SUMÁRIO
Data eRnevista JuriídicaaDigital
6Novembro 2016
DIREITO DO CONSUMO
Ano 4 ● N.º 06 [pp. 205-232]
Crédito ao Consumo Dos Contratos de Crédito
[a Consumidores]
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx
Solicitadora
Mestranda em Solicitadoria
SUMÁRIO
Os contratos de crédito a consumidores ocupam um lugar de relevo no comércio jurídico. São celebrados massivamente para a aquisição dos mais diversos bens e serviços. Muitas vezes, sem a informação necessária à sua celebração. Neste contexto, propomos uma análise ao Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho. Este Decreto-Lei procede à transposição para a ordem jurídica interna da Directiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril de 2008, que, em matéria de contratos de crédito a consumidores, institui um regime de
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«harmonização plena», com vista a «garantir que todos os consumidores da Comunidade beneficiem de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses» (nota 9).
Crédito ao Consumo Dos Contratos de Crédito
[a Consumidores] (*)
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx
Solicitadora
Mestranda em Solicitadoria
Consumidor, consumido, consome.
Notas introdutórias
A matéria do direito do consumo tem vindo a ocupar um espaço cada vez maior no nosso ordenamento jurídico (que clama, há muito, por um código próprio). Avolumam-se as decisões dos tribunais. Dentro e fora de portas.
Aparentemente, numa análise fugaz, parece existir uma maior protecção dos consumidores – avaliando pelo número cada vez maior de diplomas legislativos, quer a nível nacional quer a nível europeu, que visam a sua protecção1, pese embora sejamos confrontados com dúvidas, quando analisamos alguns desses diplomas. Por vezes a bandeira da protecção dos consumidores é levantada, quando, na realidade, se pretende proteger outros direitos que nada têm que ver com os consumidores. Lembramos, a título de exemplo, a fixação dos limites das taxas de juro.
(*) O estudo que ora se publica corresponde, com algumas alterações, ao trabalho apresentado para avaliação da Unidade Curricular “Contratos Civis”, parte integrante do Mestrado em Solicitadoria, Ramo de Empresas, da COIMBRA BUSINESS SCHOOL|ISCAC, ano de 2014/2015, leccionada pelo Senhor Professor Doutor Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx - Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Professor Adjunto Convidado da COIMBRA BUSINESS SCHOOL|ISCAC.
1 Desde a CARTA DO CONSELHO DA EUROPA sobre a PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR - Resolução nº 543, de 17 de Maio de 1973, relativa à Carta de Protecção do Consumidor da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa.
Invade-nos, todavia, uma certeza: numa relação em que, à partida, existe desigualdade, há necessidade de protecção do consumidor (o elo frágil da relação)2.
Na sua essência, os direitos dos consumidores são um conjunto de princípios e regras que disciplinam a produção e a distribuição de bens, bem como a prestação de serviços, que têm como escopo a defesa dos consumidores.
Os direitos dos consumidores vêm, desde logo, salvaguardados no nosso normativo superior3. O art. 60º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, preceitua que os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos. Preceitua, ainda, que a publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indirecta ou dolosa (n.º 2). No entanto, não se esgota neste preceito a protecção.
Dispõe o art. 81º, i), que uma das incumbências prioritárias do Estado é garantir a defesa dos interesses e os direitos dos consumidores. De igual modo, em sede de objectivos da política comercial há referência à necessidade de protecção dos consumidores – art. 99º, e) – e no que tange à instauração de acção popular – art. 52º, n.º 3, a).
De entre todos os diplomas e contratos inerentes às relações de consumo, optámos pelos contratos de crédito a consumidores. Atendendo à conjuntura
2 «No estado actual, embora se possa encontrar uma marcada tendência legislativa em direcção a uma protecção mais forte de posições de debilidade contratual não é possível afirmar a emersão de um princípio geral de tutela do contraente débil. (…) No ensino de Xxxxx Xxxxxxxx, no seu curso de Direito das Obrigações à Licenciatura em Direito da Universidade de Coimbra, a “Protecção da Parte Mais Fraca” é apresentada não como um Princípio normativo mas antes como uma tendência de desenvolvimento» - cfr. XXXXXXX, XXXXX XXXXXXX XXXX, Recensões, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra, 83, 2007, pp. 977-980.
3 Acerca do Estatuto Constitucional dos Consumidores, ver NABAIS, X. CASALTA, O estatuto constitucional dos consumidores, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3954, Janeiro- Fevereiro de 2009, pp. 137 e seguintes.
económico-financeira (ainda) existente, parece-nos de particular interesse a sua análise.
O Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, transpõe para a nossa ordem jurídica a Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito a consumidores. No intróito do diploma pode ler-se que o seu surgimento é resultado de «uma evolução profunda - social, política e económica - no espaço europeu. O mercado, ao longo de duas décadas, transformou-se radicalmente: consumidores mais informados e exigentes, novos actores e agentes intermediários, novos métodos na oferta e novas ferramentas - designadamente a Internet. Assim, surgiu a necessidade de uma nova legislação comunitária, que reflectisse, ao nível jurídico, a evolução verificada neste mercado».
Hodiernamente, o acesso ao crédito (cujo conceito ofereceremos seguidamente) tornou-se uma constante na vida das pessoas. Das famílias. Há, pois, cada vez mais necessidade de o regular.
Destarte, iremos lançar um olhar, que se espera atento, aos contratos de crédito a consumidores, consagrados no Decreto-Lei 133/2009, de 2 de Junho, apoiado pela jurisprudência4.
1. Dos conceitos orientadores dos contratos de crédito a consumidores
Para melhor compreendermos o âmbito do tema que acolhemos, reveste- se de particular interesse a introdução dos conceitos de “consumidor” e de “crédito” - sem demérito de outros que ao longo do presente estudo serão apresentados, todavia sem honras de espaço próprio.
