Sumário:
O CONTRATO DE SEGURO E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
XXXX XXXXXXX XXXXXXX*
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Sumário:
1. Introdução - 2. A boa-fé nos contratos de seguro. Aspectos gerais 3. A boa-fé objetiva como atividade pré-contratual no contrato de resseguro. 4. Manifestações jurisprudenciais sobre a boa-fé nos contratos de seguro.
1. INTRODUÇÃO
A doutrina, de modo uniforme, tem apregoado que o Código Civil de 2002 está assentado em quatro estruturas fundamentais: a eticidade, a socialidade, a operosidade e a praticidade.
Esses elementos de sustentação do novo Código Civil refletem o pensamento da Comissão, quando, numa visão contemporânea da atuação do Direito, concebeu a necessidade de, nas relações privadas, os valores acima noticiados serem cultuados e cumpridos.
Destacamos, nesta oportunidade, a eticidade como elemento determinador da conduta a ser adotada pelo intérprete e aplicador do Direito quando em face de negócios jurídicos celebrados na atualidade.
* Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Professor de Direito Público (Administrativo, Tributário e Processual Civil). Professor da UFRN (aposentado). Ex-professor da Universidade Católica de Pernambuco. Professor convidado do Curso de Especialização em Processo Civil. CEUB-DF. Sócio Honorário da Academia Brasileira de Direito Tributário. Sócio Benemérito do Instituto Nacional de Direito Público. Conselheiro Consultivo do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem. Integrante do Grupo Brasileiro da Sociedade Internacional do Direito Penal Militar e Direito Humanitário. Sócio Honorário do Instituto de Estudos Jurídicos
*Ministro do Superior Tribunal de Justiça, a partir de 15/12/1995.
A primeira indagação que surge para uma reflexão mais aprofundada é a respeito do conceito de eticidade.
Sobre o assunto, sugerimos voltar o nosso pensamento para a pergunta que Xxxxx faz em sua Filosofia do Direito:1 O que é eticidade? Ele responde: "Que a minha vontade seja posta como adequada ao conceito e com isso superada e guardada sua subjetividade".
Comentando essa resposta de Xxxxx, vamos encontrar a resenha feita por José Roberto Gondim2 do teor seguinte:
"O que é eticidade? É a pergunta de Xxxxx na Filosofia do Direito. E responde: 'Que a minha vontade seja posta como adequada ao conceito e com isso superada e guardada sua subjetividade' (Hegel GWF. Rechtsohilosophie, parágrafo 142, p. 107).
Uma vontade só se determina, quando decide. 'Por meio da decisão, a vontade se põe como vontade de um determinado indivíduo frente a outro (...). Uma vontade que não decide nada não é uma vontade real' (Xxxxx GWF. Rechtsohilosophie parágrafo 13). Toda decisão é escolha, e quem escolhe deixa, ou como diz Xxxxx 'renuncia à totalidade' e se 'compromete com a finitude', isto é, se põe limites. O que determina essa escolha são as circunstâncias históricas, a cultura, os hábitos, e costumes. Todo esse movimento de concretização, limitação, mediação social da liberdade é o âmbito da eticidade (p. 108).
A eticidade trata das determinações objetivas ou da mediação social da liberdade. Tem, portanto, um conteúdo e uma existência que se situa num nível superior ao das opiniões subjetivas e caprichos pessoais: 'as instituições e leis existentes em si e para si' (Hegel GWF. Rechtsohilosophie, parágrafo 144, p. 109).
Se na moralidade o sujeito é avaliado, a partir dos aspectos subjetivos determinantes no seu agir, na eticidade ele é considerado como membro (Mitglied) de uma comunidade ética, ou seja, é qualificado, a partir das determinações
1 Hegel GWF, Rechtsohilosophie, parágrafo 142, p. 107, traduzida.
2 Trabalho publicado na internet. Disponível no site: <xxxx://xxx.xxxxx.xx/XXXX/xxxx/xxxxxx.xxx>.
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objetivas - dos resultados e conseqüências - de suas ações (p. 109).
Minha vontade livre tem que mediar-se com a vontade livre do outro, a fim de se universalizar. O imediato tem que ser mediado, para que possa estabelecer um princípio ético universal (p. 110).
'Aquele que quer ser algo grande, disse Xxxxxx, deve saber limitar-se' (Xxxxx GWF. Rechtsohilosophie, parágrafo 13, p. 111).
'A pedagogia é a arte de fazer éticos os homens; considera o homem como natural e lhe mostra o caminho para nascer de novo, para converter sua primeira natureza em segunda natureza espiritual, de tal maneira que o espiritual se converta em hábito' (Hegel GWF. Rechtsohilosophie, parágrafo 151, p. 114).
É importante frisar que na 'subjetividade ética' desaparecem as vontades particulares, enquanto imediatas e naturais, uma vez que, submetidas ao processo de mediação, reconhecem que sua dignidade se funda nessa substancialidade. (...) A lei moral, portanto, não tem validade apriorística ou que poderíamos chamar de validade natural imediata. O critério de moralidade passa a ser a possibilidade de universalização a posteriori, isto é, a universalização resultante da mediação das vontades envolvidas e afetadas (p. 114).
Na eticidade, enquanto identidade da vontade universal e particular, há uma coincidência entre deveres e direitos. 'Por meio do ético, o homem tem direitos, na medida em que tem deveres, e deveres, na medida em que tem direitos' (Hegel GWF. Rechtsohilosophie, parágrafo 155). Só pode ter deveres quem tem, ao mesmo tempo, direitos. Um escravo, portanto não pode ter deveres (p. 115).
Na perspectiva hegeliana, o universal, ao concretizar-se, se individualiza. Isso significa que a concretização sempre se dá num conteúdo determinado, num povo, numa comunidade ética, numa instituição, ao passo que a universalidade kantiana permanece no plano formal e, por isso, meramente abstrato. Xxxx exclui da moralidade as instituições e os costumes. (...) Se, para Xxxx, o princípio supremo de moralidade é atemporal, em Xxxxx, ele se constitui no movimento histórico de determinação da idéia da liberdade (p. 117)".
