ACORDO DE ACIONISTAS E O DEVER DE RENEGOCIAR
ACORDO DE ACIONISTAS E O DEVER DE RENEGOCIAR
Xxxxx: Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx de Sá Orientadora: Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxxx Terra
I) Introdução
Contratar é assumir riscos. Essa afirmativa, verdadeira para os contratos em geral, possui especial aplicação em relação aos contratos de longa duração, nos quais “nem sequer como ilusão a fixidez pode se manter”1. Os contratos duradouros, por se protraírem no tempo, são, portanto, muito mais suscetíveis aos seus efeitos deletérios do que os contratos instantâneos, estando sujeitos a riscos diversos, como os financeiros, climáticos, estratégicos, fiscais e políticos, entre outros. Tais riscos consubstanciam os chamados “vícios de execução”, ou seja, perturbações que podem ocorrer durante a execução e cumprimento do contrato2.
Os efeitos causados pelo decurso do tempo, assim, tornam-se elemento fundamental a ser sopesado quando da celebração de um contrato, o que se mostra ainda mais complexo nos contratos empresariais, dado o dinamismo intrínseco a essa atividade. Diante do reconhecimento de que o tempo pode alterar de forma significativa as bases sobre as quais o contrato fora celebrado, modificando o sinalagma inicialmente acordado entre as partes, o ordenamento jurídico passou a prever a possibilidade de sua resolução (art. 478 do Código Civil) ou mesmo de sua revisão judicial (art. 317 Código Civil), no intuito, neste último caso, de garantir à parte potencialmente lesada o reequilíbrio das prestações quando estas se tornarem manifestamente desproporcionais3.
Não obstante, apesar da existência dos citados mecanismos legais, é lícito às partes, no exercício de sua autonomia privada, formularem critérios e mecanismos diversos para gerir esse risco contratual. Uma dessas formas de gestão negocial dos riscos contratuais consiste nas chamadas cláusulas de hardship, que, na definição de Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx, são “aquelas que estabelecem um dever de renegociar um contrato quando ocorrer uma modificação substancial das circunstâncias, modificação essa, susceptível de afectar o equilíbrio global do contrato”4.
Ocorre, porém, que essa obrigação de renegociação, muito embora possa ser estipulada por meio de determinada cláusula inserida no contrato, também pode ser entendida como um
1 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração. Revista de Arbitragem e Mediação, ano 7, n. 25, abril a junho de 2010, p. 16.
2 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. A obrigação de renegociar no direito contratual brasileiro. Revista do Advogado, ano XXXII, n. 116, julho de 2012, p. 89.
3 XXXXXX, Xxxxxxxxx. A base objetiva do negócio jurídico e as consequências da sua quebra. Revista de Direito Privado, ano 10, n. 39, julho a setembro de 2009, p. 169.
4 A hardship clause e o problema da alteração das circunstâncias (breve apontamento). In: VAZ; Xxxxxx Xxxxxx; XXXXX; J. A. Azeredo (Coord.). Juris et de jure: nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto. Coimbra: Xxxxxxx Xxxxxxx, 0000, p. 21-22.
dever legal geral nos contratos de longa duração5, na medida em que se caracterizam como relações de intensa cooperação, nas quais a boa-fé objetiva funciona como elemento estruturante do próprio contrato6.
De acordo com Xxxxxx Xxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxxx xxx Xxxxxx, nos contratos de longa duração está presente um “ambiente de renegociação permanente (cooperação renegociadora continuada)”, de modo que, nesses casos, “antes de contratual (caso as partes tenham previsto cláusula hardship), o dever de renegociação contratual se traduz em obrigação legal”7. Sentido semelhante – porém deslocando a obrigação de renegociação para um dever lateral de conduta fundamentado na boa-fé – é sugerido por Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx:
A evolução da teoria contratual, especialmente nos pactos de duração, abre caminho no sentido de se considerar imperativa a renegociação com apoio no princípio da boa-fé e no dever de cooperação, porém, não como obrigação legal específica, mas como um dever lateral de conduta, mesmo na ausência de cláusula de renegociação.
