleno de garan- tias constitucionais, não mais se conforma com a mera igualdade for- mal entre os indivíduos.
Há urgência na intervenção estatal para assegurar que interesses particulares não se sobreponham a interesses sociais.
Busca-se a igualdade material entre os cidadãos.
É necessário o estabelecimento de equilíbrio entre a liberdade individual e o bem estar coletivo.72
O dirigismo contratual, com a intervenção do Estado Social de Direito por meio da atividade legislativa, ganha contornos nítidos.
A preocupação do legislador, neste começo do Século XXI, sem qualquer sombra de dúvida, é a de assegurar o equilíbrio entre as par- tes contratantes, de tal sorte que os economicamente mais fortes não continuem a sobrepu¡ar os economicamente mais fracos.
A grande questão que se coloca é como compatibilizar as radicais modificações introduzidas na teoria das obrigações e dos contratos.
Como alcançar o ponto de equilíbrio?
71 Xxxxxxx Xxxxxxxx responde com uma fórmula aparentemente contraditória – mas só aparente- mente contraditória – dizendo sim e não e prossegue explicando a referida contradição. Comun- gamos do entendimento de que há uma nova ordem ¡urídica, impondo a releitura da teoria do contrato, por isso, nossa resposta é una e positiva.
72 “Já na era globalizada e capitalista em que estamos inseridos, as relações de consumo são uma constante. Riquezas são produzidas sistematicamente e em grande quantidade, socialmente valoradas e desfrutadas por uma sociedade de consumo, em clara demonstração de que a individualização que por tempos caracterizou as relações contratuais já não mais se aplica aos contratos da sociedade hodierna“. Cf. A boa-fé nas relações contratuais de consumo de Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx.
Como mediar e garantir o requisito de segurança dos negócios, agora considerados em contraposição com a igualdade das partes, não mais como mero integrantes de uma relação negocial, mas como inte- grantes de uma con¡untura econômico-social?
Não sem razão, o professor Xxxxxx Xxxxx tem afirmado que o novo Código Civil Brasileiro está agora nas mãos dos ¡uízes, que deixaram de ocupar o simbólico papel de a “boca da lei", para exercerem uma função efetiva não só na realização, como na distribuição da ¡ustiça.
É do desembargador Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx a advertência que se destaca:
“De nada adiantarão as mudanças, frustrando-se as justas expec- tativas da sociedade, se o Judiciário não interpretar o Código se- gundo os ideais que o inspiraram."
Neste mesmo sentido, o professor Xxxxx Xxxxxxxx, entrevistado pela AMAERJ depois de sua participação no Congresso Internacional sobre o novo Código Civil Brasileiro, lembrou que...
“... uma lei não é apenas aquilo que está escrito, ela é a forma como é tratada e aplicada. A lei é a porta de entrada, mas depois há um trabalho de construção, o que significa que, se deve haver algum tipo de orientação nesse novo Código, ele deve ser feito com o tempo. Só mais tarde, quando as discussões estiverem amadurecidas, é que as correções devem ser feitas. O novo Códi- go será o que os magistrados quiserem que ele seja."
Da advertência destes dois grandes mestres e estudiosos do direi- to, releva o papel do Poder Judiciário Brasileiro neste novo milênio.
A sociedade moderna é cada vez mais complexa, e, por ser com- plexa, reclama um pensar cada vez mais complexo.
A única certeza no limiar deste novo código é a incerteza.
A ¡ustiça enfrenta em todo o mundo desafios cada vez mais com- plexos. A produção do direito em abundância, aliado ao desenvolvi- mento da individualidade e dos reclamos de respeito à ética, multipli- cou e modificou as lides, levando o ¡uiz do novo milênio a decidir ques- tões multifacetadas, com viés nos aspectos sociais e éticos.
Ao Judiciário brasileiro caberá a missão de purificar o conceito de eticidade e de guardar o conceito de sociabilidade.
“O novo código será o que os magistrados quiserem que ele seja."⯌