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As reflexões assinaladas mostram a constante preocupação do Direito com os princípios da eticidade, valor que exige um comportamento humano obedecendo, rigorosamente, padrões de probidade e boa-fé.
O Código Civil de 2002 revela, de modo explícito, a transformação ocorrida no ambiente negociai quando exige, no art. 422, que a relação contratual desenvolva-se com base no respeito à sua função social e ao princípio da boa-fé.
Há uma mudança significativa? Pensamos que não. A jurisprudência já vinha, especialmente, após a vigência do Código de Defesa do Consumidor, tomando posicionamento atento à aplicação do princípio da boa-fé, quando chamada a interpretar cláusulas contratuais que, de modo direto ou indireto, tentavam fugir da regra imposta pela eticidade.
A boa-fé tratada pelo Código Civil não é a subjetiva. Esta é caracterizada por um estado psicológico, uma intenção voltada a não provocar qualquer dano a outrem.
A boa-fé tratada pelo atual ordenamento jurídico codificado privado é a objetiva, isto é, a que "deve existir, ante a lealdade, a honestidade e a segurança, que se devem os contratantes, na celebração, na execução (cumprimento) e na extinção do contrato, bem como após esta", conforme lembra Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx.3
É de se ter em consideração que o Código Civil de 1916 não registrou nenhum dispositivo expresso voltado para a boa-fé objetiva.
O Código Civil de 2002 exige a boa-fé, expressamente, nos arts. 113, 164, 422, 765, 766, 879, 906, 1.201 a 1.203, 1.214 a 1.219,
1.243 a 1.260, 1.268 e 1.561. Destaque maior para o art. 422: "Os
3 Contrato: função, boa-fé, imprevisão, onerosidade, trabalho publicado na obra Aspectos controvertidos do novo Código Civil, em homenagem ao Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx São Paulo, RT, p. 34.
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contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".
Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, juiz de direito, em bem lançado artigo publicado no site <http: \\xxx.xxx.xxx.xx>, comenta, com absoluta propriedade essa conduta do Código Civil de 2002, afirmando:
"Ao estabelecer o princípio da boa-fé nas relações contratuais, a nova lei está implementando uma outra concepção sobre o instituto, à qual a doutrina passou a denominar de objetiva, porque a sua finalidade é impor aos contratantes uma conduta de acordo com os ideais de honestidade e lealdade, independentemente do subjetivismo do agente; em outras palavras, as partes contratuais devem agir conforme um modelo de conduta social, sempre respeitando a confiança e o interesse do outro contratante. A antítese dessa espécie, não é a intenção de prejudicar, como na boa-fé subjetiva, mas a exteriorização de um comportamento ímprobo, egoísta ou reprovável, verificado sob a ótica da vida em harmonia dentro da comunidade. Consiste em ato violador de um dever anexo ao contrato.
A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado.
Esse comportamento pode ter como paradigma o amor ao próximo pregado pelo Cristianismo. Sem dúvida, não há melhor parâmetro para se verificar a retidão de um comportamento.
Com efeito, a vida na sociedade capitalista nos ensina a sermos competidores, onde o contrato é mais uma arena dessa luta diária. A boa-fé objetiva, aliadas aos ideais do Estado Social, busca humanizar essa disputa, impondo aos contratante deveres anexos às disposições contratuais, onde não tem cabimento a postura de querer sempre levar vantagem.
Estando a teoria geral dos contratos dotada do princípio da boa-fé objetiva, o magistrado passa a exercer um papel de fundamental importância, na exata medida em que participará da construção de uma nova noção do direito
contratual como sendo um sistema aberto que pode evoluir e se completar, a cada momento, diante dos mais variados casos que podem surgir na vida social.
Em outras palavras, se os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão, como na execução do contrato, os princípios da probidade e da boa-fé, o julgador sempre poderá corrigir a postura de qualquer um deles sempre que observar um desvio de conduta ou de finalidade. Ou ainda, se o contratante quiser se prevalecer de qualquer situação onde obtenha mais vantagem que aquela inicialmente esperada. Aliás, mesmo que não exista qualquer espécie de dano ou vantagem, entendemos que diante de uma regra de ordem pública, como o art. 422 do novo Código Civil, é proibida a postura não condizente com a boa-fé objetiva, impondo-se a correção pelo magistrado.
Na concretização desses princípios o magistrado irá guiar-se pela retidão de caráter, honradez e honestidade, que expressam a probidade que todo cidadão deve portar no trato de seus negócios. São conceitos abstratos, mas neles se pode visualizar o que podemos chamar de mínimo ético, patamar onde o juiz deve lastrear sua decisão.
Não se pode confundir a adoção desse princípio da boa-fé, ora estudado, com a tradicional forma de interpretação dos contratos. Nela se prega o dever de serem as cláusulas do contrato, quando obscuras, interpretadas segundo a boa-fé. Porém, no princípio da boa-fé objetiva não há interpretação de cláusula ou disposição obscura do contrato, mas uma análise do comportamento das partes quanto aos deveres que são anexos ou conexos ao vínculo jurídico estabelecido pelas partes.
A visão do julgador não está na letra do negócio jurídico, mas nas atitudes dos contraentes. Opera-se uma reflexão acerca do comportamento das partes de forma que a prestação devida poderá se amoldar às características fáticas de cada caio concreto, sem que isso provoque incertezas no espírito dos contratantes, pois desde logo saberão que o proceder no curso do contrato não poderá se afastar dos ideais da honestidade e probidade".
Sílvio de Salvo Venosa analisou, com exatidão, o culto que o Código Civil de 2002 faz ao princípio da boa-fé nas relações contratuais.
Destacamos do artigo "A boa-fé contratual no Código Civil", o trecho seguinte:
"A questão da boa-fé atine mais propriamente à interpretação dos contratos. O Código italiano já estabelecera que, no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, as partes devem portar-se com boa-fé (art. 1.337). Esse dispositivo serviu, certamente, de inspiração para nosso novo Código Civil. O aspecto guarda muita importância com relação à responsabilidade pré- contratual.
Coloquialmente, podemos afirmar que esse princípio se estampa pelo dever das partes de agir de forma correta antes, durante e depois do contrato. Isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos residuais.
