RECURSO ESPECIAL N. 656.932-SP (2004/0011451-0)
3. Contratos
3.1. Contrato Bancário
RECURSO ESPECIAL N. 656.932-SP (2004/0011451-0)
Relator: Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Recorrente: Banco Boavista Interatlântico S/A Advogada: Xxxxx xx Xxxxx
Recorrido: Xxxxxxxx Xxxxxxx da Costa e outro Advogado: Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx e outro(s)
EMENTA
Civil. Recurso especial. Aplicação financeira. Fundo de investimento. Variação cambial ocorrida em 1999. Perda de todo o valor aplicado. Cláusula stop loss. Indenização por danos materiais e morais. CDC. Relação de consumo. Descumprimento contratual. Mero dissabor.
1. Por estar caracterizada relação de consumo, incidem as regras do CDC aos contratos relativos a aplicações em fundos de investimento celebrados entre instituições financeiras e seus clientes. Enunciado n. 297 da Súmula do STJ.
2. O risco faz parte do contrato de aplicação em fundos de investimento, podendo a instituição financeira, entretanto, criar mecanismos ou oferecer garantias próprias para reduzir ou afastar a possibilidade de prejuízos decorrentes das variações observadas no mercado financeiro.
3. Embora nem a sentença nem o acórdão esmiucem, em seus respectivos textos, os contratos de investimento celebrados, ficou suficientemente claro ter sido pactuado o mecanismo stop loss, o qual, conforme o próprio nome indica, fixa o ponto de encerramento de uma operação com o propósito de “parar” ou até de evitar determinada “perda”. Do não acionamento do referido mecanismo pela instituição
financeira na forma contratada, segundo as instâncias ordinárias, é que teria havido o prejuízo. Alterar tal conclusão é inviável em recurso especial, ante as vedações contidas nos Enunciados n. 5 e 7 da Súmula do STJ.
4. Mesmo que o pacto do stop loss refira-se, segundo o recorrente, tão somente a um regime de metas estabelecido no contrato quanto ao limite de perdas, a motivação fático-probatória adotada nas instâncias ordinárias demonstra ter havido, no mínimo, grave defeito na publicidade e nas informações relacionadas aos riscos dos investimentos, induzindo os investidores a erro, o que impõe a responsabilidade civil da instituição financeira. Precedentes.
5. O simples descumprimento contratual, por si, não é capaz de gerar danos morais, sendo necessária a existência de um plus, uma consequência fática capaz, essa sim, de acarretar dor e sofrimento indenizável pela sua gravidade.
6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por unanimidade, conheceu e deu parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Xxxxx Xxxxx, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Xxxx Xxxxxx (Presidente) e Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx votaram com o Sr. Ministro Relator.
Dr(a). Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, pela parte recorrente: Banco Boavista Interatlântico S/A
Dr(a). Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx, pela parte recorrida: Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx
Brasília (DF), 24 de abril de 2014 (data do julgamento). Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Relator
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx: Trata-se, na origem, de “ação de cobrança cumulada com indenização” proposta por Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e por seu filho Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx contra Banco Boavista Interatlântico
S.A., narrando que “o primeiro Autor (Benedito) amealhou ao longo dos anos um capital equivalente a R$ 805.253,62, enquanto que o segundo Autor (Xxxxx) conseguiu poupar, até 12 de janeiro de 1999, a quantia aproximada de R$ 141.584,45” (fl. 3), tendo procurado a ré para aplicar o referido capital, acrescentando, in verbis:
5. Assim, a gerente do “Boavista” (agência Conjunto Nacional), recomendou a aplicação nos fundos de investimentos do Banco como opção mais rentável, sugerindo que os valores fossem divididos em três fundos de derivativos (“Hege 60”, “Master 60” e “Derivativos 60”), assegurando (verbalmente e através de material propagandístico – vide docs. 5 a 9), que o grau de risco do “Hedge 60”, tido como agressivo, jamais poderia ultrapassar perda superior a 1 CDI (certificado de depósito interbancário), enquanto que o “Derivativos 60”, também classificado como agressivo, não teria rentabilidade negativa, fazendo crer, destarte, que essas aplicações eram sólidas e seguras, respeitando-se, repita-se, a possibilidade da perda acima mencionada.
6. Quanto ao “Master 60”, classificado como investimento de “perfil moderado”, a promessa veiculada nos materiais de propaganda e pelos próprios funcionários do Banco Réu assegurava que os ganhos seriam de, no mínimo, 0,5% do CDI, ou seja, esse investimento, tal como o “Derivativos 60”, não admitia a rentabilidade negativa, sendo prometido, ainda, que todas essas aplicações poderiam ser resgatadas no mesmo dia do pedido da baixa (D+0), consoante demonstram os inclusos materiais publicitários (docs. 5 a 9), enquanto que as metas de ganhos seriam, no caso do “Hedge 60”, de 150% do CDI, 120% do CDI para o “Derivativos 60” e 110% do CDI para o “Master 60”.
[...]
9. Ocorre que, no dia 14 de janeiro p.p., diante da informação que a desvalorização cambial verificada no dia anterior teria repercutido de forma negativa nos investimentos respectivos, os Autores determinaram verbalmente (como de praxe), o resgate dos saldos existentes nesses fundos.
10. Porém, considerando que os pedidos verbais não foram acatados pela gerência, sob alegação que os resgates não eram mais D+0 (imediato), e sim D+5, isto é, os valores somente poderiam ser levantados após 5 dias do pedido de baixa (afrontando as condições pactuadas inicialmente), os Autores acharam por bem formalizar expressamente a ordem de resgate, protocolizando as inclusas solicitações de resgate (docs. 29 e 30).
[...]
12. Admitindo-se que a Instituição Financeira Ré tivesse cumprido o pacto inicial (resgate na condição D+0), com a consequente liberação do valor dos fundos nesse dia 14, os autores teriam recebido a importância de R$ 542.636,62 (vide quadro II do anexo 1), minimizando sensivelmente os prejuízos.
13. Porém, no dia 18.1.1999, ocasião em que os recursos permaneciam indevidamente bloqueados (considerando o não atendimento do pedido de resgate), os autores foram surpreendidos com as informações que os aludidos fundos haviam sofrido perdas superiores aos valores investidos (notadamente no que diz respeito ao “Hedge 60”), ou seja, além de perderem todo o dinheiro investido no “Hedge 60”, os autores ainda passaram a ser devedores do banco” (fls. 3-5).
Xxxxxxx, além de danos morais, o “ressarcimento da importância de R$ 880.967,73 (R$ 946.838,07 - R$ 65.870,34 - vide quadros I e III do anexo 1), sendo R$ 758.834,38 ao Autor Benedito e R$ 122.133,35 ao Autor Décio” (fl. 19), ou, “considerando a manutenção da liminar deferida nos autos da Medida Cautelar, a condenação acima pleiteada deverá ser no sentido de reconhecer, em definitivo, o direito dos Autores sobre a importância já disponibilizada por força dessa mesma liminar (no importe de R$ 476.766,28), condenando a Ré ao pagamento da diferença no importe de R$ 404.201,45 (R$ 880.967,73 – R$ 476.766,28), que deverá ser paga através da liberação, em favor dos Autores, da importância depositada judicialmente pela Ré em 24 de fevereiro p.p., protestando por eventual diferença entre o valor efetivamente devido e a quantia que já se encontra à disposição do juízo” (fl. 19).
Em primeiro grau, os pedidos foram julgados procedentes em parte, condenando-se “o réu a recompor o patrimônio dos autores, repondo a eles o valor que eles tinham para aplicação no dia 12.1.1999, como demonstrado a fls. 21” (fl. 286). A sentença liberou “aos titulares o depósito feito nos autos da cautelar”, confirmou “o valor creditado em conta corrente” dos autores e ressaltou que “o valor que sobejar, será apurado em liquidação de sentença, com atualização desde o ingresso em juízo pela tabela prática do Tribunal de Justiça” (fl. 286). O Juiz de Direito rejeitou, ainda, os embargos de declaração opostos pelas partes (cf. fls. 288 e 294).
O Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, à unanimidade, negou provimento à apelação da instituição financeira e, por maioria, desproveu o recurso dos autores, estando o respectivo acórdão, proferido em 4.12.2001, assim ementado:
Dano moral. Responsabilidade civil. Prestação de serviços. Instituição financeira. Pretensão de indenização sob alegações de sonegação por parte da instituição financeira de informações sobre os riscos dos investimentos e ainda propaganda enganosa e abusiva, pleiteando, inclusive reposição da “perda” do capital investido. Admissibilidade em parte. Promessa do Banco efetuando propaganda enganosa evidenciada. Aplicação do Código de Defesa do
Consumidor. Desacolhimento da pretensão de indenização por dano moral ante o descumprimento do contrato. Inocorrência de danos à personalidade, imagem, honra e auto-estima. Existência de aborrecimentos que não caracterizam o dano moral. Sentença mantida. Recursos improvidos. Declaração de voto vencido (fl. 500).
Os embargos de declaração opostos pelo ora recorrente foram rejeitados (fls. 518-519).
Os autores, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, ora recorridos, interpuseram embargos infringentes, providos, por maioria, em acórdão com a seguinte ementa:
Dano moral. Comprovação. Desnecessidade. Propaganda das entidades financeiras. Entrega a uma delas das economias acreditando na capacidade de seu quadro técnico de bem aplicá-las. Desaparecimento de boa parte delas. Dano moral evidenciado. Embargos infringentes providos. (voto 10650) (fl. 556).
O Banco Boavista Interatlântico S.A., depois de julgadas as apelações e os respectivos embargos de declaração, interpôs o recurso especial de fls. 571-587. Após o julgamento e a publicação do acórdão dos embargos infringentes, a instituição financeira interpôs novo recurso especial, ora em julgamento, com base no art. 105, III, a e c, da CF/1988, “reiterando e ratificando” as razões do recurso anterior, apresentado contra o julgamento da apelação, e aduzindo razões contra o aresto dos embargos infringentes.
O recorrente sustenta a inaplicabilidade do CDC (Lei n. 8.078/1990) nos casos de “investimento de direito”, por não existir “aquisição de serviço ou de produto oferecidos pelos Bancos, mas sim de contrato de natureza fiduciária” (fl. 639). Xxxxxxx, na verdade, “uma obrigação da instituição financeira quanto à adequada condução dos negócios, despida, entretanto, de qualquer garantia de resultado” (fl. 640). Diante do que dispõe o art. 192, caput, da CF/1988, o CDC, não sendo lei complementar, não pode ser aplicado. Invoca a interpretação dos arts. 153, V, e 156, IV, da CF/1988 e dos arts. 2º e 3º, caput e § 2º, do CDC para descaracterizar a prestação de serviço e a relação de consumo.
Alega violação do art. 1.058 do CC/1916, argumentando que “não houve culpa do Banco recorrente, nos presente autos. Abruptas variações ocorreram nas bolsas de valores do país, e sobretudo no câmbio, a partir de 13 de janeiro de 1999, afetando a política cambial adotada pelo governo desde a implementação do Real” (fl. 644). Acrescenta que “as consideráveis perdas sofridas pelos
fundos ocorreram em função da drástica mudança da política cambial adotada pelo Banco Central do Brasil em janeiro de 1999. Num cenário de provável manutenção da política cambial anteriormente vigente em função do grande comprometimento da equipe econômica do Presidente da República com a valorização da moeda nacional frente ao dólar, o Banco vendeu contratos futuros de venda de câmbio e aplicou os recursos assim obtidos em ativos em Reais” (fls. 644-645). Explica que, “em face das incertezas geradas pela situação do mercado e visando o melhor resultado para os quotistas do fundo, o administrador valeu- se do disposto no artigo 21 da Circular BACEN n. 2.616, bem como no artigo 14 do Regulamento do fundo para proceder ao resgate das quotas em até 05 (cinco) dias úteis após a solicitação” (fl. 645). Entende que não teria ocorrido “qualquer irregularidade na administração do fundo, havendo o resgate ocorrido de acordo com as regras previstas não somente no Regulamento do Fundo como também na legislação aplicável” (fl. 645), e que “os riscos dos investimentos não podem [...] ser assumidos pelo Banco, que não obrigou ou incitou ninguém a investir, mas sim por aqueles – no caso os recorridos – que o procuraram para realizar o investimento, eis que a probabilidade de ganhos, no mercado futuro de câmbio, importa também risco de perdas” (fl. 646).
Igualmente assevera que “não houve erro de gestão da ‘Aplicação Hedge 60’, como amplamente explicitado na inicial. A confiança do administrador dos fundos na manutenção da valorização da moeda nacional era baseada nas firmes posições tomadas pelo próprio governo federal” (fl. 646). Nesse caso, seria de aplicar “a regra disposta no artigo 1.058 do Código Civil Brasileiro que exime a responsabilidade de indenização por prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior” (fl. 647).
Aponta contrariedade ao art. 159 do CC/1916 por não ser devida indenização por danos morais, faltando a comprovação deles, “bem como o nexo de causalidade entre eles e a culpa do agente” (fl. 649). Aduz que “os autores não foram expostos a situação vexatória, nem foram eles constrangidos, muito menos tiveram seus nomes enviados a qualquer Órgão de Proteção ao Crédito” (fl. 650). Do mesmo modo, não teria havido “qualquer negócio dos autores que tivesse deixado de ser concluído ou dívida que tivesse deixado de ser paga em razão das perdas ocorridas em suas aplicações” (fl. 650). Conclui que “o mero dissabor e aborrecimento quanto à perda ocorrida nas aplicações dos autores, não podem, de forma alguma, ser considerados dano moral” (fl. 651).
Para comprovar o dissídio jurisprudencial relativamente à inaplicabilidade do CDC, cita julgados do TJRS e do TJRJ e, quanto à alegada ausência de
danos morais, indica precedentes do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, do TJSP, do TJRJ e do TJRS.
Por último, sustenta que o valor dos danos morais, fixados em “R$ 54.000,00 (cinquenta e quatro mil reais), equivalentes a (300) salários mínimos [...] (outubro de 2001)” (fl. 660), seria excessivo, havendo divergência com julgados desta Corte Superior e do TJSP.
Os recorridos, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, apresentaram contrarrazões (fls. 776-797). Alegam não ter havido contrariedade aos arts. 159 e 1.058 do CC/1916, além de incidir, em relação aos dois dispositivos referidos, as vedações contidas nos Enunciados n. 7 e 211 da Súmula do STJ por impossibilidade de reexame de provas e por ausência de prequestionamento. Aduzem ser aplicável o CDC e, no tocante ao dissídio jurisprudencial, o óbice do Enunciado n. 83 da Súmula do STJ.
Os recursos especiais interpostos pelos autores e pelo réu não foram admitidos na origem (fls. 799-801). O presente recurso, entretanto, de fls. 635- 665, teve seguimento em decorrência do provimento do Agravo de Instrumento
n. 528.012-SP, em apenso, pelo em. Ministro Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx.
O Agravo de Instrumento n. 535.072-SP, Rel. Ministro Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx, interposto pelos autores, ora recorridos, não foi admitido nesta Corte por ser intempestivo.
Igualmente, não se admitiu os recursos extraordinários interpostos pela instituição bancária (fls. 802-803), tendo sido oferecido agravo de instrumento para o Supremo Tribunal Federal, inicialmente sobrestado (fls. 819 e 829).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx (Relator): Na origem, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e seu filho Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx ajuizaram “ação de cobrança cumulada com indenização” contra Banco Boavista Interatlântico S.A., narrando que “o primeiro Autor (Benedito) amealhou ao longo dos anos um capital equivalente a R$ 805.253,62, enquanto que o segundo Autor (Xxxxx) conseguiu poupar, até 12 de janeiro de 1999, a quantia aproximada de R$ 141.584,45” (fl. 3), tendo procurado a ré para aplicar o referido capital, acrescentando, in verbis:
5. Assim, a gerente do “Boavista” (agência Conjunto Nacional), recomendou a aplicação nos fundos de investimentos do Banco como opção mais rentável, sugerindo que os valores fossem divididos em três fundos de derivativos (“Hege 60”, “Master 60” e “Derivativos 60”), assegurando (verbalmente e através de material propagandístico – vide docs. 5 a 9), que o grau de risco do “Hedge 60”, tido como agressivo, jamais poderia ultrapassar perda superior a 1 CDI (certificado de depósito interbancário), enquanto que o “Derivativos 60”, também classificado como agressivo, não teria rentabilidade negativa, fazendo crer, destarte, que essas aplicações eram sólidas e seguras, respeitando-se, repita-se, a possibilidade da perda acima mencionada.
6. Quanto ao “Master 60”, classificado como investimento de “perfil moderado”, a promessa veiculada nos materiais de propaganda e pelos próprios funcionários do Banco Réu assegurava que os ganhos seriam de, no mínimo, 0,5% do CDI, ou seja, esse investimento, tal como o “Derivativos 60”, não admitia a rentabilidade negativa, sendo prometido, ainda, que todas essas aplicações poderiam ser resgatadas no mesmo dia do pedido da baixa (D+0), consoante demonstram os inclusos materiais publicitários (docs. 5 a 9), enquanto que as metas de ganhos seriam, no caso do “Hedge 60”, de 150% do CDI, 120% do CDI para o “Derivativos 60” e 110% do CDI para o “Master 60”.
[...]
9. Ocorre que, no dia 14 de janeiro p.p., diante da informação que a desvalorização cambial verificada no dia anterior teria repercutido de forma negativa nos investimentos respectivos, os Autores determinaram verbalmente (como de praxe), o resgate dos saldos existentes nesses fundos.
10. Porém, considerando que os pedidos verbais não foram acatados pela gerência, sob alegação que os resgates não eram mais D+0 (imediato), e sim D+5, isto é, os valores somente poderiam ser levantados após 5 dias do pedido de baixa (afrontando as condições pactuadas inicialmente), os Autores acharam por bem formalizar expressamente a ordem de resgate, protocolizando as inclusas solicitações de resgate (docs. 29 e 30).
[...]
12. Admitindo-se que a Instituição Financeira Ré tivesse cumprido o pacto inicial (resgate na condição D+0), com a consequente liberação do valor dos fundos nesse dia 14, os autores teriam recebido a importância de R$ 542.636,62 (vide quadro II do anexo 1), minimizando sensivelmente os prejuízos.
13. Porém, no dia 18.1.1999, ocasião em que os recursos permaneciam indevidamente bloqueados (considerando o não atendimento do pedido de resgate), os autores foram surpreendidos com as informações que os aludidos fundos haviam sofrido perdas superiores aos valores investidos (notadamente no que diz respeito ao “Hedge 60”), ou seja, além de perderem todo o dinheiro investido no “Hedge 60”, os autores ainda passaram a ser devedores do banco (fls. 3-5).
Xxxxxxx, além de danos morais, o “ressarcimento da importância de R$ 880.967,73 (R$ 946.838,07 – R$ 65.870,34 - vide quadros I e III do anexo 1), sendo R$ 758.834,38 ao Autor Benedito e R$ 122.133,35 ao Autor Décio” (fl. 19), ou, “considerando a manutenção da liminar deferida nos autos da Medida Cautelar, a condenação acima pleiteada deverá ser no sentido de reconhecer, em definitivo, o direito dos Autores sobre a importância já disponibilizada por força dessa mesma liminar (no importe de R$ 476.766,28), condenando a Ré ao pagamento da diferença no importe de R$ 404.201,45 (R$ 880.967,73 – R$ 476.766,28), que deverá ser paga através da liberação, em favor dos Autores, da importância depositada judicialmente pela Ré em 24 de fevereiro p.p., protestando por eventual diferença entre o valor efetivamente devido e a quantia que já se encontra à disposição do juízo” (fl. 19).
Em primeiro grau, os pedidos foram julgados procedentes em parte, condenando-se “o réu a recompor o patrimônio dos autores, repondo a eles o valor que eles tinham para aplicação no dia 12.1.1999, como demonstrado a fls. 21” (fl. 286). A sentença liberou “aos autores o depósito feito nos autos da cautelar”, confirmou “o valor creditado em conta corrente” dos titulares e ressaltou que “o valor que sobejar, será apurado em liquidação de sentença, com atualização desde o ingresso em juízo pela tabela prática do Tribunal de Justiça” (fl. 286). O Juiz de Direito rejeitou, ainda, os embargos de declaração opostos pelas partes (cf. fls. 288 e 294).
Consta da sentença que, “na oferta de seus serviços e produtos o banco prometeu algo e não cumpriu; disso resultou prejuízo para os autores” (fl. 282). Ademais, “o governo federal, manietado pela economia mundial e sempre obediente ao FMI, largou a banda cambial à deriva. No entanto, a surpresa não foi assim tão surpreendente, pois de há muito era anunciado estar o Brasil prestes a ser ‘a bola da vez’” (fl. 283). Com isso, teria o banco agido “com culpa contratual ao não cumprir o contratado, a infringir a lei civil – artigo
1.058 CC – e desaguando em falta delitual” (fl. 284). Fundamentou, ainda, o magistrado que “não houve fato próprio dos autores, exclusivo deles, a excluir responsabilidade do banco”, “não houve caso fortuito nem se deu situação de força maior”, “nem terceiros agiram de molde a atenazar as relações contratuais autores-réus” (fl. 284). Sobre os danos morais, repeliu-os, ficando anotado na sentença que “o descumprimento de contrato, a não ser em situações peculiares que não acontecem aqui, não autorizam concluir por ofensa moral” (fl. 285).
O Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, à unanimidade, negou provimento à apelação da instituição financeira e, por
maioria, desproveu o recurso dos autores, estando o respectivo acórdão, proferido em 4.12.2001, assim ementado:
Dano moral. Responsabilidade civil. Prestação de serviços. Instituição financeira. Pretensão de indenização sob alegações de sonegação por parte da instituição financeira de informações sobre os riscos dos investimentos e ainda propaganda enganosa e abusiva, pleiteando, inclusive reposição da “perda” do capital investido. Admissibilidade em parte. Promessa do Banco efetuando propaganda enganosa evidenciada. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Desacolhimento da pretensão de indenização por dano moral ante o descumprimento do contrato. Inocorrência de danos à personalidade, imagem, honra e auto-estima. Existência de aborrecimentos que não caracterizam o dano moral. Sentença mantida. Recursos improvidos. Declaração de voto vencido (fl. 500).
Os danos morais, portanto, foram afastados por maioria.
No que interessa ao presente recurso especial, a respeito do descumprimento contratual, foram adotados os seguintes fundamentos no acórdão da apelação:
“O certo é que Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx procuraram o Banco Boavista, para nele depositar seu dinheiro. Após, na mesma instituição financeira, cuidaram de fazer aplicações. Assim autorizaram a transferência do saldo de suas contas para fundos de investimentos.
Diante de desvalorização cambial Benedito e Décio quiseram o resgate dos saldos existentes nesses fundos. Não foram atendidos, ficando bloqueados os recursos. Acabaram se tornando devedores do banco.
O Banco transfere toda a responsabilidade aos investidores, os quais ‘atraídos pelos rendimentos auferidos nos fundos Boavista, os autores resolveram aplicar o seu dinheiro sabendo dos riscos das aplicações, mas esperançosos quanto aos rendimentos’ (fls. 151).
Mas resta evidente que o Banco prometeu algo e não cumpriu, disso resultou prejuízo para os autores, como afirma a sentença (fls. 282).
Precisa a observação do erudito Juiz de direito: ‘É inequívoca a responsabilidade do banco, mesmo porque prometera e contratara o mecanismo ‘stop loss’ e, sem chiste, mas por espelhar a realidade, houve o ‘non stop’ (fls. 283).
Essa responsabilidade decorre do Código de Defesa do Consumidor.
Nas relações entre o Banco e os seus clientes é perfeitamente aplicável o Código de Defesa do Consumidor, simplesmente porque a Lei n. 8.078 inseriu a atividade bancária no rol de serviços a serem protegidos.
Com a promulgação do Decreto n. 2.181, de 20.3.1997, foi criado o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, que permite a punição de abusos do sistema financeiro, inclusive com punição administrativa aos bancos que desrespeitarem os direitos dos clientes.
Tem-se que aceitar que a instituição bancária informou uma condição e realizou outra, fazendo constar de seus prospectos promocionais dados que não corresponderam à realidade.
A pretensão teria que ser acolhida, ao menos em parte, da forma como foi ditada’ (fl. 501).
Os embargos de declaração opostos pelo ora recorrente foram rejeitados (fls. 518-519).
Os autores, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, ora recorridos, interpuseram embargos infringentes, providos, por maioria, para acrescentar à indenização os danos morais, constando do respectivo acórdão a seguinte ementa:
Dano moral. Comprovação. Desnecessidade. Propaganda das entidades financeiras. Entrega a uma delas das economias acreditando na capacidade de seu quadro técnico de bem aplicá-las. Desaparecimento de boa parte delas. Dano moral evidenciado. Embargos infringentes providos. (voto 10650) (fl. 556).
O presente recurso especial merece prosperar em parte.
