THE UNPAYABILITY OF THE GUARANTOR'S FAMILY ASSETS IN COMMERCIAL LEASE CONTRACTS
A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO COMERCIAL
THE UNPAYABILITY OF THE GUARANTOR'S FAMILY ASSETS IN COMMERCIAL LEASE CONTRACTS
FÁBIO BARIZON FERRARI
Advogado. Aluno do curso de Especialização em Direito Contratual da PUC/SP.
RESUMO
A Lei nº 8.009/90, que dispõe sobre situações de impenhorabilidade do bem de família, em seu artigo 3°, VII, estabeleceu como exceção à impenhorabilidade a obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. No caso do bem de família do fiador em contrato de locação residencial, a questão já foi pacificada pelo Tema 295 do Supremo Tribunal Federal (STF), no qual prevaleceu a constitucionalidade da penhora. Contudo, recentemente instaurou-se nova discussão, desta vez relacionada aos casos de locação comercial, colocando em contraponto, de um lado, a livre iniciativa e a autonomia da vontade e, de outro lado, o direito à moradia. Neste artigo, serão apresentadas as teses que levaram a questão novamente à apreciação do STF, seguindo para uma análise mais detalhada do tema sob o enfoque da liberdade contratual e, por fim, qual foi a decisão final do STF no Recurso Extraordinário (RE) n° 1.307.334.
Palavras-chave: Locação. Fiador. Bem de Família. Contrato de locação.
ABSTRACT
Brazilian law number 8.009 of 1990, which provides for situations of unseizability of the family property, in its article 3, VII, established as an exception to unseizability the obligation arising from a surety granted in a lease agreement. In the case of the
xxxxxxxxx'x family property in a residential lease, the issue has already been settled by Theme 295 of the Federal Supreme Court (STF), in which the constitutionality of the attachment prevailed. However, a new discussion has recently started, this time related to the cases of commercial lease, putting in counterpoint, on the one hand, free initiative and autonomy of will and, on the other hand, the right to housing. In this article, the theses that brought the issue back to the STF will be presented, followed by a more detailed analysis of the subject from the perspective of contractual freedom and, finally, what was the final decision of the STF.
Keywords: Location. Guarantor. Family good. Rent contract.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como foco principal analisar questão jurídica atrelada aos Contratos de Locação: a penhorabilidade (ou não) do bem de família do fiador nas locações comerciais. A questão está delineada nos aspectos constitucionais da interpretação do artigo 3°, VII, da Lei nº 8.009/901, que estabeleceu a exclusão da proteção do bem de família nos casos de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Já houve discussão deste tema nos casos de locação residencial, que culminou na edição do Tema 295, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e do Tema 708, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ficando assentada a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador, conforme determina a lei. Contudo, à época desta análise pelos tribunais superiores, nada ficou esclarecido sobre a aplicação do mesmo entendimento aos contratos de locação comercial, nos quais se revelam contornos jurídicos constitucionais completamente distintos2.
Obviamente, diante desta brecha, ao passar dos anos a cultura litigante brasileira fez despencar em centenas de ações, quiçá milhares, a tese de impenhorabilidade do bem de família do locador no caso das locações comerciais, tendo como principais
1 Artigo 3º da Lei nº 8.009/90 - A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
2 Capítulo 3
fundamentos o direito à moradia e o princípio da isonomia, ambos amparados pela Constituição Federal.
O tema voltou aos tribunais superiores, através do Recurso Extraordinário nº 1307334, no qual o Supremo Tribunal Federal, em julgado recentíssimo, assentou a constitucionalidade da penhora do bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial ou comercial.
Embora o STF já tenha pacificado a matéria através do Recurso Extraordinário acima referido, diante da riqueza jurídica do embate e a importância da questão para os contratos de locação, é extremamente relevante que se faça uma análise do tema sob o enfoque da liberdade contratual.
2. CONTRATO DE LOCAÇÃO
Antes de adentrarmos na questão jurídica como foi delimitada acima, é necessário dedicar parte do trabalho para apresentar elementos do contrato de locação, a fim de elucidar o impacto que o julgamento da repercussão terá sobre sua estrutura, em especial sobre as garantias contratuais que podem ser utilizadas neste contrato.
Pois bem. A doutrina discorre que o contrato de locação, originalmente, poderia ter como objeto a locação de coisas (bens móveis ou imóveis) ou serviços/execução de obra. Contudo, ao passar do tempo, a locação de serviços foi naturalmente substituída por outros tipos de contratos, tais como o contrato de trabalho ou contrato de empreitada. Para o presente estudo, não haverá necessidade de maiores explicações sobre a locação de serviços, haja vista que estamos a tratar de assunto relacionado a locação de coisas.
A locação de coisas, segundo a definição contida no artigo 565 do próprio Código Civil Brasileiro (CC)3, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição. Portanto, é classificado como contrato bilateral, consensual, oneroso e
3 Artigo 565 do Código Civil - Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.
comutativo, haja vista que a lei estabelece obrigações para ambas as partes, locador (artigo 566do CC)4 e locatário (artigo 569do CC)5.
