Nota Técnica nº 04/2022
Nota Técnica nº 04/2022
Assunto: Fatiamento de Ações Sobre um Mesmo Contrato
Teresina, 25 de agosto de 2022.
1) APRESENTAÇÃO DO TEMA
Trata-se de Nota Técnica que visa analisar problemática que envolve a propositura de múltiplas ações referentes a parcelas distintas de um mesmo contrato bancário, criando um cenário de demandas predatórias que causam prejuízo à prestação jurisdicional, ao passo que busca definir formas de identificar e coibir tal prática.
2) JUSTIFICATIVA
Os Centros de Inteligência surgiram da necessidade de o Poder Judiciário concentrar esforços nas áreas realmente necessárias, haja vista o crescente número de novos feitos e o grande estoque de processos existentes. Assim, tais centros visam à prevenção e ao monitoramento de demandas repetitivas ou de massa para efetiva gestão de precedentes.
O CENTRO DE INTELIGÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL DO PIAUÍ (CIJEPI), instituído
pela RESOLUÇÃO nº 211/2021-TJPI, tem entre suas atribuições a de emitir notas técnicas para recomendar a uniformização de procedimentos administrativos e jurisdicionais em determinados temas.
Em decorrência dessa atribuição, foi enviada ao CIJEPI a questão referente ao fatiamento de ações sobre um mesmo contrato, prática que tem se tornado recorrente no Estado do Piauí.
Pelo que se observa na prática judiciária, o fatiamento ocorre com a propositura de diversas ações para discutir, individualmente, várias parcelas de desconto relativas a um único contrato, na tentativa de fazer parecer que estes são distintos, utilizando como
identificação apenas uma parcela do contrato, a fim de ocultar a formação de demandas agressoras.
A situação é de indiscutível importância e relevância, eis que possui o condão de causar severo congestionamento no fluxo processual do Judiciário piauiense, ao multiplicar desnecessariamente o número de processos distribuídos, referentes à mesma relação contratual.
Dessa forma, considerando a identificação de diversos processos nesta situação, no âmbito da Justiça Estadual do Piauí, surge a necessidade de elaboração da presente Nota, buscando apresentar sugestões práticas a serem adotadas pelo Judiciário para resolver tais questões e/ou minimizar os prejuízos causados à prestação jurisdicional.
3) CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO CONSIGNADO
O fatiamento de ações com o mesmo objeto foi identificado, sobretudo, nas ações referentes a contratos de empréstimos consignados. Nesses casos, ocorre a fragmentação de ações com as mesmas partes, decorrentes da mesma relação negocial, em busca da possível maximização do ressarcimento requerido pela parte autora.
Nas referidas ações, que normalmente são propostas para discutir a validade dos contratos e requerer indenização por danos morais, os autores apontam na petição inicial o número de identificação das parcelas do contrato e não o número do contrato propriamente dito, na tentativa de fazer parecer que são contratos distintos.
Nesse sentido, para cada parcela é proposta uma ação, gerando a rediscussão do mesmo objeto em várias demandas, a superlotação do Poder Judiciário, a possível repetição de acordos ou de decisões determinando um mesmo ressarcimento e, dependendo da instrução de cada processo, a existência de decisões antagônicas em face da mesma causa.
Importante destacar que, na prática forense, tem-se observado que há contratos bancários que possuem uma numeração única, mas que, para cada uma de suas parcelas,
é acrescida uma numeração específica, que as distinguem uma das outras. Por exemplo, um suposto contrato de nº 00000000000000011111 discutido em um processo, revelaria a parte numérica do contrato propriamente dito (000000000000000) acrescida do número correspondente a uma das parcelas deste mesmo contrato (11111).
Com efeito, há formação de litispendência, criando o risco de induzir em erro vários Juízos e Câmaras Cíveis nas inúmeras ações e recursos, com o estabelecimento de inúmeras indenizações relativas a um mesmo contrato alegado fraudulento.