I – Arts. 153, V, 156, IV, e 192, caput, da CF/1988 e arts. 2º e 3º, caput e § 2º, do CDC (Lei n. 8.078/1990) – Relação de consumo
Postula o recorrente, em primeiro lugar, que não seja aplicado o CDC. Entretanto, o presente caso revela, perfeitamente, uma relação de consumo, na qual os autores, pessoas físicas e destinatários finais, contrataram o serviço da instituição financeira para investir economias por eles amealhadas ao longo da vida.
Ademais, consta do Enunciado n. 297 da Súmula do STJ que “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”, sendo oportuno invocar os seguintes precedentes específicos para a presente relação material:
Recurso especial. Fundos de investimento de alto risco. Perdas gerais no ano de 2002. Negativa de prestação jurisdicional. Inocorrência. Inversão do ônus da prova e nulidade do julgamento. Prequestionamento. Ausência. Documento intempestivamente acostado. Fundamento não atacado. Incidência do Código de
Defesa do Consumidor. Violação do dever de informar. Inocorrência. Negligência e imperícia. Reexame de provas. Impossibilidade.
[...]
3.- O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes referentes a aplicações em fundos de investimento, nos termos da Súmula n. 297-STJ.
[...]
7.- Recurso especial improvido (REsp n. 1.214.318-RJ, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxx, Terceira Turma, DJe de 18.9.012).
Processo Civil e Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Contrato bancário. Fundos de investimento. Janeiro de 1999. Maxidesvalorização do real. Prequestionamento. Ausência. Dissídio jurisprudencial. Cotejo analítico e similitude fática. Ausência. Preclusão. Ocorrência. CDC. Aplicabilidade. Súmula n. 297-STJ. Súmula n. 83-STJ. Excludente do nexo de causalidade. Art. 14, § 1º, do CDC. Inocorrência. Força maior. Art. 1.058 do CC/1916. Não ocorrência. Solidariedade. Integrantes da cadeia de consumo. Art. 7º, parágrafo único, do CDC. Aplicabilidade. Fundos de investimento. Atividade legalizada. Art. 1.479 do CC/1916. Inaplicabilidade. Rentabilidade. Fundos de investimento. Juros de mora. Não incluídos. Enriquecimento sem causa. Inocorrência.
[...]
3. O CDC é aplicável aos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes referentes a aplicações em fundos de investimento, entendimento esse que encontrou acolhida na Súmula n. 297-STJ. Incide na espécie, portanto, a Súmula n. 83-STJ.
[...]
9. Recurso especial de Olimpio Xxxxx Xxxx Xxxx parcialmente conhecido e nessa parte improvido. Recurso especial de Xxxxx Xxxxx Asset Management S/C Ltda não provido (REsp n. 1.164.235-RJ, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, DJe de 29.2.2012).
Civil e Processo Civil. Contrato de aplicação em fundos de investimento. Ação de indenização. Exceção de incompetência. Relação de consumo. Foro de eleição x foro do domicílio do consumidor. Art. 101, I, do CDC. Embargos de declaração. Julgamento monocrático. Competência do órgão colegiado (art. 537 do CPC). Interposição posterior de agravo interno. Efeito substitutivo. Caracterização de hipossuficiência. Necessidade. Omissão configurada.
[...]
II. Encontrando-se consubstanciada relação de consumo, padece de omissão o acórdão estadual acerca do tema da hipossuficiência do autor, cuja definição se
faz imprescindível, caso a caso, para avaliar-se o campo de vigência e eficácia do art. 101, I, da Lei n. 8.078/1990, e a prevalência ou não do foro de eleição.
III. Recurso especial conhecido e parcialmente provido (REsp n. 665.744-RJ, Rel. Ministro Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx, Quarta Turma, DJe de 1º.12.2008).
Agravo regimental. Recurso especial não admitido. Fundos de investimento.
Código do Consumidor. Súmulas n. 7-STJ e 288-STF. [...]
3. As relações existentes entre os clientes e a instituição apresentam nítidos contornos de uma relação de consumo. Aplicável, portanto, o Código de Defesa do Consumidor no caso em tela.
4. Agravo regimental desprovido (AgRg no Ag n. 552.959-RJ, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Direito, Terceira Turma, DJ de 17.5.2004).
Evidentemente, portanto, não houve afronta aos arts. 2º e 3º, caput e § 2º, do CDC.
Quanto à suposta violação dos arts. 192, caput, 153, V, e 156, IV, da CF/1988, descabe ser apreciada no presente recurso, o qual se restringe à interpretação de normas infraconstitucionais.
II – Art. 1.058 do CC/1916 – Culpa, caso fortuito, força maior
Nesse ponto, busca o recorrente afastar a sua responsabilidade pelas perdas sofridas pelos autores nos respectivos investimentos financeiros. A tese recursal encontra-se assentada nas alegações de que “abruptas variações ocorreram nas bolsas de valores do país, e sobretudo no câmbio, a partir de 13 de janeiro de 1999, afetando a política cambial adotada pelo governo desde a implementação do Real” (fl. 644) e de que, por isso, não teria se verificado “qualquer irregularidade na administração do fundo, havendo o resgate ocorrido de acordo com as regras previstas não somente no Regulamento do Fundo como também na legislação aplicável” (fl. 645).
Com efeito, o risco faz parte da aplicação em fundos de investimento, podendo a instituição financeira, entretanto, criar mecanismos ou oferecer garantias próprias para reduzir ou afastar a possibilidade de prejuízos decorrentes das variações observadas no mercado financeiro interno e externo. Sobre o tema, assim leciona FÁBIO XXXXX XXXXXX:
A aplicação financeira é o contrato pelo qual o depositante autoriza o banco a empregar, no todo ou em parte, o dinheiro mantido em conta de depósito num investimento (ações, títulos da dívida pública, commodities etc.). Organizam-se as aplicações financeiras em fundos, estruturados pelos bancos com o objetivo de oferecer ao mercado alternativas diversificadas de investimento. Cada fundo atende a regramento próprio – aprovado pela CVM – e apresenta perfil mais ou menos arriscado, tendo em vista as ações, títulos e demais lastros que compõem a respectiva carteira. Assim, o banco pode, por exemplo, oferecer aos investidores um determinado fundo, cujos recursos são aplicados parte em certificados de depósito interbancário (CDI), e parte em ações de empresas de telefonia listadas na Bolsa de Valores de São Paulo. Claro, essa alternativa terá rentabilidade e risco diversos de outro fundo, oferecido pelo mesmo banco, lastreado na variação cambial, commodities cotados na Bolsa de mercadorias e Futuro (BM&F) e títulos públicos.
O regimento do fundo fixa os limites e condições a partir dos quais o banco administra os recursos aplicados pelos clientes, procurando ampliar o máximo a rentabilidade da carteira, com decisões oportunas de compra e venda das ações, títulos ou posições que compõem. O depositante terá direito a uma remuneração maior ou menor conforme os ganhos obtido pelo banco na administração dos recursos do fundo em que seu dinheiro se encontra aplicado. Na aplicação financeira, dependendo do perfil do fundo, pode mesmo ocorrer de o depositante perder o dinheiro aplicado, no todo ou em parte. A garantia do banco pelo integridade do capital investido só existe se expressamente prevista no regimento do fundo e no contrato de aplicação financeira; se o fundo não conta com essa modalidade de garantia do banco, o cliente assume o risco próprio dos lastros integrantes da carteira correspondente. Em outros termos, o banco pode ser responsabilizado por má administração, ilegalidade ou inobservância do regimento ou contrato, mas nunca pelas perdas derivadas de oscilações no valor das ações, títulos, commodities ou qualquer outro lastro, se não conferiu expressamente ao cliente essa garantia (Curso de Direito Comercial. 14ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 155-156).
Dada a possibilidade de perdas no investimento, cabe, evidentemente, à instituição prestadora do serviço informar claramente o grau de risco da respectiva aplicação e, se houver, as eventuais garantias concedidas contratualmente, revelando-se absolutamente relevantes, para esse fim, as propagandas efetuadas e os prospectos entregues ao público e ao contratante, os quais obrigam a contratada que irá aplicar o dinheiro do investidor. Nesse sentido, assim dispõe o art. 30 do CDC:
Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços
oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
Sob esse enfoque, diz a sentença que a instituição financeira ré não cumpriu o que oferecera, sendo oportuno reproduzir os seguintes lances da fundamentação adotada em primeiro grau:
Por outra, o banco tem profissionais da área, mais que qualificados (lembram-se da testemunha Paulo, cujo depoimento está a fls. 229-230?) enquanto os autores são apenas clientes do banco sem acesso a maiores e melhores informações do que tinham daqueles funcionários como a gerente Xxxxxxx (cf. fls. 227-228).
Ora, na oferta de seus serviços e produtos o banco prometeu algo e não cumpriu; disso resultou prejuízo para os autores.
É inequívoca a responsabilidade do banco, mesmo porque prometera e contratara o mecanismo stop loss e, sem chiste, mas por espelhar a realidade, houve o non stop.
Tanto não houve aquele mecanismo stop loss que os autores, de credores passaram a devedores.
É certo, verdadeiro fato notório, a explosão acontecida no dia 13 de janeiro de 1999.
O transbordo foi geral, como é plenamente sabido.
O governo federal, manietado pela economia mundial e sempre obediente ao FMI, largou a banda cambial à deriva. No entanto, a surpresa não foi assim tão surpreendente, pois de há muito era anunciado estar o Brasil prestes a ser “a bola da vez”.
[...]
Importa lembrar aqui ter havido daquelas situações de supino interesse jurídico, pois o banco se houve com culpa contratual ao não cumprir o contratado, a infringir a lei civil – artigo 1.058 CC – e desaguando em falta delitual.
[...]
E aqui houve total descumprimento do banco ao contratado, pois por conduta sua, a si imputável, não acionou o stop loss (fls. 282-284).
O Tribunal de origem, conforme anotado inicialmente, adotou as razões fáticas apresentadas na sentença para manter a procedência parcial da ação.
Embora nem a sentença nem o acórdão esmiucem, em seus respectivos textos, os contratos de investimento celebrados, ficou suficientemente claro ter sido pactuado o mecanismo stop loss, o qual, conforme o próprio nome indica,
fixa o ponto de encerramento de uma operação com o propósito de “parar” ou até de evitar determinada “perda”. Do não acionamento do referido mecanismo contratual pela instituição financeira, segundo as instâncias ordinárias, é que teria havido o prejuízo.
Sem dúvida, a reforma do acórdão da apelação não prescinde do reexame dos informativos, dos prospectos, das cláusulas contratuais e de outras provas eventualmente produzidas nos autos, de forma a explicitar as verdadeiras garantias dadas pela instituição financeira e os limites de perdas pactuados com a cláusula stop loss. Entretanto, nessa parte, incidem as vedações contidas nos Enunciados n. 5 e 7 da Súmula do STJ.
É bem verdade que o ora recorrente, nos aclaratórios de fls. 512-514, tentou delinear mais precisamente as circunstâncias fático-probatórias pertinentes ao caso, insistindo (i) na impossibilidade de acionar o stop loss, (ii) no fato de que a referida cláusula funcionaria, no caso concreto, como simples meta, e (iii) na tese de que as “informações constantes dos prospectos dos fundos (juntados pelos próprios embargados às fls. 30-32) sobre as metas de risco e as metas de rendimento [...] de maneira alguma podem ser tomadas como garantias” (fl. 514). Os embargos de declaração, entretanto, foram rejeitados (fls. 518-519), e o presente recurso especial não veicula contrariedade ao art. 535 do CPC.
Ademais, no tocante à Circular (BACEN) n. 2.616, de 18.9.1995, além de não prequestionada nem possuir natureza de lei federal, apenas dispõe, no art. 21 do regulamento anexo – invocado no recurso especial –, “que o resgate de quotas deve ser efetivado, sem a cobrança de qualquer taxa e/ou despesa não previstas, até o 5º (quinto) dia útil subsequente ao da solicitação respectiva, conforme disposto no regulamento do fundo”. Referida norma, de forma expressa, faz remissão aos dispositivos do respectivo regulamento do fundo e fixa o prazo máximo para resgate, o que não impede que a instituição afirme ou deixe transparecer ao investidor, em seus prospectos e no contrato, que o resgate se dará imediatamente sem risco de perda. Novamente, portanto, a pretensão recursal esbarra nos Enunciados n. 5 e 7 da Súmula do STJ.
Conclusivamente, ainda que o pacto refira-se, segundo o recorrente, tão somente, a um regime de metas estabelecido no contrato quanto ao limite de perdas, a motivação fático-probatória adotada nas instâncias ordinárias demonstra ter havido, no mínimo, um grave defeito na publicidade e nas informações relacionadas aos riscos dos investimentos, induzindo os investidores a erro, o que impõe a responsabilidade civil da instituição financeira. Nesse sentido:
Recurso especial. Consumidor. Responsabilidade civil. Administrador e gestor de fundo de investimento derivativo. Desvalorização do real. Prejuízo do consumidor. Reconhecimento pela Corte de origem, com base em prova técnica, da ausência de informações aos consumidores dos riscos inerentes à aplicação financeira. Súmula n. 7-STJ. Recurso não conhecido.
(...)
2. Contudo, no caso em exame, o eg. Tribunal de origem, analisando prova técnica (processo administrativo realizado pelo Banco Central), anexada aos autos, reconheceu falha na prestação do serviço por parte do gestor dos fundos, tendo em vista a ausência de adequada informação ao consumidor acerca dos riscos inerentes às aplicações em fundos derivativos.
3. Nesse contexto, não há como revisar as conclusões da instância ordinária, em razão do óbice da Súmula n. 7-STJ.
4. Recurso especial não conhecido (REsp n. 777.452-RJ, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, DJe de 26.2.2013).
Processo Civil e Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais. Prequestionamento. Ausência. Dissídio jurisprudencial. Cotejo analítico e similitude fática. Ausência. Contrato bancário. Fundos de investimento. Dever de informação. Art. 31 do CDC. Transferência dos valores investidos para banco não integrante da relação contratual. Conhecimento do cliente. Mera presunção. Ausência de anuência expressa. Intervenção Bacen no Banco Santos S/A. Indisponibilidade das aplicações. Responsabilidade do banco contratado. Ocorrência. Ressarcimento dos valores depositados.
[...]
3. O princípio da boa-fé e seus deveres anexos devem ser aplicados na proteção do investidor-consumidor que utiliza os serviços de fornecedores de serviços bancários, o que implica a exigência, por parte desses, de informações adequadas, suficientes e específicas sobre o serviço que está sendo prestado com o patrimônio daquele que o escolheu como parceiro.
4. O redirecionamento das aplicações do recorrente ao fundo gerido pelo Banco Santos S/A. configura-se operação realizada pela instituição bancária fora de seu compromisso contratual e legal, que extrapola, por essa razão, a alea natural do contrato. Essa situação não pode ser equiparada, a título exemplificativo, ao risco de que o real se desvalorize frente ao dólar ou de que determinada ação sofra uma queda abrupta na bolsa de valores, pois não se pode chamar de risco, a desonerar a instituição bancária de sua responsabilidade, o que foi sua própria escolha, elemento volitivo, com o qual o conceito de risco é incompatível.
5. Não estando inserida na alea natural do contrato a aplicação junto ao Banco Santos S/A do capital investido pelo recorrente enquanto correntista da
instituição financeira recorrida, a mera presunção de conhecimento ou anuência acerca desses riscos não é fundamento para desonerar a instituição bancária da obrigação de ressarcir ao consumidor-investidor os valores aplicados. Deve restar demonstrada a autorização expressa quanto à finalidade pretendida, ônus que cabe ao banco e do qual, na espécie, não se desincumbiu.
6. Recurso especial provido para condenar o recorrido a restituir ao recorrente os valores depositados. Ônus da sucumbência que se inverte (REsp n. 1.131.073- MG, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, DJe de 13.6.011).
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Responsabilidade civil. Prejuízos em fundo de investimento. Danos material e moral. Culpa da instituição financeira e da administradora. Necessidade de reexame de provas. Inviabilidade. Súmula n. 7-STJ.
1. A Corte estadual, ao analisar a prova contida nos autos, verificou defeito de informação na proposta de adesão feita pelo banco aos seus clientes, por isso assentou a obrigação de reparar os prejuízos provocados pela má administração dos fundos de investimento. O exame do recurso, no ponto, não prescindiria do revolvimento da matéria fático-probatória, circunstância defesa em sede especial, a teor do Enunciado Sumular n. 7-STJ.
[...]
3. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg nos EDcl no Ag n. 524.103-MG, Rel. Ministro Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx - Xxxxxxxxxxxxx convocado do TJRJ, Terceira Turma, DJe de 9.4.2010).
Fica repelida, assim, a apontada violação do art. 1.058 do CC/1916.
III – Art. 159 do CC/1916 – Danos morais
O recorrente, nessa parte, quer afastar a condenação em danos morais, o que deve ser acolhido.
A jurisprudência desta Corte, reconhecidamente, entende que o simples descumprimento contratual, por si, não é capaz de gerar danos morais. Necessária se faz a existência de um plus, uma consequência fática capaz, essa sim, de acarretar dor e sofrimento indenizável pela sua gravidade. Confiram-se, v.g., os seguintes julgados:
Embargos de declaração. Agravo regimental. Embargos de declaração. Recurso especial. Omissão. Contrato de compromisso de compra e venda e contrato de concessão comercial de veículos. Revocatória procedente. Dolo bilateral. Impossibilidade de transferência do imóvel para o comprador. Rescisão contratual. Danos materiais. Dano moral. Penalidade do art. 26 da Lei n. 6.729/1979.
[...]
8. Na linha da jurisprudência deste Tribunal, o aborrecimento inerente ao descumprimento de obrigações contratuais não gera, por si só, dano moral indenizável.
9. Ambos os embargos de declaração acolhidos para, suprindo as omissões, conhecer e dar parcial provimento ao recurso especial (EDcl no AgRg nos EDcl no REsp n. 790.903-RJ, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Quarta Turma, DJe de 10.2.2014).
Agravo regimental no agravo em recurso especial. Seguro de veículo. Cobertura. Instalação de kit gás. Agravamento do risco de roubo. Dano moral. Termo inicial dos juros moratórios e da correção monetária. Improvimento.
[...]
2.-. Como regra, o descumprimento de contrato, ao não pagar a seguradora o valor do seguro contratado, não enseja reparação a título de dano moral, salvo em situações excepcionais, que transcendam no indivíduo, a esfera psicológica e emocional do mero aborrecimento ou dissabor, próprio das relações humanas, circunstância essa que não se faz presente nos autos.
[...]
5.- Agravo regimental improvido (AgRg no AREsp n. 200.514-RJ, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxx, Terceira Turma, DJe de 13.6.2013).
Cabe ser analisado, portanto, se, no caso concreto, o descumprimento contratual ultrapassou o mero dissabor, devendo-se levar em conta, apenas, as premissas fáticas descritas no acórdão recorrido para que não incida a vedação contida no Enunciado n. 7 da Súmula do STJ.
O Tribunal de origem, no julgamento dos embargos infringentes, condenou o réu a indenizar os danos morais, fixados em R$ 54.000,00 (cinquenta e quatro mil reais), quantia correspondente, à época, a trezentos salários mínimos, para cada um dos autores, estando o acórdão fundamentado nos seguintes termos:
E dúvida igualmente não há que o dano moral independe de comprovação, pois que é do saber comum que qualquer pessoa normal, que não tenha conhecimento técnico sobre o mercado de capitais e, convencido pela propaganda das entidades financeiras, entrega a uma delas as suas economias acreditando na capacidade de seu quadro técnico de bem aplicá-las, de modo a concretizar a expectativa de rendimento criada em sua mente pelo arsenal propagandístico da entidade escolhida para tal mister, ao tomar conhecimento de que a totalidade de suas economias, ou boa parte dela desapareceu como num passe de mágica, pode ser levada à loucura, a atentar contra a própria
vida ou a vida do funcionário da entidade com quem mantinha os contatos necessários para a efetivação do negócio, ou a sofrer um colapso em seu sistema circulatório capaz de levá-la à morte ou à incapacitação física e mental para a prática de atos profissionais ou, até mesmo, da vida civil.
Em sendo assim, de rigor o prevalecimento do voto minoritário, assegurando aos embargantes a reparação de dano moral que sofreram, pela forma exposta em seu item 4 (fls. 556-557).
Por sua vez, o “item 4” mencionado, contido no voto vencido do Desembargador Xxxxx Xxxxxxxx, acenou para ocorrência de danos morais assim:
4) Em decorrência das irregularidades e ilegalidades praticadas pelo Banco- Réu, principalmente em decorrência da propalada ‘perda considerável’ do patrimônio dos Autores, que, em consequência, vieram a suportar dissabores, insegurança e intranquilidade na sua normal vida cotidiana.
Como esclarecido, os Autores vinham poupando seus ganhos para formação de capital destinado a assegurar, por ocasião de sua aposentadoria, melhor percepção de renda para sua sobrevivência. Diante dos fatos dos autos, o “abalo moral” foi consequência inevitável, uma vez que o dinheiro poupado, a miséria poderia bater-lhe à porta.
A CF, no seu artigo 5º, incisos V e X, protege de forma eficaz a honra e a imagem das pessoas, assegurando direito à indenização pelo dano material e moral que lhes forem causados (fl. 504).
Entendo que os fundamentos expostos nos votos acima reproduzidos não viabilizam a indenização por danos morais.
O descumprimento contratual, voluntário ou decorrente da alteração das circunstâncias, não é incomum, sendo milhares os processos judiciais envolvendo controvérsias da espécie. No entanto, consoante a jurisprudência desta Corte, o inadimplemento contratual, por si só, não acarreta dano moral. A propósito, além dos precedentes já mencionados, destaco ainda:
Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Dissídio jurisprudencial comprovado. Inadimplemento de contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Ausência de circunstância excepcional. Dano moral não configurado.
1.- Dissídio jurisprudencial comprovado.
2.- “O inadimplemento de contrato, por si só, não acarreta dano moral, que pressupõe ofensa anormal à personalidade. É certo que a inobservância de cláusulas contratuais pode gerar frustração na parte inocente, mas não se apresenta como suficiente para produzir dano na esfera íntima do indivíduo, até
porque o descumprimento de obrigações contratuais não é de todo imprevisível.” (REsp n. 876.527-RJ).
3.- Agravo improvido.
(AgRg no AREsp n. 287.870-SE, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxx, Terceira Turma, julgado em 14.5.2013, DJe 5.6.2013).
Recurso especial. Contrato bancário. Cartão magnético. Senha. Desbloqueio. Demora. Movimentação financeira. Possibilidade. Descumprimento contratual. Dano moral. Inexistência, na hipótese. Provimento.
1. Correntista que teve o cartão magnético bloqueado por indício de fraude, recebendo outro em seguida, do qual não pode se utilizar por falta de senha por certo período, sem, contudo, ficar impossibilitado de utilizar o numerário em conta corrente.
2. Conclusão pelo Tribunal local de que não seria exigível ao autor dirigir-se à agência bancária ou contatar a instituição financeira por meio da central de atendimento telefônico para regularizar a situação fere a boa-fé objetiva.
3. Não cabe indenização por dano moral em caso de mero aborrecimento decorrente de descumprimento contratual. Precedentes.
4. Recurso provido, nos limites do pedido.
(REsp n. 1.365.281-SP, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Quarta Turma, julgado em 19.3.2013, DJe 23.8.2013).
Ademais, a simples especulação, conforme se cogitou no acórdão recorrido, a respeito da possibilidade de atitudes trágicas, decorrentes de eventual processo de exacerbação emocional do contratante frustrado em suas expectativas (“atentar contra a própria vida ou a vida do funcionário da entidade com quem mantinha os contatos necessários para a efetivação do negócio, ou a sofrer um colapso em seu sistema circulatório capaz de levá-la à morte ou à incapacitação física e mental para a prática de atos profissionais ou, até mesmo, da vida civil”), não implicam danos morais indenizáveis. A caracterização do dano moral demanda a ocorrência de efetiva lesão aos sentimentos, abalo ou inquietação espiritual ou psíquica.
Acrescente-se que, quando realiza o pedido de indenização por danos morais, deve o autor especificar na petição inicial, como causa de pedir, além dos elementos de culpa do réu, em que consistiria o dano moral sofrido.
É importante a descrição detalhada do dano moral e as suas circunstâncias, tanto mais quando houver cumulação com indenização de cunho patrimonial. Facultada a cumulação destes pedidos, como deflui da Súmula n. 37, do
Superior Tribunal de Justiça, ambos têm de ser os pedidos, como duas têm de ser as fundamentações. O dano material faz exsurgir lucros cessantes e o dano emergente ao passo que o dano moral foi o menoscabo espiritual. A descrição plena fará com que o juiz delimite a questão, facilitando, inclusive, a estipulação do montante ressarcitório.
(...)
Não basta ao autor descrever os fatos circunstancialmente; terá, principalmente, de deixar claro e expresso, sobre o resultado do fato. A vergonha, a angústia, a tristeza, o menoscabo espiritual, a humilhação sofrida, etc. (XXX XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Dano moral indenizável. 3ª edição, São Paulo: Editora Método, 2001. p. 533)
No caso, no que se refere ao dano moral, a petição inicial trouxe os seguintes argumentos (fl. 17):
Como se observa, o Banco Réu deve ser responsabilizado pelo episódio, com sua consequente obrigação de ressarcir aos Autores a integralidade do valor aplicado nos fundos, respondendo a instituição financeira, também, pelos prejuízos morais verificados, pois é fácil imaginar os transtornos e os abalos sofridos, inclusive em razão da exposição sofrida através da mídia jornalística e televisiva.