Importa, pois, examinar o elemento subjetivo em cada contrato, ao lado da conduta objetiva das partes. A parte contratante pode estar já, de início, sem a intenção de cumprir o contrato, antes mesmo de sua elaboração. A vontade de descumprir pode ter surgido após o contrato. Pode ocorrer que a parte, posteriormente, veja-se em situação de impossibilidade de cumprimento. Cabe ao juiz examinar em cada caso se o descumprimento decorre de boa ou má-fé. Ficam fora desse exame o caso fortuito e a força maior, que são examinados previamente, no raciocínio do julgador, e incidentalmente podem ter reflexos no descumprimento do contrato.
Na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, devem ser examinadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico. É ponto da interpretação da vontade contratual.
Diz-se que o novo Código Civil constitui um sistema aberto, predominando o exame do caso concreto na área contratual. Trilhando técnica moderna, esse estatuto erige cláusulas gerais para os contratos. Nesse campo, realça-se o art. 420, e especificamente o art. 421 que faz referência ao princípio basilar da boa-fé objetiva, a exemplo do Código italiano acima mencionado: 'Os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé'.
Essa disposição constitui modalidade que a doutrina convencionou denominar cláusula geral. Essa rotulação não nos dá perfeita idéia do conteúdo. A cláusula geral não é, na verdade, geral. O que primordialmente a caracteriza é o emprego de expressões ou termos vagos, cujo conteúdo é dirigido ao juiz, para que este tenha um sentido norteador no trabalho de hermenêutica, de interpretação. Trata-se, portanto, de uma norma mais propriamente dita genérica, a apontar uma exegese.
A idéia primordial é no sentido de que, em princípio, contratante algum ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda cláusula geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso o juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé. Na verdade, levando-se em conta que o direito gira em tomo de tipificações ou descrições legais de conduta, a cláusula geral traduz uma tipificação aberta.
Como o dispositivo do art. 421 se reporta ao que se denomina boa-fé objetiva, é importante que se distinga da boa-fé subjetiva. Na boa-fé subjetiva
o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento quê possui de um negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado.
A boa-fé objetiva, por outro lado, tem compreensão diversa. O intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.
Há outros dispositivos no novo Código que se reportam à boa-fé de índole objetiva. Assim dispõe o art. 112: 'Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa- fé e os usos do lugar de sua celebração'.
Ao disciplinar o abuso de direito, o art. 186 do novo estatuto estabelece: 'Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
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impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes'.
Desse modo, sob o prisma do novo Código, há três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (art. 112); função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 186) e função de integração do negócio jurídico (art. 421).
Em qualquer situação, porém, não deve ser desprezada a boa-fé subjetiva, dependendo seu exame sempre da sensibilidade do juiz. Não se esqueça, contudo, que haverá uma proeminência da boa-fé objetiva na hermenêutica, tendo em vista o novo descortino social que o novo Código Civil assume francamente. Nesse sentido, portanto, não se nega que o credor pode cobrar seu crédito; não poderá, no entanto, exceder-se abusivamente nessa conduta porque estará praticando ato ilícito.
Tanto nas tratativas como na execução, bem como na fase posterior de rescaldo do contrato já cumprido (responsabilidade pós-obrigacional). a boa-fé objetiva é fator basilar de interpretação. Dessa forma, avalia-se sob a boa-fé objetiva tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e a pós-contratual. Em todas essas situações sobreleva-se a atividade do juiz na aplicação do direito ao caso concreto. Caberá à jurisprudência definir o alcance da norma dita aberta do novo diploma civil, como aliás, já vinha fazendo como regra, ainda que não seja mencionado expressamente o princípio da boa-fé nos julgados. E no campo da responsabilidade pré-contratual que avulta a importância do princípio da boa-fé objetiva, especialmente na hipótese de não justificada conclusão dos contratos".4
Está, portanto, posta a disposição legal de que nenhum negócio jurídico, quer unilateral, quer bilateral, pode ser interpretado sem que se tenha a boa-fé como conduta maior a ser praticada pelas partes nele envolvidas.
2. A BOA-FÉ NOS CONTRATOS DE SEGURO. ASPECTOS GERAIS
4 Artigo publicado no Valor Econômico, dias 8, 9 e 10 mar. 2002.
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O Código Civil de 2002 registra no art. 765 que "o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes".
Essa é a denominada regra de ouro do negócio jurídico denominado seguro. Ela complementa, de modo bem expressivo, o art. 113 do mesmo Código, que determina: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".
O mencionado artigo revela o entendimento do legislador da conveniência de realçar, de forma cogente, a necessidade dos negócios jurídicos serem submetidos a um regime de interpretação que valorize a boa fé, os costumes e os usos do lugar de sua celebração.
A exigência de que as relações jurídicas de direito privado submetam-se ao princípio da boa-fé é uma preocupação constante do Código Civil de 2002.
O art. 765 está, também, inserido no panorama criado pelo Código Civil de 2002 para valorizar o princípio da boa-fé.
No referente ao contrato de seguro, cumpre observar que o Código Civil, de 1916, em seu art. 1.443, determinava:
"O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes".
A redação atual do princípio apresenta-se de forma mais categórica. Explicita que as partes devem guardar a boa-fé não só na conclusão, como também, na execução do contrato.