4 A «realidade do direito dos consumidores, como afinal o direito em geral, tem os seus “espinhos” jurídicos, onde só a capacidade teórica de quem pensa o direito “in action” pode aceder», tal como refere XXXXX, XXXX XXXXXX, O Estado do Direito do Consumidor, Apresentação, revista Sub Judice 24, Abril de 2007, acedida e consultada em xxxx://xxxxxxxxx.xxxxxxxx.xxx/?xx00.
1.1. O conceito de consumidor
Considerando os vários diplomas existentes no nosso ordenamento jurídico, que regulam os actos de consumo5, não é possível apresentar uma definição única de consumidor6.
Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx0 adianta o conceito de consumidor partindo de três critérios distintos: elementos subjectivos, objectivos e teleológicos.
Do ponto de vista do elemento subjectivo, entende dever ser o consumidor uma pessoa, enquanto sujeito de direitos; fecha a questão quanto à possibilidade de as pessoas jurídicas também se incluírem no rol de consumidores, limitando o conceito àquelas que não tenham fins lucrativos. No que respeita ao aspecto objectivo, entende o Autor que o consumidor está ligado a bens (coisas) ou serviços. E, do ponto de vista teleológico, aduz que, para a correcta noção de consumidor, devem os tais bens ou serviços ter como
5 Indicamos, a título de exemplo, alguns diplomas que consideramos relevantes em matéria de consumo:
i. Lei 24/96, de 31 de Julho – defesa dos consumidores;
ii. Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril – vendas de bens de consumo e garantias;
iii. Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro – contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial;
iv. Lei n.º 144/2015, de 08 de Setembro - mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo;
v. Decreto-Lei n.º 560/99, de 18 de Dezembro – aproximação dos Estados membros respeitantes à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios destinados ao consumidor;
vi. Decreto-Lei 238/86, de 19 de Agosto – informação sobre a natureza, características e garantias de bens e serviços oferecidos ao público no mercado nacional em língua portuguesa;
vii. Decreto-Lei n.º 138/90 – exibição do preço;
viii. Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março – práticas comerciais desleais;
ix. Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro – livro de reclamações.
6 Acerca do conceito jurídico de consumidor, vide XXXXXX, XXXXX, O Conceito Jurídico de Consumidor; segundo o art. 2°/ 1 da Lei de Defesa do Consumidor, Boletim da Faculdade de Coimbra, Vol. LXXV – 1999, pp. 649-703.
7 Cfr. XXXXXXX, XXXXXX XXXXXXXX DE, Os Direitos dos Consumidores, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 203 e seguintes.
destino uma utilização final, que seja diversa de qualquer actividade profissional ou intermediária, ainda que pessoal ou privada.
Xxxxxx xx Xxxxx0 separa o conceito de consumidor em sentido lato – quem adquire, possui ou utiliza um bem ou serviço, quer para uso pessoal ou privado quer para uso profissional – do consumidor em sentido restrito - aquele que adquire, possui ou utiliza um bem ou um serviço para uso privado (pessoal, familiar ou doméstico), de modo a satisfazer as necessidades próprias e do agregado.
Quanto a Menezes Cordeiro9, entende que «a expressão técnica preferível deveria de ser consumador e não consumidor. Temos dois étimos latinos distintos: consummare (realizar ou terminar), na base de consumar e consumere (destruir ou absorver), na origem de consumir. Ora o “consumidor” (consummator) é – o por consumar o circuito económico, adquirindo o bem final e não por consumir o bem adquirido (seria, então, o consumptor): essa opção depende da natureza do bem e das decisões do adquirente sendo juridicamente indiferente».
Pese embora as diferentes abordagens, que preenchem um maior ou menor volume do conceito que se pretende esclarecer, certo é que o diploma que regula os contratos de crédito a consumidores nos oferece uma definição: o consumidor é a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente Decreto-Lei, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional10. Definição ligeiramente diferente da que nos oferece a Lei de Defesa do Consumidor.
Na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, nos termos do art. 2º, n.º 1, o consumidor é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou
8 Cfr. XXXXXX XX XXXXX, XXXX, Responsabilidade Civil do Produtor, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 58.
9 Cfr. XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXXX, Da natureza civil do Direito do Consumo, in Revista O Direito, Ano 136º, IV, 2004, p. 606.
10 Assim dispõe o art. 4º, n.º 1, a), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Para compreender as diferentes perspectivas, há que atender, em primeiro lugar, ao escopo dos diplomas - uns visam as garantias, outros os aspectos específicos da relação de consumo. E, em segundo lugar, mas não menos importante, à data de publicação dos diplomas, porquanto os conceitos vão evoluindo (espera-se que em sentido positivo)11.
1.2. O conceito de crédito
Actualmente, a palavra “crédito” encontra-se disseminada por todos os lugares. Desde a economia à sabedoria popular. Não obstante essa propagação, tentámos encontrar um conceito com um cunho jurídico. Diferentemente do conceito de “consumidor”, o Decreto-Lei 133/2009, de 2 de Junho, não nos oferece uma definição de “crédito”.
Para Xxxxx Xxxxxxx00 a origem do crédito está historicamente associada à ideia de excedente, que encontramos desde as comunidades primitivas. Tendo evoluído até à troca a crédito (não a contado, nem com termo).
Encontramo-nos, hoje, perante a troca a crédito, isto é, uma prestação presente e uma contraprestação futura. Deste modo, o conceito de crédito está directamente associado a uma relação jurídica que se estabelece entre o credor e o consumidor. Sendo credor «a pessoa, singular ou colectiva, que
12 Cfr. XXXXXXX, XXXXX XXXX XXXXX XXXXXXX, Estudos em homenagem aos Professores Doutores A. Xxxxx xx Xxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxxx, «A actual regulação do crédito ao consumo», Rei dos Livros, 2012, pp. 307 e 308.
concede ou que promete conceder um crédito no exercício da sua actividade comercial ou profissional»13.