A condenação da Ré ao pagamento de indenização pelo dano moral se mostra ainda mais necessária em razão da odiosa conduta da Instituição Financeira, que após reconhecer sua culpa pelo evento danoso, deixou de ressarcir aos Autores o prejuízo correspondente, gerando a intranquilidade e os transtornos respectivos.
A fixação de indenização por dano morais também é necessária para coibir a propaganda enganosa, pois a sociedade e a própria legislação já não mais suportam e repelem de forma veemente os atos de abuso praticados pelos fornecedores de produtos e/ou serviços, especialmente daqueles que detêm o poder econômico, tal como se verifica no presente caso.
Como se pode verificar, não especificaram os autores consequências concretas, que tenham, de fato, ocorrido, relativas ao dano moral pleiteado.
Em tais circunstâncias, entendo não haver danos morais a serem reparados, caracterizando-se a alegada violação do art. 159 do CC/1916.
IV – Valor dos danos morais – Dissídio jurisprudencial
Repelida a indenização por danos morais, fica prejudicada a pretensão de reduzi-los.
Ante o exposto, conheço do recurso especial e lhe dou parcial provimento para afastar a condenação em danos morais imposta no acórdão dos embargos infringentes, ficando mantido o acórdão da apelação.
É como voto.
COMENTÁRIO DOUTRINÁRIO
Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx Pfeiffer1
1. BREVES APONTAMENTOS ACERCA DOS FATOS E DAS QUESTÕES JURÍDICAS ABORDADAS NO ACÓRDÃO
O julgamento do recurso especial originou-se de ação de cobrança ajuizada por dois correntistas do Banco Boavista Interatlântico S/A que possuíam, respectivamente, o capital de R$ 805 mil e R$ 140 mil. Seguiram a recomendação ao gerente da instituição financeira e investiram as suas economias em três fundos de derivativos (Hedge 60, Master 60 e Derivativos 60).
O material publicitário de divulgação dos fundos esclarecia que a aplicação incluiria o mecanismo de stop loss, que fixa o ponto de encerramento de uma operação com o propósito de interromper ou até de evitar determinada perda, o que, inclusive, constou no contrato de fundo de investimento.
Em janeiro de 1999 ocorreu intensa desvalorização cambial. No dia 14 de janeiro de 1999 os correntistas solicitaram o resgate dos valores (que nos termos contratados deveria ocorrer no mesmo dia da sua solicitação). Porém, a gerente, alegando que houve modificação das regras de resgate, efetivou-o apenas cinco dias úteis depois da solicitação. Ao término do prazo foi-lhes dada a notícia de que o mecanismo do stop loss não fora acionado e as perdas que incidiram superaram os valores investidos.
Os correntistas ajuizaram ação de cobrança pleiteando a devolução integral do montante investido, além de danos morais, pleitos que foram acolhidos
1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Mestre e Doutor pela USP. Professor Convidado da Escola de Economia da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx. Procurador do Estado de São Paulo. Foi Diretor Executivo da Fundação PROCON de São Paulo e Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Consultor Jurídico do Ministério da Justiça e Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
em primeiro grau. Foi interposta apelação julgada pelo Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que entendeu que houve “sonegação por parte da instituição financeira de informações sobre o risco dos investimentos” e publicidade enganosa em relação ao mecanismo do stop loss, havendo embasamento jurídico para a determinação da devolução integral dos valores investidos e incidência de danos morais.
No julgamento do recurso especial interposto contra o acórdão, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que devem ser aplicadas as normas do Código de Defesa do Consumidor aos fundos de investimento. Julgou que a instituição financeira administradora do fundo de investimento violou as normas do CDC, ao omitir informações sobre o risco do investimento, veicular publicidade enganosa nos folders de divulgação do fundo e descumprir o avençado no contrato, ao não acionar o mecanismo de stop loss, devendo, assim, devolver integralmente o montante investido.
Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento parcial ao recurso especial para excluir a indenização por danos morais, por entender que o simples descumprimento contratual, por si, não é capaz de gerar danos morais.
2. ANÁLISE TEÓRICA E DOGMÁTICA DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO
O julgamento do Recurso Especial n. 656.932 é importante por cristalizar a interpretação da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos fundos de investimento, sem descaracterizar, no entanto, a natureza de tais contratos. Passo, então, a analisar os principais pontos da fundamentação.
2.1. Submissão dos fundos de investimento ao Código de Defesa do Consumidor
O acórdão cristaliza o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Fundos de Investimentos celebrados pelas instituições financeiras que os administram e os seus clientes. É mais uma afirmação da incidência do Código de Defesa do Consumidor aos serviços bancários, cuja constitucionalidade foi definitivamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2591, sendo, ainda, objeto de enunciados da súmula n. 297 do STJ.
Estabeleceu, assim, a sua ementa que: “Por estar caracterizada relação de consumo, incidem as regras do CDC aos contratos relativos a aplicações em fundos de investimento celebrados entre instituições financeiras e seus clientes. Enunciado n. 297 da Súmula do STJ”.
Destaco que o tema está igualmente consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que recentemente julgo procedente a reclamação, para cassar o acórdão reclamado, que afastara a aplicação do CDC a fundo de investimento, determinando que outra decisão fosse proferida, levando em consideração o entendimento vinculante do STF acerca da incidência do Código de Defesa do Consumidor2.
Reitero o posicionamento no sentido de que há hipóteses em que o investidor não será considerado consumidor, caso o investimento seja “efetivado no curso do desenvolvimento de uma atividade empresarial. É o que ocorre, por exemplo, com as private equities, com os fundos de pensão ou com as empresas que fazem aplicações em fundos de investimento para dinamizar o seu negócio”3.
Reforça esta tese o fato de que a Instrução nº 539 da Comissão de Valores Mobiliários dispõe sobre as categorias de investidores profissionais e investidores qualificados. Implicitamente, os demais investidores seriam uma terceira categoria.
Entendo que não há relação de consumo na hipótese do investidor profissional, seja porque ele efetiva o investimento de forma empresarial, seja porque ele não possui vulnerabilidade frente à instituição financeira, por deter os conhecimentos técnicos e jurídicos pertinentes, além de ter expressiva dimensão econômica.
Aliás, no direito estrangeiro ocorre tal distinção. É o exemplo da Alemanha, que efetiva em sua práxis bancária a diferenciação entre o “cliente particular” ou consumidor de um lado e o “cliente comercial” ou empresário, de outro.4
2 Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 10424. Relator Ministro Xxxxxx Xxxxxx, julgado em 21.09.2012.
3 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx. Aplicação do Código de Defesa dos Consumidores aos administradores de fundos de investimento. Revista de Direito do Consumidor, n. 61, p. 198.
4 O “cliente comercial” é “pessoa física ou jurídica que atua na celebração de um contrato no exercício de sua atividade comercial ou industrial ou de sua atividade profissional autônoma”. Já o consumidor é considerado toda pessoa física que “celebra um negócio jurídico cujo fim não possa ser atribuído nem à sua atividade comercial ou industrial nem à sua atividade profissional autônoma”. Ver KÜMPEL, Siegrifier, A proteção do consumidor no direito bancário e no direito do mercado de capitais. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 52, outubro-dezembro de 2004, p. 320.
É preciso reconhecer que a fundamentação do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial n. 656.932 não efetivou tal distinção. Porém, a análise do caso concreto longe de refutar a tese, a reforça, por revelar claramente a figura do investidor ocasional. Com efeito, os consumidores eram duas pessoas físicas que investiram a totalidade de suas economias em fundos de investimentos administrados por instituições financeiras das quais eram clientes.
Ressalvo, por fim, que a relação do consumidor com os demais cotistas é de natureza societária, não havendo relação de consumo. Com efeito, nos termos do art. 3º da Instrução CVM no. 555, de 17 de dezembro de 2014, “o fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.” Assim, os fundos de investimento são organizados sob a forma de condomínio, no qual cada investidor detém um determinado número de quotas. Portanto, a relação estabelecida entre os quotistas possui natureza societária5.
2.2. Da preservação da natureza do contrato de fundo de investimento Contribuição fundamental da fundamentação do voto condutor do acórdão
proferido no Recurso Especial n. 665.932 foi a de esclarecer que a aplicação do
Código de Defesa dos Consumidores aos fundos de investimento pode – e deve
- ser efetivada sem descaracterizar a natureza jurídica de tais contratos.
2.2.1. Do risco como parte integrante do investimento financeiro e da validade da sua limitação
O elemento fundamental de tais contratos sem dúvida é o risco: em contrapartida aos ganhos elevados que ele pode oferecer, existe o risco de haver prejuízos. Desta maneira, a perda – parcial ou até mesmo total – dos valores aportados é algo que é inerente ao fundo de investimento e, assim, faz parte de sua natureza.
Aspecto inovador do acórdão é o de ter se debruçado sobre a validade das cláusulas que mitigam os riscos, a fim de atrair um maior número de investidores. Elas não descaracterizam os contratos de fundos de investimento, na medida em que servem justamente para atrair um número maior de investidores, especialmente aqueles mais avessos aos riscos.
5 Ver, a propósito, XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, op. cit., p. 190-202.
De tal ponto expressamente cuidou o voto do relator do acórdão, ficando expresso em sua ementa: “2. O risco faz parte do contrato de aplicação em fundos de investimento, podendo a instituição financeira, entretanto, criar mecanismos ou oferecer garantias próprias para reduzir ou afastar a possibilidade de prejuízos decorrentes das variações observadas no mercado financeiro”.
2.2.2. Do dever de informação adequada, vinculação da oferta e vedação à publicidade enganosa nos fundos de investimento.
Em contrapartida, quando o gestor de fundos deixa de informar corretamente quais são os riscos da aplicação, é admitido que a instituição financeira seja responsabilizada por eventuais prejuízos causados ao investidor. Trata-se de vício de informação6, cuja incidência revela prestação defeituosa do serviço, incidindo o dever de reparação dos danos ocasionados.
Associados à informação adequada há dispositivos do Código de Defesa do Consumidor que vedam a publicidade enganosa (art. 37, § 1°) e determinam a vinculação da oferta (art. 30). Assim, se alardeado no material publicitário que não haverá perdas pela incidência do mecanismo de stop loss, o administrador fica vinculado a tal oferta.
2.3. Do dever de reparar por perdas financeiras decorrentes de vícios na administração do fundo
Nas hipóteses de administração deficiente, há a possibilidade de se impor o dever de reparação. Mas se exige a demonstração da má gestão, não sendo suficiente a mera perda financeira, já que o risco de sua ocorrência faz parte da natureza do negócio7.
Assim, é necessária a prova de vício de execução, cristalizada na má gestão do fundo. Neste contexto, o que gera o dever de reparar não é a simples ocorrência de perdas, mas o fato delas decorrerem da má administração do
6 Este é um dos aspectos clássicos que determinam o dever de indenização, como alertado em PFEIFFER, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, op. cit., p. 201. Na jurisprudência, destaco o seguinte precedente: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.164.235/RJ, Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 15.12.2012.
7 Ver: Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1214318. Relator Ministro Xxxxxx Xxxxxx. Julgado em 12.06.2012. Em tal precedente foi negado o dever de devolução do valor investido, por não terem sido identificadas condutas contrárias aos regulamentos do fundo e apesar de terem ocorrido oscilação negativa em determinados meses, houve rendimentos elevados no período total de aplicação.
fundo8, de vício de informação ou inexecução do contrato, como ocorreu no caso concreto analisado no Recurso Especial n. 656.932, em que foi constatado que a administradora não executou a obrigação de acionar o mecanismo de stop loss, e da inexecução do contrato é que surgiu o prejuizo.
2.4. Dano moral e inadimplemento contratual
Quanto aos danos morais, foi reafirmada a remansosa jurisprudência do STJ de que para a incidência do dano moral deve ocorrer a “efetiva lesão aos sentimentos, abalo ou inquietação espiritual ou psíquica”.
Nesta linha, como acentuado na ementa do acórdão do Recurso Especial
n. 656.932, “o simples descumprimento contratual, por si, não é capaz de gerar danos morais, sendo necessária a existência de um plus, uma consequência fática capaz, essa sim, de acarretar dor e sofrimento indenizável pela sua gravidade”.
Portanto, no caso concreto analisado entendeu-se que não foi suficiente a alegação genérica de que os autores sofreram intranquilidade e transtornos em virtude da referida situação.
3. CONCLUSÕES
A pulverização da participação em fundos de investimento pode trazer benefícios expressivos aos pequenos poupadores, que de outra maneira não teriam acesso a operações que podem trazer ganhos expressivos,
Porém, é inegável a vulnerabilidade por eles enfrentada, por desconhecerem os complexos mecanismos de funcionamento de tais fundos e das operações que eles efetivam.
Assim, é importante para tais investidores a proteção efetivada pelo Código de Defesa do Consumidor, que impõe a informação adequada e a vinculação da oferta, vendando a publicidade enganosa.
Porém tal aplicação deve ser efetivada com parcimônia, a fim de não descaracterizar a natureza de tais fundos, que tem no risco um elemento integrante do negócio, ou seja, se por um lado podem multiplicar o capital investido, por outro podem levar à sua perda total.
8 Conferir os seguintes precedentes a respeito do dever de indenização da administradora de fundo de investimento em decorrência de má gestão: Recurso Especial n. 1.164.235/RJ, Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx. Julgado em 15.12.2012. AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 223.866. Relator Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx. Julgado em 09.12.2014.
Neste contexto, é expressiva a contribuição do julgamento do Recurso Especial n. 656.932: cristaliza a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos fundos de investimento.
Ademais, sedimenta a aplicação criteriosa das normas de defesa do consumidor: ou seja, não perde de vista que o risco integra o negócio e, assim, a simples perda financeira não gera o direito à reparação. Assim, não almeja tornar o negócio isento de risco para o investidor.
Porém, por outro lado, o julgamento do Recurso Especial consolida a interpretação de que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor não é apta a desvirtuar a natureza do contrato, mas sim a proteger o consumidor, assegurando a prestação de informação adequada, prestigiando a vinculação da oferta e demandando o efetivo cumprimento das obrigações a que se comprometeu a administradora do fundo de investimento.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx. Aplicação do Código de Defesa dos Consumidores aos administradores de fundos de investimento. Revista de Direito do Consumidor, n. 61, p. 190-202, 2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 223.866. Relator Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx. Julgado em 09.12.2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.164.235/RJ, Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 15.12.2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.164.235/RJ, Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx. Julgado em 15.12.2012
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.214.318, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxxx, julgado em 12.06.2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 10424. Relator Ministro Xxxxxx Xxxxxx, julgado em 21.09.2012.
KÜMPEL, Siegrifier, A proteção do consumidor no direito bancário e no direito do mercado de capitais. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 52, outubro-dezembro de 2004, p. 320.
3.2. Contratos de Seguro de Saúde
RECURSO ESPECIAL N. 735.750-SP (2005/0047714-2)
Relator: Ministro Xxxx Xxxxxx
Recorrente: Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx - Xxxxxxx Representado por: Xxxxxxx Xxxxxxxxx - Inventariante Advogado: Xxxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx
Recorrido: Medic S/A Medicina Especializada a Indústria e ao Comércio Advogado: Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx e outro(s)
EMENTA
Civil. Consumidor. Seguro. Apólice de plano de saúde. Cláusula abusiva. Limitação do valor de cobertura do tratamento. Nulidade decretada. Danos material e moral configurados. Recurso especial provido.
1. É abusiva a cláusula contratual de seguro de saúde que estabelece limitação de valor para o custeio de despesas com tratamento clínico, cirúrgico e de internação hospitalar.
2. O sistema normativo vigente permite às seguradoras fazer constar da apólice de plano de saúde privado cláusulas limitativas de riscos adicionais relacionados com o objeto da contratação, de modo a responder pelos riscos somente na extensão contratada. Essas cláusulas meramente limitativas de riscos extensivos ou adicionais relacionados com o objeto do contrato não se confundem, porém, com cláusulas que visam afastar a responsabilidade da seguradora pelo próprio objeto nuclear da contratação, as quais são abusivas.
3. Na espécie, a seguradora assumiu o risco de cobrir o tratamento da moléstia que acometeu a segurada. Todavia, por meio de cláusula limitativa e abusiva, reduziu os efeitos jurídicos dessa cobertura, ao estabelecer um valor máximo para as despesas hospitalares, tornando, assim, inócuo o próprio objeto do contrato.
4. A cláusula em discussão não é meramente limitativa de extensão de risco, mas abusiva, porque excludente da própria essência do risco assumido, devendo ser decretada sua nulidade.
5. É de rigor o provimento do recurso especial, com a procedência da ação e a improcedência da reconvenção, o que implica a condenação da seguradora ao pagamento das mencionadas despesas médico-hospitalares, a título de danos materiais, e dos danos morais decorrentes da injusta e abusiva recusa de cobertura securitária, que causa aflição ao segurado.
6. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Quarta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxx Xxxxx e Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 14 de fevereiro de 2012 (data do julgamento). Ministro Xxxx Xxxxxx, Relator
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Xxxx Xxxxxx: Trata-se de recurso especial interposto pelo Espólio de Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado:
Plano modular de assistência médica com cláusula limitativa de custos. Admissibilidade, pois se apresenta transparente, sem subterfúgios gramaticais, portanto, com validade e eficácia, ante a inequívoca ciência do segurado. Custos hospitalares acima do valor contratado deverão ser suportados pelo segurado. Apelo improvido. (fl. 279, e-STJ)
Em suas razões recursais, o ora recorrente aponta, além de divergência jurisprudencial, violação aos arts. 4º, I e III, 6º, IV e VIII, 46, 47, 51, § 1º, I, II e III, do Código de Defesa do Consumidor, ao art. 1º da Lei n. 6.839/1980, e ao art. 159 do Código Civil de 1916.
Narra, nesse contexto, que a contratante, acometida de câncer no útero, ficou internada em UTI de Hospital conveniado. Contudo, no décimo quinto dia (15º) de internação, a mantenedora do plano de saúde recusou-se a custear o restante do tratamento, alegando que havia sido atingido o limite máximo de custeio (R$ 6.500,00), conforme cláusula VI, § 2º, do contrato celebrado entre as partes. Sustenta, nesse contexto, o caráter abusivo da referida cláusula, ao limitar o valor de cobertura para tratamento médico-hospitalar. Requer, ao final, seja dado provimento ao recurso especial, julgando procedentes os pedidos formulados na ação ordinária de nulidade de cláusula contratual cumulada com indenização, condenando, por conseguinte, a recorrida “ao pagamento das despesas médico-hospitalares e a indenizar o recorrente pelos danos morais e patrimoniais sofridos” (fl. 142).
Não tendo sido admitido o recurso na origem, subiram os autos por força do provimento de agravo de instrumento pelo eminente Ministro Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx (fl. 306, e-STJ).
Instado a se manifestar, o d. órgão do Ministério Público Federal, no parecer de fls. 365-367, opinou pelo não conhecimento do recurso especial, por incidência dos Enunciados n. 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça, ou por seu desprovimento, salientando que, embora restritiva a cláusula do plano de saúde questionada - a qual prevê limite de valor para a cobertura de internação médico-hospitalar -, essa se encontra redigida de forma clara, “não possibilitando equívoco ou incompreensão” por parte do consumidor.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Xxxx Xxxxxx (Relator): I - De início, deve ser afastada a preliminar de não conhecimento trazida pelo d. órgão do Ministério Público Federal, relativamente à incidência dos Enunciados n. 5 e 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, o exame do presente recurso especial não depende da interpretação de cláusula contratual, tampouco do acervo fático-probatório dos autos, mas somente da realização de nova valoração dos critérios jurídicos de formação da convicção do julgador, medida que não encontra óbice nos referidos enunciados sumulares. A revisão da qualificação jurídica da manifestação volitiva, inserta em contrato, por se tratar de questão de direito, pode ser objeto de recurso especial.
II - Atendidos, assim, os requisitos de admissibilidade recursal, passa-se ao exame do mérito.
Cinge-se a controvérsia à análise da existência de abuso na cláusula constante do contrato de plano de saúde que prevê limite de valor para cobertura de tratamento médico-hospitalar.
Na hipótese em exame, a beneficiária de plano de saúde foi internada em hospital conveniado, em razão de moléstia grave - câncer no útero -, e permaneceu em unidade de terapia intensiva (UTI). Porém, quando atingido o limite financeiro (R$ 6.500,00) de custo de tratamento previsto no contrato celebrado entre as partes, a ora recorrida negou-se a cobrir as despesas médico- hospitalares excedentes.
A beneficiária, representada por seu esposo, ajuizou ação cautelar, cujo pedido liminar foi deferido pelo d. Juízo a quo, com determinação de que a mantenedora do plano de saúde arcasse com todas as despesas de internação da enferma (e-STJ, fl. 42, apenso 2, e fls. 81-82, apenso 1). Nesse ínterim, a beneficiária faleceu.
A seguir, seu espólio ingressou com ação ordinária de nulidade de cláusula contratual cumulada com indenização, alegando, na exordial, que: “1- (...) a ‘de cujus’ conveniou-se a um plano de saúde da Requerida desde 30.4.1997, denominado Plano Plus 1 2 3, conforme cópia do contrato (doc. 01), da carteira de associada em anexo (doc. 03), estando em dia com o pagamento de tal plano conforme xerox autenticada dos três últimos boletos de pagamento em anexo (docs. 04/06); 2- A ‘de cujus’ teve problemas de câncer no útero que desencadeou o câncer por todo o organismo, estando em coma quando da internação junto ao Hospital conveniado pela Requerida; 3- Tal plano cobre internação em quarto particular e em UTI; 4- Ocorre que após determinado período a Requerente comunicou ao ora representante legal do Espólio Requerente que não cobriria mais a internação da Requerente na UTI do Hospital e todo o tratamento necessário, causando um sério transtorno ao mesmo. 5- Ante o quadro médico da ‘de cujus’ a Requerida não deveria negar cobrir o pagamento do tratamento da mesma, pois encontrava-se em coma e impossibilitada de ter alta ou ser transferida e a família impossibilitada de arcar com o pagamento das despesas médico-hospitalares; 6- Os familiares da Requerente não tendo condições de arcar com tais despesas recorreram a todos os meios para solucionar o problema, mas não conseguiram, qualquer forma de solucioná-lo; 7- Ante a recusa da Requerida na cobertura do tratamento e a alta da ‘de cujus’, o esposo da Requerente ‘de cujus’ tiveram de recorrer ao Judiciário” (fls. 7-11).
Com base nessas circunstâncias fáticas, a ora recorrente, por seu espólio, requereu, além de indenização por danos materiais e morais, a nulidade da cláusula contratual que excluiu a cobertura das cirurgias, tratamento e internação (cláusula VI, parágrafo segundo, assim redigida: “Para a assistência clínica ou cirúrgica dos serviços constantes nesta Cláusula, será observado o limite de R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais), por beneficiário inscrito por período de 365 dias, limite este que tem como base a data de 1º de agosto de 1996, sendo que a correção deste valor observará os mesmos critérios estabelecidos na Cláusula XIV - Reajuste”).
Houve contestação e reconvenção pela ora recorrida.
O d. Juízo sentenciante, ao concluir não haver nenhum abuso na cláusula contratual limitativa, redigida com clareza e transparência, julgou improcedentes os pedidos formulados na inicial e considerou procedente a reconvenção, determinando que o autor pagasse ¢ reconvinte o valor despendido com o tratamento da enferma, na parte que ultrapassou o limite financeiro contratualmente previsto (fls. 239-244, e-STJ).
O colendo Tribunal de Justiça estadual confirmou a r. sentença (fls. 277- 285, e-STJ), sob o fundamento de que “a cláusula limitativa apresenta-se transparente”, devendo prevalecer o princípio pacta sunt servanda.
Contudo, entende-se configurado o caráter abusivo da referida cláusula contratual por estabelecer limitação de valor para o custeio de tratamento clínico, cirúrgico e de internação hospitalar de segurado e beneficiários, em montante por demais reduzido, incompatível com o próprio objeto do contrato de plano de saúde, consideradas as normais expectativas de custo dos serviços médico-hospitalares supostamente cobertos pela apólice. Então, a pessoa é levada a pensar que está segurada, que tem um plano de saúde para proteção da família, mas, na realidade, não está, pois o valor limite da apólice nem se aproxima dos custos normais médios de uma internação em hospital.