Essa disposição integra o quadro explícito da boa-fé no Código Civil de 2002. Este, conforme já noticiamos, toma-a presente como
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integrando, de modo essencial, os seguintes fenômenos e relações jurídicas:
a) na interpretação dos negócios jurídicos, a boa-fé deve ser celebrada em toda a sua compreensão (art. 113);
b) os "negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família" presumem-se de boa-fé (art. 164).
c) o segurador e o segurado são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato a mais estrita boa-fé (art. 765);
d) quem recebeu indevidamente um imóvel e o tiver alienado em boa-fé por título oneroso responde somente pela quantia recebida (art. 879);
e) é considerada de boa-fé a posse, "se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa (art. 1.201)";
f) "o possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção (art. 1.201, parágrafo único)";
g) "a posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente (art. 1.202)";
h) assegura ao possuidor de boa-fé o direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos (art. 1.214);
i) concede ao possuidor de boa-fé o direito de não responder pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa (art. 1.217);
j) reconhece o direito do possuidor de boa-fé
"a indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis" (art. 1.219);
l) o possuidor com justo título e de boa-fé "pode, nos casos do art. 1.242, para o fim de contar o tempo exigido para adquirir a propriedade do imóvel por usucapião, "acrescentar à sua posse a dos seus antecessores, contanto que todas sejam contínuas e pacíficas" (art. 1.243);
m) tem direito a indenização, se procedeu com boa-fé, quem semeia, planta ou edifica em terreno alheio (art. 1.255);
n) "se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente" (art. 1.258);
o) "se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente" (art. 1.259);
p) "feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono" (art. 1.268);
q) a produção de todos os efeitos, em relação aos cônjuges e aos filhos, do casamento anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé (art. 1.561);
r) no caso de especificação (art. 1.269), "se toda a matéria for alheia, e não se puder reduzir à forma precedente, será do especificador de boa-fé a espécie nova" (art. 1.270);
s) consideração de que "o pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor" (art. 309);
t) a nulidade de qualquer contrato de dívida de jogo não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé (§ 1.° do art. 814);
u) "a revogação do mandato, notificada somente ao mandatário, não se pode opor aos terceiros que, ignorando-a, de boa-fé com ele tratam; mas ficam salvas ao constituinte as ações que no caso lhe possam caber contra o procurador" (art. 686);
v) a possibilidade de o imóvel ser adquirido por usucapião, por quem "possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé" (art. 1.260).
x) "os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé" (art. 422).
Os dispositivos referidos tratam, de modo explícito, da aplicação do princípio da boa-fé. Demonstram a importância que o Código Civil de 2002 empresta a esse tipo de comportamento ético a ser assumido em qualquer tipo de negócio jurídico (quer bilateral, quer unilateral).
O negócio jurídico, na atualidade, é visualizado como elemento componente de um sistema civil constitucional mais aberto, com vínculo direto a fazer prevalecer os valores da cidadania e da dignidade humana.
Esse novo sistema, embora não elimine os princípios clássicos do negócio jurídico bilateral (autonomia da vontade, supremacia da ordem pública, irretratabilidade das convenções, boa-fé e relatividade dos contratos), sustenta-se, essencialmente, na função social do contrato, na efetivação da boa-fé objetiva e na força da equivalência ou equidade das cláusulas ajustadas.
A adoção da boa-fé objetiva destaca-se, no Código Civil de 2002, como já demonstrado, por impor segurança ao negócio jurídico celebrado, contribuindo, quando seguida, para diminuir o número de conflitos.
A doutrina identifica acentuada diferença entre a boa-fé objetiva e a subjetiva.
A boa-fé subjetiva apareceu, pela vez, no art. 131,1, do Código Comercial de 1850, hoje revogado pelo Código Civil de 2002, com exceção da parte relativa ao Direito Marítimo, como regra a ser seguida na interpretação dos contratos comerciais.
A seguir, a boa-fé subjetiva fez-se presente no Código Civil de 1916, especialmente, ao disciplinar:
a) o casamento putativo (art. 221);
b) a conceituação de posse de boa-fé (arts. 490 e 491);
c) o usucapião (arts. 550 e 551);
672);
d) a alienação de imóvel recebido indevidamente (art.
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e) a aquisição a non domino (art. 672).
Denomina-se boa-fé subjetiva, nos ensinamentos de Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx (A boa-fé no direito privado, São Paulo, RT, 2000), aquela que "para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou sua íntima convicção".
A boa-fé objetiva, afirma Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, obra citada, é a que obriga cada pessoa a "ajustar a própria conduta a um comportamento baseado na honestidade, lealdade e probidade, pelo que se deve levar em consideração os fatos concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo".
O legislador passou a exigir que, nos contratos de seguro, dois princípios nucleares terão de ser seguidos pelo segurado e pelo segurador: o da boa-fé e o da veracidade.
Cumpre, em conseqüência, examinar a boa-fé em seus variados aspectos, com preponderância no contrato de seguro.
É de se lembrar a mensagem de Clóvis do Couto e Silva5 quando destaca a importância da boa-fé no Direito brasileiro em várias espécies de relações jurídicas, impondo, pela sua relevância, segurança nos negócios entre as pessoas.
A boa-fé é classificada pela doutrina em: subjetiva, objetiva e hermenêutica.6
5 Clóvis do Couto e Xxxxx, O direito privado na visão de Clóvis do Couto e Silva, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1977, p. 33.
6 Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxx. Boa-fé objetiva: posição atual no ordenamento jurídico e perspectivas de suas aplicações nas relações contratuais, artigo na Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 351, p. 161. jul.-set. 2000.
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A boa-fé objetiva é, ainda, considerada como sendo a que as investigações se concentram, apenas, na exteriorização da conduta do sujeito, sem se considerar quaisquer aspectos de natureza psicológica ou até mesmo a sua opinião. O que impressiona é o aspecto externo do ato que a pessoa produziu.
A boa-fé subjetiva é a constituída por elementos componentes da manifestação da vontade do agente, expressando, com clareza, a consciência de não prejudicar ninguém, isto é, atuação, no mundo exterior, reveladora de ausência de xxxx.
A boa-fé hermenêutica surge do entendimento formado pela doutrina e a jurisprudência sobre a intenção das partes no instante em que celebram e executam o contrato.
Os doutrinadores concentram-se na preocupação de que o conceito de boa-fé seja bem esclarecido, por considerarem a sua suma importância na formação e na execução dos negócios jurídicos, especialmente, os bilaterais.
Esse panorama reflete-se no contrato de seguro, em face da manifestação da vontade constituir-se em uma das condições exigidas pela lei para que ele possa ser considerado válido e eficaz.
Essa exteriorização da vontade, contudo, deve ser apresentada com vinculação aos condicionamentos exigidos pela lei, pela moral, pela ordem pública, pela veracidade e pela boa-fé.
A conseqüência gerada pela fuga desse padrão é a concretização de um contrato de seguro sem condições de produzir efeitos por não ter obedecido ao preceito ético da boa-fé.