2. Dos contratos de crédito a consumidores
Antes de nos dedicarmos em exclusivo ao contrato que nos ocupa, temos, necessariamente, de tecer algumas considerações acerca do contrato de consumo14.
2.1. Contrato de consumo
O contrato de consumo é aquele cujo objecto15, em sentido material – uma coisa, um serviço ou um direito –, se destina ao uso não profissional de um dos contraentes, sempre que a contraparte se encontre no exercício da sua actividade profissional16.
Há, todavia, autores que acolhem, como categoria funcional, o contrato de consumo que integra todos os contratos «que tenham em comum certos elementos de composição estrutural relativos ao objecto, às pessoas e à função económico-social. Em primeiro lugar, o objecto será, necessariamente, um bem de consumo, uma das partes será “uma empresa ou um profissional de certa actividade económica, não podendo a outra parte actuar nessa qualidade”
13 Tal qual preceitua o art. 4º, n.º 1, b), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
14 Um instituto sem respaldo na letra da lei mas unanimemente aceite por todos os actores jurídicos.
15 Os requisitos do objecto negocial encontram amparo no art. 280.º do Código Civil. No que tange ao objecto da relação jurídica, vide XXXXX, XXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2005, pp. 331 e seguintes.
16 A este propósito veja-se o segmento do Acórdão do Tribunal de Justiça (Nona Secção), de 15 de Janeiro de 2015 (TJUE), processo C-537/13, disponível em xxxx://xxxxx.xxxxxx.xx/: «A Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretada no sentido de que se aplica aos contratos standard de prestação de serviços jurídicos, como os que estão em causa no processo principal, celebrados por um advogado com uma pessoa singular que não atue para fins que pertençam ao âmbito da sua atividade profissional».
e sendo “a função económico-social […] a satisfação das necessidades pessoais dos consumidores”»17.
2.1.1. A formação (e forma) do contrato
O regime que se aplica à formação dos contratos de consumo encontra as suas regras gerais no Código Civil. Quanto às regras específicas, deveremos atender ao disposto nos diplomas inerentes a cada área do consumo. No nosso caso, as regras gerais deverão ser complementadas com o disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
A formação dos contratos abrange também, em sentido amplo, a sua forma, porque a forma é sempre requisito de existência e pode ser requisito de validade das declarações pelas quais os contratos conhecem a luz do dia. É difícil definir a forma. No entanto, tal como refere Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx00, «poderá dizer-se pela negativa e de modo simplista, que é forma tudo o que na declaração seja conteúdo».
No nosso ordenamento jurídico a regra geral, no que concerne à forma do contrato, é a da liberdade de forma, tal como consagra o art. 219º do Código Civil19. Deste modo e salvo disposição em contrário, a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial. Não obstante, face ao exposto no diploma em análise, os contratos de crédito devem ser exarados em papel ou noutro suporte duradouro, em condições de inteira legibilidade.
17 Cfr. XXXXX, XXX, Dicionário Jurídico, Volume I, 5.ª Edição, Edições Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 378.
18 Cfr. XXXXXXX, XXXXXX XXXXXXXX DE, Contratos I, 3.ª Edição, Almedina, Julho de 2005, p.
86.
19 «Mantém-se a regra da consensualidade ou da liberdade de forma do Código de 1897. As
exigências de forma têm, pois, carácter excepcional. Veja-se, porém, o art. 223.º sobre a possibilidade de as partes convencionarem uma forma especial para a declaração. O que a convenção das partes não pode afastar é a exigência de forma prescrita na lei» – Anotação ao art. 219.º do Código Civil, cfr. XXXX, XXXXX DE, e XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 210 e seguintes.
2.2. Contrato de crédito
Para a concessão de crédito ao consumo, é impreterível a existência de um contrato de crédito.
A definição de contrato de crédito é-nos oferecida pelo art. 4º, n.º 1, c), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho: o contrato pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante20.
Não se considera contrato de crédito, em sede do diploma em análise, conforme dispõe o art. 4º, n.º 221, o contrato de prestação continuada de serviços ou de fornecimento de bens de um mesmo tipo em que o consumidor tenha o direito de efectuar o pagamento dos serviços ou dos bens à medida que são fornecidos.
Face ao exposto, é pressuposto de existência de um contrato de crédito uma relação jurídica de consumo. Não todo o consumo, mas, tão só, aquele que integra o art. 4º, n.º 1, c), com as exclusões previstas nos artigos 2º e 3º do diploma22.
No que respeita a cada uma das formas de que o contrato de crédito se pode revestir, assumimos a ordem elencada na definição.
O diferimento de pagamento pressupõe a assunção de uma obrigação de entrega de um preço – venda a prestações, tal como dispõem os artigos 934º e seguintes do Código Civil, com ou sem reserva de propriedade (art. 409º do
20 Mantém a redacção já existente no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro (diploma revogado pelo Decreto-Lei n.º 133/09, de 2 de Junho).
21 Aqui se incluem os serviços públicos essenciais.
22 Destacamos os contratos de crédito para habitação e os contratos de crédito cujo montante total de crédito seja inferior a euro 200,00 ou superior a euro 75 000,00.
Código Civil), e a prestação de serviços a prestações, conforme art. 1154º do Código Civil.
No concernente ao mútuo23, encontramos a sua disciplina prevista e regulada no Código Civil - artigos 1142º e seguintes. O mútuo é «o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade»24. Considerando o diploma ora em análise, «apenas estão em causa os contratos de mútuo em que o mutuante é um profissional»25.