Dentro deste conceito, é necessário destacar que: i) não há tempo determinado para o contrato, podendo ser ou não pactuado entre as partes; ii) na locação presume o uso e gozo da coisa, ou seja, o locatário tem o direito, enquanto vigente o contrato, de usar a coisa e gozar de seus frutos; iii) a coisa locada deve ser necessariamente não fungível, devendo ser restituída pelo locatário no estado em que a recebeu (artigo 569, IV do CC)5, ou seja, claramente há uma distinção entre o contrato de locação e o contrato de mútuo neste aspecto, haja vista que na locação a coisa não pode ser substituída por outra do mesmo gênero; iv) deve haver uma retribuição (aluguel), não existindo relação locatícia a título gratuito, o que, desta vez, distingue a locação de um comodato; e v) há uma obrigação de restituição da coisa ao final do contrato, o que nos indica que uma coisa móvel consumível (como a energia elétrica, por exemplo), não pode ser objeto do contrato de locação, pois o seu uso importa destruição imediata da própria substância (artigo 86 do CC)6.
2.1. LOCAÇÃO RESIDENCIAL E COMERCIAL
Feitas tais considerações, passaremos a analisar o contrato de locação de imóvel urbano, que está relacionado ao tema do trabalho, descartando a locação de coisas móveis.
Naturalmente, o contrato de locação residencial é aquele que tem por finalidade a locação do imóvel para servir de residência/moradia ao locatário e à sua família, sendo vedado a prática de atividade comercial no local, sob pena de violação ao artigo 569, I, do CC5, bem como à Lei de Zoneamento aplicável, regulamentos internos de edifícios, entre outros normativos.
4 Artigo 566 do Código Civil - O locador é obrigado: I - a entregar ao locatário a coisa alugada, com suas pertenças, em estado de servir ao uso a que se destina, e a mantê-la nesse estado, pelo tempo do contrato, salvo cláusula expressa em contrário; II - a garantir-lhe, durante o tempo do contrato, o uso pacífico da coisa.
5 Artigo 569 do Código Civil - O locatário é obrigado: I - a servir-se da coisa alugada para os usos convencionados ou presumidos, conforme a natureza dela e as circunstâncias, bem como tratá-la com o mesmo cuidado como se sua fosse; II - a pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados, e, em falta de ajuste, segundo o costume do lugar; III - a levar ao conhecimento do locador as turbações de terceiros, que se pretendam fundadas em direito; IV - a restituir a coisa, finda a locação, no estado em que a recebeu, salvas as deteriorações naturais ao uso regular.
6 Artigo 86 do Código Civil - São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação.
Já a locação comercial, pode ser interpretada em sentido inverso. Ou seja, as locações em que o imóvel não será para fins residenciais, podem ser enquadradas como locações comerciais, independentemente do tipo de negócio, forma de aluguel, prazo, dentre outros. Além disso, o artigo 55 da Lei nº 8.245/917, que será comentada abaixo, dispõe que será considerada locação não residencial quando “(...) o locatário for pessoa jurídica e o imóvel destinar-se ao uso de seus titulares, diretores, sócios, gerentes, executivos ou empregados”.
É importante ressaltar que o Código Civil é genérico quando trata de locação, não há nenhuma distinção sobre coisas móveis ou imóveis, tampouco nos entrega uma definição de imóvel rural ou urbano. Por isto, devemos nos socorrer de ouras legislações específicas e de conceitos construídos pela doutrina e jurisprudência.
Em se tratando de locação de bem imóvel, existem diferentes tipos de legislação, a depender do tipo de imóvel que está sendo locado, sendo rural ou urbano. Contudo, não só o local irá definir a legislação aplicável, mas também há que se considerar a finalidade daquele instrumento contratual.
Isto é, ainda que um imóvel esteja localizado em área rural, se o contrato firmado entre as partes objetivar a moradia ou o comércio, o imóvel deverá ser considerado urbano, para fins de aplicação da Lei n° 8.245/91 (“Lei do Inquilinato”). Contudo, haverá aplicação da Lei nº 4.504/64 (“Estatuto da Terra”), no caso de imóveis rurais em que o objeto contratual seja o arrendamento rural ou a parceria rural, nos termos do caput dos artigos 3°8 e 4°9 do Decreto n° 59.566/66.
Para o presente trabalho, não importa pontuar quais as diferenças da legislação em relação aos contratos de locação residencial e comercial, tais como prazo para a denúncia
7 Artigo 55 da Lei nº 8.245/91 - Considera - se locação não residencial quando o locatário for pessoa jurídica e o imóvel, destinar - se ao uso de seus titulares, diretores, sócios, gerentes, executivos ou empregados.