Nessa situação, o desatendimento da obrigação de renegociar não importa inadimplemento contratual, senão de dever lateral, ensejando perdas e danos, impedindo, outrossim, execução específica8.
Dentre os diversos tipos contratuais de longa duração utilizados nos meios empresariais, uma modalidade em especial merece ser destacada: o acordo de acionistas. Isso porque se trata de tipo contratual “da maior importância para a vida comercial”9, largamente utilizado na prática empresarial brasileira e que assumiu grande protagonismo no mercado acionário nacional.
II) Objetivos
Por meio do presente trabalho, buscar-se-á identificar, no vínculo de cooperação e lealdade existente no acordo de acionistas, uma fonte para o dever de renegociação desse pacto parassocial quando da alteração das bases objetivas sobre as quais ele se firma, como alternativa à sua resolução judicial.
III) Metodologia
A pesquisa será realizada, principalmente, com base em análise da doutrina, da jurisprudência e da legislação brasileira. O método lógico-indutivo será utilizado para a análise crítica do conteúdo colhido, com o fim de examinar de forma sistemática o assunto objeto da pesquisa.
5 XXXX XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx dos. Renegociação contratual. Revista dos Tribunais, ano 100, vol. 906, abril de 2011, p. 139.
6 VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Abuso de minoria em direito societário (Abuso das posições subjetivas minoritárias). São Paulo, 2010, p. 137. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.
7 Ob. Cit., p. 140.
8 Ob. Cit, p. 95.
9 Exposição de Motivos nº 196, de 24 de junho de 1976, do Ministério Da Fazenda. Disponível em
<xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxx/xxx/xxxxxxxxxx/xxxx/xxxxxx/XX000-Xxx0000.xxx>. Acesso em 19 de junho de 2016.
IV) Resultado
IV.1) Características gerais do acordo de acionistas
O acordo de acionistas consiste em instrumento contratual utilizado em larga escala no mundo empresarial. Esse tipo contratual encontra-se previsto no art. 118 da Lei nº 6.404, de 1976, o qual dispõe que “os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede”.
Por meio do acordo de acionistas, notadamente nos acordos de voto e de controle, são estabelecidas normas de conduta aplicáveis às partes convenentes, visando à composição dos interesses particulares dos acionistas de determinada companhia e, ainda, à harmonização de tais interesses aos objetivos sociais da sociedade10.
Em que pese possuir disciplina própria na Lei nº 6.404, de 1976, o acordo de acionistas é um contrato, razão pela qual está submetido às normas comuns aplicáveis aos negócios jurídicos privados em geral, previstas no Código Civil11. Segundo a definição de Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxx:
O acordo de acionistas é essencialmente um contrato, cuja origem e disciplina fundamental estão no direito das obrigações. Suas particularidades decorrem de que ele disciplina direitos e relações dos acionistas de uma mesma companhia entre si, mas, ao mesmo tempo, não se confunde com os atos constitutivos da sociedade, sendo, por isso, considerado ‘parassocial’.
Daí por que o acordo de acionistas pode ser conceituado como o contrato entre determinados acionistas de uma mesma companhia, distinto de seus atos constitutivos, e que tem por objeto o exercício dos direitos decorrentes da titularidade de suas ações, especialmente no que tange ao voto e à compra e venda dessas ações12.
Trata-se de contrato acessório ao contrato social (pacto parassocial), classificado na categoria dos contratos de execução continuada, na medida em que, conforme leciona Xxxxxx Xxxxxxxxxx, “a obrigação daqueles que se vinculam ao acordo se extingue a cada reunião assemblear, ou de outros órgãos sociais, ou exercício do direito de preferência, renovando-se subsequentemente, até que o contrato chegue a seu termo”13.
Dentre os assuntos que podem ser objeto desse pacto parassocial, conforme previsão constante do caput do art. 118 da Lei nº 6.404, de 1976, assume especial relevância para o presente trabalho a disciplina do poder de controle. Notadamente a partir do sistema criado pela reforma da lei societária pela Lei nº 11.303, de 2001, os denominados acordos de controle, modalidade do gênero contratual acordo de acionistas, passaram a integrar a organização
10 XXXXXXX, Xxxxxx. A Lei das S/A Comentada. Volume I – Arts. 1º a 120. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 702.