O contrato de mútuo pode ser concedido diversamente. Pode ser concedido por um fornecedor de um bem ou de um serviço, distinguindo-se do diferimento de pagamento por, neste caso, se celebrarem dois contratos, muito embora a relação se estabeleça apenas entre duas partes. Pode, de igual modo, ser concedido por uma instituição de crédito ou financeira, podendo ou não existir uma relação com o fornecedor do bem ou do serviço. Se existir, o dinheiro mutuado destina-se à aquisição desse bem ou desse serviço, sendo que, na generalidade dos contratos que têm essa característica, o dinheiro é entregue directamente pela instituição de crédito ou sociedade financeira ao fornecedor do bem ou do serviço.
Em qualquer dos casos supra identificados, sempre que o mútuo é concedido por uma instituição financeira, não é admissível a inclusão de uma
24 De harmonia com o disposto no art. 1142º do Código Civil.
25 Cfr. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Manual de Direito do Consumo, 2.ª Edição, Almedina, 2014, p. 268.
cláusula de reserva de propriedade26 a favor do mutuante27, a não ser que haja transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador28.
No que tange à utilização de cartão de crédito29, estão em causa os contratos de emissão de cartão de crédito e não a utilização de cartão de crédito. Os cartões de crédito emitidos por fornecedores de bens ou prestadores de serviços (estratégias de promoção comercial) devem ser juridicamente classificados como diferimento de pagamento ou como acordo de financiamento semelhante. Relativamente aos contratos de emissão de cartões de crédito, deveremos atender, para além do disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, aos diplomas que regulam especificamente esta matéria. Neste ponto, assumem particular importância o Decreto-Lei 166/95, de 15 de Julho30, e o Aviso n.º 11/2001, do Banco de Portugal31.
Por último, pode abranger a facilidade de descoberto, tal como define o art. 4º, n.º 1, d): contrato expresso pelo qual um credor permite a um consumidor dispor de fundos que excedem o saldo da sua conta corrente. A facilidade de crédito estende-se à ultrapassagem de crédito, tal como definido no art. 4º, n.º 1, e), isto é, o descoberto aceite tacitamente pelo credor
26 O instituto da reserva de propriedade (pactum reservati dominii) encontra-se consagrado no art. 409º do Código Civil.
27 «Com a reserva de propriedade visa o vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, caso em que o vendedor deseja obter a restituição da coisa, fazendo valer os seus direitos quer em face do comprador, quer de terceiros, credores do comprador, ou que por ele tenham sido investidos em direitos sobre a coisa. Consegue-o convencionando que a titularidade do direito de propriedade permaneça na sua esfera jurídica até ao integral pagamento do preço» - Cfr. XXXXXXXX, XXXX XXXX, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, pp. 23 e 24.
29 Seguimos de perto, XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Manual de …,ob. cit., p. 271.
30 Inerente ao Regime Jurídico da Xxxxxxx e Gestão de Cartões de Crédito.
31 Cujo texto define cartões de crédito e de débito e as condições de utilização destes instrumentos de pagamento.
permitindo ao consumidor dispor de fundos que excedem o saldo da sua conta corrente ou da facilidade de descoberto acordada.
2.2.1. Classificação
O contrato de crédito é um contrato nominado e típico, porquanto se encontra definido na lei – art. 4º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, -, e o seu regime estabelecido no mesmo diploma legal.
Quanto ao contrato de mútuo, inserido no âmbito do mesmo Decreto- Lei, não pode ser classificado como contrato real quoad constitutionem, uma vez que a letra e o espírito do diploma se referem ao empréstimo em dinheiro e não de outra coisa fungível. Encontrando-se abrangidos pelo diploma, somente, os contratos onerosos32.
2.2.2 A formação (e forma) do contrato
Na formação do contrato de crédito ao consumo têm particular relevância a informação e as declarações anteriores à celebração do contrato. Neste ponto, deve o Decreto-Lei em estudo ser complementado pelo diploma relativo às Cláusulas Contratuais Gerais - Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
2.2.2.1. Informação e práticas anteriores à celebração de contrato de crédito
A informação e as práticas anteriores à celebração do contrato de crédito são inovações do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho. Inovações que
32 Acerca da gratuidade ou onerosidade do mútuo dispõe o art. 1145º do Código Civil.
visam a protecção do consumidor. Os artigos 6º e seguintes tratam desta temática.
No que respeita à informação, impende sobre o consumidor a obrigação de a solicitar e a obrigação maior de cumprimento das suas obrigações contratuais (princípio geral do direito).
No concernente à publicidade (art. 6º), há a obrigatoriedade, por parte do credor e, se for o caso, do intermediário de crédito33, de prestar ao consumidor as informações necessárias para comparar diferentes ofertas, a fim de este tomar uma decisão esclarecida e informada. De forma a celebrar contratos adequados às suas necessidades.
Quanto ao dever de assistência ao consumidor, vertido no art. 7º do diploma, consubstancia-se na obrigação que recai sobre o credor e, se for o caso, sobre o mediador de crédito do adequado esclarecimento do consumidor, por forma a colocá-lo em posição que lhe permita avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às suas necessidades e à sua situação financeira. Esta obrigação abrange, designadamente, o fornecimento das informações pré-contratuais que permitam comparar diferentes ofertas – com vista a uma tomada de decisão esclarecida e informada (art. 6º) –, a explicitação das características essenciais dos produtos propostos, bem como a descrição dos efeitos específicos deles decorrentes para o consumidor, incluindo as consequências da respectiva falta de pagamento. Neste conspecto, encontramo-nos perante um reforço da análise às necessidades do consumidor.