Na obra de nossa autoria. Comentários ao novo Código Civil,
Forense, vol. XX, x. I, p. 196 e seguintes registramos:
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Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx,7 cuidando do assunto, afirmam: "Em verdade, quando se fala em boa-fé, pensamos de imediato, em um estado subjetivo, psicológico, fundado em erro de fato. Trata-se da boa-fé subjetiva, admitida pelo Código de 1916. No que se refere à posse, por exemplo, o possuidor de boa-fé de um imóvel, não sabendo que o terreno pertence a terceiro, tem direito a ser indenizado pelas benfeitorias que realizou. Da mesma forma, a lei protege o pagamento feito pelo devedor de boa-fé e credor aparente (putativo), desde que o erro seja escusável".
Os autores referidos advertem que não basta a "boa-fé subjetiva para se reconhecer a plena validade da manifestação da vontade".
Acrescentam, mais adiante (p. 343):
"É preciso que, além de um estado de ânimo positivo, as partes se comportem segundo um padrão ético objetivo de confiança recíproca, atuando segundo o que se espera de cada uma, em respeito a deveres implícitos a todo negócio jurídico bilateral: confidencialidade, respeito, lealdade recíproca, assistência, etc".
Essas condições são consideradas pelos autores citados como sendo boa-fé objetiva. Esta, conforme estudo desenvolvido por Judith Martins-Costa8
"quer significar - segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países de common law — modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade. Por este modelo
7 Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, em Novo curso de direito civil - Parte geral. São Paulo, Saraiva, 2002, vol. I, p. 342.
8 Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, em A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, São Paulo, RT, 1999, p. 411-412.
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objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjuntivo".
Essa boa-fé objetiva é a que está sendo exigida pelo atual Código Civil, na conclusão e na execução dos contratos, conforme expressado nos arts. 422 e 765.
Rui Stoco9 observa que "numa primeira visão e através de exegese ainda perfunctória, Xxxxx Xxxxxx lembra que o novo Código não está se referindo à chamada boa-fé subjetiva, mas à boa-fé objetiva, já consagrada como princípio também no Código de Defesa do Consumidor (vide os arts. 4.°, III, e 51, IV, do CPC)".
A seguir. Xxx Xxxxx cita Xxxxx Xxxxxx:
A boa-fé é um princípio que tem força de validar negócios jurídicos. Ela funciona como regra implícita em todo negócio jurídico bilateral, notadamente no contrato de seguro, contrato que. pelas suas características, a manifestação da vontade representa o elemento nuclear para a sua formação, validade e eficácia.
Zeno Veloso11 fornece-nos preciosa lição sobre a aplicação do princípio da boa-fé no novo Código Civil. São seus os
9 Xxx Xxxxx, Abuso de direito e má-fé processual. São Paulo, RT, 2002, p, 40.
10 Xxxxx X. Xxxxx Xxxxxx, O direito contratual no novo Código Civil. Enfoque jurídico. Suplemento Informe do TRF da 1ª Região, n. 105. p. 4, out. 2001.
11 Xxxx Xxxxxx, em Invalidade do negócio jurídico - Nulidade e anulabilidade. Belo Horizonte. Xxx Rey, 2002, p. 302-303.
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registros de que o art. 422 do CC representa um dos seus "momentos mais notáveis" pois "os negócios jurídicos, como realização da autonomia da vontade, criando relações jurídicas, têm um forte conteúdo ético, tanto na declaração de vontade como na interpretação e na execução dos negócios, a honestidade, a probidade, a confiança, a lealdade, enfim, a boa-fé deve ser observada" (p. 300).
Xxxx Xxxxxx lembra, ainda, que o art. 157, do BGB (Direito alemão), é considerado uma norma capital na interpretação dos contratos, por exigir que sejam vistos sob a força da fidelidade e da boa-fé, atendendo-se aos bons costumes.
Igual exigência, segundo Xxxx Xxxxxx, fez o Código Civil italiano, em seu art. 1.337: "As partes, no desenvolvimento das negociações preliminares e na formação do contrato, devem se comportar de acordo com a boa-fé".
Não foge dessa conduta ética o direito português ao considerar obrigatória a regra de que "quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras de boa-fé, sob pena de responsabilidade pelos danos que culposamente causar à outra parte".
Está sempre presente a lição de Xxxxxxx Xxxxx,12 no sentido de que "o princípio da boa-fé entende mais com a interpretação do contrato de que com a estrutura". Ela traduz "o interesse social de segurança das relações jurídicas", exigindo que "as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas".
Não se pode ignorar a influência das legislações estrangeiras sobre a aplicação da boa-fé em nosso ordenamento jurídico. Ela, hoje, está destacada, como princípio, em vários artigos do atual Código Civil, conforme anotado anteriormente, e no Código de Defesa do Consumidor. Tem sua presença obrigatória, também, nas relações jurídicas administrativas públicas, estas sujeitas ao controle do Direito Administrativo.
12 Xxxxxxx Xxxxx, Contratos, 9. ed. Rio de Janeiro, Forense, p. 43.
Além do direito estrangeiro já mencionado, lembramos que o Código Civil francês, em seu art. 1.134, determina:
"As convenções legalmente formadas valem como lei.
Elas só podem ser revogadas por mútuo consentimento ou por causas que a lei autorize.
Elas devem ser executadas de boa-fé".
Identifica-se, portanto, uma expansão em grande escala do princípio da boa-fé em todos os campos do Direito. Essa conotação é, hoje, considerada obrigatória nos contratos de seguro.
O Decreto com força de lei 1.505, de 30.10.2001, da República Bolivariana de Venezuela, determina, em seu art. 4.°: "Cuando sea necesario interpretar el contrato de seguro se utilizarón los princípios siguientes; 1 - Se presumirá que el contrato de seguro ha sido celebrado de buena fe. 2 - (...)".
No art. 23, especifica que
"Las falsedades y reticências de mala fe por parte del tomador, del asegurado o del beneficiario, debidamente probadas, serán causa de nulidad absoluta del contrato si no de tal naturaleza que la empresa de seguros de haberlo conocido, no hubiese contratado o lo hubiese hecho en otras condiciones".