8 Artigo 3° do Decreto n° 59.566/66 - Arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais da Lei.
9 Artigo 4° do Decreto n° 59.566/66 - Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso especifico de imóvel rural, de parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa vegetal ou mista; e ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias primas de origem animal, mediante partilha de riscos do caso fortuito e da força maior do empreendimento rural, e dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais da lei (artigo 96, VI do Estatuto da Terra).
contratual, se cheia ou vazia, vigência contratual, possibilidade de ação renovatória, entre outros. É necessário conceituar de forma objetiva, a locação residencial e comercial, dentro do contrato comercial a diferenciação entre a locação, o arrendamento e a parceria rural.
2.2. GARANTIAS CONTRATUAIS
Independentemente de ter finalidade residencial ou comercial, o contrato de locação poderá ter diferentes garantias contratuais, a depender da exigência do locador, conforme previsto no artigo 37 da Lei n° 8.245/9110: caução, fiança, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.
Diferente da ordem das garantias previstas na legislação, deixaremos para efetuar a análise da fiança por último, pois é esta garantia que está ligada ao objeto do presente trabalho, sendo também a modalidade tradicionalmente mais utilizada nos contratos de locação.
O conceito de caução, na realidade, é genérico, pois pode significar qualquer tipo de garantia idônea suficientemente proporcional para suportar o cumprimento de uma obrigação anteriormente estabelecida, em caso de inadimplemento. Contudo, pode-se interpretar que a Lei do Inquilinato, quando versa sobre caução, está se referindo apenas à caução real, que são quaisquer formas de garantias reais: penhor, hipoteca, anticrese ou até mesmo a caução em dinheiro11.
Há também a possibilidade de a caução ser constituída pela cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. Neste modelo pouco usual, haverá a efetiva transferência da propriedade das quotas ao credor, que passará a ser titular do direito de crédito cedido. Em caso de inadimplemento, ocorrerá a consolidação da propriedade pelo credor, ou, em caso de adimplemento, haverá resolução do negócio, hipótese em que as quotas cedidas em garantia voltarão a integrar o patrimônio do devedor.
10 Artigo 37 da Lei n° 8.245/91 - No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia; IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.
11 No caso da caução fornecida em dinheiro, esta não poderá exceder o valor equivalente a três meses de aluguel, conforme artigo 38, §2° da Lei do Inquilinato.
Além disso, também pode ser concedido como garantia contratual a contratação de seguro fiança. Neste contrato acessório, o locatário ou devedor, firma contrato com empresa terceira, no qual o objeto é o pagamento de indenização ao segurado (locador ou credor), dos prejuízos que este venha a sofrer em caso de inadimplência por parte do locatário.
Por fim, analisaremos a modalidade de garantia que será essencial para o desfecho deste trabalho: a fiança. Diferentemente da caução real, que está relacionada à vinculação de um determinado bem ou direito para servir de garantia, a fiança é uma garantia pessoal, na qual um terceiro, denominado fiador, se obriga a garantir o cumprimento da dívida perante o credor, com o seu patrimônio geral, conforme descrito no artigo 818 do CC12. A fiança deve ser concedida necessariamente por escrito, conforme artigo 819 do CC13 e, quando o fiador for casado se faz necessário obter a autorização conjugal nos termos do artigo 1.647, III, do CC14, sob pena de tornar o ato anulável.
É necessário chamar atenção para este conceito, haja vista que a garantia contratual é o próprio fiador, com todo o seu patrimônio indistintamente, e não apenas um bem certo e determinado. Este conceito será fundamental para entender o tema principal deste trabalho.
Importante destacar, ainda, que a fiança não importa automaticamente em solidariedade. Ao contrário disto, o fiador possui benefício de ordem em caso de execução, podendo exigir que sejam primeiros executados os bens do próprio devedor. Entretanto, o art. 828 do CC15 prevê algumas situações em que tal benefício não poderá ser invocado pelo fiador, são eles: a) se o fiador renunciou expressamente a este direito;
b) se o fiador se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário; e c) se o devedor for insolvente, ou falido.
A fiança não tem prazo. Uma vez que houver extinção do contrato de locação sem inadimplemento, haverá, por consequência a extinção da fiança. Por outro lado, caso haja o inadimplemento e o fiador cumpra a obrigação, este será sub-rogado nos direitos do
12 Artigo 818 do Código Civil - Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.
13 Artigo 819 do Código Civil - A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.
14 Artigo 1.647, II, do Código Civil - Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: III - prestar fiança ou aval;
15 Artigo 828 do Código Civil - Não aproveita este benefício ao fiador: I - se ele o renunciou expressamente; II - se se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário; III - se o devedor for insolvente, ou falido.
credor, em relação à dívida acrescida de juros e de todas as perdas e danos que tiver sofrido em razão da fiança.
3. IMPENHORABILIDADE NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL E COMERCIAL
3.1. FIADOR COMO GARANTIA DO CONTRATO DE LOCAÇÃO E A IMPENHORABILIDADE DE SEU BEM DE FAMÍLIA – TEMA 295 DO STF
Após análise acima dos institutos que servirão de base para este trabalho, adentraremos finalmente no tema principal. Para que seja perfeitamente compreensível, será necessário fazermos um raciocínio jurídico cronológico sobre o direito à moradia, o conceito de bem de família e a sua impenhorabilidade.