Outra das inovações é o dever de avaliar a solvabilidade do consumidor. O art. 10º impõe que, antes da celebração do contrato de crédito, se avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações que para tal sejam
33 O intermediário de crédito é a pessoa, singular ou colectiva, que no exercício da sua actividade comercial ou profissional, contra remuneração pecuniária ou outra vantagem económica acordada, não actue na qualidade de credor. Conforme define o art. 4º, n.º 1, f), do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
consideradas suficientes. Estas informações podem ser obtidas junto do próprio consumidor que efectuou o pedido do crédito e, se necessário, através da consulta a bases de dados de responsabilidades de crédito, de harmonia com o quadro legal em vigor e com cobertura e detalhe informativo adequados para fundamentar essa avaliação.
Nos dias que correm, esta avaliação está sobejamente facilitada, porquanto são várias as bases de dados públicas que podem ser consultadas. A título de exemplo, referimos a plataforma informática do «Citius»34, quer para as situações de insolvência quer para a lista pública de execuções, e a lista de devedores à Autoridade Tributária35.
2.2.2.1.1 Taxa anual de encargos efectiva global (TAEG)36
A TAEG é outra das novidades introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho. É apresentada como uma das formas de protecção do consumidor.
A TAEG traduz-se no «custo total do crédito para o consumidor expresso em percentagem anual do montante total do crédito». Assim dispõe o art. 4º, n.º1, i)37. Este custo total é apurado de acordo com a forma de cálculo definida no art. 24º.
34 Que pode ser acedida e consultada em xxx.xxxxxx.xx.xx.
35 Disponível, para acesso e consulta, em xxxxx://xxx.x-xxxxxxxx.xxx.xx/xx/xxxxxx/xx- devedores.html.
36 A Directiva 2011/90/UE da Comissão, de 14 de Novembro de 2011, altera a parte II, do anexo I, da Directiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece os pressupostos adicionais para o cálculo da taxa anual de encargos efectiva global.
37 As taxas máximas a aplicar aos contratos de crédito ao consumo poderão ser consultadas no sítio da internet do Banco de Portugal, em:
xxxx://xxxxxxxxxxxxxxx.xxxxxxxxx.xx/xxXX/XxxxxXxxxXxxxxx/XxxxxxxXxxx/Xxxxxxxxxxxxxxxxxxx/Xxx inas/Taxasmaximas.aspx.
No cálculo da TAEG incluem-se, para além dos juros, todos os encargos a pagar pelo consumidor38. A equação de base que traduz a equivalência entre os levantamentos de crédito, por um lado, e os reembolsos e encargos, por outro, encontra arrimo no Anexo I, do Decreto-Lei que nos ocupa.
Não é possível mencionar a TAEG sem mencionar o instituto da usura. Em conformidade com o estatuído no art. 1146º do Código Civil, é havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estabelecidos juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, consoante exista ou não garantia real.
Atenta a importância desta matéria, o Decreto-Lei ora em análise contêm um dispositivo inerente à usura – art. 28º. Nele são identificadas as situações em que se considera que é havido como usurário o contrato de crédito.
Este preceito impõe uma dupla fronteira. Por um lado, é havido como usurário o contrato de crédito cuja TAEG exceda em um quarto a TAEG média praticada pelas instituições de crédito no trimestre anterior, para cada tipo de contrato de crédito aos consumidores (n.º 1), e, por outro, aquele em que a TAEG ultrapasse em 50% a TAEG média dos contratos de crédito aos consumidores celebrados no trimestre anterior (n.º 2).
38 Conforme nota do Banco de Portugal, acessível em xxxx://xxxxxxxxxxxxxxx.xxxxxxxxx.xx/, no cálculo da TAEG são incluídos:
i. Os juros, comissões, impostos e outros encargos associados ao contrato de crédito;
ii. Os seguros exigidos para obtenção do crédito;
iii. As comissões de mediação do crédito;
iv. Os custos relativos à manutenção de conta, cuja abertura seja obrigatória, que registe as operações de pagamento e de utilização do crédito;
v. Os custos relativos à utilização ou ao funcionamento de meio de pagamento que permita operações de pagamento e de utilização do crédito; e
vi. Outros custos relativos às operações de pagamento. No cálculo da TAEG não são incluídos:
i. As importâncias a pagar devido ao incumprimento de alguma das obrigações do contrato de crédito;
ii. As importâncias, diferentes do preço, que tenham de ser suportadas pelos clientes aquando da aquisição de bens ou da prestação de serviços, trate-se de negócio celebrado a pronto ou a crédito; e
iii. Os custos notariais.
Todavia, a questão que releva é a de saber se esta TAEG é um dos mecanismos de protecção dos consumidores, tal como refere o diploma em crise. Questão que nos leva até outra: saber se o regime imposto pelo art. 28º é suficiente para a protecção do consumidor.
Para Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx00, «se, por um lado, o artigo 22º da LOBP40 90 e o artigo 17º da LOBP 98 não contêm uma norma que possa ser tida como habilitante da derrogação dos limites de taxas de juro dos artigos 559º-A e 1146º do Código Civil e do artigo 102º do Código Comercial, também nada no Decreto-Lei n.º 133/09 impõe que os juros TAEG sejam isentos daqueles limites legais. (…) Não se pode, em minha opinião, retirar da ratio legis que lhe é imanente, o abandono dos consumidores a taxas de juro como aquelas que são permitidas pela sua limitação apenas ao regime do artigo 28º do Decreto-Lei 133/09 com dispensa dos limites dos artigos 559º e 559º- A do Código Civil e do artigo 102º do Código Comercial. A ratio juris imanente ao regime jurídico do crédito ao consumo é de ordem pública de proteção do consumidor, não é de proteção do seu financiador». Posição que acolhemos.
Parecer-nos-ia adequada a harmonização das taxas decorrentes do Decreto-Lei em apreciação com o Código Civil, porquanto iria permitir a fixação de limites consideravelmente mais baixos.