A Ley de Seguros 17.418, de 30.08.1967, da Argentina, prescreve, em seu art. 7.°, que
"En los seguros de vida cuando el asegurado fuese de buena fe y la reticencia se alegase en el plazo del artículo 59, después de ocurrido el siniestro, la prestación debida se reducir si el contrato fuese reajustadle conforme al artículo 6".
A seguir, no art. 8.°, determina: "Si la reticencia fuese dolosa o de mala fe, el asegurador tiene derecho a las primas de los períodos
transcurridos y del período en cuyo transcurso invoque la reticencia o falsa declaración".
O princípio da boa-fé, nos contratos de seguro, está ressaltado no Dicionário de Seguros, editado pela Fundação Nacional de Seguros e pelo Instituto de Resseguros do Brasil, Rio de Janeiro, 1996, p. 10.
No verbete respectivo está contido que a boa-fé
"é um dos princípios básicos do seguro. Este princípio obriga as partes a atuar com a máxima honestidade na interpretação dos termos do contrato e na determinação dos significados dos compromissos assumidos. O segurado se obriga a descrever com clareza e precisão a natureza do risco que deseja cobrir assim como ser verdadeiro em todas as declarações posteriores, relativas a possíveis alterações do risco ou a ocorrência de sinistro. O segurador, por seu lado, é obrigado a dar informações exatas sobre o contrato e redigir o seu conteúdo de forma clara para que o segurado possa compreender os compromissos assumidos por ambas as partes. Este princípio obriga, igualmente o segurador a evitar o uso de fórmulas ou interpretações que limitem sua responsabilidade perante o segurado".
A doutrina, comungando com o pensamento de Xxxxxx de Xxxxxxx, assinala que contrato de seguro é o pacto pelo qual o segurador se obriga, mediante o pagamento de prêmio, a ressarcir o segurado, dentro do limite que se convencionou, os prejuízos produzidos por sinistro, ou a garantir capital ou renda quando ocorra determinado fato, concernente à vida humana ou ao patrimônio.
Os limites convencionados estão, portanto subordinados ao princípio da boa-fé, como, aliás, já estava contido no art. 1.436 do CC/1916: "Nulo será este contrato, quando o risco de que se ocupa, se filiar a atos ilícitos do segurado, do beneficiário pelo seguro, e dos representantes e prepostos, quer de um, quer de outro".
ilicitude.
A ausência de boa-fé é uma das formas mais graves de
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Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxx,13 em 1930, sob a luz da legislação espanhola, doutrinou:
"El artículo 381 del Código de Comercio concreta en sus tres apartados los casos en que se reputa a nulo el contrato de seguro por la concurrencia de error o dolo que invalide el consentimiento. Dice a si:
'Será nulo el contrato de seguro:
1.º Por la mala fe probada de alguna de las partes al tiempo de celebrarse el contrato.
2.º Por la inexacta declaración del asegurado, aun hecha de buena fe, siempre que pueda influir en la estimación de los riesgos.
3.° Por la omisión u ocultación, por el asegurado, de hechos e circunstancias que hubieran podido influir en la celebración del contrato'".
O art. 765 exige, ainda, que as partes guardem na conclusão e na execução do contrato o princípio da veracidade.
Este termo significa qualidade que é conforme à verdade. Esta é a fidelidade, exatidão, a autenticidade com que as vontades dos contratantes são manifestadas.
Ela, juntamente com a boa-fé, eleva o contrato de seguro a situação de plena validade e eficácia.
O Código Civil de 2002 seguiu linha já adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, que consagra o princípio da veracidade como sustentáculo da existência, validade e eficácia das relações de consumo. Exige que o fornecedor o adote nas situações em que preste informações, de qualquer natureza, sobre produtos e serviços oferecidos.
13 Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxx, Legislación y técnica de los seguros privados, Madri, p. 220.
A função do princípio da veracidade é não conduzir a parte contrária ao engano. Ele decorre da boa-fé e evita práticas abusivas, simuladas e enganosas no trato dos negócios jurídicos.
As partes obrigam-se a atuar de modo que as suas declarações exprimam a mais absoluta verdade. Devem declarar os fatos com exatidão e realidade, a fim de que os efeitos do contrato de seguro não gerem vantagens indevidas e contrárias ao direito.
3. A BOA-FÉ OBJETIVA COMO ATIVIDADE PRÉ-CONTRATUAL NO CONTRATO DE RESSEGURO
A boa-fé não é exigida, unicamente, no contrato de seguro. Ela, também, deve ser regra determinante no contrato de resseguro. Este, em regra, obedece a três fases: a da proposta, a da celebração do negócio jurídico e a da execução.
A exigência legal de que os contratantes, em todas as suas fases, adotem comportamento coberto pela boa-fé conduz a doutrina a entender que esse tipo de negócio jurídico está sujeito a um momento pré-contratual de maior significação que é o que reflete a intenção das partes.
Xxxxx Xxxx xx Xxxxxx Xxxx, em sua obra Contrato de resseguro, edição do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, p. 319 et seq., destaca a importância dessa fase, acentuando:
"O mais comum, no entanto, é acontecer de a formação do contrato de resseguro processar-se de modo mais ágil, compreendendo a formulação da proposta pelo segurador, com base nos padrões geralmente previstos, seguida da aceitação do ressegurador, aceitação esta, aliás, que também se pode presumir. Entretanto, também no caso de contratações ágeis, com tratativas condensadas, exige-se desde o primeiro momento o mesmo dever de correção decorrente do referido princípio da uberrima fides".
O princípio da uberrima fides (fé boa, fé máxima) obriga legalmente todos os participantes do trato jurídico a revelar qualquer informação que gere influência na parte contrária para celebrar ou não o contrato. O seguimento desse princípio significa que um contrato deve ser feito na fé boa perfeita, não escondendo nada; como no exemplo do seguro, os insured devem observar a fé boa mais perfeita para o segurador.