11 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. Acordo de acionistas: homenagem a Xxxxx Xxxxx Xxxxx. São Paulo: Saraiva, p. 21.
12 XXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Acordo de acionistas: panorama atual do instituto no direito brasileiro e propostas para a reforma de sua disciplina legal. Revista de Direito Brancário e do mercado de Capitais, vol. 8, abril de 2000, p. 32.
13 Acordo de acionistas: possibilidade de resilição unilateral e suas restrições. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 8, vol. 30, abril a junho de 2007, p. 32.
societária de tal forma que atualmente são vistos como uma verdadeira instância dessa estrutura14.
A principal disposição dos acordos de controle consiste em estipular para as partes que integram o bloco controlador a determinação de exercerem de maneira uniforme o poder de controle da sociedade (contrato normativo)15. Como ensina Xxxx Xxxx Xxxxxxx Pedreira:
(...) a estipulação essencial do acordo de acionistas que organiza grupo de controle é a que cria para todos os membros do grupo a obrigação de exercer seus direitos de voto de modo uniforme, pois é o fato desses votos serem exercidos no mesmo sentido que cria e mantém o poder de controle16.
IV.2) A affectio societatis no acordo de acionistas
A affectio societatis consiste no elemento subjetivo intencional que distingue o contrato de sociedade da mera comunhão de interesses e, de acordo com a doutrina moderna, inspirada na escola francesa, não se reveste apenas como a vontade de formar o contrato de sociedade, sendo também um requisito da continuidade de sua existência.
Vale ressaltar que, hodiernamente, a partir da funcionalização dos institutos jurídicos à luz dos preceitos constitucionais, a affectio societatis se revela como um reflexo da autonomia privada, encontrando seu fundamento especialmente no princípio da liberdade de associação (art. 5º, XX, CRFB), mas também nos princípios da função social da propriedade empresária (art. 170, III, CRFB), da solidariedade (art. 1º, art. 3º, I; art. 170, caput, CRFB), da função social da livre iniciativa (art. 1º, IV; art. 170, caput, IV e parágrafo único, CRFB) e da justiça social (art. 3º, I, III e IV; art. 170, caput, CRFB)17.
A questão da existência ou não da affectio societatis nos acordos de acionistas é controversa, na medida em que a teoria clássica identifica aquele ânimo, em regra, nos contratos de sociedade, sendo certo que o acordo de acionistas não se enquadra nessa categoria, diante da ausência de registro e de tipicidade, circunstância da qual decorre sua rotineira caracterização como sociedade de fato18.
Esse complexo tema foi ventilado no Recurso Especial nº 388.423-RS (2001/0169839- 0), julgado em 13 de maio de 2013 pela Quarta Turma do Superior Tribunal do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx, assim ementado:
SOCIEDADE ANÔNIMA. ACORDO DE ACIONISTAS . RESOLUÇÃO COM BASE NA QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS E DO DEVER DE LEALDADE E COOPERAÇÃO ENTRE OS CONVENENTES.
POSSIBILIDADE JURÍDICA. (...) I - Admissível a resolução do acordo de
14 XXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Acordo de acionistas como instância da estrutura societária. In: O novo direito societário. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 127.
15 XXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx. Acordo de acionistas. In: XXXX XXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxx Xxxx Xxxxxxx (Coord.). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 462.
16 Acordo de acionistas sobre controle de grupo de sociedades: validade da estipulação de que os membros do conselho de administração de controladas devem votar em bloco segundo orientação definida pelo grupo controlador. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 15, janeiro de 2002, p. 226.
17 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Resolução de acordo de acionistas com base na quebra da
affectio societatis. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 6, vo. 23, julho a setembro de 2005, p. 157.
18 XXXXXXX XXXXX, Ob. Cit., p. 127.
acionistas por inadimplemento das partes, ou de inexecução em geral, bem como pela quebra da affectio societatis, com suporte na teoria geral das obrigações, não constituindo impedimento para tal pretensão a possibilidade de execução específica das obrigações constantes do acordo, prevista no art. 118, § 3º da Lei 6.404/76. (...).