Observando os dados disponibilizados pelo Banco de Portugal41, face ao incumprimento dos contratos de consumo (e outros fins), verificamos que a percentagem de incumprimento é significativa (aprox. 20%). Incumprimento que resulta, muitas vezes, da impossibilidade de pagamento decorrente de
39 Cfr. VASCONCELOS, XXXXX XXXX DE, Taxas de Juro do Crédito ao Consumo – Limites Legais, Ebook de Direito Bancário, Coleção Formação Contínua, Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro de 2015, acedido e consultado em:
xxxx://xxx.xxx.xx.xx/xxx/xxxxxxxx/xxxxxx/xxxxx/Xxxxxxx_Xxxxxxxx.xxx.
40 Lei Orgânica do Banco de Portugal. Nota nossa.
TAEG demasiado elevadas, mesmo que em observância dos dispositivos legais.
Constitui contra-ordenação a violação do disposto nos artigos citados neste e no ponto anterior42.
2.2.2.2. Forma do contrato
O contrato de crédito deve ser exarado em papel ou noutro suporte duradouro, em condições de inteira legibilidade, de harmonia com o disposto no art. 12º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
Deve ser entregue a todos os contraentes, incluindo os garantes, aquando da validação do contrato de crédito, com a aposição da respectiva assinatura, um exemplar do mesmo devidamente assinado (conceito amplo de forma), conforme estatui o art. 12º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
Pese embora o preceito aluda a «contratos exarados em papel ou noutro suporte duradouro», dificilmente a forma pode ser a não escrita, na medida em que o próprio n.º 1, do citado artigo, se refere a «condições de inteira legibilidade». Exigindo-se que o contrato esteja contido num suporte que ofereça determinadas garantias de durabilidade no que respeita ao acesso à informação nele contida.
Deste modo, impõe-se uma forma especial para a celebração do contrato
– o documento escrito, exigindo-se o cumprimento de duas formalidades: a assinatura do documento pelos contraentes, que se encontra implícita no art. 12º, n.º 2, e a entrega ao consumidor de um exemplar desse documento, expressamente prevista no preceito43. O artigo 12º tem natureza imperativa.
42 Conforme preceitua o art. 30º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
43 Continuamos a seguir de perto XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Manual…, ob. cit., p.297.
No que respeita ao momento da entrega, dispõe o citado dispositivo que deve ser efectuada no momento da respectiva assinatura. Uma vez que «só com a entrega de um exemplar do contrato no momento da sua perfeição é que o consumidor pode inteirar-se do seu conteúdo, sopesar as vantagens e desvantagens do contrato, ajuizar da informação prestada pelo proponente, dissipar dúvidas e assegurar-se da transparência da negociação»44.
Neste âmbito, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu, recentemente, uma decisão45 acerca da obrigatoriedade de entrega de um exemplar do contrato ao mutuário-consumidor na altura da sua assinatura do contrato. Segundo o acórdão, a obrigatoriedade de entrega de um exemplar do contrato aplica-se, de igual modo, aos casos em que o credor e o devedor não estabeleceram um contacto directo tendo em vista o aperfeiçoamento do negócio, servindo-se para o efeito da intermediação do fornecedor do bem cuja aquisição foi alvo do financiamento.
No concernente às cominações decorrentes da inobservância dos requisitos supra mencionados, há a presunção de que a falta é «imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor», como preceitua o art. 13º, n.º 5 46.
O consumidor pode, de harmonia com o n.º 6, do mesmo artigo, provar a existência do contrato por qualquer meio, salvo se tiver invocado a sua invalidade. Trata-se, assim, de uma invalidade atípica47 ou mista - em que a
45 Cfr. Acórdão do TRL, datado de 21 de Abril de 2016, inerente ao processo n.º 187/14.5TBTVD.L1-2 (XXXXX XXXX), disponível em xxx.xxxx.xx.
47 Sobre a invalidade do negócio jurídico, vide ALARCÃO, RUI DE, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, III, Xxxxxxxx, 1983, pp. 609 e seguintes.
nulidade apenas pode ser invocada por determinadas pessoas ou entidades. No caso em apreço, pelo consumidor48.
2.2.3. Livre resolução
Ao consumidor assiste o direito de livre resolução do contrato. Este direito à livre revogação do contrato concretiza a sua única possibilidade de recuar de forma válida no negócio. É um mecanismo de protecção face à precipitação em que pode ter incorrido no momento em que se vinculou ao negócio.
O consumidor dispõe de 14 dias de calendário, sem necessidade de invocar qualquer motivo, para resolver o contrato, conforme dispõe o art. 17º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
Este prazo inicia-se a partir da data da celebração do contrato de crédito ou a partir da data de recepção pelo consumidor do exemplar do contrato e das informações a que se refere o art. 12º49.
Para o exercício deste direito, o consumidor deve remeter a declaração de resolução no prazo supra referido, em papel ou noutro suporte duradouro à disposição do credor e ao qual este possa aceder, cumprindo os requisitos a que se refere a alínea h) do n.º 3 do art. 12º.
49 O art. 12º dispõe acerca dos requisitos do contrato.
Lançar mão deste direito faz impender sobre o consumidor a obrigação de pagar, ao credor, o capital e os juros vencidos a contar da data de utilização do crédito até à data de pagamento do capital, sem atrasos desnecessários, em prazo que não pode ultrapassar 30 dias após a envio da comunicação, de harmonia com o postulado pelo art. 17º, n.º4.
2.2.4. Contratos coligados
É muito comum nos contratos de crédito a existência de mais do que um contrato. Nomeadamente, o contrato de compra e venda e o contrato de mútuo.