É certo que o sistema normativo vigente permite que as seguradoras, as empresas de medicina de grupo e as cooperativas médicas façam constar da apólice de plano de saúde privado cláusulas limitativas de riscos adicionais relacionados com o objeto da contratação, de modo que somente responderão pelos riscos na extensão prevista no contrato. A operadora do plano de saúde pode entender que determinados riscos, por sua extensão (p. ex.: transporte aéreo em UTI; internação em apartamento individual no hospital; livre escolha de hospital e outros), são capazes de comprometer o equilíbrio da mutualidade,
excluindo-os, portanto, da cobertura securitária. Essa autorização à inclusão de cláusulas limitativas encontra respaldo na própria autonomia contratual e nos arts. 757 e 760 do Código Civil de 2002 - art. 1.434 do Código Civil de 1916 - e no art. 54, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor, que apenas faz exigência de que sejam redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão pelo consumidor.
Essas cláusulas meramente limitativas de riscos extensivos ou adicionais relacionados com o objeto do contrato não se confundem com cláusulas tidas por abusivas, as quais visam afastar a responsabilidade da seguradora pelo próprio objeto nuclear da contratação. Enquanto as primeiras, admitidas por lei, dizem respeito à possibilidade de a operadora de plano de saúde excluir de sua cobertura determinados riscos relacionados ao objeto contratado na sua extensão, as segundas representam a exclusão ou restrição criada pela operadora para esquivar-se do cumprimento da obrigação em si regularmente assumida. Nesta hipótese, a seguradora, a despeito de, por exemplo, cobrir determinado tratamento (obrigação assumida), cria limitações outras que reduzem os efeitos práticos daquela cobertura. É o que ocorre na criação de restrição de tempo para internação e de limite de valor de custos hospitalares para cobertura, máxime quando o valor-limite é irrisório, como acontece na hipótese.
Acerca da temática, o Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo o caráter abusivo desse tipo de cláusula:
Súmula n. 302-STJ: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que
limita no tempo a internação hospitalar do segurado.”
Civil e Processual. Acórdão estadual. Omissões não configuradas. Seguro- saúde. Cláusula limitativa de valor de despesas anuais. Abusividade. Esvaziamento da finalidade do contrato. Nulidade.
I. Não padece do vício da omissão o acórdão estadual que enfrenta suficientemente as questões relevantes suscitadas, apenas que trazendo conclusões adversas à parte irresignada.
II. A finalidade essencial do seguro-saúde reside em proporcionar adequados meios de recuperação ao segurado, sob pena de esvaziamento da sua própria ratio, o que não se coaduna com a presença de cláusula limitativa do valor indenizatório de tratamento que as instâncias ordinárias consideraram coberto pelo contrato.
III. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 326.147-SP, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe de 8.6.2009)
Contrato de seguro. Foro de eleição. É ineficaz a cláusula estipuladora do foro de eleição em contrato de xxxxxx, a benefício da seguradora. O segurado pode valer- se das regras gerais de competência. Conflito conhecido e declarado competente o Juízo de Direito da 5ª Vara Cível de Caxias do Sul, para processar e julgar ambas as ações.
(CC n. 1.339-RS, Segunda Seção, Rel. Min. Nilson Naves, DJ de 17.12.1990)
Nesse contexto, a cláusula limitativa torna-se abusiva quando “as consequências normais de uma obrigação regularmente assumida, acaba por tornar inócua a sua própria essência, desnaturando o contrato (...). Xxxxxxx, se numa cláusula contratual o segurador assume um risco (uma obrigação) e noutra exclui ou reduz os efeitos jurídicos, na realidade não se obrigou; a cláusula é abusiva porque torna inócua a essência do contrato” (CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de Responsabilidade Civil, 9ª ed., rev. e amp., Atlas: São Paulo, 2010, p. 455).
Ao analisar a limitação do tempo de internação, acrescenta XXXXXX XXXXXXXXX FILHO que, “se a doença tem cobertura contratual outra cláusula não pode limitar os dias de internação; isto não importa mera limitação do risco, vale dizer, limitação da obrigação, mas limitação da própria responsabilidade do segurador, e, por via de consequência, restrição da obrigação fundamental inerente ao contrato. Uma coisa é a doença não ter cobertura, caso em que o segurador não assumiu nenhuma obrigação a seu respeito (não assumiu seu risco), e outra coisa, bem diferente, é a doença ter cobertura e, a partir de um determinado momento, deixa de tê-la. Na realidade, afigura-se abusivo impor tempo de cura para uma doença coberta pelo seguro. Complicações de todos os tipos podem surgir, pré e pós-operatórias, inclusive infecção hospitalar, ampliando compulsoriamente o tempo de internação. Pretender livrar-se o segurador dessas consequências não é limitar o seu risco, porque o risco foi assumido quando se deu cobertura para a doença, e o sinistro até já ocorreu. O que se pretende, na realidade, com essa cláusula, é limitar a responsabilidade do segurador decorrente de uma obrigação regularmente assumida, e isso a torna inválida” (ob. cit., p. 455).
Na hipótese em exame, segundo consta dos autos, a seguradora assumiu o risco de cobrir o tratamento da moléstia que acometeu a segurada. Todavia, por meio de cláusula limitativa e abusiva, reduziu os efeitos jurídicos dessa cobertura, ao estabelecer o valor máximo para assunção do risco, tornando, assim, inócua a obrigação contratada.
Há, por conseguinte, incompatibilidade entre o objeto do contrato de seguro-saúde e a limitação do valor do tratamento, mormente, na hipótese, em que essa limitação deu-se no montante de apenas R$ 6.500,00. Esse valor é, sabidamente, ínfimo, quando se fala em internação em unidade de terapia intensiva - UTI -, conforme ocorreu no caso em exame, em que a paciente segurada, acometida de moléstia grave, ficou submetida a esse tipo de internação por quase dois meses (de 16 de junho a 3 de agosto de 1999 - quando faleceu).
Infere-se, pois, que a cláusula em discussão não é meramente limitativa de extensão de risco, mas abusiva, porque excludente da própria essência do risco assumido, devendo ser decretada sua nulidade.
Outrossim, cumpre destacar que o bem aqui segurado é a saúde humana, o que se mostra incompatível com a fixação de um valor monetário determinado, como acontece com o seguro de automóveis e outros bens materiais. Não há como mensurar previamente o montante máximo a ser despendido com a recuperação da saúde de uma pessoa enferma, como se faz, por exemplo, facilmente até, com o conserto de um carro. Não há como se estabelecer uma regra, um valor padrão, para tratamento do indivíduo enfermo, sobretudo porque existem vários fatores exógenos e endógenos que podem influenciar no tempo de internação, na necessidade de encaminhamento à unidade de terapia intensiva - UTI -, no tipo de procedimento adotado, na cirurgia escolhida, e, inevitavelmente, no valor de custeio do tratamento.
Caso se considerasse não abusiva a referida cláusula, ter-se-ia a seguinte situação: um paciente segurado teria seu tratamento interrompido antes de alcançar a cura da enfermidade, tão logo atingido o tal limite máximo de valor autorizado no contrato de seguro-saúde, o qual, evidentemente, se tornaria de todo inútil.
Com efeito, não se pode equiparar o seguro-saúde a um seguro patrimonial, no qual é possível e fácil aferir o valor do bem segurado, criando limites de reembolso/indenização. Afinal, quem segura a saúde de outrem está garantindo o custeio de tratamento de doenças que, por sua própria natureza, são imprevisíveis, inclusive quanto aos gastos a serem despendidos com os custos hospitalares.
Tem-se, assim, que não pode haver limite monetário de cobertura para as despesas hospitalares, sob pena de se esvaziar o direito do segurado e o próprio objeto da contratação, que é, por natureza, de custos imprevisíveis, sendo essa, inclusive, uma das razões que leva a pessoa a contratar seguro de saúde.
É certamente por isso que a Lei n. 9.656/1998 - que estabelece as regras dos planos privados de assistência à saúde -, vigente à época dos fatos, prevê, em seu art. 12, II, a e b, que, na cobertura de internações hospitalares simples e em centro de terapia intensiva, ou similar, fica “vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade” (grifo nosso). Também o Decreto-Lei n. 73/1966
- que regula o Sistema Nacional de Seguros Privados -, em seu art. 13, dispõe que “as apólices não poderão conter cláusula que permita rescisão unilateral dos contratos de seguro ou por qualquer modo subtraia sua eficácia e validade além das situações previstas em Lei” (grifo nosso).
Portanto, seja por violação às normas do Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, 6º, 51) ou ao disposto na Lei n. 9.656/1998 e no Decreto-Lei n. 73/1966, deve ser considerada abusiva a cláusula do contrato de seguro- saúde que crie limitação de valor para o custeio de tratamento de saúde ou de internação hospitalar de segurado ou beneficiário.
Desse modo, em observância à função social dos contratos, à boa-fé objetiva e à proteção à dignidade humana, deve ser reconhecida a nulidade de cláusula contratual como a ora discutida, nos termos em que pleiteado pelo ora recorrente.
III - Ultrapassado esse tópico, deve-se analisar a configuração dos alegados danos materiais e morais.
Apenas a título de esclarecimento, a causa de pedir do dano material, assim como do dano moral, está relacionada à recusa pela seguradora da cobertura do tratamento médico-hospitalar da segurada, sendo certo que, conforme os delineamentos dados pelas instâncias ordinárias, sua morte não decorreu dessa recusa - pois, por liminar, fora dada continuidade à internação e ao tratamento -, mas em virtude da própria evolução da doença.
Relativamente aos danos materiais, saliente-se que consta dos autos que, com o deferimento de liminar, em sede de ação cautelar, o d. Juízo a quo determinou que a operadora do plano de saúde desse continuidade à cobertura do tratamento da segurada (e-STJ, fl. 42, apenso 2). A ora recorrida, pelo que se dessume dos autos, procedeu ao cumprimento dessa decisão liminar, até que sobreveio a morte da segurada, o que ocorreu antes mesmo do julgamento do mérito da ação ordinária de nulidade de cláusula contratual cumulada com indenização (e-STJ, fl. 42, apenso 2, e fls. 81-82, apenso 1). Portanto, ao que parece, não houve interrupção da internação ou do tratamento da paciente, tampouco custeio deste por parte da família da segurada. Tanto
que, na r. sentença, o d. Xxxxx julgou procedente a reconvenção apresentada pela seguradora, condenando o reconvindo, ora recorrente, ao pagamento dos gastos que aquela havia despendido com o tratamento da segurada, na parte que excedeu ao limite de valor de cobertura estabelecido no contrato, com a devida incidência de correção monetária, desde o desembolso, e de juros, desde a intimação da reconvenção (fls. 239-244, e-STJ).
Além disso, não há elemento algum nos autos do qual se possa depreender que o ora recorrente despendeu gastos com o tratamento, logo em seguida à recusa de cobertura havida pela operadora do plano de saúde.
Daí o provimento deste recurso, com a procedência da presente ação, no ponto, implicar apenas a condenação da recorrida ao pagamento das mencionadas despesas médico-hospitalares, ao que tudo indica já suportadas pela operadora do plano de saúde quando do cumprimento da liminar concedida na ação cautelar, e a improcedência da reconvenção.
No tocante aos danos morais, convém ressaltar que, a despeito de prevalecer o entendimento nesta Corte de Justiça no sentido de que o mero inadimplemento contratual não gera danos morais, deve ser reconhecido o direito a esse ressarcimento quando houver injusta e abusiva recusa de cobertura securitária pela operadora de plano de saúde, extrapolando o mero aborrecimento.
A propósito:
Civil. Recurso especial. Indenização. Dano moral. Negativa injusta de cobertura securitária médica. Cabimento.
1. Afigura-se a ocorrência de dano moral na hipótese de a parte, já internada e prestes a ser operada - naturalmente abalada pela notícia de que estava acometida de câncer -, ser surpreendida pela notícia de que a prótese a ser utilizada na cirurgia não seria custeada pelo plano de saúde no qual depositava confiança há quase 20 anos, sendo obrigada a emitir cheque desprovido de fundos para garantir a realização da intervenção médica. A toda a carga emocional que antecede uma operação somou-se a angústia decorrente não apenas da incerteza quanto à própria realização da cirurgia mas também acerca dos seus desdobramentos, em especial a alta hospitalar, sua recuperação e a continuidade do tratamento, tudo em virtude de uma negativa de cobertura que, ao final, se demonstrou injustificada, ilegal e abusiva.
2. Conquanto geralmente nos contratos o mero inadimplemento não seja causa para ocorrência de danos morais, a jurisprudência do STJ vem reconhecendo o
direito ao ressarcimento dos danos morais advindos da injusta recusa de cobertura securitária médica, na medida em que a conduta agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do segurado, o qual, ao pedir a autorização da seguradora, já se encontra em condição de dor, de abalo psicológico e com a saúde debilitada.
3. Recurso especial provido. (REsp n. 1.190.880-RS, Terceira Turma, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, DJe de 20.6.2011)
Civil e Processual. Recurso especial. Plano de saúde. Cobertura. Negativa.
Procedimento de urgência. Dano moral. Cabimento. Recurso provido.
I. A recusa da cobertura de procedimento médico-cirúrgico por parte de prestadora de plano de saúde enseja dano moral quando aquela se mostra ilegítima e abusiva, e do fato resulta abalo que extrapola o plano do mero dissabor.
II. Caso em que a situação do autor era grave e o risco de sequelas evidente, ante a amputação, por necrose, já ocorrida em outro membro, que necessitava urgente de tratamento preventivo para restabelecer a adequada circulação.
II. Recuso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.167.525-RS, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe de 28.3.2011)
Recurso especial. Plano de saúde. Negativa de cobertura. Defeito do produto. Legitimidade passiva ad causam. Unimed da Federação originalmente contratada pelo segurado. Recurso provido.
1. As Operadoras de Planos de Assistência à Saúde ofereceram um Plano Privado de Assistência à Saúde (produto), que será prestado por profissionais ou serviços de saúde, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica (prestação de serviço).
2. A não autorização para a realização do exame laboratorial caracteriza o fato do produto, pois, além do vício (não autorização para a realização do exame laboratorial), nos termos do entendimento uníssono desta Corte, o comportamento abusivo por parte da operadora de Plano de Saúde, extrapolando o simples descumprimento de cláusula contratual ou a esfera do mero aborrecimento, é ensejador do dano moral.
3. Defeituoso o Plano Privado de Assistência à Saúde (produto), a responsabilidade-legitimidade é da Operadora de Planos de Assistência à Saúde com quem o Segurado o adquiriu (artigo 12 do CDC).
4. Recurso especial provido. (REsp n. 1.140.107-PR, Terceira Turma, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxx, DJe de 4.4.2011)
Agravo regimental. Plano de saúde. Procedimento cirúrgico. Recusa da cobertura. Indenização por dano moral. Cabimento.
I - Em determinadas situações, a recusa à cobertura médica pode ensejar reparação a título de dano moral, por revelar comportamento abusivo por parte da operadora do plano de saúde que extrapola o simples descumprimento de cláusula contratual ou a esfera do mero aborrecimento, agravando a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do segurado, já combalido pela própria doença.
Precedentes.
II - Em casos que tais, o comportamento abusivo por parte da operadora do plano de saúde se caracteriza pela injusta recusa, não sendo determinante se esta ocorreu antes ou depois da realização da cirurgia, embora tal fato possa ser considerado na análise das circunstâncias objetivas e subjetivas que determinam a fixação do quantum reparatório.
III - Agravo regimental improvido. (AgRg no Ag n. 884.832-RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxx, DJe de 9.11.2010)
No caso em exame, conforme longamente explicitado, houve dano moral decorrente da cláusula considerada abusiva e da recusa da cobertura securitária pela operadora do plano de saúde, no momento em que a segurada, acometida de doença grave, que a levaria a estado terminal, necessitava dar prosseguimento a sua internação em UTI e ao tratamento médico-hospitalar adequado. Entende- se, pois, configurado o dano moral, pela aflição causada à enferma.
Diante do exposto, dá-se provimento ao recurso especial, para, julgando procedente a ação e improcedente a reconvenção:
(I) decretar a nulidade da cláusula contratual limitativa e abusiva (parágrafo segundo da cláusula VI do contrato); e
(II) condenar a recorrida:
a) a indenizar os danos materiais, decorrentes do tratamento médico- hospitalar que a segurada necessitou, deduzidas as despesas já suportadas pela recorrida quando do cumprimento da liminar;
b) ao ressarcimento dos danos morais, no montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), com a devida incidência de correção monetária, a partir desta data, e de juros moratórios de 0,5% ao mês até a entrada em vigor do Código Civil de 2002 e de 1% ao mês a partir de então, computados desde a citação; e
c) aos ônus sucumbenciais, com honorários advocatícios de 10% sobre o valor da condenação, devidamente corrigido.
É como voto.
COMENTÁRIO DOUTRINÁRIO
Aurisvaldo Melo Sampaio1
Um caso de limitação financeira de cobertura assistencial por plano de saúde
1. BREVES APONTAMENTOS ACERCA DOS FATOS E DAS QUESTÕES JURÍDICAS ABORDADAS NO ACÓRDÃO
O acórdão sob estudo dá conta de uma das mais perversas cláusulas encontradiças em contratos de plano de saúde, a limitação da cobertura assistencial a determinado valor, como se a saúde e, sobretudo, a vida humana, bem assim os riscos a que estão sujeitas, fossem passíveis de mensuração nesses termos.
Pois bem, a controvérsia teve início no ano de 1999 quando, precisamente em 16 de junho, consumidora de plano de saúde foi internada em unidade de terapia intensiva hospitalar em situação gravíssima – câncer de útero com metástase generalizada, levando-a a estado comatoso. Embora o contrato previsse cobertura para a doença que a acometera, no décimo quinto dia de internamento a operadora de plano de saúde comunicou que não mais cobriria a continuidade do tratamento em UTI, uma vez que fora atingido o limite máximo de custeio previsto em cláusula contratual, no importe de R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais).
Ajuizada ação cautelar, foi deferida medida liminar determinando à operadora que mantivesse o custeio do tratamento da consumidora, que veio a falecer no dia 03 de agosto de 1999. Em seguida, o espólio desta intentou ação para ver declarada a nulidade da cláusula limitativa de cobertura assistencial, bem como haver da operadora indenização por danos materiais e morais, ao que esta respondeu, inclusive, com reconvenção, pretendendo o ressarcimento das despesas efetuadas com o tratamento da falecida no montante que excedera ao reportado limite contratual.
1 Diretor do BRASILCON, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor da Faculdade Baiana de Direito e do Centro Universitário Xxxxx Xxxxx.
Em primeiro grau, julgou-se improcedente a ação e procedente a reconvenção, sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, acatando-se a tese da operadora no sentido de inexistir qualquer abuso na cláusula que limitava a cobertura assistencial, uma vez que fora redigida com clareza e transparência, pelo que se fez prevalecer o princípio contratual da vinculação do pactuado – pacta sunt servanda.
Aportando no Superior Tribunal de Justiça recurso especial aviado pelo espólio sucumbente na instância ordinária, após parecer contrário do presentante do Ministério Público Federal, mereceu acolhida unânime da Quarta Turma, nos termos do voto do relator, que, ao reconhecer a nulidade da cláusula contratual limitativa da cobertura, condenou a operadora a reparar danos materiais – deduzidas as despesas por esta já realizadas em cumprimento da medida liminar proferida na ação cautelar – e morais, estes no importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), corrigidos monetariamente e com incidência de juros moratórios.
Compreendeu o Tribunal da Cidadania, com extrema lucidez, que o caráter abusivo da cláusula em destaque revelava-se pelo diminuto valor da cobertura assistencial – R$ 6.500,00 –, restringindo desmesuradamente o objeto do contrato de plano de saúde e frustrando as legítimas expectativas do consumidor quanto aos serviços de que seria destinatário, pois o “valor limite da apólice nem se aproxima dos custos normais médios de uma internação em hospital”.
Não desconsiderou o acórdão a possibilidade de que as operadoras de planos de saúde façam incluir nos seus contratos cláusulas limitativas de riscos adicionais relacionados ao objeto da contratação, a exemplo da exclusão da cobertura de transporte em UTI aérea, na forma dos arts. 757 e 760 do Código Civil e 54, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor, por entender que são capazes de comprometer o equilíbrio econômico-financeiro da carteira. Todavia, tal permissão restringe-se à exclusão dos riscos extensivos ou adicionais relacionados ao objeto do contrato, não ao próprio objeto nuclear da contratação
– a essência do risco assumido –, uma vez que nesta hipótese se estaria reduzindo o efeito prático da cobertura assistencial, permitindo à operadora esquivar-se da obrigação regularmente assumida.
Assim, forte nos nortes definidos pelos princípios da proteção à dignidade humana, da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, considerando, especificamente, os ditames do Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, 6º, 51), da Lei nº 9.656/98 (art. 12, II, “a” e “b”) e do Decreto-Lei nº 73/66 (art. 13),
reconheceu a abusividade da cláusula que limitava a cobertura assistencial do plano de saúde ao valor de seis mil e quinhentos reais.
2. ANÁLISE TEÓRICA E DOGMÁTICA DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO
Longe está o tempo em que, por amor à segurança jurídica, considerava-se absolutamente intangível o contrato, não podendo os seus termos ser alterados, sequer judicialmente, “seja qual for a razão invocada por uma das partes”2. No lugar de tal concepção, calcada no ideário liberal-burguês, agora sob as luzes do princípio da função social, ampliou-se o poder interventivo do juiz no seu conteúdo, sob a consideração de que não pode o contrato ser fonte de injustiças ou vetor de desequilíbrios.
Ultrapassada a concepção individualista, uma noção renovada do contrato vingou no direito, em face da qual se obrigam as partes não apenas por aquilo que expressamente determinaram, mas ainda por tudo o que seja necessário para garantir ao outro o pleno e efetivo alcance do seu desiderato contratual. Tal se deu pela entronização do princípio da boa-fé objetiva,3 consistente em regra de conduta que impõe às partes atuar conforme certos parâmetros de lealdade, transparência e honestidade, agindo, no caso concreto, como uma pessoa correta, honrada, ali se conduziria, inclusive no tocante ao cumprimento das expectativas reciprocamente despertadas.
Conforme acentua Xxxx Xxxx xx xxx Xxxxx, trata-se de modelo de comportamento ao qual deverão os indivíduos adaptar-se na condução dos seus negócios,4 constituindo um standard de obrigatória observância pelas partes, independentemente da existência de pacto expresso nesse sentido. Já Xxxxxxxxx Xxxxxx, que também situa a boa-fé como norma de conduta, destaca no seu conteúdo, como integrante do comportamento leal e probo, a “consideração, pelo agente, dos interesses alheios, ou a imposição de consideração pelos interesses legítimos da contraparte”.5
2 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 38.
3 Conforme ensina Xxxxxxxx Xxxxxxx, “existem duas acepções da boa-fé, ou mesmo duas boas-fés, uma subjetiva e a outra objetiva, só se podendo falar em princípio da boa-fé a propósito da objetiva”. XXXXXXX, Xxxxxxxx. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 129.
4 XXXXX, Xxxx Xxxx xx xxx. El principio de la buena fe. Barcelona: Bosch, 1965, p. 40.
5 XXXXXX, Xxxxxxxxx. Direito civil: introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 425.
Coube ao Código de Defesa do Consumidor operar a positivação da boa- fé objetiva no sistema jurídico brasileiro, fazendo-o como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo (artigo 4º, III) e cláusula geral (art. 51, IV ). É Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx que distingue o tratamento dispensado à boa-fé nos dois dispositivos do CDC, afirmando que, no primeiro, artigo 4º, III, atua a boa-fé como princípio orientador de interpretação e integração, não como cláusula geral, missão reservada ao artigo 51, IV.6
Posteriormente, também o Código Civil de 2002 adotou o princípio da boa-fé, assegurando a sua aplicação nas relações jurídicas privadas gerais, por conduto dos seus artigos 113, 187 e, sobretudo, 422, como forma de concretização do princípio da eticidade, que privilegia o valor da pessoa humana como fonte de todos os demais valores e prioriza o uso de critérios éticos na solução dos conflitos, aumentando o poder do juiz na busca da solução mais justa e equitativa para o caso concreto.7
Acentue-se que, embora unitária, a boa-fé tem a sua incidência potencializada nas relações de consumo, diante da vulnerabilidade que é marca característica do consumidor, realidade que não passou despercebida à observação de Xxxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, os quais, louvando- se nos ensinos de Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx, asseveram que “a boa-fé objetiva não pode ser aplicada da mesma forma às relações de consumo e às relações mercantis ou societárias, pela simples razão de que os ‘standards’ de comportamento são distintos”.8 Aliás, é ainda mais acentuada a boa-fé que se exige nos contratos de plano de saúde, diante da especial vulnerabilidade que marca os consumidores nesses negócios jurídicos, que colocam em jogo, ademais, os seus mais caros valores.
Ora, o consumidor contrata plano de saúde a fim de que possa usufruir, quando necessitar, do tratamento médico apto a garantir ou restaurar a sua
6 XXXXXX XXXXXX, Xxx Xxxxxx. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Ed. RT, n. 14, abr./jun. 1995, pp. 20 e ss. A mesma posição é defendida por MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª ed. São Paulo: Ed. XX, 0000, p. 220.
7 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Principais inovações do Código Civil de 2002: breves comentários. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 5.