Um dos primeiros marcos históricos do direito à moradia, ou possivelmente a sua origem, ocorreu na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 194816. O artigo 25 da referida Declaração menciona que toda pessoa tem direito a um padrão de vida que assegure a si, bem como à sua família, diversos direitos e, dentre eles, a habitação. A partir disso, o direito à moradia, ou habitação como foi mencionado nos primórdios, começa a ganhar espaço no direito internacional como parte de um núcleo vital da própria dignidade da pessoa humana.
Ganhando cada vez mais espaço como tema importante e fundamental para a efetivação de tal dignidade, o direito à moradia volta a ser mencionado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), realizada em 22 de novembro de 1969 e promulgada no Brasil em 199217. Ratificando a importância da moradia como uma essencialidade da dignidade da pessoa humana, o artigo 11 da Convenção dispõe que não podem ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em seu domicílio, bem como que toda pessoa tem direito à proteção de leis contra quaisquer ingerências ou ofensas.
Em diversos outros tratados e convenções internacionais, o direito à moradia e a sua proteção contra possíveis interferências conquistam um enorme espaço e se
16 xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xxxxxx/xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxx-xxxxxxxx-xxxxxxx
17 xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxxxxx/x0000.xxx
consolidam como um importante pilar a ser implementado e protegido em todas as nações, como uma forma de perseguir a efetividade do princípio da dignidade humana.
No direito brasileiro, a efetiva proteção do direito à moradia ocorre através da promulgação da Lei n° 8.009/199018, que trata da impenhorabilidade do bem de família. Em síntese, a lei traz um conceito simples: o imóvel residencial próprio utilizado pela entidade familiar para moradia é impenhorável e não responde por qualquer dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, salvo algumas exceções previstas na própria lei.
Em seu texto original, a Lei n° 8.009/1990 não previa a exceção da impenhorabilidade nos casos de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Contudo, a Lei do Inquilinato foi promulgada no ano seguinte, em 1991, e trouxe em seu artigo 8219 o acréscimo do inciso VII no artigo 3° da Lei n° 8.009/1990195. A partir dessa alteração legislativa é que se excepcionou a impenhorabilidade do bem de família relacionada aos contratos de locação.
Entretanto, o arcabouço legislativo envolvido na questão não está completo. Isto porque, até o ano de 2000, as duas leis ordinárias citadas acima, até então, regulavam o tema, foram hermeneuticamente modificadas pela Emenda Constitucional n° 26/2000, que incluiu o direito à moradia no rol dos direitos sociais insculpidos no artigo 6°20 da Constituição Federal. A partir deste momento, a moradia se transforma em um direito social de qualquer indivíduo, protegido expressamente pela Constituição Federal.
Assim como aconteceu no plano internacional, este direito surge como uma importante base social, como um desmembramento da própria dignidade da pessoa humana, haja vista que a moradia é inegavelmente necessária para o desenvolvimento do indivíduo na sociedade. Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxx:
A Constituição brasileira elenca a “moradia” como direito social (art. 6º), mas também indica que esta está incluída entre as “necessidades vitais básicas” do trabalhador e de sua família (art. 7º, IV). Aponta, ainda, a “moradia” como
18 Artigo 1° da Lei n° 8.009/90 - O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
19 Artigo 82 da Lei n° 8.245/91 - O art. 3° da Lei n° 8.009, de 29 de março de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VII: “Art. 3° VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de
locação.
20 Artigo 6° da Constituição Federal (CF) - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
política pública e estabelece a competência comum da União, dos Estados e dos Municípios para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX). (XXXXXX, 2020, p. 738).
Ainda, quanto à natureza deste direito, Xxxxxx Xxxxxx completa:
Como direito fundamental, o direito à moradia possui tanto natureza negativa quanto positiva. Em relação à natureza negativa, ou seja, direito de defesa, o direito à moradia impede o indivíduo de ser arbitrariamente privado de possuir uma moradia digna. Merece destaque, nesse aspecto, a proibição de penhora do chamado bem de família (Lei n. 8.009/99). A natureza positiva do direito à moradia apresenta-se, por sua vez, em “prestações fáticas e normativas que se traduzem em medidas de proteção de caráter organizatório e procedimental”117. Xxxx Xxxxxx destaca que um bom exemplo de medidas de proteção com caráter organizatório e procedimental é o Estatuto da Cidade (Lei
n. 10.257/2001). Este, ao traçar as diretrizes gerais de política urbana, deu importante passo para garantia do direito a moradia condigna no Brasil e implementou instrumentos que visam sua concretização prática. (XXXXXX, 2020, p. 739).
Neste cenário, com a elevação do direito à moradia ao patamar de direito fundamental dentro do ordenamento jurídico brasileiro, iniciou-se a disseminação das seguintes indagações: A Constituição Federal, após a Emenda n° 26/2000, recepcionou o inciso VII do artigo 3° da Lei n° 8.009/1990?