Em conformidade com o disposto no art. 4º, n.º 1, o), para que se considere que o contrato de crédito está coligado a um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços específico, têm que, de modo cumulativo, ocorrer dois factos: o crédito concedido tem de servir exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos e os ditos contratos constituírem objectivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor for financiado pelo fornecedor ou pelo prestador de serviços ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorrer ao fornecedor ou ao prestador de serviços para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou o serviço específico estiverem expressamente previstos no contrato de crédito.
No que concerne à vida do contrato coligado, refere o art. 18º que a invalidade ou a ineficácia do contrato de crédito coligado se repercute, na mesma medida, no contrato de compra e venda. Do mesmo modo, a
invalidade ou a revogação do contrato de compra e venda repercute-se, em igual medida, no contrato de crédito coligado50.
2.2.5. Incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor
Acerca do incumprimento por parte do consumidor51, dispõe o art. 20º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho. Nos contratos de crédito ao consumo, quanto aos fundamentos da resolução, encontramos um regime diferente do consagrado no nosso Código Civil (artigos 1083º e seguintes).
Nos contratos de crédito ao consumo, só é possível ao credor invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem determinadas circunstâncias. Deste modo, só com a falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10 % do montante total do crédito e com o insucesso da concessão, pelo credor, de um prazo adicional, que não pode ser inferior a 15 dias, para regularização das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, advertindo expressamente o consumidor dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato, pode o credor invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato.
Neste conspecto, o Tribunal da Relação de Évora, num acórdão de 12 de Fevereiro do corrente52, decidiu que «atendendo à interpretação teleológica do
50 Sobre esta temática, vide Xxxxxxx do TRP, datado de 23 de Fevereiro de 2012, inerente ao processo n.º 359/06.6TBARC-A.P1, (XXXXX XXXXXXX XXXXXX), disponível em xxx.xxxx.xx, cujo sumário transcrevemos: «I – Nos contratos de crédito ao consumo a invalidade do contrato que resulte da omissão da entrega de um exemplar do mesmo não pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal. II – A invalidade ou ineficácia de um dos contratos (de crédito ao consumo ou de compra e venda) repercute-se no outro».
52 Inerente ao processo n.º 341/13.7TBVV.E1 (XXXXX XXXX), disponível em xxx.xxxx.xx.
Decreto-lei n.º 133/2009, de 02 de Junho, que tem por fito estabelecer os mecanismos que permitam assegurar, de forma imperativa, a protecção do consumidor, e à coerência sistemática e racional que deve ser tida em conta na interpretação harmoniosa dos art.ªs 19º e 20º do diploma, conclui-se que este veda que num Contrato de Crédito ao Consumo, mormente num Contrato de Mútuo, estabelecido entre uma entidade que tem como actividade profissional a concessão de crédito e um consumidor, se estabeleçam cláusulas que permitam ao credor, em caso de, por sua iniciativa, e em face do incumprimento do devedor, accionar os mecanismos a que alude o art. 20º do diploma, invocando a perda do benefício do prazo, poder exigir à contraparte juros remuneratórios sobre as prestações que se venceram imediatamente por via dessa invocação».
Ante o cenário de incumprimento torna-se necessário encontrar soluções de resolução do mesmo. Existem duas formas de resolução: a judicial e a extrajudicial. Aqui, vamos apenas dedicar a nossa atenção à resolução extrajudicial.
No que respeita à resolução extrajudicial de conflitos, dispõe o art. 32º. A resolução extrajudicial de conflitos é, por via de regra, uma forma mais rápida e simples e, simultaneamente, menos onerosa de as partes resolverem os seus conflitos, sem necessidade de recurso aos tribunais.
No nosso ordenamento jurídico estão disponíveis vários mecanismos de apoio ao consumidor no que concerne ao incumprimento53. De entre eles, salientamos o Decreto-Lei n.º 227/2012, 25 de Outubro.
53 Os consumidores em dificuldade de cumprimento das suas obrigações podem recorrer, sem quaisquer custos, à rede de apoio ao consumidor endividado. Esta rede é composta por entidades que têm como missão informar, aconselhar e acompanhar clientes bancários que se encontrem em risco de incumprimento ou que já tenham prestações de crédito em atraso. As entidades que compõem esta rede são divulgadas no Portal do Consumidor (xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xx/). Podem, de igual modo, ser conhecidas através do Portal do Cliente Bancário, conforme dispõe o manual do Banco de Portugal subordinado ao tema «INCUMPRIMENTO DE CONTRATOS DE CRÉDITO. Prevenção e regularização do incumprimento por clientes bancários particulares», que pode ser acedido no sítio da internet do Banco de Portugal, in:
O Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro – Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) –, estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações. De harmonia com o estatuído no art. 2º, n.º1, c), o PARI aplica-se aos «contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72- A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo».
Os princípios orientadores deste diploma, em conformidade com o disposto no art. 4º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, são muito claros. Por um lado, as instituições de crédito devem proceder com diligência e lealdade, adoptando as medidas adequadas à prevenção do incumprimento de contratos de crédito e, nos casos em que se registe o incumprimento das obrigações decorrentes desses contratos, envidando os esforços necessários para a regularização das situações de incumprimento em causa. Por outro, os consumidores54 devem gerir as suas obrigações de crédito de forma responsável e, com observância do princípio da boa-fé, alertar atempadamente as instituições de crédito para o eventual risco de incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito e colaborar com estas na procura de soluções extrajudiciais para o cumprimento dessas obrigações.