8 XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx; PASQUALOTTO, Xxxxxxxxx (coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Ed. XX, 0000, p. 230.
saúde, às vezes até mesmo salvar a sua vida. Não sabe ele que doença virá acometê-lo, muito menos tem conhecimento das ações que serão necessárias para tratá-la ou o custo que isso representará. Faz isso por receio de não poder arcar com o tratamento, pagando, então, prestações mensais à operadora, que deverá arcar com as despesas médicas se e quando for necessário. Portanto, tem a expectativa lógica e legítima de que, cumprindo a sua obrigação contratual, obterá, quando necessitar, o tratamento adequado à doença que vier a ofender sua saúde.
Nessa contextura, a cláusula que impõe limite financeiro à cobertura assistencial necessária ao restabelecimento da saúde do consumidor é ofensiva ao princípio da boa-fé objetiva porque frustra a legítima expectativa deste e, mais, desnatura o próprio contrato de plano de saúde, que é essencialmente aleatório. Sim, porque, por um lado, o consumidor assume o risco de pagar durante anos sem necessitar utilizar os serviços da operadora, enquanto esta, por força de cláusula abusiva, apenas assume o risco de arcar com os custos de tratamento até determinado valor, preestabelecido no contrato.
Há, de fato, incompatibilidade entre o objeto do contrato – a salvaguarda da vida e da saúde do consumidor – e a limitação do valor do tratamento, de tal modo a ameaçar de inocuidade a sua finalidade, uma vez que, atingido o valor adrede fixado, fenecerá a cobertura assistencial que constitui o próprio núcleo da obrigação assumida pela operadora. Aliás, a fixação, como no caso sob análise, de limite de cobertura assistencial em valor ínfimo, apenas agudiza a abusividade da cláusula limitativa, que de outra forma já seria írrita.
Por essa razão, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, citado no acórdão ora enfocado, esclarece que “se numa cláusula contratual o segurador assume um risco (uma obrigação) e noutra exclui ou reduz os efeitos jurídicos, na realidade não se obrigou; a cláusula é abusiva porque torna inócua a essência do contrato”.9
Nesse sentido, o art. 12, II, “a” e “b”, da Lei nº 9.656/98, ao vedar a limitação de prazo, valor máximo e quantidade nas internações hospitalares, inclusive em UTI, nada mais fez que, prudentemente, é verdade, explicitar o que já decorreria do princípio da boa-fé objetiva, observação importante, sobretudo, porque apenas os contratos celebrados após a vigência da referida Lei, ou aqueles a ela adaptados, estão sujeitos aos seus ditames.
9 CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 455.
Assim, sequer socorreria à operadora a alegação da inaplicabilidade da expressa vedação do art. 12, II, “a” e “b”, da Lei nº 9.656/98, por tratar-se de contrato “antigo” – celebrado em data anterior ao início da sua vigência –, uma vez que ali apenas se explicita proibição já decorrente de normas principiológicas, inclusive com sede constitucional, pois, como ensina Ruy Rosado de Xxxxxx Xxxxxx, com respaldo na doutrina de Clóvis do Couto e Silva, a boa-fé objetiva é decorrência do artigo 3º, I, da Carta Magna, que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil constituir uma sociedade justa e solidária.10
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é sem razão que o Superior Tribunal de Justiça tem se notabilizado como o “Tribunal da Cidadania”. Aqui, mais uma vez, rompe com os paradigmas novecentistas para agasalhar o norte constitucional, mercê da aplicação da legislação ordinária à luz da Carta Magna, de modo a privilegiar valores não- patrimoniais, particularmente, a dignidade da pessoa humana e a justiça social, aos quais deve se submeter toda a atividade econômica, sobretudo quando em interface direta com os mais caros valores pessoais, como a saúde e a vida.
Tais valores, refletidos em princípios como a boa-fé objetiva e a função social dos contratos, que devem ser prevalentes em todos os recantos do direito, assumem importância capital nos contratos de plano de saúde, sobretudo na sua fase de execução, instante em que aflora o mais evidente – e assustador – aspecto da vulnerabilidade do consumidor, a fragilidade da sua existência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
XXXXXX XXXXXX, Xxx Xxxxxx. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Ed. RT, n. 14, abr./jun. 1995.
XXXXXX, Xxxxxxxxx. Direito civil: introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 735.750 – SP.
Relator: Min. Xxxx Xxxxxx. Julgado em: 14/02/2012.
10 XXXXXX XXXXXX, Xxx Xxxxxx. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Ed. RT, n. 14, abr./jun. 1995, pp. 14/20.
XXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2010.
XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Principais inovações do Código Civil de 2002: breves comentários. São Paulo: Saraiva, 2002.
MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª ed. São Paulo: Ed. XX, 0000.
XXXXX, Xxxx Xxxx xx xxx. El principio de la buena fe. Barcelona: Bosch, 1965.
XXXXXXX, Xxxxxxxx. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994.
XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx; PASQUALOTTO, Xxxxxxxxx (coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Ed. XX, 0000.
RECURSO ESPECIAL N. 1.280.211-SP (2011/0220768-0)
Relator: Ministro Xxxxx Xxxxx Recorrente: Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx: Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx e outro(s)
Recorrido: Sul América Companhia de Seguro Saúde S/A Advogado: Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Ação declaratória de nulidade de cláusula do contrato de seguro saúde que prevê a variação dos prêmios por mudança de faixa etária. Sentença de procedência reformada pelo acórdão estadual, afastada a abusividade da disposição contratual.
Insurgência da segurada.
Ação ajuizada por beneficiária de plano de saúde, insurgindo-se contra cláusula de reajuste em razão da mudança de faixa etária.
Contrato de seguro de assistência médica e hospitalar celebrado em 10.9.2001 (fls. e-STJ 204-205), época em que a segurada contava com 54 (cinquenta e quatro) anos de idade. Majoração em 93% (noventa e três por cento) ocorrida 6 (seis) anos depois, quando completados 60 (sessenta) anos pela consumidora.
Sentença de procedência reformada pelo acórdão estadual, segundo o qual possível o reajuste por faixa etária nas relações contratuais inferiores a 10 (dez) anos de duração, máxime quando firmadas antes da vigência da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
1. Incidência do Estatuto do Idoso aos contratos anteriores à sua vigência. O direito à vida, à dignidade e ao bem-estar das pessoas idosas encontra especial proteção na Constituição da República de 1988 (artigo 230), tendo culminado na edição do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), xxxxx xxxxxxx (imperativa e de ordem pública), cujo interesse social subjacente exige sua aplicação imediata sobre todas as relações jurídicas de trato sucessivo, a exemplo do plano de assistência à saúde. Precedente.
2. Inexistência de antinomia entre o Estatuto do Idoso e a Lei n. 9.656/1998 (que autoriza, nos contratos de planos de saúde, a fixação de reajuste etário aplicável aos consumidores com mais de sessenta anos, em se tratando de relações jurídicas mantidas há menos de dez anos). Necessária interpretação das normas de modo a propiciar um diálogo coerente entre as fontes, à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da equidade, sem desamparar a parte vulnerável da contratação.
2.1. Da análise do artigo 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, depreende-se que resta vedada a cobrança de valores diferenciados com base em critério etário, pelas pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, quando caracterizar discriminação ao idoso, ou seja, a prática de ato tendente a impedir ou dificultar o seu acesso ao direito de contratar por motivo de idade.
2.2. Ao revés, a variação das mensalidades ou prêmios dos planos ou seguros saúde em razão da mudança de faixa etária não configurará ofensa ao princípio constitucional da isonomia, quando baseada em legítimo fator distintivo, a exemplo do incremento do elemento risco nas relações jurídicas de natureza securitária, desde que não evidenciada a aplicação de percentuais desarrazoados, com o condão de compelir o idoso à quebra do vínculo contratual, hipótese em que restará inobservada a cláusula geral da boa-fé objetiva, a qual impõe a adoção de comportamento ético, leal e de cooperação nas fases pré e pós pactual.
2.3. Consequentemente, a previsão de reajuste de mensalidade de plano de saúde em decorrência da mudança de faixa etária de segurado idoso não configura, por si só, cláusula abusiva, devendo sua compatibilidade com a boa-fé objetiva e a equidade ser aferida em cada caso concreto. Precedente: REsp n. 866.840-SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ Acórdão Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 7.6.2011, DJe 17.8.2011.
3. Em se tratando de contratos firmados entre 02 de janeiro de 1999 e 31 de dezembro de 2003, observadas as regras dispostas na Resolução CONSU n. 6/98, o reconhecimento da validade da cláusula de reajuste etário (aplicável aos idosos, que não participem de um plano ou seguro há mais de dez anos) dependerá: (i) da existência de previsão expressa no instrumento contratual; (ii) da observância das sete faixas etárias e do limite de variação entre a primeira e a última
(o reajuste dos maiores de setenta anos não poderá ser superior a seis vezes o previsto para os usuários entre zero e dezessete anos); e (iii) da inexistência de índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem excessivamente o consumidor, em manifesto confronto com a cláusula geral da boa-fé objetiva e da especial proteção do idoso conferida pela Lei n. 10.741/2003.
4. Na espécie, a partir dos contornos fáticos delineados na origem, a segurada idosa participava do plano há menos de dez anos, tendo seu plano de saúde sido reajustado no percentual de 93% (noventa e três por cento) de variação da contraprestação mensal, quando do implemento da idade de 60 (sessenta) anos. A celebração inicial do contrato de trato sucessivo data do ano de 2001, cuidando- se, portanto, de relação jurídica submetida à Lei n. 9.656/1998 e às regras constantes da Resolução CONSU n. 6/98.
4.1. No que alude ao atendimento aos critérios objetivamente delimitados, a fim de se verificar a validade do reajuste, constata-se: (i) existir expressa previsão do reajuste etário na cláusula 14.2 do contrato; e (ii) os percentuais da primeira e da última faixa etária restaram estipulados em zero, o que evidencia uma considerável concentração de reajustes nas faixas intermediárias, em dissonância com a regulamentação exarada pela ANS que prevê a diluição dos aumentos em sete faixas etárias. A aludida estipulação contratual pode ocasionar
- tal como se deu na hipótese sob comento -, expressiva majoração da mensalidade do plano de saúde por ocasião do implemento dos sessenta anos de idade do consumidor, impondo-lhe excessivo ônus em sua contraprestação, a tornar inviável o prosseguimento do vínculo jurídico.
5. De acordo com o entendimento exarado pela Quarta Turma, quando do julgamento do Recurso Especial n. 866.840-SP, acerca da exegese a ser conferida ao § 3º do artigo 15 da Lei n. 10.741/2003, “a cláusula contratual que preveja aumento de mensalidade com base exclusivamente em mudança de idade, visando forçar a saída do segurado idoso do plano, é que deve ser afastada”.
5.1. Conforme decidido, “esse vício se percebe pela ausência de justificativa para o nível do aumento aplicado, o que se torna perceptível sobretudo pela demasia da majoração do valor da mensalidade do contrato de seguro de vida do idoso, comparada com os percentuais de reajustes
anteriormente postos durante a vigência do pacto. Isso é que compromete a validade da norma contratual, por ser ilegal, discriminatória”.
5.2. Na hipótese em foco, o plano de saúde foi reajustado no percentual de 93% (noventa e três por cento) de variação da contraprestação mensal, quando do implemento da idade de 60 (sessenta) anos, majoração que, nas circunstâncias do presente caso, destoa significativamente dos aumentos previstos contratualmente para as faixas etárias precedentes, a possibilitar o reconhecimento, de plano, da abusividade da respectiva cláusula.
6. Recurso especial provido, para reconhecer a abusividade do percentual de reajuste estipulado para a consumidora maior de sessenta anos, determinando-se, para efeito de integração do contrato, a apuração, na fase de cumprimento de sentença, do adequado aumento a ser computado na mensalidade do plano de saúde, à luz de cálculos atuariais voltados à aferição do efetivo incremento do risco contratado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, preliminarmente, por unanimidade, prosseguir no julgamento do feito, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator, e, no mérito, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Vencida a Sra. Ministra Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, que lhe negava provimento. Os Srs. Ministros Xxxxx Xxxxxxxx, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxx, Xxxx Xxxxxx, Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 23 de abril de 2014 (data do julgamento). Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Presidente
Ministro Xxxxx Xxxxx, Relator
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Xxxxx Xxxxx: O presente recurso especial versa sobre a licitude ou não de cláusula de contrato de seguro saúde, originariamente firmado
em 2001, que previu a variação dos prêmios mensais em razão da mudança de faixa etária dos segurados, à luz da proteção especial conferida às pessoas idosas na Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
Em 16.5.2013, a Quarta Turma, por unanimidade, acolheu a proposta formulada por este signatário, em sede de questão de ordem, afetando o julgamento do reclamo à Segunda Seção, a fim de superar divergência de entendimentos havida no âmbito das Turmas de Direito Privado, consoante delimitado no Comparativo de Jurisprudência do STJ n. 84, de 10 de agosto de 2011:
Entendimento 1: É abusiva a cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade de plano de saúde em decorrência unicamente da mudança de faixa etária, no caso de contratantes idosos (AgRg no AREsp n. 257.898-PR, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, Terceira Turma, julgado em 7.11.2013, DJe 25.11.2013; AgRg no AREsp n. 95.973-RS, Rel. Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 6.8.2013, DJe 12.8.2013; e AgRg nos EDcl no REsp n. 1.310.015- AP, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 11.12.2012, DJe 17.12.2012).
Entendimento 2: Não é abusiva a cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade de plano de saúde em decorrência unicamente da mudança de faixa etária, no caso de contratantes idosos, devendo eventual ilegalidade ser analisada em cada caso (REsp n. 866.840-SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ Acórdão Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 7.6.2011, DJe 17.8.2011)
Apontadas tais considerações, passa-se ao relato do apelo extremo, interposto por Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, com amparo nas alíneas a e c do permissivo constitucional, no intuito de reformar acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Tal insurgência é oriunda de ação declaratória, com pedido de tutela antecipada, ajuizada pela ora recorrente em face de Sul América Companhia de Seguro Saúde.
No bojo da inicial (intentada em 23.3.2009), a autora aduziu: (i) ter firmado com a recorrida no ano de 2001 contrato individual de seguro-saúde de assistência médica hospitalar, na categoria básico; (ii) que a “mensalidade do plano” era de R$ 636,19 (seiscentos e trinta e seis reais e dezenove centavos) em setembro de 2007, passando, no mês seguinte, para R$ 1.226,63 (hum mil, duzentos e vinte e seis reais e sessenta e três centavos), o que importou em um reajuste de 93% (noventa e três por cento) de um mês para outro; (iii) tal
reajuste fora motivado unicamente pelo aniversário de 60 (sessenta) anos da segurada, tendo por base cláusula contratual abusiva, que prevê a variação dos prêmios por mudança de faixa etária; (iv) “evidente a intenção da Sul América Saúde em expurgar de sua carteira os clientes que geram custos maiores, mesmo tendo esses confiado plenamente suas vidas aos seguro-saúde [sic] e contribuído adimplentemente para ele, por meio de onerosos prêmios mensais”; (v) não possuir condições financeiras de arcar com os constantes reajustes impostos pela seguradora, que “destoam, sobremaneira, do ordenamento jurídico”; e (vi) ser vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade, ex vi do disposto no artigo 15, § 3º, da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
Por fim, a demandante pleiteou: (i) a concessão de tutela antecipada com a finalidade de proibir a cobrança do reajuste em razão da mudança de faixa etária acima dos 60 (sessenta) anos de idade, viabilizando-se a emissão de boleto da mensalidade do mês de abril de 2009 sem a inclusão do aludido aumento; e
(ii) a procedência da demanda, confirmando integralmente a tutela antecipada, reconhecida a invalidade da “cláusula do contrato de adesão que prevê reajuste em razão da mudança de faixa etária acima de 60 anos, restituindo em dobro à requerente todos os valores pagos indevidamente” (desde outubro de 2007), em estrito cumprimento ao artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor.
O pedido de antecipação da tutela jurisdicional foi deferido pelo magistrado a quo, tendo sido determinado que a ré procedesse “ao reajuste do seguro-saúde da autora de acordo com os índices autorizados pela ANS - Agência Nacional de Saúde, excluindo o reajuste de 93% em razão da mudança da faixa etária, devendo este reajuste observar os índices do contrato, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00, emitindo a ré novo boleto com o valor correto” (fls. e-STJ 125-126).
Sobreveio sentença que julgou procedente a pretensão deduzida na inicial para, confirmando a tutela de urgência deferida, declarar nula a cláusula contratual que prevê a variação dos prêmios por mudança de faixa etária e determinar a supressão do reajuste de 93% (noventa e três por cento) imposto pela seguradora. Os honorários advocatícios foram fixados em 15% (quinze por cento) sobre o valor da causa.
A autora opôs embargos de declaração, pleiteando a manifestação do juízo sentenciante acerca do pedido de devolução em dobro dos valores pagos indevidamente.
Os aclaratórios foram rejeitados, sob o fundamento de que “a restituição em dobro dos valores cobrados a maior somente se caracteriza por cobrança indevida, o que não é o caso, eis que a conduta da ré, anterior à sentença que declarou nula a cláusula 14.2, foi pautada em diretrizes contratuais”.
Inconformadas, ambas as partes interpuseram recurso de apelação. A seguradora insurgiu-se contra a declaração de nulidade da cláusula de reajuste por faixa etária. A segurada, por seu turno, pugnou pelo acolhimento do pedido de repetição em dobro dos valores pagos acima do devido.
O Tribunal de origem deu provimento ao recurso da ré, para julgar improcedente a pretensão, considerando prejudicado o apelo da parte adversa, com inversão do ônus sucumbencial, nos termos da seguinte ementa:
Plano de saúde. Reajuste em função da faixa etária. Não abusividade. Critério de reajustamento por faixa etária claramente previsto no contrato. Impossibilidade de aplicação do artigo 15, § único, da Lei n. 9.656/1998. Contrato com duração inferior a dez anos. Não incidência do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003). Contrato anterior à sua vigência. Sentença reformada. Ação improcedente.
Recurso da autora prejudicado e provido o da ré.
Daí o presente recurso especial (fls. e-STJ 393-409), manejado pela autora/ segurada, apontando, além de divergência jurisprudencial, violação do artigo 15,
§ 3º, da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), o qual “veda a cobrança, nos planos de saúde, de valores diferenciados de mensalidade ao segurado idoso”. Repisa o argumento de que abusivo o reajuste do prêmio mensal do seguro saúde em razão da mudança de faixa etária.
Apresentadas contrarrazões (fls. e-STJ 490-507), o apelo extremo restou admitido na origem (fl. e-STJ 509), tendo-lhe sido atribuído efeito suspensivo (fls. e-STJ 482-483).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Xxxxx Xxxxx (Relator): Os requisitos de admissibilidade do recurso especial encontram-se preenchidos, motivo pelo qual é de rigor o seu conhecimento.
1. Preliminarmente, importante assinalar que o Supremo Tribunal Federal, em 7.4.2011, reconheceu a repercussão geral da controvérsia, veiculada no
Recurso Extraordinário n. 630.852-RS, acerca da aplicação do Estatuto do Idoso
(Lei n. 10.741/2003) a contrato de plano de saúde firmado antes de sua vigência.
Nada obstante, a pendência do julgamento do referido reclamo não impede a apreciação do presente recurso especial (cujo deslinde perpassa pela mesma questão), pois, como consabido, “o reconhecimento pelo Pretório Excelso de que o tema possui repercussão geral, nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil, acarreta, unicamente, o sobrestamento de eventual recurso extraordinário, interposto contra acórdão proferido por esta Corte ou por outros tribunais, cujo exame deverá ser realizado no momento do juízo de admissibilidade” (AgRg nos EREsp n. 1.142.490-RS, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxx, Corte Especial, julgado em 6.10.2010, DJe 8.11.2010).
2. Cinge-se a controvérsia a verificar a licitude ou não de cláusula do contrato de seguro saúde, originariamente firmado em 2001, que previu a variação dos prêmios mensais em razão da mudança de faixa etária dos segurados, à luz da proteção especial conferida às pessoas idosas pela Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
Conforme relatado, o presente recurso especial foi afetado para julgamento da Segunda Seção, uma vez detectada divergência de entendimentos no âmbito das Turmas de Direito Privado, assim consubstanciada:
Entendimento 1: É abusiva a cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade de plano de saúde em decorrência unicamente da mudança de faixa etária, no caso de contratantes idosos (AgRg no AREsp n. 257.898-PR, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, Terceira Turma, julgado em 7.11.2013, DJe 25.11.2013; AgRg no AREsp n. 95.973-RS, Rel. Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 6.8.2013, DJe 12.8.2013; e AgRg nos EDcl no REsp n. 1.310.015- AP, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 11.12.2012, DJe 17.12.2012).
Entendimento 2: Não é abusiva a cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade de plano de saúde em decorrência unicamente da mudança de faixa etária, no caso de contratantes idosos, devendo eventual ilegalidade ser analisada em cada caso (REsp n. 866.840-SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ acórdão Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 7.6.2011, DJe 17.8.2011; e AgRg no REsp n. 1.299.481-RS, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxx, Terceira Turma, julgado em 6.11.2012, DJe 13.11.2012).
Assim posta a questão jurídica, esta relatoria filia-se à orientação jurisprudencial no sentido de que a previsão de reajuste de mensalidade de plano
de saúde em decorrência da mudança de faixa etária de segurado idoso, nos contratos firmados antes da edição da Lei n. 10.741/2003, não configura, por si só, cláusula abusiva, devendo sua compatibilidade com a boa-fé objetiva e a equidade ser aferida em cada caso concreto.
Tal exegese, além de encontrar respaldo na lei de regência, apresenta- se, salvo melhor juízo, mais consentânea com a noção de proporcionalidade da relação contratual. Isto porque: (i) preserva o equilíbrio atuarial do plano privado de assistência à saúde, observada sua natureza jurídica sinalagmática, sendo certo que o aumento da idade do segurado importa em incremento do risco contratado, o que repercute nos custos do serviço prestado pelo fornecedor; e (ii) protege a parte vulnerável (o consumidor idoso) de eventual conduta abusiva do fornecedor, voltada a inviabilizar a manutenção do contrato cativo de longa duração, mediante a estipulação de contraprestação excessivamente onerosa, sem observância dos princípios da boa-fé objetiva e da equidade.
Os contratos de cobertura de custos assistenciais ou de serviços de assistência à saúde são, hodiernamente, regulados pelo Código de Defesa do Consumidor (Súmula n. 469-STJ) e, especificamente, pela Lei n. 9.656/1998, cujo artigo 15, ressalvando a norma inserta no artigo 35-E (aplicável aos contratos celebrados antes de sua vigência), assim dispõe:
Art. 15. A variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, em razão da idade do consumidor, somente poderá ocorrer caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvado o disposto no art. 35-E.
Parágrafo único. É vedada a variação a que alude o caput para consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º, ou sucessores, há mais de dez anos.
Desse modo, a possibilidade de variação das mensalidades ou prêmios dos planos de saúde ou seguro saúde em razão da mudança de faixa etária do consumidor restou admitida pelo referido diploma legal, excepcionados apenas os contratos firmados há mais de 10 (dez) anos por maiores de 60 (sessenta) anos, desde que observados os critérios estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS.
Nesse contexto, o Conselho de Saúde Suplementar, órgão vinculado à ANS, expediu a Resolução CONSU n. 6, de 03 de novembro de 1998, estabelecendo
os “critérios e parâmetros de variação das faixas etárias dos consumidores para efeito de cobrança diferenciada, bem como de limite máximo de variação de valores entre as faixas etárias definidas para planos e seguros de assistência à saúde”.
Tal normativo, aplicável aos contratos firmados entre 02 de janeiro de 1999 e 31 de dezembro de 2003 (antes da vigência do Estatuto do Idoso), estabeleceu sete faixas etárias como critério de variação das contraprestações pecuniárias em razão da idade do consumidor, determinando que o valor fixado para a última faixa (setenta anos ou mais) não pode ser superior a seis vezes o valor da primeira faixa etária (zero a dezessete anos):
Art. 1º Para efeito do disposto no artigo 15 de Lei n. 9.656/1998, as variações das contraprestações pecuniárias em razão da idade do usuário e de seus dependentes, obrigatoriamente, deverão ser estabelecidas nos contratos de planos ou seguros privados de assistência à saúde, observando-se as 07 (sete) faixas etárias discriminadas abaixo:
I - 0 (zero) a 17 (dezessete) anos de idade;
II - 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos de idade:
III - 30 (trinta) a 39 (trinta e nove) anos de idade;
IV - 40 (quarenta) a 49 (quarenta e nove) anos de idade; V - 50 (cinqüenta) a 59 (cinqüenta e nove) anos de idade; VI - 60 (sessenta) a 69 (sessenta e nove) anos de idade; VII - 70 (setenta) anos de idade ou mais.
Art. 2º As operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde poderão adotar por critérios próprios os valores e fatores de acréscimos das contraprestações entre as faixas etárias, desde que o valor fixado para a última faixa etária não seja superior a seis vezes o valor da primeira faixa etária, obedecidos os parâmetros definidos no art. 1º desta resolução.