O caso envolvia a demanda de um acionista que buscava a resolução do acordo de acionistas do qual participava, com fundamento na quebra da affectio societatis em razão de reiteradas condutas nocivas de suas contrapartes, que teriam descumprido seu dever de lealdade e de cooperação. Em sede de primeira instância, a sentença destacou que o comportamento abusivo e falta de boa-fé configurariam o inadimplemento contratual, capazes de autorizar o provimento ao pedido de resolução do acordo de acionistas. A decisão foi mantida no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em razão do “incumprimento do acordo por uma das empresas nele figurantes, que passou a agir, abertamente, contra a cooperação e interesses comuns”.
Quando do julgamento do recurso especial no Superior Tribunal de Justiça, o Ministro- Relator Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx observou em seu voto que o acordo de acionistas consiste em um tipo de contrato plurilateral. Essa categoria contratual se distingue dos denominados contratos bilaterais, segundo a clássica lição de Xxxxxx Xxxxxxxxx, pela possibilidade de participação de mais de duas partes num mesmo contrato, característica que impõe a todas essas partes obrigações e direitos mútuos19.
Ao contrário das relações bilaterais, nos contratos plurilaterais as prestações dos contratantes tem por finalidade o alcance de um fim comum; é o que ensina Ascarelli:
À pluralidade corresponde a circunstância de que os interesses contrastantes das várias partes devem ser unificados por meio de uma finalidade comum; os contratos plurilaterais parecem como contratos com comunhão de fim. Cada uma das partes obriga-se, de fato, para com todas as outras, e para com todas as outras adquire direitos; é natural, portanto, coordená-los, em torno de um fim, de um escopo comum.
O conceito de ‘fim ou escopo’ adquire assim, nos contratos plurilaterais, a sua autonomia.
Nos demais contratos, o ‘fim ou escopo’ do contrato, quando entendido em sentido genérico, identifica-se com a função típica do próprio contrato (por exemplo, troca de coisa por preço); permanece, em princípio, no campo dos motivos, quando entendido em relação a uma atividade ulterior das partes, para cuja realização seja concluído o contrato.
Nos contratos plurilaterais, ao contrário, o escopo, em sua precisa configuração em cada caso concreto (por exemplo, constituição de uma sociedade para a compra e venda de livros), é juridicamente relevante. Constitui o elemento ‘comum’, ‘unificador’ das várias adesões, e concorre para determinar o alcance dos diretos e deveres das partes20.
Dessa característica de plurilateralidade se extrai a conclusão de que os sócios, enquanto vinculados ao acordo de acionistas, tem por precípuo dever a cooperação com as suas contrapartes, de modo que, nas palavras do Ministro-Relator, “a quebra da proclamada affectio
19 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva & Cia, 1945, p. 275.
20 Ob. Cit., p. 290-291.
societatis outra coisa não traduz, ao fim e ao cabo, senão rematada inadimplência a esse básico dever”. Concluiu-se, assim, naquele julgamento, pelo acerto das decisões recorridas que decretaram a resolução do acordo de acionistas com fundamento na quebra da affectio societatis, pois a deslealdade e as atitudes incompatíveis com o dever de cooperação inviabilizariam a continuidade daquele contrato.
Ao comentar a referida decisão, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx dela extrai três conclusões. Em primeiro lugar, a decisão do Superior Tribunal de Justiça teria acolhido, indiretamente, a existência de affectio societatis nas sociedades anônimas, afastando, assim, as discussões atinentes à sua qualificação como “sociedade de capital” em contraposição à ideia de “sociedade de pessoas” (intuito personae). Em segundo lugar, a decisão teria corroborado a necessidade de aplicação ao acordo de acionistas dos princípios que regem o Direito Societário e, também, de elementos que caracterizam os contratos de sociedade, diante de sua natureza de contrato plurilateral e de contrato associativo. E, em terceiro lugar, o Superior Tribunal teria consagrado a possibilidade de resolução do acordo de acionistas por quebra da affectio societatis, considerando, para tanto, a sua funcionalização à luz do princípio constitucional de liberdade de associação21.