O consumidor tem o direito a obter, de forma gratuita, informação, aconselhamento e acompanhamento por parte das entidades habilitadas a
df.
xxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xx/xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.x
54 No diploma em apreço, este “consumidor” é apelidado de «cliente bancário» - consumidor, na
interpretação dada pelo artigo 2º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, que intervenha como mutuário em contrato de crédito, conforme estatuído no art. 3º, a).
efectuar operações de crédito, de acordo com o postulado no art. 6º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro. Inerentemente, as instituições de crédito estão obrigadas a elaborar e a implementar um plano de acção para o risco de incumprimento, que descreva detalhadamente os procedimentos e as medidas adoptados para o acompanhamento da execução dos contratos de crédito e a gestão de situações de risco de incumprimento (art. 11º, n.º 1). Estando, estas, impedidas de cobrar comissões pela renegociação das condições do contrato de crédito, nomeadamente no que respeita à análise e à formalização dessa operação (art. 8º).
Estas instituições promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI)55, no que respeita aos consumidores que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, conforme dispõe o art. 12º.
Sempre que o consumidor se mantenha em incumprimento por um período superior a 30 dias após a data de vencimento da obrigação, é, obrigatoriamente, incluído no PERSI. Esta inclusão ocorre entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação (art. 14º, n.º 1). Segue-se a fase de avaliação da capacidade financeira do consumidor e consequentemente a apresentação de proposta(s) – instituição de crédito – e eventuais contraproposta(s) – consumidor –, e, caso se aplique, nova(s) proposta(s), em consonância com o disposto nos artigos 15º e 16º.
Caso o contrato esteja garantido por fiança, a instituição de crédito deve informar o fiador56, no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da
55 Sobre esta matéria, consultar a Carta Circular nº 93/2012/DSC, de 28-12-2012, relativa à articulação entre o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento regulado pelo Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, e o regime previsto na Lei nº 58/2012, de 9 de Novembro, e a Instrução n.º 44/2012, que dispõe acerca da comunicação de informação relativa a contratos de crédito abrangidos pelos procedimentos previstos no PERSI e no Regime Extraordinário. Ambas do Banco de Portugal.
56 O fiador pode solicitar a inclusão do devedor no PERSI, conforme estatui o art. 21º, n.º 4.
obrigação em mora, do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida, de acordo com o art. 21º.
Durante a execução do PERSI, a instituição de crédito está impedida de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento e a intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito. Está, também, impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou transmitir a terceiro a sua posição contratual, de harmonia com o preceituado no art. 18º.
Os factos motivadores da extinção do PERSI encontram-se elencados no art. 17º. A extinção do PERSI ocorre com o pagamento integral dos montantes em mora ou com a extinção, por qualquer outra causa legalmente prevista, da obrigação em causa. Pode, de igual modo, extinguir-se com a obtenção de um acordo entre as partes com vista à regularização integral da situação de incumprimento. Outra das causas de extinção assenta na verificação de inexistência de capacidade financeira do consumidor ou na recusa do consumidor ou da instituição de crédito das propostas apresentadas pelas contrapartes. Neste cenário, o PERSI extingue-se no 91º dia seguinte à data de integração do consumidor neste procedimento, excepto se as partes acordarem na prorrogação deste prazo. Por fim, pode extinguir-se com a declaração de insolvência do consumidor.
Notas finais
Volvidos mais de vinte anos sobre a vigência da Directiva n.º 87/102/CEE, do Conselho, de 22 de Dezembro de 1986, surgiu uma nova directiva relativa a contratos de crédito aos consumidores: Directiva n.º 2008/48/CE, de 23 de Abril. Esta nova directiva exprime a urgência na realização de um mercado comunitário de produtos e serviços financeiros, designadamente prevendo a uniformização da forma de cálculo e dos elementos incluídos na taxa anual de encargos efectiva global e reforçando os
direitos dos consumidores, no que tange, sobretudo, ao direito à informação pré-contratual. Revogando os textos comunitários vigentes sobre esta matéria.
O Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, objecto da presente análise, transpõe para a ordem jurídica interna essa mesma directiva.
O Decreto-Lei ora em análise surge quase que em simultâneo com o despoletar da crise económica, com o intuito de regular o crédito e de proteger o consumidor – essa pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos por este diploma, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional. Esse ser dotado de direitos e obrigações.
O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, à informação para o consumo e à protecção dos interesses económicos57. Todavia, esta protecção exige um consumidor atento. Um consumidor esclarecido. Sempre que este se demite das suas funções, coloca-se, obviamente, numa posição de enorme fragilidade (que extrapola a que já lhe é naturalmente atribuída).
Conforme foi exposto, há ainda um longo caminho rumo à protecção efectiva dos seus direitos, não fora a constante necessidade de regular os actos de consumo.
Pese embora o consumidor deva gerir as obrigações de crédito de forma responsável, continua a ser assediado pelo mercado consumista – pelas marcas, pelas instituições de crédito. Acresce o facto de, em muitas situações, se submeter a uma taxa de esforço superior à recomendada – alocando ao crédito mais de 40% do seu rendimento. Estes dois factores, aliados à incerteza do mercado de trabalho e às suas mutações, continuam a ser sinónimos de um rácio bastante elevado de incumprimento.
57 Cfr. art. 3.º da Lei 24/96, de 31 de Julho.
Segundo os dados58 do Instituto Nacional de Estatística, divulgados pelo Banco de Portugal, com referência ao período compreendido entre 2009 e 2014, há um agravamento dos indicadores de incumprimento, em especial no consumo.
Mantém-se, portanto, a urgência de dotar os consumidores da informação necessária à vinculação consciente, responsável e esclarecida ao crédito ao consumo.
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx
Solicitadora Mestranda em Solicitadoria
58 Estes dados podem ser acedidos e consultados no sítio da internet do Instituto Nacional de Estatística, cujo endereço é xxx.xxx.xx.
Data enia
Revista Jurídica Digital
ISSN 2182-6242
Ano 4 ● N.º 06 ● Novembro 2016