Merecem ser seguidos, tendo em vista a aplicação do princípio da boa-fé máxima, da boa-fé abundante, os ensinamentos de Xxxxx Xxxx xx Xxxxxx Xxxx, ob. cit., p. 319, no sentido de que:
"Essa exigência de uberrima fides, em outros termos, coloca-se de imediato, desde o primeiro contato entre as partes interessadas em concertar o contrato de resseguro, quer na hipótese de apontar uma estipulação em tempo breve, quer na de apontar estipulação em tempo mais longo. Trata-se, como a doutrina desde cedo frisou, de uma exigência que se resolve numa regra de comportamento basilar para as partes de uma relação securitária, vigente antes mesmo do momento da conclusão do contrato, ou seja, que se coloca com toda a sua intensidade antes mesmo de aperfeiçoada a relação".
Esse desdobramento da boa-fé revela a tônica que esse princípio assume nas relações contratuais de seguro, caracterizando um dever comportamental explicitamente exigido pelo art. 756 do novo CC.
4. MANIFESTAÇÕES JURISPRUDENCIAIS SOBRE A BOA-FÉ NOS CONTRATOS DE SEGURO
A jurisprudência tem se manifestado no sentido de prestigiar, na maior extensão possível, a aplicação do princípio da boa-fé nos contratos de seguro. Destacamos, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, os julgados que abaixo passam a ser analisados.
No REsp 236034-RJ, relatado pela eminente Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, com ementa publicada no DJ de 24.11.2003, a 2.ª Seção do STJ assentou que:
"Inexiste violação ao art. 535 do CPC, se o acórdão recorrido, assentando em fundamentos suficientes à prestação jurisdicional invocada, pronunciou-se acerca das questões suscitadas pelas partes. A ausência de impugnação específica aos fundamentos do acórdão recorrido impede o conhecimento do recurso especial. Na ação em que se pretende o cumprimento de obrigação avençada em contrato de seguro, consubstanciada na indenização de prejuízo resultante do risco assumido em tal contrato, incide o prazo prescricional ânuo previsto no art. 178, § 6.°, II, do CC, sendo inaplicáveis os prazos a que se referem os arts. 26 e 27, ambos do CDC.
O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão (Súmula 229 do STJ).
Na excepcional hipótese em que resta evidenciada a boa-fé da segurada, não se suscita a ocorrência de fraude, de má-fé nem de fundada suspeita de disparidade entre o valor dos bens sinistrados e aquele constante da apólice; e resta comprovada a existência do prejuízo decorrente do risco assumido pela seguradora (sinistro de bens que se encontravam no interior de imóvel incendiado), a efetiva impossibilidade da segurada de fornecer elementos probatórios precisos para a liquidação do dano não impede, por si só, a indenização, devendo esta ser paga com base no valor especificado na apólice".
O acórdão sublimou o princípio da boa-fé em toda a sua plenitude. Em face da sua presença na relação jurídica firmada, afastou-se a alegação da ocorrência de fraude e de má-fé no referente ao valor dos bens sinistrados.
Em outro julgamento, ao ser apreciado o AgRg no AgIn 494082, ementa publicada no DJ de 24.11.2003, relatado pelo Exmo. Sr. Min. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, a 4.a Turma, em 16.11.2003, entendeu:
"Tendo o decisum do Tribunal de origem, com base no conjunto probatório dos autos, reconhecido que restou comprovada a boa-fé da parte segurada, ao contratar o seguro, a análise da suposta violação demanda incursão na seara fático-probatória, vedada em sede especial, ut Súmula 07-STJ".
A decisão registrada revela a responsabilidade do segundo grau em analisar os aspectos determinadores da boa-fé nas relações desencadeadas no contrato de seguro, haja vista que, em tese, o que ficar acertado em tal grau de jurisdição não poderá ser revisto em sede de recurso especial. Esse entendimento decorre da disposição constitucional que só permite recurso especial quando ocorrer expressa violação da lei, negativa de sua aplicação ou divergência entre decisões de Tribunais diferentes.
O Diário da Justiça da União, em data de 25.08.2003, p. 309, publicou a ementa do REsp 116.024-SC, relatado pelo Min. Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx, cujo teor segue transcrito:
"Civil. Seguro de vida em grupo. Doença preexistente. Omissão. Longevidade do segurado após a contratação. Elevação da cobertura. Valor anterior diminuto. Razoabilidade no aumento da cobertura pretendida. Má-fé não configurada. Indenização devida. CC. arts. 1.443 e 1.444.
I. Inobstante a omissão do segurado sobre padecer de cardiopatia quando da contratação, não se configura má-fé se o mesmo sobrevive por manter vida regular por vários anos, demonstrando que possuía, ainda, razoável estado de saúde quando da realização da avença original, renovada sucessivas vezes.
II. Verificado nos autos que o valor do seguro era diminuto, igualmente não pode ser afastada a boa-fé se o
segurado, por ocasião da última renovação, o elevou a patamar absolutamente razoável, para que o mesmo tivesse a significação própria dessa espécie de proteção econômica contratual.
III. Precedentes.
IV. Recurso especial conhecido e provido".
Em 23.04.2002, a 2.ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os EDiv 168207-SP (DJU 05.05.2003, p. 214) sob a relatoria do Min. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, entendeu de não conhecê-lo, com base nos fundamentos assim sintetizados:
"Processual civil. Embargos de divergência. Seguro em grupo. Prescrição ânua. Termo a quo. Fixação em sede de recurso especial. Possibilidade. Princípio da boa-fé objetiva. Ofensa não caracterizada. Dissenso não configurado. Dessemelhança fática.
1 - O entendimento no sentido de não ser possível a fixação do termo a quo da prescrição ânua, em sede de recurso especial, encontra-se superado na Eg. Segunda Seção desta Corte. Precedente.
2 - No que tange à ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, verifica-se que tal não ocorre, pois, in casu, não é a seguradora quem se utiliza das provas que impugnou para, ao depois, com base nelas, suscitar a prescrição, mas é o próprio aresto embargado que, utilizando-se dos elementos constantes dos autos, reconhece a demora do autor em propor a ação.
3 - Não se conhece dos embargos de divergência se, pela dessemelhança fática entre o acórdão embargado e os colacionados a título de paradigmas, não se caracteriza o dissenso de julgados, apto a ensejar pronunciamento jurisdicional apaziguador. Precedente da Corte.
4 - Embargos de divergência não conhecidos".