§ 1º A variação de valor na contraprestação pecuniária não poderá atingir o usuário com mais de 60 (sessenta) anos de idade, que participa do um plano ou seguro há mais de 10 (dez) anos, conforme estabelecido na Lei n. 9.656/1998.
§ 2º A contagem do prazo estabelecido no parágrafo anterior deverá considerar cumulativamente os períodos de dois ou mais planos ou seguros, quando sucessivos e ininterruptos, numa mesma operadora, independentemente de eventual alteração em sua denominação social, controle empresarial, ou na sua administração, desde que caracterizada a sucessão.
§ 3º As operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde podem oferecer produtos que tenham valores iguais em faixas etárias diferentes.
(...)
Art. 4º O valor atribuído de contraprestação para cada faixa etária dos titulares e dependentes, dentro do limite previsto nos artigos anteriores, deverá ser previamente esclarecido e constar expressamente do instrumento contratual.
A partir de 1º de janeiro de 2004, entrou em vigor a Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), diploma que confere especial proteção às pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos, consubstanciando norma cogente (imperativa e de ordem pública), cujo interesse social subjacente exige sua aplicação imediata sobre todas as relações jurídicas de trato sucessivo, a exemplo do plano de assistência à saúde. Nesse sentido: AgRg no REsp n. 1.355.423-DF, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, Terceira Turma, julgado em 19.9.2013, DJe 26.9.2013; AgRg no REsp n. 1.324.344-SP, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxx, Terceira Turma, julgado em 21.3.2013, DJe 1º.4.2013; e REsp n. 1.228.904-SP, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 5.3.2013, DJe 8.3.2013.
Assim, ultrapassada a discussão acerca da aplicação da Lei n. 10.741/2003 aos contratos firmados antes de sua vigência, impende transcrever o artigo 15, § 3º, do aludido diploma legal, que veda, expressamente, a discriminação do idoso nos planos de saúde:
Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde - SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.
(...)
§ 3º É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.
(...)
Da análise da supracitada norma, depreende-se que resta vedada a cobrança de valores diferenciados com base em critério etário, pelas pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, quando caracterizar discriminação ao idoso, ou seja, a prática de ato tendente a impedir ou dificultar o seu acesso ao direito de contratar por motivo de idade.
Tal mandamento também se encontra expresso no artigo 14 da Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998), verbis:
Art. 14. Em razão da idade do consumidor, ou da condição de pessoa portadora de deficiência, ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde.
Assim, não se vislumbra antinomia entre o Estatuto do Idoso e a Lei dos Planos de Saúde, os quais devem ser interpretados de modo a propiciar um diálogo coerente entre as fontes normativas, à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da equidade, sem desamparar a parte vulnerável da contratação.
Nesse contexto, sobressai o entendimento esposado pela Quarta Turma, quando do julgamento do Recurso Especial n. 866.840-SP, acerca da exegese a ser conferida ao § 3º do artigo 15 da Lei n. 10.741/2003 (“É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.”). Na ocasião, assinalou-se que a referida norma não tem comando abstrato expresso no sentido de proibir a estipulação de reajuste com base na mudança de faixa etária, mas, sim, inibe aquele que consubstanciar discriminação desproporcional do idoso sem pertinência com o incremento do risco acobertado pelo contrato de plano de saúde. Confira-se:
(...)
Ora, não se extrai de tal norma interpretação que determine, abstratamente, que se repute abusivo todo e qualquer reajuste que se baseie em mudança de faixa etária, como pretende o promovente desta ação civil pública, mas tão somente o reajuste discriminante, desarrazoado, que, em concreto, traduza verdadeiro fator de discriminação do idoso, justamente por visar dificultar ou impedir sua permanência no plano.
A cláusula contratual que preveja aumento de mensalidade com base exclusivamente em mudança de idade, visando forçar a saída do segurado idoso do plano, é que deve ser afastada. Esse vício se percebe pela ausência de justificativa para o nível do aumento aplicado, o que se torna perceptível sobretudo pela demasia da majoração do valor da mensalidade do contrato de seguro de vida do idoso, comparada com os percentuais de reajustes anteriormente postos durante a vigência do pacto. Isso é que compromete a validade da norma contratual, por ser ilegal, discriminatória.
(...)
Na esteira do ensinamento acima, não há como se considerar violador do princípio da isonomia o reajuste, autorizado em lei, decorrente de mudança de faixa etária, baseado no já mencionado natural incremento do elemento risco, pois caracterizada a pertinência lógica que justifica tal diferenciação, máxime quando já idoso o segurado.
O que não se mostra possível, de acordo com as regras do art. 15, § 3º, da Lei Federal n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e do art. 14 da Lei Federal n. 9.656/1998, transcritos supra, por afrontar nitidamente o princípio da igualdade, repise-se, é que a seguradora, em flagrante abuso do exercício de direito e divorciada da boa-fé contratual, aumente sobremaneira a mensalidade dos planos de saúde, aplicando percentuais desarrazoados, que constituam verdadeira barreira à permanência do idoso no plano de saúde. Procedendo de tal forma, a seguradora criaria, em verdade, fator de discriminação do idoso, com o objetivo escuso e ilegal de usar a majoração para desencorajar o segurado a permanecer no plano, o que, evidentemente, não pode ser tolerado.
(...)
Evidentemente, como se deixou registrado acima, caso algum consumidor segurado perceba abuso no aumento de sua mensalidade, em razão de mudança de faixa etária, aí sim poder-se-á cogitar de ilegalidade, cujo reconhecimento autorizará o julgador a revisar o índice aplicado, seja em ação individual ou coletiva. (REsp n. 866.840-SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ acórdão Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 7.6.2011, DJe 17.8.2011)
Xxxxxxx, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais reclama a proteção do direito social à saúde do idoso em face dos poderes privados, traduzindo limitação à autonomia da vontade, sem olvidar, contudo, a natural busca do lucro pelo desempenho de atividade econômica, desde que não represente demasiada oneração ao consumidor.
Nessa ordem de ideias, a variação das mensalidades ou prêmios dos planos ou seguros de assistência à saúde, em razão da mudança de faixa etária, não configurará ofensa ao princípio constitucional da isonomia, quando baseada em legítimo fator distintivo, a exemplo do incremento do elemento risco nas relações jurídicas de natureza securitária, desde que não evidenciada a aplicação de percentuais desarrazoados, com o condão de compelir o idoso à quebra do vínculo contratual, hipótese em que restará inobservada a cláusula geral da boa-fé objetiva, a qual impõe a adoção de comportamento ético, leal e de cooperação nas fases pré e pós pactual.
Consequentemente, a decretação da nulidade de pleno direito da cláusula contratual que preveja a variação de valores a serem pagos pelos beneficiários em razão do critério etário será de rigor apenas quando implicar obrigação abusiva, incompatível com a boa-fé e a equidade, ex vi do disposto no artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, o que deverá ser analisado de forma casuística.
Desse modo, em se tratando dos contratos firmados entre 02 de janeiro de 1999 e 31 de dezembro de 2003 (hipótese dos autos), o reconhecimento da validade da cláusula de reajuste etário (aplicável aos idosos, que não participem de um plano ou seguro há mais de dez anos) dependerá: (i) da existência de previsão expressa no instrumento contratual; (ii) da observância das sete faixas etárias e do limite de variação entre a primeira e a última (o reajuste dos maiores de setenta anos não poderá ser superior a seis vezes o previsto para os usuários entre zero e dezessete anos); e (iii) da inexistência de índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem excessivamente o consumidor, em manifesto confronto com a cláusula geral da boa-fé objetiva.
Nesse diapasão, destaca-se, mais uma vez, o julgado da Quarta Turma anteriormente citado, que enumerou tais parâmetros para aferição da validade da cláusula contratual de reajuste:
Direito Civil. Consumidor. Plano de saúde. Ação civil pública. Cláusula de reajuste por mudança de faixa etária. Incremento do risco subjetivo. Segurado idoso. Discriminação. Abuso a ser aferido caso a caso. Condições que devem ser observadas para validade do reajuste.
(...)
5. Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em razão da mudança de faixa etária, desde que atendidas certas condições, quais sejam: a) previsão no instrumento negocial; b) respeito aos limites e demais requisitos estabelecidos na Lei Federal n. 9.656/1998; e c) observância ao princípio da boa-fé objetiva, que veda índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o segurado.
(...)
7. Recurso especial provido. (REsp n. 866.840-SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ acórdão Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 7.6.2011, DJe 17.8.2011)
Na hipótese ora em foco, restou incontroverso na origem que, ao completar 60 (sessenta) anos de idade (e seis anos de relação contratual), a segurada teve seu prêmio mensal do seguro saúde aumentado em 93% (noventa e três por cento), passando de R$ 636,19 (seiscentos e trinta e seis reais e dezenove centavos) em setembro de 2007 para R$ 1.226,63 (hum mil, duzentos e vinte e seis reais e sessenta e três centavos) em outubro do mesmo ano, com base na cláusula 14.2 do contrato firmado em 2001.
O magistrado de primeiro grau decretou a nulidade da referida cláusula, calcado na assertiva de que “ao completar 60 anos, a autora se viu amparada
pelo Estatuto do Idoso, que já vigorava na época, e, consequentemente, impossibilitada de sofrer reajustes em sua mensalidade em razão da mudança de faixa etária” (fls. e-STJ 270-273).
Por sua vez, o Tribunal de origem reformou a sentença de procedência, declarando a validade da cláusula de reajuste por faixa etária, ante a expressa previsão contratual, afastada a incidência do Estatuto do Idoso.
Deveras, de acordo com a tese jurisprudencial firmada nesta Corte, mostra- se insuficiente a análise objetiva do contrato, conforme perpetrada pelo acórdão local, sendo imperiosa a aferição da abusividade da cláusula pactuada pelas partes à luz dos critérios delineados no precedente supracitado e, notadamente, dos influxos da boa-fé objetiva e da especial proteção do idoso conferida pela Lei n. 10.741/2003, devendo, obrigatoriamente, ser afastada/inibida a conduta empresarial dissimuladora do escopo discriminatório de pessoa hipossuficiente.
Na espécie, a partir dos contornos fáticos delineados na origem - imutáveis na presente via especial - a segurada idosa participava do plano há menos de dez anos, tendo seu plano de saúde sido reajustado no percentual de 93% (noventa e três por cento) de variação da contraprestação mensal, quando do implemento da idade de 60 (sessenta) anos. A celebração inicial do contrato de trato sucessivo data do ano de 2001, cuidando-se, portanto, de relação jurídica submetida à Lei n. 9.656/1998 e às regras constantes da Resolução CONSU n. 6/98.
No que alude ao atendimento aos critérios objetivamente delimitados, a fim de se verificar a validade do reajuste, constata-se: (i) existir expressa previsão do reajuste etário na cláusula 14.2 do contrato; e (ii) os percentuais da primeira e da última faixa etária restaram estipulados em zero, o que evidencia uma considerável concentração de reajustes nas faixas intermediárias, em dissonância com a regulamentação exarada pela ANS que prevê a diluição dos aumentos em sete faixas etárias.
Por oportuno, cumpre transcrever os percentuais de reajuste, previstos na apólice do seguro saúde (fl. e-STJ 218), em razão da mudança de faixa etária:
Até 17 anos - 0
De 18 a 29 anos - 36,28%
De 30 a 39 anos - 8,22%
De 40 a 49 anos - 20,76%
De 50 a 59 anos - 74,73%
De 60 a 69 anos - 92,82%
70 anos ou mais - 0
De fato, os reajustes assim dispostos, concentrados nas faixas etárias intermediárias, discrepam dos termos propostos pela Resolução expedida pela ANS, que determina sejam os aumentos diluídos em sete segmentos etários. A aludida estipulação contratual pode ocasionar - tal como se deu na hipótese sob comento -, expressiva majoração da mensalidade do plano de saúde por ocasião do implemento dos sessenta anos de idade do segurado, impondo-lhe excessivo ônus em sua contraprestação, a tornar inviável o prosseguimento do vínculo jurídico.
De acordo com o entendimento exarado pela Quarta Turma, quando do julgamento do Recurso Especial n. 866.840-SP, acerca da exegese a ser conferida ao § 3º do artigo 15 da Lei n. 10.741/2003, “a cláusula contratual que preveja aumento de mensalidade com base exclusivamente em mudança de idade, visando forçar a saída do segurado idoso do plano, é que deve ser afastada”.
Conforme decidido, “esse vício se percebe pela ausência de justificativa para o nível do aumento aplicado, o que se torna perceptível sobretudo pela demasia da majoração do valor da mensalidade do contrato de seguro de vida do idoso, comparada com os percentuais de reajustes anteriormente postos durante a vigência do pacto. Isso é que compromete a validade da norma contratual, por ser ilegal, discriminatória”.
Na hipótese em foco, o plano de saúde foi reajustado no percentual de 93% (noventa e três por cento) de variação da contraprestação mensal, quando do implemento da idade de 60 (sessenta) anos, majoração que, nas circunstâncias do presente caso, destoa significativamente dos aumentos previstos contratualmente para as faixas etárias precedentes, a possibilitar o reconhecimento, de plano, da abusividade da respectiva cláusula.
Entretanto, conforme bem ponderado pelos Ministros Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx e Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx durante a sessão de julgamento de 23.4.2014, levando-se em conta que o comando a ser exarado na presente ação não é puramente declaratório, mas constitutivo negativo, ensejando a integração do contrato para restabelecer o equilíbrio, nos termos do § 2º do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, afigura-se necessário apurar o percentual adequado e razoável de majoração do prêmio em razão da inserção em nova
faixa de risco, com base em cálculos atuariais a serem realizados na fase de cumprimento de sentença (notas taquigráficas).
Para tanto, dever-se-á aferir a integridade dos cálculos atuariais, com base no efetivo incremento do risco pactuado, comparados com os aumentos relativos às demais faixas etárias e com os critérios estipulados pela Agência Nacional de Saúde, sempre afastado o lucro predatório.
3. Do exposto, dou provimento ao recurso especial para reconhecer a abusividade do percentual de reajuste estipulado para a consumidora maior de sessenta anos, determinando a apuração, na fase de cumprimento de sentença, do adequado aumento a ser computado na mensalidade do plano de saúde, à luz de cálculos atuariais voltados à aferição do efetivo incremento do risco contratado.
É como voto.
VOTO
O Sr. Ministro Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx: Acompanho o relator.
VOTO VENCIDO
A Sra. Ministra Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx: Sr. Presidente, data maxima venia, leio o trecho relevante do acórdão recorrido.
Nem caberia argumentar, por outro lado, a aplicação do Estatuto do Idoso (art. 15º, § 3º, da Lei n. 10.741/2003), pois, sendo o contrato anterior à vigência desse diploma, suas disposições não poderiam retroagir para apanhar e disciplinar atos jurídicos precedentemente aperfeiçoados. Em outras palavras, a pretendida nulidade implicaria afronta à relação jurídica já plenamente consolidada quando do advento da nova legislação, sendo indiferente, nesse caso, se cuidar esta de disposição de ordem pública, já que suas novas restrições somente podem ser opostas independentemente da vontade dos contratantes aos ajustes subsequentes.
Logo, a ação deve ser julgada improcedente.
O recurso especial veio fundamentado exclusivamente no art. 15 do Estatuto do Idoso, posterior ao contrato, e também em dissídio com acórdão
da relatoria da eminente Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, no qual decidiu a Terceira Turma que o Estatuto do Idoso se aplica aos contratos anteriores à edição da referida lei por se tratar de relação de trato continuado.
Esse é um dos fundamentos do voto do eminente Ministro Relator. Considero configurado o dissídio com esse acórdão da Terceira Turma sobre a aplicação ou não da lei posterior para invalidar a cláusula de contrato anterior.
Penso, data maxima venia, que não se pode dizer que a cláusula de contrato celebrado quando não havia a lei citada passou a ser nula em razão de uma lei posterior. O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência sólida firmada a partir de precedente de seu Plenário em ação de controle de constitucionalidade da relatoria do Ministro Xxxxxxx Xxxxx, no qual se estabeleceu que não é importante, para efeito de aplicação de lei posterior a contratos anteriores, a circunstância de se tratar de matéria de ordem pública.
Entende o Supremo Tribunal Federal, pela voz sempre lembrada do eminente Ministro Xxxxxxx Xxxxx, que uma lei posterior não pode tornar nulo um contrato anterior, nem sequer quanto aos efeitos futuros desse contrato. Trata-se da retroatividade mínima, a qual também é vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição. Mesmo a retroatividade mínima, alcançando efeitos futuros do contrato anterior à lei, entende o Supremo ser vedada. Isso porque, ao alcançar os efeitos futuros do contrato posteriores à lei nova, estará sendo alterada a própria relação jurídica contratual, que é anterior à lei.
Eis a ementa do célebre leading case:
“Ação direta de inconstitucionalidade.
- Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado.
- O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do S.T.F.
- Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não há necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos
celebrados no passado, sem violarem o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Carta Magna.
- Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional (PES/CP).
Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 18, “caput” e parágrafos 1º e 4º; 20; 21 e parágrafo único; 23 e parágrafos; e 24 e parágrafos, todos da Lei n. 8.177, de 1º de março de 1991.
Portanto, não vejo, data maxima venia, da posição da Terceira Turma e do entendimento do Relator quanto a esse ponto, como se possa prover um recurso cujo fundamento exclusivo é a nulidade de cláusula contratual em face de uma lei que não existia quando foi celebrado o pacto. Portanto, já que o recurso se fundamenta apenas em violação ao Estatuto do Idoso, não tenho como dar provimento a esse recurso, porque considero indene de dúvida que não se aplica o Estatuto do Idoso para fulminar de invalidade cláusulas que foram pactuadas antes de sua entrada em vigor.
Eu concordaria inteiramente com os outros itens do voto do eminente Ministro Xxxxx Xxxxx, porque penso que, mesmo antes do Estatuto do Idoso, já havia lei a proteger a parte contratante de abuso discriminatório. Com efeito, havia o Código do Consumidor; havia o art. 14 da Lei n. 9.656/1998 e resoluções da ANS, invocados no voto do Relator. Todas essas normas poderiam ser citadas para que se alcançasse a solução do voto do eminente Relator, que me reservo para acompanhar quando no recurso houver sido indicada violação do Código de Defesa do Consumidor ou da Lei de Planos de Saúde.
Portanto, data maxima venia, conheço do recurso especial e nego-lhe provimento.
VOTO
O Sr. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx: Sr. Presidente, peço vênia à Ministra Xxxxxx Xxxxxxxx para acompanhar o Relator na versão final de seu voto.
Dou parcial provimento ao recurso especial para afastar o fundamento adotado pela Corte local e determinar o retorno dos autos à origem, a fim de que prossiga na apreciação dos apelos ordinários das partes à luz dos critérios delineados.
COMENTÁRIO DOUTRINÁRIO
Rizzatto Nunes1
1. BREVES APONTAMENTOS ACERCA DOS FATOS E DAS QUESTÕES JURÍDICAS ABORDADAS NO ACÓRDÃO
O cerne da controvérsia está na verificação da validade ou invalidade de cláusula do contrato de seguro saúde firmado no ano de 2001, que previu a variação dos prêmios mensais em razão da mudança de faixa etária do segurado, à luz da proteção especial conferida às pessoas idosas pelo Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003)
O recurso especial foi afetado para julgamento da Segunda Seção, uma vez que foi detectada divergência de entendimentos no âmbito das Turmas de Direito Privado, consubstanciada nos seguintes entendimentos: a) “É abusiva a cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade de plano de saúde em decorrência unicamente da mudança de faixa etária, no caso de contratantes idosos” 2 ; b) “Não é abusiva a cláusula contratual que prevê o aumento da mensalidade de plano de saúde em decorrência unicamente da mudança de faixa etária, no caso de contratantes idosos, devendo eventual ilegalidade ser analisada em cada caso”3.
No julgamento, por maioria de votos, prevaleceu o entendimento do Senhor Ministro Relator Xxxxx Xxxxx (vencida apenas a Senhora Ministra Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx) nos seguintes termos, resumidamente: a previsão de reajuste de mensalidade de plano de saúde em decorrência da mudança de
1 Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (aposentado). Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC/SP; Livre-Docente em Direito do Consumidor pela mesma Universidade; Professor nas cadeiras de Direito do Consumidor, Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito. Membro da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Advogado e escritor.
2 AgRg no AREsp 257.898/PR, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, Terceira Turma, julgado em 07.11.2013, DJe 25.11.2013; AgRg no AREsp 95.973/RS, Rel. Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 06.08.2013, DJe 12.08.2013; e AgRg nos EDcl no REsp 1.310.015/AP, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 11.12.2012, DJe 17.12.2012.
3 REsp 866.840/SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ Acórdão Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 07.06.2011, DJe 17.08.2011; e AgRg no REsp 1.299.481/RS, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxx, Terceira Turma, julgado em 06.11.2012, DJe 13.11.2012.
faixa etária de segurado idoso, nos contratos firmados antes da edição da Lei 10.741/2003, não configura, por si só, cláusula abusiva, devendo sua compatibilidade com a boa-fé objetiva e a equidade ser aferida em cada caso concreto.
E, o caso concreto levado a julgamento tinha as seguintes características e chegou ao resultado abaixo apontado:
a) quando a segurada-autora da ação completou 60 (sessenta) anos de idade, havia transcorrido seis anos de relação contratual entre ela e a seguradora- ré;
b) naquele momento a segurada teve seu prêmio mensal do seguro saúde aumentado em 93% (noventa e três por cento), passando de R$ 636,19 em setembro de 2007 para R$ 1.226,63 em outubro do mesmo ano, com base na cláusula 14.2 do contrato firmado em 2001;
c) o juiz de primeiro grau decretou a nulidade da referida cláusula, calcado na assertiva de que “ao completar 60 anos, a autora se viu amparada pelo Estatuto do Idoso, que já vigorava na época, e, consequentemente, impossibilitada de sofrer reajustes em sua mensalidade em razão da mudança de faixa etária”;
d) Já o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença de procedência, declarando a validade da cláusula de reajuste por faixa etária, ante a expressa previsão contratual, afastada a incidência do Estatuto do Idoso;
e) a segurada xxxxx participava do plano há menos de dez anos. A celebração inicial do contrato de trato sucessivo data do ano de 2001, cuidando- se, portanto, de relação jurídica submetida à Lei 9.656/98 e às regras constantes da Resolução CONSU 6/98;
f ) no que alude ao atendimento aos critérios objetivamente delimitados, a fim de se verificar a validade do aumento, constatou-se existir expressa previsão do reajuste na cláusula 14.2 do contrato, mas os percentuais da primeira e da última faixa etária restaram estipulados em zero, o que evidenciou uma considerável concentração de reajustes nas faixas intermediárias. Eis as faixas previstas no contrato firmado: até 17 anos – 0; de 18 a 29 anos - 36,28%; de 30
a 39 anos - 8,22%; de 40 a 49 anos - 20,76%; de 50 a 59 anos - 74,73%; de 60
a 69 anos - 92,82%; 70 anos ou mais – 0.;
g) os reajustes assim dispostos, concentrados nas faixas etárias intermediárias, discrepam dos termos propostos pela Resolução expedida pela
ANS, que determina sejam os aumentos diluídos em sete segmentos etários. Daí que a aludida estipulação contratual ocasionou expressiva majoração da mensalidade do plano de saúde por ocasião do implemento dos 60 anos de idade da autora-segurada, impondo-lhe excessivo ônus em sua contraprestação, a tornar inviável o prosseguimento do vínculo jurídico;
h) levando-se em conta que o comando a ser exarado na ação não era puramente declaratório, mas constitutivo negativo, ensejando a integração do contrato para restabelecer o equilíbrio, nos termos do § 2º do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, afigurou-se necessário apurar o percentual adequado e razoável de majoração do prêmio em razão da inserção em nova faixa de risco, com base em cálculos atuariais a serem realizados na fase de cumprimento de sentença. Para tanto, ficou decidido e determinado que fosse aferida a integridade dos cálculos atuariais, com base no efetivo incremento do risco pactuado, comparados com os aumentos relativos às demais faixas etárias e com os critérios estipulados pela Agência Nacional de Saúde, sempre afastado o lucro predatório (esse foi o resultado do julgamento).
2. ANÁLISE TEÓRICA E DOGMÁTICA DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO
O decisum pautou-se na noção de proporcionalidade da relação contratual visando preservar o equilíbrio atuarial do plano privado de assistência à saúde, observada sua natureza jurídica sinalagmática, e na medida em que o aumento da idade dos segurados sempre importa em incremento do risco contratado indo repercutir nos custos do serviço prestado pelo fornecedor. E esse princípio protege o consumidor idoso (especialmente vulnerável) de eventual conduta abusiva do fornecedor, voltada a inviabilizar a manutenção do contrato cativo de longa duração, mediante a estipulação de contraprestação excessivamente onerosa, sem observância de outros dois princípios, o da boa-fé objetiva e o da equidade.
A base legal da decisão está definida no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Com efeito, o CDC reconhece um fato4: o de que o consumidor é vulnerável na medida em que não só não tem acesso ao sistema produtivo como
4 “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;”
não tem condições de conhecer seu funcionamento nem de ter informações sobre o resultado, que são os produtos e serviços oferecidos.
Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade financeira que, via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômico-financeira e, às vezes, até superior à dos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral. No caso de consumidor idoso, a vulnerabilidade é maior e a lei dá, por isso, mais proteção5.
No sistema brasileiro que regula as relações de consumo, o legislador optou explicitamente pelo princípio da boa-fé. É verdade que no CDC o fez em dois pontos não muito próprios: o primeiro no capítulo da política nacional de relações de consumo (art. 4º, III6), e o segundo na seção das cláusulas abusivas (art. 51, IV7), quando o mais adequado seria estabelecer o princípio expressamente como cláusula geral.
De qualquer maneira, como no art. 4º, III, a boa-fé aparece como princípio (é o que diz o caput) e como o inciso IV do art. 51 deve ser interpretado como cláusula geral, condição para as demais, não resta dúvida de que no sistema da Lei n. 8.078 a boa-fé é princípio e cláusula geral.
A boa-fé que o CDC incorpora é a chamada boa-fé objetiva, diversa da subjetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca
5 Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...)
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;”
6 “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...)
III — harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa- fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”
7 “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...)
IV — estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.
de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita na sua legitimidade porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no art. 1.561, quando trata dos efeitos do casamento putativo8, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé9 etc..
Já a boa-fé objetiva pode ser definida como uma boa regra de conduta, isto é, como a imposição de um dever para as partes agirem conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, mas aquele das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, normalmente, há um desequilíbrio de forças.
Entretanto, para chegar a um equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado para um não o será para outro e também pela análise do caso concreto, exatamente como foi feito na decisão ora analisada. A abusividade acabou por ser encontrada no caso específico da autora-segurada e não pela avaliação da cláusula inserida no contrato analisado em abstrato. O desequilíbrio e eventual abuso foi aferido no caso concreto.
A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não exige a verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes.
E, como antecipado acima, a Lei n. 8.078 incluiu no elenco exemplificativo das nulidades do art. 51 a cláusula incompatível com a boa-fé.
8 “Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.”
9 “Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.”
“Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.”
No entanto, a inserção da boa-fé como elemento nulificante de uma cláusula somente pode ser entendida se ela for erigida à condição de cláusula geral, norteadora das demais cláusulas contratuais. Isso porque, tecnicamente, quando o intérprete procura identificar alguma violação à boa-fé objetiva, deve, naturalmente, ler e interpretar todas as cláusulas contratuais, todo o contrato. Logo, mesmo constando do rol do art. 51, a condição da boa-fé tem qualidade de cláusula geral.
Dessa maneira percebe-se que a cláusula geral de boa-fé permite que o juiz crie uma norma de conduta para o caso concreto, atendo-se sempre à realidade social e a situação real do consumidor, conforme, repito, foi decidido. Além disso, anoto que essa situação remete à questão da equidade, que comento na sequência.
Observo inicialmente que o conceito de equidade a ser examinado pelo intérprete foi também erigido à condição de cláusula geral, uma vez que aparece ao lado da boa-fé no inciso IV do art. 51.
E, naturalmente, para o intérprete o primeiro sentido de equidade é o antigo e clássico conceito aristotélico. Como expõe o grande filósofo: “O que faz surgir o problema é que o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmação universal do que seja correto. (...). Portanto, quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não é abrangido pela declaração universal, é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão (...). Por isso o equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça — não à justiça absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade. (...). Torna-se assim bem claro o que seja o equitativo, que ele é justo e é melhor do que uma espécie de justiça”10.
Mas, como a equidade aparece no CDC na condição de cláusula geral, funciona como princípio de equidade contratual, determinando que o intérprete busque encontrar e manter as partes em equilíbrio na relação obrigacional estabelecida, com o fim de alcançar uma justiça contratual. Assim, por essa via da equidade chega-se ao princípio da equivalência. Este outro princípio (da equivalência contratual) tem aplicação na lei consumerista, mas sempre
10 Xxxxxxxxxxx. Ética a Nicômaco, Livro V, Cap. X.
com vistas à manutenção de um equilíbrio entre prestações e contraprestações em relação não só ao objeto, mas também às partes, na medida em que é o consumidor vulnerável. Tudo, exatamente como foi decidido no presente caso pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Anoto ainda que, também como decidido, o CDC permite a modificação e a revisão de cláusulas, mas pretende a manutenção do contrato, conforme firmado no § 2º de seu art. 5111. É a partir desse princípio que se pode pensar na eventual modificação das cláusulas contratuais e na revisão das mesmas, o que também foi adotado na decisão em análise.
Por fim, o acórdão mostra como no sistema jurídico brasileiro é possível interpretar-se e aplicar as várias leis existentes a partir de um diálogo entre elas, como bem deixou consolidada a doutrina, em especial a trazida por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx: o diálogo das fontes é fundamental para o funcionamento racional e equilibrado das normas jurídicas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme acima exposto, a decisão ora analisada é um bom exemplo de aplicação dos princípios que norteiam as relações contratuais de consumo e que estão estabelecidos no CDC. É, também, um bom exemplo de como se deve interpretar as várias normas jurídicas estabelecidas, visando um diálogo entre elas para, com isso, cumprir os mandamentos legais de manutenção dos contratos, que devem viger de forma equilibrada e de acordo com os princípios da boa-fé objetiva e da equidade. Desse modo, o Xxxxxxx comentado atingiu o que sempre se espera para a resolução do conflito: a Justiça no caso concreto.
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11 “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) § 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.”
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XXXXX, Clóvis do Couto e. O princípio da boa-fé e as condições gerais dos negócios. Anais Jurídicos, Curitiba: Xx. Xxxxx, 0000.
XXXXXXXX, Xxxxx. El principio general de la buena fe. 2. ed. Madrid: Civitas, 1986.
RECURSO ESPECIAL N. 1.378.707-RJ (2013/0099511-2)
Relator: Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx Recorrente: Omint Serviços de Saúde Ltda. Advogados: Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx da Paz e outro(s) Recorrido: Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx
Advogado: Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx: Omint Serviços de Saúde Ltda.
Advogados: Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx e outro(s) Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx da Paz
Agravado: Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx
Advogado: Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxx
EMENTA
Recurso especial. Plano de saúde. Serviço de home care. Cobertura pelo plano de saúde. Dano moral.
1 - Polêmica em torna da cobertura por plano de saúde do serviço de “home care” para paciente portador de doença pulmonar obstrutiva crônica.
2 - O serviço de “home care” (tratamento domiciliar) constitui desdobramento do tratamento hospitalar contratualmente previsto que não pode ser limitado pela operadora do plano de saúde.
3 - Na dúvida, a interpretação das cláusulas dos contratos de adesão deve ser feita da forma mais favorável ao consumidor. Inteligência do Enunciado Normativo do art. 47 do CDC. Doutrina e jurisprudência do STJ acerca do tema.
4 - Ressalva no sentido de que, nos contratos de plano de saúde sem contratação específica, o serviço de internação domiciliar (home care) pode ser utilizado em substituição à internação hospitalar, desde que observados certos requisitos como a indicação do médico assistente, a concordância do paciente e a não afetação do equilíbrio
contratual nas hipóteses em que o custo do atendimento domiciliar por dia supera o custo diário em hospital.
5 - Dano moral reconhecido pelas instâncias de origem. Súmula
n. 7-STJ.
6 - Recurso especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, após o voto-vista do Sr. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx (Presidente) (voto-vista), Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxx e Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 26 de maio de 2015 (data do julgamento). Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Relator
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx: Trata-se de recurso especial interposto por Omint Serviços de Saúde Ltda., fundado na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado:
Agravo inominado. Plano de saúde. Home care. Suspensão. Abusividade. Decisão da relatora que negou seguimento aos re-cursos de apelação. Sem razão a recorrente, uma vez que a decisão monocrática está pautada em jurisprudência dominante deste Tribunal, no sentido de que o tratamento domiciliar, conhecido como home care, é desdobramento do atendimento hospitalar contratualmente previsto e, por tal razão, a limitação ou recusa constitui conduta abusiva e ilegal, ferindo a boa-fé objetiva e ensejando indenização por dano moral. Desprovimento do recurso.
Opostos embargos de declaração, restaram rejeitados com a aplicação da multa prevista no parágrafo único do art. 538 do CPC.
No recurso especial, fundado na alínea a do permissivo constitucional, o recorrente alega (i) violação ao art. 538 do CPC, uma vez que o recurso
foi oposto para fins de prequestionamento; (ii) violação ao art. 557 do CPC, pois entende que o recurso de apelação não poderia te sido decidido de forma monocrática pela então Relatora; (iii) violação ao art. 12 da Lei n. 9.656/1998 e ao art. 54, § 4º, do CDC, porquanto entende que “não constando o serviço de home care do rol de coberturas previstas no contrato de plano de saúde do recorrido, não pode a Omint ser obrigada a custear as referidas despesas” (fl. 615, e-STJ) e (iv) ao fim, sustenta a inexistência do dano moral.
Contrarrazões ao recurso especial às fls. 638-650, e-STJ. É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx (Relator): Eminentes colegas. A questão central devolvida à apreciação deste colegiado situa-se em torno da verificação do dever da empresa operadora de plano de saúde de custear o tratamento domiciliar de paciente mediante o serviço conhecido como home care.
A questão é relevante, pois o paciente é portador de doença obstrutiva crônica, tendo sido essa forma de tratamento prescrita por seu médico assistente até que possa caminhar sem auxilio da equipe de enfermagem.
Ressalto que tanto o Juiz sentenciante quanto o Tribunal de origem, à luz das provas apresentadas, julgaram procedente o pedido para que o referido serviço seja prestado.
Segue, para efeito de cotejo, o que restou considerado pelo Tribunal de origem para negar provimento ao recurso de apelação, in litteris:
Na espécie, é incontroverso que, antes do ajuizamento da demanda, a ré determinou a redução do tempo do home care, objetivando a respectiva suspensão, sem comprovar, contudo, que o paciente não mais necessitava do referido atendimento.
O documento de fl. 18, em contrapartida, comprova a necessidade de manutenção do serviço.
A ressaltar que a circunstância de ter sido autorizado o serviço em epígrafe depois do ajuizamento da demanda, mas antes da decisão que concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, não torna lícita a recusa inicial e só influi no arbitramento da indenização.
A alegação da empresa recorrente é de que, “não constando o serviço de home care do rol de coberturas previstas no contrato de plano de saúde do recorrido, não pode a Omint ser obrigada a custear as referidas despesas” (fl. 615, e-STJ).
Na realidade, o contrato de plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura securitária, mas não pode restringir a modalidade de tratamento a ser ministrado ao paciente.
Mais, o serviço de home care, conforme corretamente indicado no acórdão recorrido, constitui “desdobramento do atendimento hospitalar contratualmente previsto” (e-STJ, fl. 588).
Não se esqueça, nesse ponto, a jurisprudência sumulada desta Corte de que não pode haver sequer limitação de prazo de internação hospitalar, verbis:
É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado. (Súmula n. 302, 2ª Seção, julgado em 18.10.2004, DJ 22.11.2004, p. 425)
O serviço de home care, quando necessário, como no caso, mostra-se, a rigor, menos oneroso para o plano de saúde do que manter o paciente hospitalizado.
Além disso, a alegação da ausência de previsão contratual não beneficia o recorrente, pois, na dúvida, acerca das estipulações contratuais, deve preponderar a mais favorável ao segurado como aderente de um contrato de adesão.
Trata-se, na realidade, de hipótese clara de aplicação das regras especiais de interpretação dos contratos de adesão ou dos negócios jurídicos estandardizados, que estão devidamente positivadas em nosso sistema jurídico.
Assim, o aparente conflito interpretativo de cláusulas contratuais deve ser solucionado em benefício do consumidor, nos termos do disposto no art. 47 do CDC, verbis:
Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
Note-se que os contratos de planos de saúde, além de constituírem negócios jurídicos de consumo, estabelecem a sua regulamentação mediante cláusulas contratuais gerais, ocorrendo a sua aceitação por simples adesão pelo segurado.
Consequentemente, a interpretação dessas cláusulas contratuais segue as regras especiais de interpretação dos negócios jurídicos estandardizados, inclusive o disposto no art. 47 do CDC.
A principal regra especial de interpretação ligada as cláusulas predispostas em contratos de adesão ou em condições contratuais gerais é exatamente esta, estabelecendo que, havendo dúvidas, imprecisões ou ambigüidades no conteúdo de um negócio jurídico, deve-se interpretar as suas cláusulas do modo mais favorável ao aderente.
Como o predisponente teve a possibilidade de pré-estabelecer todo o conteúdo do contrato, as imprecisões, dúvidas e ambigüidades das cláusulas predispostas interpretam-se contrariamente aos seus interesses.
Portanto, esta regra estabelece, em síntese, que, na dúvida, a interpretação será contrária aos interesses do predisponente ou a mais favorável aos do aderente.
Representa a versão moderna do princípio, que lança suas raízes no direito romano, da interpretatio contra stipulatorem ou da interpretatio contra proferentem, acolhida pelas codificações modernas, como o art. 1.162 do Código Civil Francês de 1804 (“Dans le doute, la convention s’interprète contre celui qui a stipule et en faveur de celui qui a contracté l’obligation.” ou, em tradução livre, “na dúvida, interpreta-se a convenção contra aquele que a estipulou e em favor daquele que contraiu a obrigação”).
Não se deve, entretanto, confundir esse antigo cânone hermenêutico do direito romano com a sua versão moderna forjada para a interpretação dos contratos estandardizados.
Xxxx Xxxxx anota com pertinência que não se trata de “mera transcrição do princípio romanístico da interpretatio contra stipularorem”, pois o fenômeno da contratação estandardizada era ignorado no mundo romano, mas de uma diretiva objetiva para “tutela do contratante débil contra as imposições dos esquemas negociais unilateralmente predispostos.” (XXXXX, Xxxx. Contratti Standard. Milano: Giuffrè, 1989, p. 220).
No direito alemão, a jurisprudência construiu a regra de que, nas condições contratuais gerais, a interpretação deve ser desenvolvida em favor da parte que se submete e contra quem predispôs as condições negociais gerais (Unklarheitenregel). Ela foi consagrada pelo § 5º da AGB Gesetz de 1976, quando estabeleceu: “Por ocasião da interpretação das condições negociais gerais, as dúvidas correm a cargo do estipulante.”
Xxxxxx Xxxx explica, ainda, que, “para a aplicação do § 5º, é indispensável que a cláusula litigiosa seja efetivamente ambígua, sendo suscetível de várias significações. A ‘regra da imprecisão’ não permite que se confira a uma cláusula clara uma interpretação favorável ao cliente e desfavorável ao estipulante”. (XXXX, Xxxxxx. Republique Fédérale d’Allemagne. Revue internationale de droit comparé, Paris, ano 34, v. 3, 1982, p. 924)
Nos Estados Unidos, entre os critérios de interpretação dos standard forms contracts, está também incluída a contra proferentem rule.
Xxxxxxxxxx observa que uma das técnicas de limitação judicial das cláusulas dos standardized agreements é a interpretação da linguagem contra proferentem. Cita como exemplo o caso Galligan v. Xxxxxxxx que versava acerca de um locatário de um prédio que se lesionou em uma queda no gramado (lawn) do imóvel, tendo processado o proprietário por manutenção negligente. No contrato predisposto, havia uma cláusula que excluía a responsabilidade (liability for injury) em diversas situações pelo uso de elevadores, escadas e, inclusive, da calçada (sidewalk). A Corte interpretou restritivamente essa cláusula contra o proprietário, entendendo que gramado (lawn) não se confunde com calçada (sidewalk), e não afastando a responsabilidade. (XXXXXXXXXX, X. Allan. Fransworth on Contracts. Boston: Little, Brown and Company, 1990. p. 484- 485).
No direito português, a regra da interpretatio contra proferentem foi acolhida de modo peculiar pelo Decreto-Lei n. 446/1985, estabelecendo o seu art. 11: “1. As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá- las, quando colocado na posição de aderente real. 2. Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”
Xxxxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx explicam que a interpretação da cláusula é feita em dois momentos. Inicialmente, tenta-se “o sentido deduzido pelo aderente médio colocado na posição de aderente real” no esquema geral de direito privado (art. 236, n. do Código Civil português). Prosseguem os autores português: “Esgotadas todas as hipóteses, quando se mantenha a ambigüidade de alguma cláusula contratual incluída num contrato singular, aplica-se a regra do
n. 2: prevalece o sentido mais favorável ao aderente.” E arrematam no sentido de que esses deveres de clareza têm sua fonte no princípio da boa-fé. (XXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxx, e XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx
x. Xx Xxx Xx xx Xxxxxxx Xxxxx. Xxxxxxx: Almedina, 1990, p. 32).
A Diretiva Européia n. 93/13/CEE, em seu art. 5º, estatuiu que, “em caso de dúvida sobre o sentido de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável para o consumidor.”
No direito brasileiro, o Código Comercial de 1850, ao elencar em seu art. 131 as principais regras de interpretação, concluía o rol com a seguinte norma: “5. nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-á em favor do devedor.” Essa regra, porém, nunca recebeu a devida atenção pela doutrina e pela jurisprudência.
Apenas mais recentemente, na esteira do direito comparado, quando a regra foi consagrada pelo Código do Consumidor de modo bastante amplo, para todos os contratos de consumo, e não apenas para os contratos de adesão (Art. 47), passou a ser devidamente valorizada. Essa regra é complementada pelo art. 54, § 3º, do CDC (“Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor”).
Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx anota, com sua habitual clareza, o seguinte:
“Em outras palavras, essa é a sábia regra do art. 47 do CDC: quem escreve não tem a seu favor o que escreveu. E não somente as cláusulas ambíguas dos contratos de adesão se interpretam em favor do aderente, contra o estipulador, mas o contrato de consumo como um todo. A regra geral, assevera Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, é que se interprete o contrato de xxxxxx, especialmente as suas cláusulas dúbias, contra aquele que redigiu o instrumento. É a famosa interpretação contra proferente ((CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de Direito do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 143).
O Código Civil de 2002 também acolheu expressamente essa regra especial de interpretação para os contratos de adesão no art. 423, mas estabeleceu um enunciado normativo mais restritivo: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”.
Além de tratar apenas dos contratos de adesão, o legislador do Código Civil estabeleceu como pressuposto para a incidência da regra a ocorrência de cláusulas ambíguas ou contraditórias.
Não se exige que o contratante favorecido pela obscuridade ou ambigüidade seja o redator das cláusulas contratuais, podendo também ocorrer que ele tenha adotado um modelo existente.
Nesse ponto, merece lembrança a possibilidade dos contratos de dupla adesão em que as duas partes acolhem um modelo pré-estabelecido.
No Brasil, esses contratos de dupla adesão têm aparecido com cada vez maior freqüência nos negócios celebrados por empresas controlados pelo poder público em que o seu conteúdo é estabelecido por regulamentos administrativos elaborados por agências reguladoras (ex.: telefonia, energia elétrica, consórcios, seguro, sistema financeiro de habitação, saúde suplementar).
De todo modo, a inspiração do legislador brasileiro na elaboração da regra do art. 423 do novo Código Civil foi a norma do art. 1.370 do Código Civil Italiano: “As cláusulas inseridas nas condições gerais dos contratos (art. 1.341) ou em módulos ou formulários predispostos por um dos contratantes (art. 1.342) interpretam-se, na dúvida, em favor do outro.”
Xxxx Xxxxx insere essa regra nos modos de controle judicial do conteúdo
dos contratos de adesão ou das condições contratuais gerais.
Xxxxx Xxxx explica que essa regra de interpretação, no direito italiano, tem sido acolhida pela jurisprudência com caráter subsidiário para as hipóteses em que exista dúvida ou obscuridade na cláusula, sendo, por isso, raras as decisões que fazem uso da norma do art. 1.370 do CC Italiano para o controle de contratos de adesão. (XXXX, Xxxxx, e RAPISARDA, Xxxxxxxx. Il Controllo dei Contratti per Adesione. Rivista del Diritto Commerciale, Ano LXXXVII, 1989, p. 556).
No direito brasileiro, diversamente, esta tem-se constituído, na prática, na principal regra de interpretação dos negócios jurídicos estandardizados, sendo utilizada, com freqüência, expressa ou implicitamente, pela jurisprudência dos principais tribunais brasileiros.
O Superior Tribunal de Justiça, invocando as regras do art. 47 e do art. 54,
§ 3º, do CDC, tem feito uso com freqüência dessa regra de interpretação para negócios estandardizados, inclusive em contratos de seguro-saúde, que, via de regra, estão submetidos a condições negociais gerais.
O STJ, no caso de um segurado submetido a transplante, em que se discutia acerca da interpretação da cláusula contratual reguladora da cobertura desse tratamento, em face de sua redação dúbia, determinou o pagamento das despesas médico-hospitalares, verbis:
Direito Civil. Contrato de seguro-saúde. Transplante. Cobertura do tratamento. Cláusula dúbia e mal redigida. Interpretação favorável ao consumidor. Art. 54,
§ 4º, CDC. Recurso especial. Súmula-STJ, Enunciado n. 5. Precedentes. Recurso não-conhecido. I – Cuidando-se de interpretação de contrato de assistência médico-hospitalar, sobre a cobertura ou não de determinado tratamento, tem- se o reexame de cláusula contratual como procedimento defeso no âmbito desta Corte, a teor de seu Verbete Sumular n. cinco. II - Acolhida a premissa de que a cláusula excludente seria dúbia e de duvidosa clareza, sua interpretação deve favorecer o segurado, nos termos do art. 54, § 4º do Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, nos contratos de adesão, as cláusulas limitativas ao direito do consumidor contratante deverão ser redigidas com clareza e destaque, para que não fujam de sua percepção leiga. (STJ, 3ª T., REsp n. 311.509-SP, Relator Min. Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx, Publicado no DJ de 25.6.2001, p. 196, JBCC Vol. 193, p. 87).
Em outro caso, o recurso especial discutia a validade e a eficácia de cláusula limitativa de cobertura securitária, tendo sido feita novamente aplicação da regra interpretativa em questão, verbis:
Ações cominatória, indenização e cautelar. Contrato de cobertura médico- hospitalar (seguro-saúde). Cláusula limitativa. Contrato de adesão. Interpretação a favor do aderente. O reexame do conjunto probatório e a exegese de cláusulas contratuais são tarefas imunes ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, consoante a orientação Sumulada nos Verbetes n. 5 e n. 7. Estabelecida a premissa acerca da dubiedade da cláusula inserta em contrato de adesão, deve ela ser interpretada a favor do aderente. Ajuste do dano moral aos valores usualmente fixados pela Corte. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ, 4ª T., REsp n. 435.241-SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx Xxxxx, Publicada no DJ de 30.6.2003, p. 55.508).
Mais recentemente, merece lembrança o seguinte precedente desta Corte:
Civil. Consumidor. Seguro. Apólice de plano de saúde. Cláusula abusiva. Limitação do valor de cobertura do tratamento. Nulidade decretada. Danos material e moral configurados. Recurso especial provido.
1. É abusiva a cláusula contratual de seguro de saúde que estabelece limitação de valor para o custeio de despesas com tratamento clínico, cirúrgico e de internação hospitalar.
2. O sistema normativo vigente permite às seguradoras fazer constar da apólice de plano de saúde privado cláusulas limitativas de riscos adicionais relacionados com o objeto da contratação, de modo a responder pelos riscos somente na extensão contratada. Essas cláusulas meramente limitativas de riscos extensivos ou adicionais relacionados com o objeto do contrato não se confundem, porém,
com cláusulas que visam afastar a responsabilidade da seguradora pelo próprio objeto nuclear da contratação, as quais são abusivas.
3. Na espécie, a seguradora assumiu o risco de cobrir o tratamento da moléstia que acometeu a segurada. Todavia, por meio de cláusula limitativa e abusiva, reduziu os efeitos jurídicos dessa cobertura, ao estabelecer um valor máximo para as despesas hospitalares, tornando, assim, inócuo o próprio objeto do contrato.
4. A cláusula em discussão não é meramente limitativa de extensão de risco, mas abusiva, porque excludente da própria essência do risco assumido, devendo ser decretada sua nulidade.
5. É de rigor o provimento do recurso especial, com a procedência da ação e a improcedência da reconvenção, o que implica a condenação da seguradora ao pagamento das mencionadas despesas médico-hospitalares, a título de danos materiais, e dos danos morais decorrentes da injusta e abusiva recusa de cobertura securitária, que causa aflição ao segurado.
6. Recurso especial provido. (REsp n. 735.750-SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 14.2.2012, DJe 16.2.2012)
Enfim, esta regra da interpretatio contra proferentem tem-se constituído no principal cânone hermenêutico especial dos negócios estandardizados no direito brasileiro, tendo plena aplicação no caso diante da divergência estabelecida nas instâncias ordinárias acerca do exato sentido da cláusula limitativa da cobertura securitária.
Desse modo, deve ser reconhecida a abusividade da negativa do plano de saúde em cobrir as despesas do serviço de home care, necessário ao tratamento do paciente segurado e, em último, imprescindível para a sua própria sobrevivência.