Milhares de ações despencaram no judiciário brasileiro, ventilando a mesma tese. A questão, por fim, chegou ao STF através do Recurso Extraordinário n° 612.360, cuja repercussão geral foi reconhecida. Por fim, o julgamento culminou na edição do Tema 295 do STF: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000.”
Neste julgamento, os Eminentes Ministros ponderaram que reconhecer a impenhorabilidade do bem de família do fiador acabaria sendo prejudicial à efetivação do próprio direito à moradia, haja vista que isto demandaria a exigência de outras garantias mais custosas aos locatários.
Destaca-se o trecho abaixo do voto do Eminente Ministro Xxxxx Xxxxxx no julgamento do Recurso Extraordinário n° 407.688, que serviu como importante precedente nesta questão:
Não admira, portanto, que, no registro e na modelação concreta do mesmo direito social, se preordene a norma subalterna a tutelar, mediante estímulo do acesso à habitação arrendada – para usar os termos da Constituição lusitana -, o direito de moradia de uma classe ampla de pessoas (interessadas na locação), em dano de outra de menor espectro (a dos fiadores proprietários de um só imóvel, enquanto bem de família, os quais não são obrigados a prestar fiança). Castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia. (RE 407688, Relator(a): Min. XXXXX XXXXXX, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, p. 887)
Em suma, proteger o direito à moradia do fiador seria golpear o próprio direito à moradia de toda a coletividade, pois estaríamos quase “excluindo” a forma menos onerosa e mais utilizada de garantia nos contratos de locação residencial, onerando ainda mais a população em geral.
3.2. DISTINGUISHING21
Seguindo a linha de raciocínio de nosso trabalho, agora nos resta discorrer sobre qual foi o motivo principal desta discussão ter voltado aos tribunais, anos depois da edição do Tema 295 pelo STF, haja vista que o assunto, a princípio, parecia estar totalmente superado.
Na verdade, à primeira vista, parece muito simples a distinção entre os casos. Quando houve a edição do Tema 295 pelo STF, os Ministros estavam debruçados sobre um contrato de locação residencial, no qual se confrontaram o direito à moradia, de um lado pelo fiador e de outro por toda a coletividade, como já foi acima explanado. Neste momento, os casos que despontaram no judiciário vêm questionando a penhora do bem de família do fiador no caso dos contratos de locação comercial, no qual não está mais presente o direito à moradia da coletividade.
Ora, este distinguihsing ou simplesmente distinção, pode parecer sutil, mas está revestido de grandes contornos jurídicos. Se nos casos já discutidos estávamos diante de direitos iguais (moradia) opostos apenas pelas facetas que assumem dentro de uma relação jurídica, agora não há mais esta igualdade. Estamos, com toda certeza, diante do
21Distinguishing é a prática de não aplicar dado precedente vinculante por se reconhecer que a situação sub judice (aquela que se está julgando imediatamente) não se encarta nos parâmetros de incidência do precedente - xxxxx://xxxxxxxx.xxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx/000000000/xxxx-xxxx-x-xxx-x-xxxxxxxxxxxxxx-x- defiance#:~:text=O%20distinguishing%20%C3%A9%20a%20pr%C3%A1tica,par%C3%A2metros%20d e%20incid%C3%AAncia%20do%20precedente.
direito à moradia por parte do fiador, mas, e quais outros direitos estão envolvidos na questão? Passaremos a analisar.
Conforme já discorremos acima, o contrato de locação comercial tem finalidade não residencial, ou seja, para prática de quaisquer atividades que não sejam habitação. Pode ser um comércio, uma indústria, um depósito, um salão de festas, um escritório, enfim, atividades comerciais em geral.
Devemos traçar um paralelo entre os dois casos. No caso da locação residencial, vimos que a raiz do problema consistia numa possível “quebra de mercado” das locações, caso fosse reconhecida a impenhorabilidade do imóvel do fiador, o que seria mais prejudicial ainda ao direito à moradia. No caso da locação comercial, há que se partir do mesmo princípio. A impenhorabilidade do imóvel do fiador possivelmente vai ser um duro golpe no mercado das locações comerciais, mas é necessário verificar qual direito será afetado, além, por óbvio, da própria economia em si.
Pois bem, o artigo 1º, IV, da CF22 dispõe que a República Federativa do Brasil tem como fundamento os valores sociais e a livre iniciativa. Sabemos que admitir a impenhorabilidade seria basicamente extinguir essa garantia contratual do mercado, pois o que se busca, no final das contas, é que o fiador tenha um patrimônio imóvel para que sirva de garantia de eventual dívida. Sendo assim, haveria um claro desestímulo da livre iniciativa, pois o mercado passaria a buscar outros tipos de garantia, mais custosos e burocráticos.
Ainda na mesma linha, o artigo 3°, II, da CF23, é assertivo ao dispor que são objetivismo fundamentais da República Federativa do Brasil garantir o desenvolvimento nacional. Nesta medida, criar um “obstáculo” às locações comerciais que servem de base para o desenvolvimento da atividade econômica no país, em detrimento do direito à moradia do locador, talvez seria um pouco desarrazoado. Ora, parece um preço alto a se pagar para a garantia do direito à moradia de um particular que, desde o princípio do
22 Artigo 1° da Constituição Federal (CF) - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
23 Artigo 3° da Constituição Federal (CF) - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
contrato, aceitou e ofereceu como garantia todo o seu patrimônio para pagamento de eventuais dívidas.