IV.4) Boa-fé objetiva e acordo de acionistas
É cediço que a boa-fé objetiva passou, nas últimas décadas, a ter papel central no Direito brasileiro, notadamente a partir do Código Civil de 2012, que a positivou como cláusula geral em diversos dispositivos, em especial os arts. 113, 187 e 422. Embora sua definição seja tecnicamente difícil, a doutrina em geral atribui à boa-fé objetiva três grandes funções: (i) a de fonte geradora de deveres jurídicos que impõem às partes a consideração com o alter; (ii) a de balizadora do modo de exercício das posições jurídicas; e (iii) a de cânone hermenêutico dos negócios jurídicos obrigacionais22.
Segundo Clóvis do Couto e Silva, a intensidade de aplicação da boa-fé verifica-se a partir do tipo de relação jurídica em análise23. Nessa mesma linha, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx também assevera que, “apesar de cogente, a regra da boa-fé tem aplicações mais, ou menos intensas, especialmente conforme suas funções e os tipos negociais”24.
Nos negócios bilaterais, o princípio da boa-fé opera, essencialmente, como mandamento de consideração entre as partes (mea res agitur) e, caso o vínculo jurídico se volte a uma atividade em proveito de um terceiro, a necessidade de considerar os interesses da outra parte torna-se conteúdo do dever daquele que esteja em posição de gestor ou fiduciário (tua res agitur). Por sua vez, sustenta Clóvis do Couto e Xxxxx que:
Nas relações jurídicas em que a cooperação se manifesta em sua plenitude (nostra res agitur), como nas de sociedade, em parte nas de trabalho e, principalmente, na comunidade familiar, cuida-se de algo mais do que a mera consideração, pois existe dever de aplicação à tarefa suprapessoal, e exige-se
21 Ob. Cit., p. 155.
22 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Xxxxxxx Xxxx, 2015, p. 42.
23 A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 34.
24 Considerações sobre a boa-fé objetiva em acordo de acionistas com cláusula de preferência: excertos teóricos de dois pareceres. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 127.
disposição ao trabalho conjunto e a sacrifícios relacionados com o fim comum25.
As relações associativas – incluídas nesse conceito, para fins do presente trabalho, tanto as relações de associação quanto as de sociedade –, possuem por mais peculiar característica o seu elemento instrumental, na medida em que esses negócios jurídicos são voltados à criação de veículos que tem por finalidade a estruturação de organizações que perseguem um fim comum.
Dessa característica decorre que a boa-fé objetiva se torna, nas relações associativas, fonte especial de deveres de cooperação e lealdade entre as partes, manifestando-se em sua mais alta intensidade. Nesse diapasão, Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx registra que:
Os deveres decorrentes da lealdade e da boa-fé, ordenados em graus de intensidade conforme a categoria dos atos jurídicos a que se ligam, encontram a sua máxima intensidade nas relações societárias que, tal como as relações de família, envolvem interesses suprapessoais26.
Anote-se que, em profundo estudo sobre o tema, Xxxxxxx Xxxxxx Xxx Xxxxxx chega a afirmar, especialmente com base no direito alemão, que, no ambiente societário, o dever de lealdade, embora derivado da boa-fé, dela se “despregou”, consistindo ele próprio em uma cláusula geral, necessitando, assim, de mediação concretizadora; e, ademais, para o referido autor, o dever de lealdade também exerce, por si só, a tríplice função em regra atribuída à boa- fé27.
Embora tenham sido tratados distintamente no presente estudo, cabe mencionar que há quem sustente a correlação entre a boa-fé objetiva e o escopo comum dos sócios na interpretação dos acordos de acionistas, como defendido por Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx00:
Nesse sentido, verifica-se entre os sócios um estado de ânimo continuativo que os leva a colaborar na busca pelos resultados almejados, resumido na expressão affectio societatis.
Derivam desse estado legítimas expectativas sobre o comportamento de cada um dos sócios, com base naquilo que objetiva e concretamente se espera de alguém que se toma por sócio e, ainda, no contexto de cada específica sociedade, o que se espera de cada um dos sócios.
Essas expectativas legítimas, objetivadas pelos deveres de sócio acima referidos, pela boa-fé que determina a própria reunião das partes em sociedade, devem servir, também, como componente importante do processo interpretativo, tendo em vista que a affectio societatis que as gera enseja uma exacerbação do cuidado e diligência próprios de um contrato bona fidei”.