Como verificado, o Superior Tribunal de Justiça consolida o seu entendimento na linha de prestigiar a boa-fé objetiva como núcleo fundamental capaz de impor segurança nos contratos de seguro.
Esse posicionamento do Superior Tribunal de Justiça vem sendo proclamado há algum tempo, conforme revela o voto proferido pelo Min. Xxxxxx Xxxxx, no REsp 219.829-CE, do teor seguinte:
"A recorrente alega que 'o acórdão não emitiu juízo explícito quanto ao ferimento da regra ínsita nos arts. 1.432, 1.443 e
1.444 do Código Civil Brasileiro'. Ora, se não o emitiu, cabia à recorrente opor ao acórdão os competentes embargos de declaração. Contudo, não os opôs. Seja como for, o que se alega é que 'o beneficiário do segurado procurou enganar a seguradora no ato da contratação, quando firmou contrato de seguro no dia 14.02.1996, com vigência a partir de primeiro de março, tendo o segurado falecido em 04.03.1996'. 'De feito', menciona ainda a recorrente, 'ficou sobejamente demonstrado que o recorrido ao tempo do contrato, por omissão deliberada e criminosa, sonegou informações quanto a sua real situação médica, ou seja tinha cirrose hepática, pagando apenas uma prestação de R$ 192,23 e recebia mensalmente da empresa do beneficiário, a guisa de salário, o importe de R$ 200,00'.
Seria então de se saber se não se guardou 'a mais estrita boa-fé e veracidade', ou se omitiram circunstâncias que pudessem influir na aceitação da proposta. Em tal aspecto, o especial afigura-se-me até deficiente, não enfrentando circunstâncias apontadas pela instância ordinária, tais como, consoante a sentença, (I) 'Assim, uma pessoa pode ter cirrose hepática, sem ser alcoólatra, ou um alcoólatra pode ter ou não cirrose hepática, porém não sempre, bastante o exame sanguíneo, meio hábil comprobatório', (II) 'A única comprovação nos autos, veio através do exame hematológico, atestado no ano de 1995 (doe. de fl.) com repetição da mesma nosologia em 18.11.1995 e 29.11.1995, desencadeando lesão hepática impossível de ser detectada ou conhecedora pelo próprio paciente sem exame de sangue', (III) 'Nenhuma indagação existia naquela carta- proposta, quanto a submeter o segurado a avaliação desses estados, e a restringir o segurado e o contrato de seguro emergente naquele momento. Nenhuma indagação na carta- proposta apontava, para que o segurado pudesse responder afirmativamente, se tinha 'alcoolismo crônico" ou 'alcoolemia' ou 'cirrose hepática' 'ou deficiência hepática' ou
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'moléstia de fígado', como causa excludente da responsabilidade da seguradora, vindo a proposta contudo a ser aprovada e recebido custos do período até o falecimento do segurado em 04.03.1996. Muito embora tenha sido em pouco menos de um mês de diferença', e segundo o acórdão, confirmando a sentença, verbis:
'A sentença impugnada, bem se vê, divisou com maestria a brutal distinção havida entre o alcoolismo crônico e a cirrose hepática, demonstrando que muito embora o segurado fosse portador do primeiro não tinha conhecimento, pelos exames realizados pouco antes da contratação, da existência da segunda, a qual efetivamente não foi detectada naquele momento.
Cumpre ressaltar, ademais, que o segurado não omitiu informações acerca de seu estado de saúde, pois consoante demonstra o questionário de fls. 43. foi perguntado acerca da existência de moléstias como: doença nervosa, do coração, da coluna, hérnia, diabete ou alguma de tuberculose ou sífilis?, das quais não sofria. A pergunta, tal como colocada no questionário, criou para o proponente a idéia de que deveria responder exclusivamente acerca da existência de referidas doenças, não se lhe impondo informar acerca de outras além daquelas ali elencadas.
As demais razões agitadas pelo apelante, quanto a uma possível fraude por parte do beneficiário, quedam-se aos limites de um subjetivismo exacerbado, vez que ausente qualquer comprovação neste sentido.
Nem mesmo o fato do valor do contrato se quase idêntico ao da remuneração indicada na Carteira Profissional do contratante induz ao fim colimado pela recorrente, pois exercia aquele a função de vendedor viajante, sendo lícito concluir que sua remuneração envolvia comissões pelas vendas que realizava, superando, assim, o valor indicado na CTPS'.
Em tal aspecto, pelo que eu disse, as premissas da instância ordinária não foram combatidas pela recorrente, limitando- se esta a alegar, sem se referir à proposta, que o segurado sonegara informações, enquanto se decidiu que, pelo cartão- proposta, não existia essa indagação, daí terem afirmado os ilustres julgadores, em repetição, (I) 'Nenhuma indagação existia naquela carta-proposta. quanto a submeter o segurado a avaliação desses estados", (II) 'A pergunta, tal como colocada no questionário, criou para o proponente a
idéia de que deveria responder exclusivamente acerca da existência de referidas doenças, não se lhe impondo informar acerca de outras além daquelas ali elencadas' c
(III) 'pois exercia aquele a função de vendedor viajante, sendo lícito concluir que sua remuneração envolvia comissões pelas vendas que realizava'.
Por isso, com vistas às Súmulas 284-STF e 7-STJ. não conheço do recurso".
O voto que acabamos de transcrever demonstra o prestígio que a Turma julgadora emprestou ao princípio da boa-fé, do modo como foi concebida pelo segundo grau. O não conhecimento do recurso determinou a cristalização, de modo integral, do que foi decidido em segundo grau com base na análise fálica, sem condições de ser revolvida na instância superior.
A evolução jurisprudencial tende para emprestar efeito absoluto ao princípio da boa-fé objetiva. Considera que ela não é um "princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída"', conforme doutrina Xxxxx Xxxxxxx, Comte per uma teoria dali clausule general. em Il princípio de buonafede, obra publícada em Milão, 1987,p. 10. segundo citação feita por Xxxxx Xxxx Xxxxx Xxxx, no trabalho Princípios contratuais, integrante da obra coletiva A teoria do contrato e o novo Código Civil, Recife: Nossa Livraria, p. 19.