Por outro lado, ainda há outro ponto importante nesta questão que merece destaque. No caso da locação comercial, há que se levar em conta a aplicação dos princípios da isonomia e proporcionalidade. A questão é no mínimo curiosa, pois a Lei n° 8.009/90 prevê a exceção da impenhorabilidade do bem de família no caso de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, entretanto não há nenhuma exceção para o bem de família do próprio locatário. Imaginemos um contrato de locação de um empresário, no qual existe uma dívida que ensejou cobrança judicial. O bem de família do próprio locatário não poderia ser penhorado, em contrapartida, o fiador não conta com este benefício.
Todos estes argumentos já foram, inclusive, analisados pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n° 605.709, em que se tratava da impenhorabilidade do bem de família do fiador em locação comercial. Neste emblemático caso, surpreendentemente a Turma decidiu, por maioria, prover o recurso do fiador, para declarar impenhorável o seu bem de família. Após dois votos negando provimento ao recurso, a Eminente Ministra Xxxx Xxxxx deu início a divergência vitoriosa no julgamento. Vale a pena transcrever alguns trechos da decisão:
A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício, com a vênia dos que pensam em sentido contrário, não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Tal interpretação do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 não foi, a meu juízo, recepcionada pela EC nº 26/2000.
A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da isonomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário, vale recordar, não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não vislumbro, assim, justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador (garante), sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito fundamental à moradia.
[...]
Eventual desestímulo à livre iniciativa que decorra da afirmação da impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial não se reveste de envergadura suficiente para suplantar a necessidade de observar o direito constitucionalmente assegurado à moradia, enquanto desdobramento da própria dignidade da pessoa humana e da proteção à família (arts. 1º, III, e 226, caput, da Magna Carta). (RE 605709, Relator(a): Min. XXXX XXXXXXX, Primeira Turma, julgado em 12/06/2018, p. 379-380)
Contudo, a decisão não foi proferida em sede de repercussão geral, tratando-se apenas de decisão isolada da Turma, sem eficácia vinculante. Ainda assim, este se tornou um importante precedente sobre o tema. Entretanto, em outros julgamentos isolados, o STF também já manifestou posição em sentido contrário, tal como no RE 1.287.488-ED- AgR, RE 1.277.481-AgR e RE 1.280.519-AgR.
4. ANÁLISE DA IMPENHORABILIDADE À LUZ DA LIBERDADE CONTRATUAL
É inegável que o Código Civil de 2002 (CC) consagrou a liberdade contratual, conferindo autonomia às pessoas para que, conforme seus interesses e avaliação dos riscos, possam livremente dispor sobre o conteúdo do negócio jurídico que desejam celebrar. Entretanto, tal liberdade não é absoluta, haja vista que autonomia privada pode, algumas vezes, entrar em rota de colisão com interesses coletivos, hipótese em que o instrumento contratual deverá ser balizado pela sua função social.
Nada obstante, a função social não pode ser utilizada para exterminar completamente a autonomia privada ou a liberdade contratual. Pelo contrário, devemos privilegiar a liberdade já destacada acima, especialmente quando analisamos os instrumentos contratuais firmados entre particulares, mediante ponderação dos benefícios e assunção dos riscos que são inerentes à operação.
A função social deve ser interpretada e aplicada aos contratos de forma excepcional, nos casos em que realmente houver necessidade de relativização da obrigatoriedade contratual para proteção de interesses coletivos ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, são as palavras de Xxxxxx Xxxxxxx:
Porém, é interessante deixar claro que a função social não elimina totalmente a autonomia privada ou a liberdade contratual, mas apenas atenua ou reduz o alcance desse princípio. Esse é o teor citado do Enunciado n. 23 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, um dos mais importantes enunciados entre todos os aprovados nas Jornadas de Direito Civil, que merece mais uma vez transcrição:
“A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. (TARTUCE, 2022, p. 601)
Nesta linha, é interessante refletir sobre a parte final deste Enunciado nº 23 do Conselho da Justiça Federal, pois indica que a função social do contrato deve incidir sobre a relação contratual quando há interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.
Acima já discorremos sobre o direito à moradia, que se revela um desmembramento da própria dignidade da pessoa humana e, sendo assim, constitui a principal base jurídica e doutrinária para questionar a constitucionalidade da exceção à impenhorabilidade nos casos de locação comercial. Entretanto, em nenhum dos casos a questão foi analisada sob o olhar de outro elemento essencial da dignidade da pessoa humana: a liberdade e por consequência a autonomia da vontade das partes contratantes.