Nitidamente, tais ações consistem na formação de demandas frívolas, que se caracterizam, em suma, por terem pouca probabilidade de obter êxito em razão de sua frágil fundamentação.
O litigante propõe a demanda mesmo com a consciência de que o benefício a ser obtido ao final será muito inferior ao custo de tramitação do feito1, se apoiando na ausência de custo em razão da gratuidade da Justiça e na possibilidade de “erros judiciais” quando não forem identificadas pelo julgador.
Essas demandas se tornaram frequentes, prática visível em tentar burlar o Poder Judiciário acarretando a inviabilização parcial do acesso à Justiça àqueles que realmente têm pretensões sérias.
4) DEMANDAS AGRESSORAS E REPETIÇÃO DE LIDES
A demanda agressora é a prática que se caracteriza pelo ajuizamento de causas fabricadas nos processos com o objetivo de enriquecer ilicitamente partes e advogados, independente da viabilidade fático-jurídica daquela pretensão, se valendo, na maioria das vezes, da incapacidade de empresas, bancos e demais instituições financeiras de gerir adequadamente processos judiciais e contratações efetivadas por diversos meios.
1 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. Análise econômica da litigância. Coimbra: Almedina, 2005, p. 64.
As ações, pelo que se pode observar, são decorrentes de uma estruturada rede de advogados e captadores de clientela espalhados por todo o Brasil e que contam com a divulgação em massa de serviço supostamente fraudulento, divulgando amplamente a realização de “campanhas” que prometem a resolução de demandas, como se vê rotineiramente na mídia, a exemplo dos chamados “feirões limpe seu nome”.
Sobre o tema, pesquisa divulgada pelo Centro de Inteligência dos Juizados Especiais do Rio Grande do Norte2 verificou que, dentre as práticas forenses fraudulentas mais identificadas está a fragmentação de ações entre as mesmas partes, decorrentes da mesma relação negocial, buscando a maximização do ressarcimento.
O citado estudo pontuou, ainda, que nos casos em que o ajuizamento da mesma demanda é feito em comarcas diferentes, ocorre a desistência naquelas em que foi apresentada defesa mais consistente. A um só tempo, com esse questionável procedimento, violam-se as regras da competência, ao “escolher” o juízo em que o feito será julgado, e eleva-se artificialmente as chances de êxito nas demandas predatórias.
5) DIREITO/ABUSO DE LITIGAR
O acesso à Justiça é o direito pelo qual se busca garantir não só a judicialização das causas, mas também uma tutela jurisdicional adequada, tempestiva e efetiva. No entanto, o acesso real à Justiça é prejudicado pela abusividade do direito de litigar, abuso este que repercute negativamente nas ações e funções da Justiça, causando prejuízos à imagem e às metas do Poder Judiciário.
Consequentemente, o jurisdicionado é atingido, já que a multiplicação indevida de ações ocasiona a demora do julgamento das demais demandas (que efetivamente necessitam de uma resposta da Justiça), prejudicando todo o sistema da Justiça.
2 Nota Técnica n° 01/2020. Tema Nº 01 – Causas Repetitivas: Litigância Agressora e Demandas Fabricadas
Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.995/DF, o Relator, Ministro Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, salientou vários dos efeitos intensamente negativos do exercício abusivo do direito de ação:
“O exercício abusivo do direito de deflagrar a jurisdição, a litigiosidade excessiva, a utilização do Judiciário como instrumento para a obtenção de acordos indevidos ou, ainda, para a procrastinação do cumprimento de obrigações implica o uso ilegítimo do Judiciário e a sensação” “difusa de que a Justiça não funciona. O volume desproporcional de processos compromete a celeridade, a coerência e a qualidade da prestação jurisdicional e importa em ônus desmedidos para a sociedade, à qual incumbe arcar com o custeio da máquina judiciária.”
Atualmente, o Poder Judiciário busca reduzir a demora no andamento das ações instituindo metas que visam o aumento da produtividade e celeridade na resolução das demandas. Ocorre que, ao passo que se torna mais eficiente a prestação jurisdicional, mais cresce o número de demanda, sendo a situação conhecida como paradoxo da eficiência, pois acaba gerando ineficiência em razão do aumento do número de processos.