Finalmente, mesmo nos casos de expressa exclusão da cobertura mediante o serviço de home care, tem sido reconhecida a abusividade dessa cláusula contratual.
Nesse sentido, merece lembrança o seguinte precedente específico da Quarta Turma do STJ:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Alegação de ofensa aos artigos 458, II, e 535 do CPC. Prazo prescricional. Ausência de comprovação da data da recusa do pagamento pela seguradora. Súmula n. 7-STJ. Tratamento home care. Recusa indevida. Agravo regimental não provido.
1. Não há ofensa aos artigos 458, II, e 535 do CPC, se o Tribunal dirimiu as questões que lhe foram submetidas e apresentou os fundamentos nos quais suportou suas conclusões, e manifestou-se expressamente acerca dos temas necessários à integral solução da lide.
2. Firmado no acórdão estadual que a Seguradora não se incumbiu de “demonstrar as datas em que, inequivocamente, a segurada teve seus pedidos de pagamentos de despesas negados”, termo a partir do qual se iniciaria o lapso prescricional, o exame da irresignação recursal esbarra na Súmula n. 7 do STJ.
3. De acordo com a orientação jurisprudencial do STJ, o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de cada uma, sendo abusiva a cláusula contratual que exclui tratamento domiciliar quando essencial para garantir a saúde ou a vida do segurado.
4. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag n. 1.325.939-DF, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em 3.4.2014, DJe 9.5.2014)
Portanto, não merece acolhida a alegação recursal central relativa ao serviço de home care.
Quanto a alegação de inexistência do dano moral, o pedido de reforma do acórdão recorrido não pode ser conhecido, uma vez que, no ponto, o recorrente não indicou qual dispositivo de legal federal teria sido violado pelo Tribunal de origem em razão da manutenção da condenação em danos morais imposta pela sentença, o que atrai, por analogia, a aplicação da Súmula n. 284 do STF.
Destaque-se, ainda, que a mera alegação de que o pedido de dano material foi julgado improcedente, por si só, não conduz à inevitável conclusão de que os danos morais seriam incabíveis na espécie.
Ademais, ainda que ultrapassado o referido óbice, rever tal entendimento, de que restou caracterizado o dano moral na espécie, não é possível na via estreita do recurso especial, diante do Enunciado da Súmula n. 7 deste Tribunal.
Ressalte-se, por fim, nesse tópico, que o montante arbitrado pela sentença a título de indenização por danos morais (oito mil reais), confirmado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mostra-se bastante razoável, inclusive aquém dos valores arbitrados por esta Corte em situações análogas.
Quanto à suposta ofensa ao art. 557 do CPC, constata-se que o julgamento monocrático da apelação foi apreciado pelo órgão colegiado competente do Tribunal de origem, que manteve a decisão por seus próprios fundamentos, não havendo se falar, portanto, em afronta ao princípio da colegialidade.
Ainda assim, carece de interesse recursal o recorrente, uma vez que, na esteira da jurisprudência desta Corte, se a questão for submetida ao órgão colegiado fica prejudicada a análise da questão em sede especial.
No mesmo sentido:
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Recurso especial. Processual Civil. Violação ao artigo 557 do CPC. Decisão confirmada por órgão colegiado em sede de agravo regimental. Análise prejudicada.
Fica prejudicada a análise da violação ao artigo 557 do Código de Processo Civil, quando a decisão monocrática for confirmada por julgamento colegiado. Agravo improvido. (AgRg no Ag n. 1.021.484-GO, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxx, Terceira Turma, julgado em 16.9.2008, DJe 8.10.2008)
Por fim, no tocante à aventada ofensa ao art. 538, parágrafo único, do CPC, elidir as conclusões do aresto impugnado quanto ao caráter protelatório dos embargos de declaração, demanda o revolvimento do conjunto fático- probatório dos autos, providência vedada nesta sede especial a teor da Súmula n. 7 deste Tribunal.
Nesse sentido:
Processual Civil e Administrativo. Recurso especial. Servidor público municipal. Indenização. Demora na concessão da aposentadoria. Multa por embargos protelatórios. Aplicada pelo Juízo de 1º Grau. Revisão. Reexame de provas. Súmula
n. 7-STJ. Ausência de prequestionamento. Súmula n. 282-STF.
1. Afastar as conclusões a que chegou o juízo de primeiro grau de que os embargos de declaração contra a sentença de piso foram protelatórios demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, inviável em sede de recurso especial, nos termos do Enunciado n. 7 da Súmula deste Pretório.
[...]
3. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 1.370.852-SP, Segunda Turma, Rel. Ministra Xxxxxx Xxxxxx, DJe 28.8.2013)
Administrativo e Processual Civil. Agravo regimental no agravo de instrumento. Servidor publico. Punição administrativa. Prazo prescricional. Acórdão com fundamento inatacado. Súmulas n. 283 e n. 284 do STF. Multa do art. 538 do CPC. Não afastamento. Súmula n. 7 do STJ.
[...]
2. No caso, não se pode afastar a aplicação da multa do art. 538 do CPC, pois, considerando-se que “a pretensão de rediscussão da lide pela via dos embargos declaratórios, sem a demonstração de quaisquer dos vícios de sua norma de regência, é sabidamente inadequada, o que os torna protelatórios, a merecerem a multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do CPC” (EDcl no AgRg no Ag n. 1.115.325-RS, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Quarta Turma, DJe 4.11.2011), não há como se rever a multa aplicada pelo Tribunal de origem, pois a aferição do caráter protelatório, no caso, depende do reexame fático-probatório (Súmula n.
7 do STJ), mormente à míngua de qualquer tese recursal que impugnasse o fato interruptivo descrito no acórdão a quo.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag n. 1.418.588-RJ, Primeira Turma, Rel. Ministro Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, DJe 30.11.2012)
Ante o exposto, voto no sentido de negar provimento ao recurso especial.
É o voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx: Noticiam os autos que Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx ajuizou ação ordinária contra Omint Serviços de Saúde Ltda. buscando a continuidade da prestação de serviço assistencial médico em domicílio (serviço home care), a ser custeado pelo plano de saúde. Requereu também a reparação dos danos materiais e morais sofridos pela interrupção do tratamento terapêutico-domiciliar.
A demandada, por seu turno, alegou ser legítimo o ato impugnado, pois no contrato celebrado entre as partes não havia a cobertura de internação domiciliar, tendo ocorrido a aprovação temporária do procedimento por mera liberalidade. Asseverou, ainda, que a imposição de despesas não previstas acarreta desequilíbrio contratual.
O magistrado de primeiro grau, entendendo que foi ilegal a suspensão do serviço de home care, julgou parcialmente procedente o pedido autoral para determinar a continuidade da internação domiciliar e para condenar a ré a pagar o valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais) a título de danos morais.
Interpostas apelação e apelação adesiva, ambas tiveram o seguimento negado por decisão monocrática. O agravo inominado interposto em seguida também não foi provido. O acórdão recebeu a seguinte ementa:
Agravo inominado. Plano de saúde. Home care. Suspensão. Abusividade.
Decisão da relatora que negou seguimento aos recursos de apelação.
Sem razão a recorrente, uma vez que a decisão monocrática está pautada em jurisprudência dominante deste Tribunal, no sentido de que o tratamento domiciliar, conhecido como home care, é desdobramento do atendimento hospitalar contratualmente previsto e, por tal razão, a limitação ou recusa constitui conduta abusiva e ilegal, ferindo a boa-fé objetiva e ensejando indenização por dano moral. Desprovimento do recurso (fl. 588).
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados, com imposição de multa por protelação (fl. 602).
No especial, a recorrente aponta violação dos arts. 538 e 557 do Código de Processo Civil (CPC), 54, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e 12 da Lei n. 9.656/1998.
Sustenta, em síntese: a) ilegalidade na aplicação da multa protelatória, pois os embargos de declaração opostos visavam o prequestionamento de dispositivos legais, b) nulidade processual, visto que as apelações interpostas não comportavam julgamento monocrático, c) legalidade do ato de interrupção da internação domiciliar, porquanto o serviço de home care não está incluído no rol de coberturas previstas no plano de saúde contratado, não sendo desdobramento da cobertura hospitalar, e d) inexistência de dano moral.
Levado o feito a julgamento pela egrégia Terceira Turma, em 12.5.2015, após a prolação do voto do Relator, Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, negando provimento ao recurso especial, pedi vista dos autos para melhor exame da controvérsia e ora apresento meu voto.
É o relatório.
Cinge-se a controvérsia a saber se o tratamento domiciliar (home care) constitui desdobramento do tratamento hospitalar, devendo ser custeado pelas operadoras de plano de saúde mesmo na ausência de contratação específica.
De início, impende asseverar que, segundo a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n. 11/2006 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), as ações de promoção à saúde, prevenção, tratamento de doenças e reabilitação desenvolvidas em domicílio (atenção domiciliar) podem se dar nas modalidades de (i) assistência domiciliar, entendida como o conjunto de atividades de caráter ambulatorial, programadas e continuadas desenvolvidas em domicílio, e (ii) internação domiciliar, conceituada como o conjunto de atividades prestadas no domicílio, caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente com quadro clínico mais complexo e com necessidade de tecnologia especializada.
No âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, a atenção domiciliar foi disciplinada no art. 19-I da Lei n. 8.080/1990, incluído pela Lei n. 10.424/2002, bem como na Portaria n. 2.029/2011 do Ministério da Saúde.
Ademais, a assistência e a internação domiciliares também estão regulamentadas nas Resoluções n. 270/2002 e n. 464/2014 do Conselho Federal
de Enfermagem (Cofen) e na Resolução n. 1.668/2003 do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Todavia, na Saúde Suplementar, o tratamento médico em domicílio não foi incluído no rol de procedimentos mínimos ou obrigatórios que devem ser oferecidos pelos planos de saúde. Com efeito, o home care não consta das exigências mínimas para as coberturas de assistência médico-ambulatorial e de internação hospitalar previstas na Lei n. 9.656/1998.
Apesar disso, a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, atenta aos princípios que regem o setor, tais como a incorporação de ações de promoção da saúde e prevenção de riscos e doenças e a integralidade das ações na segmentação contratada (art. 3º, II, III e parágrafo único, da Resolução Normativa - RN n. 338/2013), assim normatizou a questão na RN/ANS n. 338/2013:
Das Coberturas Assistenciais
(...)
Art. 13. Caso a operadora ofereça a internação domiciliar em substituição à internação hospitalar, com ou sem previsão contratual, deverá obedecer às exigências previstas nos normativos vigentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e nas alíneas c, d e e do inciso II do artigo 12 da Lei n. 9.656, de 1998.
Parágrafo único. Nos casos em que a assistência domiciliar não se dê em substituição à internação hospitalar, esta deverá obedecer à previsão contratual ou à negociação entre as partes (grifou-se).
Verifica-se, desse modo, que a atenção domiciliar nos planos de saúde não foi vedada, tampouco tornou-se obrigatória, devendo obedecer à previsão contratual ou à negociação entre as partes, respeitados os normativos da Anvisa no caso da internação domiciliar. Além disso, dependendo do contrato, nem sempre pacientes que necessitem de cuidados domiciliares especiais se enquadrarão nos critérios de adoção do serviço de home care, dada a gama de situações peculiares existentes.
Feitas essas considerações, falta definir se nos casos recomendados de internação domiciliar em substituição à internação hospitalar há a obrigatoriedade de custeio desse tratamento pela operadora de plano de saúde na ausência de prévia contratação.
Como cediço, o serviço de saúde domiciliar não só se destaca por atenuar o atual modelo hospitalocêntrico, trazendo mais benefícios ao paciente, pois
terá tratamento humanizado junto da família e no lar, aumentando as chances e o tempo de recuperação, sofrendo menores riscos de reinternações e de contrair infecções e doenças hospitalares, mas também, em muitos casos, é mais vantajoso para o plano de saúde, já que há a otimização de leitos hospitalares e a redução de custos: diminuição de gastos com pessoal, alimentação, lavanderia, hospedagem (diárias) e outros.
Sobre o tema, a seguinte lição de Xxxxx Xxxxxx:
(...)
1.11. Programas de Saúde - Home Care
Medicina domiciliar, do termo inglês Home Care, cuidado no lar, designa um conjunto de procedimentos hospitalares que podem ser feitos em casa, visando uma recuperação mais rápida de pacientes crônicos dependentes, crônicos dependentes agudizados, gestantes, pós-cirúrgicos e terminais, dentro de um atendimento personalizado, com a participação da família no tratamento, humanizando-o e evitando a possibilidade de infecção hospitalar. (...)
(...)
(...) No final do século XX este programa teve um grande crescimento, passando a ser utilizado também para evitar co-patologias decorrentes de longa hospitalização e infecção hospitalar.
(...) Claro que a Gestão do Plano considera o custo/benefício, mesmo assim, nem todos os casos podem ser objeto de home care; somente aqueles com indicação médica de alta com cuidados domiciliares e onde existe na família um cuidador. A Lei n. 9.656/1998 instituiu procedimentos mínimos a serem cobertos pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde. A maioria dos planos de saúde cobre este tipo de serviço, pelas vantagens que traz para o paciente e para o Plano.
Alguns benefícios terapêuticos não são atingidos em unidade hospitalar, pois o atendimento, dentro da atmosfera familiar, proporciona uma recuperação mais rápida e eficaz num espaço menos agressivo e afastado o risco de infecções hospitalares e quadros depressivos, comuns durante hospitalizações prolongadas.
Para que o Plano de Saúde admita o procedimento é necessária uma análise da viabilidade da implantação, inclusive a real necessidade de um atendimento domiciliar, a indicação pelo médico assistente, a solicitação da família e a concordância do próprio paciente. Nestes casos, surgem as Fichas de Solicitação de Atendimento em Domicílio (SAD).
O auditor do Plano deverá opinar para liberar o procedimento que exige várias figuras, como a do cuidador e os membros que compõem a equipe (médico, nutricionista, assistente social, enfermagem, fisioterapia, psicologia, fonoaudióloga).
(...)
Neste programa o paciente não arca com o custo dos medicamentos e de materiais para curativo, seringas etc., que ficam por conta do Plano de Saúde, como quando ele está internado. O lixo médico produzido é recolhido pelo Programa, pelo menos uma vez por semana, não misturando o resíduo do tratamento com o doméstico.
O tempo de duração do home care dependerá do caso. Às vezes a avaliação é no sentido de que o paciente não necessita de acompanhamento 24 horas por dia, apenas 12, por exemplo. Se a família desejar o atendimento integral, deverá pagar a diferença.
(XXXXXX, Xxxxx. Plano de Saúde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 46-48 - grifou-se)
Relevantes também são as seguintes ponderações de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx:
(...)
Vários estudos apontam que o cuidado domiciliar diminui o tempo médio de internação hospitalar, reduz o número de reinternações, reduz custos de atenção à saúde, aumenta a aderência ao tratamento do paciente sob assistência domiciliar. Além disso, nota-se a melhora da qualidade de vida do paciente e familiar (...). Portanto, tal estratégia proporciona maior conscientização ao paciente e cuidador do quadro patológico atual e, consequentemente, maior autonomia no tratamento, bem como as prioridades de cuidado ao paciente no domicílio são muito diferentes do cuidado realizado no hospital.
(...)
Os custos relacionados ao sistema de saúde são sempre questões preocupantes para os envolvidos com a área. Estudos mostram que as intervenções na assistência domiciliária equivalem a aproximadamente um terço do custo das intervenções realizadas em ambiente hospitalar sendo seu custo médio diário de paciente em cuidado domiciliar de R$ 6,48, bem inferior ao dos pacientes internados.
O modelo de cuidado domiciliar apresenta inúmeras vantagens para instituições e sistemas de saúde; entre elas, reduzir o custo do tratamento, diminuir o número de diárias, baixar os custos dos serviços de saúde (gastos com instalações e equipamentos), não pagar serviços cobrados por pacotes (como taxa de aplicações soro, etc.).
Esta modalidade de cuidado nas instituições permite uma maior rotatividade de seus leitos, otimizando a dinâmica de ocupação dos mesmos. A transferência dos pacientes crônicos e convalescentes para o cuidado domiciliar libera o leito hospitalar, abrindo espaço para pacientes instáveis que precisam realmente de
UTI, cirurgias, politraumatizados e outras enfermidades agudas, ampliando assim a oferta de leitos, diminuindo a média de permanência hospitalar, as reinternações e, consequentemente, os custos assistenciais. Além disso, o paciente crônico gera menor receita em sua estada/dia para as instituições e sistemas de saúde, o que o tornaria um paciente ideal para ser indicado ao cuidado domiciliar.
A otimização de leitos acarretará uma maior margem de lucro pelo fato da instituição não precisar elevar o seu efetivo de pessoal, mas permitirá capacitá- lo melhor com treinamentos mais específicos. Por sua vez, o dinheiro que seria destinado a obras de expansão poderia ser canalizado para a melhoria do atendimento, aquisição de equipamentos mais modernos e outras prioridades antes não previstas.
A implantação de serviços de saúde domiciliar pode ser a estratégia que possibilitará um maior aproveitamento dos leitos hospitalares, oferecendo serviços de saúde ao público com maior eficiência e economia possíveis, reduzindo custos através da diminuição tanto do tempo das estadas nos hospitais quanto dos índices de internação, hospitalar.
(...)
É importante ressaltar, no entanto, que isso não significa que a assistência domiciliária seja “barata”, mas que, comparativamente ao sistema hospitalar, seu custo é significativamente inferior.
(...)
E, como salientado, a redução do tempo de internação e reinternações não traz somente vantagens para as instituições no que tange aos custos, mas também aos indivíduos que correm menos riscos em conseqüência das hospitalizações, e propicia a utilização dos leitos por um número maior de pessoas, ampliando a oferta de leitos, ou seja, agiliza a liberação de leitos da unidade hospitalar destinados a doentes passíveis de hospitalização ou a portadores de casos mais graves.
Diante dos custos hospitalares elevados e do baixo benefício resultantes das internações, os cuidados secundários estão sendo deslocados para os ambulatórios e para o domicílio do cliente. Pois a manutenção do atual modelo centrado na hospitalização significará criar uma situação de superlotação das unidades hospitalares, ocupadas por doentes idosos, com doenças crônico- degenerativas, aumentando os custos da assistência à saúde e comprometendo a qualidade do atendimento.
(...)
O atual contexto econômico e social, com um aumento crescente da demanda dos serviços de saúde, necessita de um modelo de atenção à saúde que otimize os recursos escassos. Desta forma, o cuidado domiciliar surge como modelo harmônico
com a economia vigente e que propicia uma adequada assistência às necessidades dos usuários.
(XXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Princípios Éticos como Norteadores no Cuidado Domiciliar. Ciência e Saúde Coletiva, Abrasco, v. 16, suplemento 1, mar. 2011, p. 857-859 - grifou-se).
Logo, qualquer cláusula contratual ou ato da operadora de plano de saúde que importe em absoluta vedação da internação domiciliar como alternativa de substituição à internação hospitalar será abusivo, visto que se revela incompatível com a equidade e a boa-fé, colocando o usuário (consumidor) em situação de desvantagem exagerada (art. 51, IV, da Lei n. 8.078/1990).
Cumpre ressaltar, por outro lado, que o home care não pode ser concedido de forma automática, tampouco por livre disposição ou comodidade do paciente e de seus familiares.
Efetivamente, na ausência de regras contratuais que disciplinem a utilização do serviço, a internação domiciliar pode ser obtida não como extensão da internação hospitalar, mas como conversão desta. Assim, para tanto, há a necessidade (i) de haver condições estruturais da residência, (ii) de real necessidade do atendimento domiciliar, com verificação do quadro clínico do paciente, (iii) da indicação do médico assistente, (iv) da solicitação da família, (v) da concordância do paciente e
(vi) da não afetação do equilíbrio contratual, como nas hipóteses em que o custo do atendimento domiciliar por dia não supera o custo diário em hospital.
Isso porque, nesses casos, como os serviços de atenção domiciliar não foram considerados no cálculo atuarial do fundo mútuo, a concessão indiscriminada deles, quando mais onerosos que os procedimentos convencionais já cobertos e previstos, poderá causar, a longo prazo, desequilíbrio econômico-financeiro do plano de saúde, comprometendo a sustentabilidade das carteiras.
De qualquer modo, quando for inviável a substituição da internação hospitalar pela internação domiciliar apenas por questões financeiras, a operadora deve sempre comprovar a recusa com dados concretos e dar oportunidade ao usuário de complementar o valor de tabela.
Nesse passo, acerca do equilíbrio contratual, cabe conferir a doutrina de Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx:
(...)
Assim, é fundamental que o julgador, ao examinar as questões atinentes aos contratos celebrados entre usuários e plano de saúde, leve em consideração o mutualismo e a estrutura técnico-econômica, tendo sempre presente a ideia de que a concessão de benefícios não cobertos e a criação de novos direitos sem amparo contratual desfalcarão o fundo mútuo, formado pelas contribuições da coletividade de segurados, que será diretamente atingida por aquela decisão. É preciso não esquecer que os abusos e os excessos de alguns segurados, ao fim e ao cabo, serão custeados pelos demais segurados que fazem uso dos planos com parcimônia e prudência.
(...)
(...) as intrincadas e relevantes relações entre usuários e operadoras de planos de saúde são reguladas pela Lei n. 9.656/1998, sofrendo forte influência do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor. Os princípios da nova teoria contratual, mormente a boa-fé objetiva, são fundamentais para a resolução dos conflitos, pois, além de obrigar as partes - todas elas, usuários, operadoras, médicos e hospitais - atuarem com lealdade e cooperação, levam os julgadores a buscar as soluções que preservem o equilíbrio dos contratos e as justas expectativas das partes. É preciso, ainda, notar que o equilíbrio a ser preservado não é apenas aquele relativo à relação entre o usuário e o plano de saúde. Fundamental que se preserve o equilíbrio da relação entre o usuário e a coletividade (mutualismo), de modo a impedir os desfalques desnecessários e desarrazoados do fundo comum.
(XXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx. O Código Civil e o Código do Consumidor na Saúde Suplementar. In: XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx (org.). Planos de Saúde: aspectos jurídicos e econômicos. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 110-116
- grifou-se)
Na espécie, embora a cobertura de home care não tenha sido contratada, a recorrente ofereceu o serviço como alternativa ao tratamento hospitalar, de modo que não poderia tê-lo interrompido, ainda que temporariamente, sem a prévia aprovação ou recomendação médica, ou ao menos sem ter disponibilizado ao paciente a reinternação em hospital, sendo descabida a alegação de mera liberalidade em seu fornecimento. Essa atitude abusiva da operadora de plano de saúde gerou, de fato, danos morais, pois submeteu o usuário em condições precárias de saúde (acometido de doença pulmonar obstrutiva crônica) à situação de grande aflição psicológica e tormento interior, que ultrapassa o mero dissabor. Ademais, o valor arbitrado (R$ 8.000,00 - oito mil reais) mostra-se razoável, não merecendo reparos.
A propósito, cumpre transcrever o seguinte trecho da sentença:
(...)
Entretanto, por mais que o contrato firmado pelas partes determinasse a não cobertura de assistência domiciliar (home care) e enfermagem em caráter particular, a jurisprudência tem por diversas vezes afirmado que a cláusula que veda a enfermagem particular e assistência domiciliar não se confunde com a internação home care, visto que esta integra o gênero internação hospitalar. Isso porque a internação é necessária à preservação da saúde do segurado e de acordo com a máxima “quem pode mais pode menos”, não faria sentido permitir- se a internação hospitalar e vedar-se a domiciliar que revela tratamento mais favorável e custos menores para a seguradora (...).
(...)
Deste modo, percebe-se que a atuação da seguradora, enseja a indenização por danos morais, pois sem dúvidas os autores sofreram abalos nos direitos de sua personalidade diante da situação perpetrada pela ré que visa suspender o tratamento, no momento em que o segurado mais precisa e vem obtendo avanços em seu quadro clínico com o tratamento. Não há que se falar em exercício regular de um direito visto que sequer foi comprovada a existência de vedação contratual ao oferecimento do serviço (fls. 496-498).
Por fim, no tocante aos demais temas levantados nas razões recursais, estou de acordo com a solução empregada pelo Relator.
Ante o exposto, acompanho o eminente Relator, negando provimento ao recurso especial, com a ressalva de que, nos contratos de plano de saúde sem contratação específica, o serviço de internação domiciliar (home care) pode ser utilizado em substituição à internação hospitalar, desde que observados certos requisitos, como a indicação do médico assistente, a concordância do paciente e a não afetação do equilíbrio contratual.
É o voto.
ESCLARECIMENTO
O Sr. Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx: Sr. Presidente, na verdade, os acréscimos feitos por V. Exa. enriquecem o acórdão. Essas ressalvas são importantes. Realmente, pretendia colocá-las na ementa como item 3. É mais fácil a ressalva, aquela parte que consta no final do seu voto: a indicação de médico-assistente, concordando os pacientes, não afetação do equilíbrio contratual. Assim, temos o pensamento médio do Colegiado.