Agora não estamos só falando de liberdade contratual. Devemos pensar na liberdade do indivíduo como forma de poder fazer as suas próprias escolhas, traçar os seus caminhos e, sobretudo, assumir responsabilidades em busca de melhores condições de vida, não só para si, quanto para sua família. Neste aspecto, devemos observar a existência de previsão legal que autoriza a penhora de bem de família, o que torna explícito a ampliação da garantia contratual no patrimônio do fiador e sua licitude, cabendo ao indivíduo o direito de escolher tal garantia e, obviamente, arcar com tal ônus.
Desta maneira, é lógico considerarmos que a fiança prestada em contrato de locação também é a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, na qual o indivíduo está exercendo a sua liberdade, tanto no sentido contratual, como em sentido pessoal. Nas palavras de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxx (2021, p. 102) “sem liberdade (negativa e positiva) não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida e assegurada”.
Se o sujeito tem um negócio, no qual é necessário a locação de um espaço para o exercício de suas atividades, prestar fiança em contrato de locação nada mais é do que o seu direito puro e simples de liberdade, de fazer escolhas, de transformar em realidade aquilo que almeja. Mais do que isso, é a própria concretização da dignidade da pessoa humana, haja vista que o negócio será o sustento do indivíduo e de sua família.
Obviamente, neste caso, ao exercer a sua liberdade, o indivíduo estará consequentemente assumindo a responsabilidade de garantir o pagamento de eventuais débitos da empresa locadora, com todo o seu patrimônio pessoal. Este ônus, inclusive, é de conhecimento do fiador desde que celebrado o contrato.
Deste modo, de nada adiantaria proteger o direito à moradia e, por outro lado, apunhalar o direito à liberdade, haja vista que ambos estão em patamares completamente igualitários e são imprescindíveis à efetivação da dignidade da pessoa humana.
Neste ponto, claramente chegamos a um impasse sobre o deslinde do tema, o que nos convida a fazer uma última reflexão: o direito à moradia é equivalente ao direito à propriedade? De outro modo, devemos pensar se a efetivação do direito à moradia consiste necessariamente em proteger o patrimônio do fiador, ou se tal direito pode ser alcançado por outros meios.
Como já mencionamos acima, a Declaração dos Universal dos Direitos Humanos, em nenhum momento cita o direito à propriedade. Ao contrário, o que se busca é um padrão de vida que possa assegurar ao indivíduo a habitação, alimentação, vestuários, dentre outros objetivos. Xxxxx, o próprio artigo 6º da CF não menciona o direito à propriedade, apenas se referindo à moradia como um direito social.
E isto não é por acaso. O direito à propriedade não se confunde com o direito à moradia, mormente porque o primeiro diz respeito a uma questão patrimonial de um único indivíduo e o segundo é um direito social de toda a coletividade. Ora, seria absurdo pensar que o direito à moradia só seria cumprido quando efetivamente todos os indivíduos possuírem imóvel próprio, o que estaria em completo desacordo com o espírito da norma.
Convém lembrar que mesmo o bem de família formalmente constituído pode ser objeto de usucapião, em caso de abandono ou mudança, como bem pontua Xxxxxxxxx Xxxx xx Xxxxxx:
Sobre a diferenciação entre propriedade e moradia, da Lei nº 10.257/01 emana a usucapião especial de bem particular, em favor daquele que possua como sua área ou edificação urbana de até 250 m², por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural, enquanto da Medida Provisória nº 2.220/01 emerge a concessão de uso especial de bem público, em favor daquele que possui como seu imóvel situado em área urbana de até 250 m², por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural (XXXXXX, 2020, p. 228)
Se analisarmos sob a ótica do direito real, o instituo da usucapião, na mesma linha de raciocínio que desenvolvemos acima, é fácil observar que o indivíduo que exerceu o seu direito à liberdade e abandonou ou mudou do seu imóvel, mesmo sendo este
formalmente constituído como bem de família, deve perder a propriedade do bem em favor de terceiro. E não há que se falar em qualquer violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e nem ao direito à moradia, pelo contrário, prevaleceu a liberdade do indivíduo que abandonou o imóvel (por quaisquer que sejam seus motivos) e foi efetivado o direito à moradia do terceiro que ali estabeleceu seu domicílio.
Disto, podemos extrair que o direito à liberdade, tanto no seu sentido pessoal, quanto no sentido contratual, deve sempre prevalecer, mesmo que isso acarrete sérias consequências patrimoniais ao indivíduo próprio indivíduo que exerceu tal liberdade. Neste sentido, citamos novamente Xxxxxx Xxxxxxx:
Sem dúvida que a substituição do princípio da autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada traz sérias consequências para o instituto negocial. Não se pode esquecer desse ponto quando se aponta a relativização do princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda), o que não significa sua eliminação, repise-se.