É indiscutível que há necessidade de sempre buscar o aumento da produtividade, o que não pode acarretar prejuízos na qualidade das decisões. Portanto, a importância de se estabelecer meios de redução da abusividade existente nos processos em que, se aproveitando do acesso à justiça e da celeridade, são criadas de forma irresponsável.
Surge, então, a necessidade de coibir a litigância abusiva, de forma a proporcionar uma prestação jurisdicional proba e efetiva, o que nitidamente é dificultado quando ocorrem os casos de fatiamento de ações.
Estima-se que, coibindo o referido abuso, o tempo médio de tramitação dos processos judiciais se reduziria intensamente, com relevante aumento da eficácia e eficiência da prestação jurisdicional e consequente elevação da credibilidade do sistema de Justiça.
Importante mencionar que a prática de se valer do processo sem finalidade séria e
legítima, com excessos, lesando injustamente a esfera jurídica de terceiros com indevido
apoio no direito de acesso à justiça, incide no ato ilícito previsto no art. 187, do Código Civil.
Assim, mesmo existindo o direito de acesso à Justiça, direito de ação, direito ao duplo grau de jurisdição, o que a princípio poderia ser tido como um ato lícito acaba por se tornar ilícito por razão do abuso em sua utilização. Trata-se da utilização abusiva do processo judicial como uma ferramenta para obtenção de resultados contrários à ordem jurídica.
5.1) Litigância de Má-fé
As partes de um processo devem litigar na defesa dos direitos que entendem possuir de maneira adequada e ética. Para que a demanda possa atingir sua finalidade, a norma processual civil determina a todos os litigantes que se comportem no processo com boa-fé (art. 5º do CPC).
Em sentido contrário, surge a litigância de má-fé como sendo o exercício de forma abusiva de direitos processuais. Como se sabe, o CPC, na medida em que trata a litigância de má-fé entre os art. 79 a 81, impõe limites a esse uso abusivo de direitos. Observa-se que no primeiro dispositivo citado, o Código dispõe que autor, réu ou interveniente que litigar de má-fé responde por perdas e danos.
A litigância de má-fé ocorre quando uma parte cria voluntariamente empecilhos e situações que impossibilitem o Poder Judiciário de dar respostas eficientes às demandas propostas, impedindo o alcance da finalidade processual adequada, tanto no que diz respeito à análise jurídica do processo, quanto ao tempo de resposta do julgador.
Os atos de má-fé causam danos à parte adversa e ao exercício escorreito da jurisdição, causa prejuízo à efetivação dos direitos legítimos, além de contribuir para a morosidade processual devido ao aumento do número de demandas a serem decididas, e para o descrédito do Poder Judiciário.
Nesse sentido, o fatiamento de ações gera uma litigância de má-fé, já que produz uma série de situações de litispendência, abarrotando o sistema judiciário para discutir um mesmo objeto e, ainda, gerando provável dano à parte contrária ao ter que se defender em várias demandas artificiais, ser condenada, ou ao firmar acordos, múltiplas vezes, sobre um mesmo contrato objeto do pedido de ressarcimento.
5.2) Análise Econômica do Direito de Ação em Casos de Demandas Agressoras
A Nota Técnica n° 01/2022, do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais3, analisou a questão econômica das demandas predatórias, dispondo sobre os dados e informações colhidos e analisados pelos Centros de Inteligência e pelos NUMOPEDEs (Núcleos de Monitoramento do Perfil de Demandas) de diversos tribunais nos últimos anos.
Nas matérias mais demandadas da área cível (obrigações/espécies de contratos e responsabilidade do fornecedor com indenização por dano moral), pelo menos 30% da distribuição média mensal consistiria em manifestação de litigância predatória, sendo que este percentual permite indicar uma estimativa mínima bastante segura do prejuízo anual causado ao erário.