25 Ob. Cit., p. 34.
26 O novo Código Civil brasileiro: em busca da “ética da situação”. Revista Cadernos do Programa de Pós- Graduação em Direito PPGDir./UFRGS, vol. 2, n. 4, 2004, p. 615.
27 Ob. Cit., p. 138.
28 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx apud XXXXXXX-Xxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. A boa-fé objetiva nos acordos de acionistas. In: Direito das relações patrimoniais: estrutura e função na contemporaneidade. XXXXXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx do; RITO, Xxxxxxxx Xxxx Xxxx Xxxxxxx (Coord.). Lisboa: Editorial Juruá, 2014, p. 108.
No mesmo sentido parecem andar Xxxxxxx Xxxx Xxxxx e Xxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, que, ao criticarem a ideia de que a affectio societatis se constitui como um requisito da continuidade de sua existência, afirmam que essa expressão ainda se faz útil:
(...) para pôr em destaque o maior grau de boa-fé requerido no contrato de sociedade: embora a doutrina moderna ressalte a boa-fé como elemento de todos os contratos – como o fez o Código Civil em relação à interpretação dos negócios jurídicos – é especialmente importante na sociedade, pois a cooperação para o fim comum requer confiança mútua e lealdade”29.
Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, a partir das lições de Xxxxxx Xxxxx e Xxxxx, subdivide as relações marcadas pelo dever de nostra res agitur com base na espécie de comunhão de escopo envolvida. Assim, a organização entre as partes pode ser estrutural, como, por exemplo, as associações e sociedades; conjuntural, sendo exemplos dessa categoria os “contratos-aliança”, os consórcios, as joint ventures e os acordos parassociais (acordo de acionistas); ou pontual ou estratégia, podendo-se citar como exemplo os contratos de colaboração empresária30.
Verifica-se, assim, com Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx, que, nos pactos parassociais, “a boa-fé explicita e acentua a ideia de colaboração que está implícita nas palavras ‘sócio’, ‘acordo’ e ‘pacto’ e exige comportamento conforme o sentido assim revelado”31. Esse dever de lealdade e colaboração inerente aos acordos de acionistas é, pois, fonte de deveres para ambas as partes, que devem atuar em conjunto com o objetivo de atingir um fim comum. Portanto, em casos tais em que se configure um desequilíbrio nas bases contratuais do acordo de acionistas, “a renegociação do contrato se afigura como a solução mais óbvia e preferível para o correto enfrentamento do problema da alteração das circunstâncias, garantindo a sobrevivência do contrato”32.
V) Conclusão
O acordo de acionistas consiste em instrumento contratual utilizado em larga escala no direito empresarial brasileiro. Trata-se de expediente legítimo que visa a harmonizar interesses políticos e patrimoniais das partes, com a instituição de regras que as permitam atuar em conjunto na finalidade de perseguir os objetivos sociais da sociedade ligada àquele contrato parassocial. Esse tipo contratual, no entanto, tal como os demais que se protraem no tempo, está sujeito a diversos riscos, que podem vir a alterar as bases contratuais, modificando o equilíbrio originariamente presente quando da celebração do acordo.
Da natureza colaborativa subjacente ao acordo de acionistas advém a interpretação de que, em havendo um quadro de desequilíbrio contratual superveniente, as partes devem, de forma prévia, por força de um dever imposto pelo próprio ordenamento jurídico e em respeito à acentuada boa-fé que permeia esse tipo contratual, buscar lealmente alcançar novo consenso que atenda aos objetivos comuns, preservando o contrato e, em consequência, a normalidade necessária ao desenvolvimento de qualquer sociedade empresária.
29 Conceito e natureza. In: XXXX XXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxx Xxxx Xxxxxxx (Coord.). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 36.
30 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Xxxxxxx Xxxx, 2015, p. 350.
31 Ob. Cit., p. 133.
32 NERY JUNIOR e SANTOS, Ob. Cit., p. 141.
VI) Referências
XXXXXXXXX, Xxxxxx. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva & Cia, 1945.
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