Além disso, podem surgir questões práticas interessantes relativas ao princípio da autonomia privada, particularmente pelo seu fundamento constitucional nos princípios da liberdade e da dignidade humana. Como as normas restritivas da autonomia privada constituem exceção, não admitem analogia ou interpretação extensiva, justamente diante da tão mencionada valorização da liberdade. Em reforço, em situações de dúvida entre a proteção da liberdade da pessoa humana e os interesses patrimoniais, deve prevalecer a primeira; ou seja, o direito existencial prevalece sobre o patrimonial. (TARTUCE, 2022, p. 602)
Sendo assim, a tese de impenhorabilidade do bem de família do fiador nos contratos de locação comercial é o mesmo que exterminar a liberdade contratual exercida pelas partes, que livremente pactuaram as condições do negócio, ofendendo, assim, o direito à liberdade como efetivação do princípio da dignidade humana. Além disso, há certamente uma proteção à propriedade individual do fiador, mas não ao direito social de moradia, haja vista que este último é alcançado através do desenvolvimento de políticas públicas, melhorias nas condições habitacionais e de saneamento básico, programas de desenvolvimento de renda básica, dentre outros.
5. A PACIFICAÇÃO DO TEMA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como vimos acima, ante a falta de consenso jurisprudencial, aliado às relevantes questões constitucionais que estão envolvidas, acabaram provocando o STF a se
pronunciar sobre o tema, como forma de pacificar a jurisprudência e conferir segurança jurídica nas relações contratuais locatícias.
Enfim, a questão chegou ao STF através do Recurso Extraordinário (RE) n° 1.307.334, no qual foi reconhecida repercussão geral em 05/03/2021, em decisão que enfatizou a divergências de decisões no próprio STF sobre o tema.
Em votação realizada em sessão virtual no dia 10/03/2022, o Supremo assentou a seguinte tese: "É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial". A tese da constitucionalidade da penhora foi vencedora em votação por maioria, com 7 (sete) votos contra 4 (quatro).
A maioria dos Ministros acompanhou o voto do Ministro Relator, Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, o qual ressaltou que não cabe fazer distinção onde a própria lei não distingue, sustentando não haver base legal ou interpretativa para a distinção pretendida. Além disso, reforçou que a maioria das empresas que locam imóveis têm como fiador o seu próprio sócio, que sabe e assume o risco da dívida com todo o seu patrimônio, por livre e espontânea vontade.
O Ministro Xxxxxxx Xxxxxxx, em linha de concordância com o relator, também ressaltou que a CF prestigia o direito à moradia, mas, por outro lado, também prestigia a livre iniciativa e a autonomia da vontade. Admitir a impenhorabilidade seria onerar ainda mais o mercado, o que seria extremamente prejudicial.
Os outros 04 (quatro) Ministros, em linha de divergência, adotavam a seguinte tese: "É impenhorável o bem de família do fiador de contrato de locação não residencial". O Ministro Xxxxx Xxxxxx, que iniciou a divergência, destacou que o dano ao atingir o núcleo do direito à moradia é superior aos eventuais ganhos com a promoção dos princípios da livre iniciativa e da autonomia contratual. A Ministra Xxxx Xxxxx, por sua vez, destacou a importância de observação do direito à moradia sob o enfoque do princípio da dignidade da pessoa humana. Por fim, lembrou que no julgamento da Tese 295, se concluiu pela penhorabilidade apenas porque o direito à moradia estava em contraponto com este mesmo direito, pelo lado dos locatários.
Desta forma, além de estar em completo alinhamento com a liberdade contratual acima destacada e prestigiando a autonomia da vontade que norteia o Código Civil brasileiro, a decisão do STF pacificou por completo a jurisprudência sobre o tema,
consagrando a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nos casos de locação comercial.
6. CONCLUSÃO
Em conclusão ao presente trabalho, verificamos que o tema abordado possui uma grande relevância jurídica, econômica e social. A impenhorabilidade do bem de família do fiador nas locações comerciais é um tema que abrange não só o direito contratual, como também importantes questões constitucionais.
É possível observar duas principais teses sobre o tema. A primeira, defende a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nas locações comerciais, pois a legislação (artigo 3º, VII, da Lei n° 8.009/1990) não fez qualquer distinção entre locação comercial e residencial, sendo que o fiador assumiu a dívida com todo seu patrimônio de livre e espontânea vontade e a Constituição Federal prestigia, além do direito à moradia, o direito à livre iniciativa e autonomia da vontade.
Por outro lado, a segunda tese defende a impenhorabilidade do bem de família do fiador nas locações comerciais, pois sustenta que o direito à moradia é um núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, o qual deve prevalecer sobre a livre iniciativa e da autonomia contratual, bem como trata a penhora do bem de família como um meio desproporcional e não isonômico de atingir a satisfação do crédito.
Neste trabalho, buscou-se analisar as duas teses sob o enfoque da liberdade contratual, como um desmembramento do direito à liberdade que integra o princípio da dignidade da pessoa humana, e da autonomia da vontade, como princípio norteador do Código Civil brasileiro, sendo traçada uma distinção entre o direito à moradia e o direito à propriedade.
Por fim, enfatizamos a pacificação da jurisprudência pelo STF no Recurso Extraordinário (RE) n° 1.307.334, que assentou a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador no caso de locação comercial, fixando a seguinte tese: "É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial".
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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