Conforme a referida Nota Técnica, considerando esses dados em relação aos dois assuntos processuais indicados, constatou-se que em 2020 houve ingresso na Justiça Estadual brasileira de, no mínimo, 1.296.558 (um milhão duzentos e noventa e seis mil e quinhentos e cinquenta e oito reais) demandas não baseadas em litígios reais, fabricadas em busca de ganhos ilícitos, gerando um custo de pelo menos R$ 00.000.000.000,54 (dez bilhões e setecentos e vinte e seis milhões de reais), em primeiras e segundas instâncias, valor que foi praticamente todo absorvido pelo Estado brasileiro, já que em quase todas as ações existe o benefício da Justiça gratuita.
3 Nota Técnica n° 01/2022. Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Litigância Predatória.
Por certo, ações ajuizadas de modo temerário e abusivo causam sérios prejuízos à sociedade, elevando de modo desnecessário o ambiente litigioso, impondo ao Judiciário a resolução de lides inexistentes ou objeto de outras ações, ao passo que magistrados (as) e servidores (as) do Poder Judiciário deveriam direcionar seus esforços em favor de solucionar causas reais, em benefício da coletividade.
6) CONCLUSÕES
Resta-se evidente o abuso de direito e o prejuízo para o Poder Judiciário e para o jurisdicionado de forma geral, no fatiamento de ações sobre um mesmo contrato, sendo necessária a atuação dos julgadores na análise das causas, de forma a identificá-las e coibi- las, nos termos do sistema jurídico. Diante disto, mostram-se relevantes as seguintes estratégias:
a) envio desta nota técnica para todas as unidades jurisdicionais do 1º e 2º grau e ao Laboratório de Inovações Opala-Lab para análise da possibilidade de desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial que permitem a identificação de fatiamento de ações no PJE.
b) sugerir que seja feita análise dos litigantes contumazes através da consulta pelo nome da parte, através do CPF no PJe ou através de ferramentas de inteligência artificial a serem desenvolvidas no âmbito do referido sistema;
c) recomendar que sejam rejeitados os eventuais pedidos de desistência formulados por autores de demandas predatórias após a apresentação do contrato que embasa a discussão em litígio, julgando o mérito da demanda (Enunciado 90, FONAJE);
d) oficiar a Ordem dos Advogados do Brasil – Secional Piauí para conhecimento do fato e adoção de medidas que entender necessárias.
e) sugerir a condenação da parte autora, solidariamente com seu advogado, em litigância de má-fé, conforme o caso, negando a concessão da justiça gratuita (arts. 79, 80, incisos I II e III, 81, caput e § 1º, todos do Código de Processo Civil) e, por consequência,
condenando a parte autora ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios.
Desembargador XXXXXXXX XXXXXXXX XXXXX XXXXX (PRESIDENTE do CIJEPI)
Desembargador XXXX XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXX XXXXXX
Desembargador OTON XXXXX XXXX XXXXXXX XXXXXX Desembargador XXXXXXX XXXX XXXXXX XXXXXX
Juíza Auxiliar da Vice-Presidência: XXXXXXX XXXX XXXXXXX XXXXX
Praça Des. Xxxxxx Xxxxxxxx, S/N - Centro Cívico - Teresina/PI - CEP: 64000-830 Central Telefônica: (00) 0000-0000
Poder Judiciário do Estado do Piauí TTribunal de Justiça do Piauí
NOTA TÉCNICA N004/2022
TEMA Nº 3 - FATIAMENTO DE AÇÕES SOBRE UM MESMO CONTRATO RELATOR(ES): XXXX XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXX, XXXXXXX XXXX XXXXXXX XXXXX
Nota técnica em anexo.
Nota técnica gerada e aprovada pelo sistema Centro de Inteligência. A autenticidade deste documento pode ser verificada com o código 5kOg6yA= no seguinte endereço eletrônico: xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxxx.xxx.xx/xxxx/#/xxxxx-xxxxxxxx/x/xxxxxxxxxxx?xxxxxxxX000/0000.