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Dever de informar versus dever de manter-se informado: a boa-fé nos contratos
Xxxxxxxx Xxxxx XXXXXXXX*
RESUMO: Partindo da concepção da obrigação como uma relação jurídica complexa, o credor não possui somente poderes e faculdades para cobrar e receber o crédito, tendo também que observar deveres de conduta juridicamente obrigatórios, como, por exemplo, o dever de não agravar a situação do devedor e o de contribuir para a materialização do pagamento. Não obstante a certeza de que as partes devem atuar cooperativamente para o adimplemento da obrigação, a jurisprudência e a doutrina encontram dificuldades para analisar a extensão da cooperação das partes na realização, execução e conclusão dos contratos. Visando explorar o tema, especificamente no que tange a fase pré-contratual, o presente artigo propõe uma reflexão a partir de um estudo de caso e, para desenvolver os contornos das questões propostas, analisa o conceito de boa-fé nos contratos e os deveres que dela decorrem.
PALAVRAS-CHAVES: Boa-fé; cooperação; dever de informar.
SUMÁRIO: 1. Introdução; – 2. Breves considerações sobre a boa-fé no direito brasileiro; – 2.1. Conceito jurídico indeterminado, cláusula geral ou princípio geral de direito?; – 2.2. Deveres anexos da boa-fé; – 2.2.1. Deveres informativos; – 3. Análise do caso apresentado; – 4. Conclusão.
TITLE: Duty to Inform Versus Duty to Be Kept Informed: The Good Faith in Contracts
ABSTRACT: Starting from the conception of the obligation as a complex legal relationship, the creditor does not only have the powers and faculties to collect and receive the credit, but also to observe legally obligations of conduct, such as, for example, the duty not to aggravate the situation of the debtor and to contribute to the materialization of the payment. Notwithstanding the certainty that the parties must act cooperatively to comply with the obligation, jurisprudence and doctrine find it difficult to analyze the extent of the parties cooperation in the beginning, execution and conclusion of contracts. In order to explore the subject, specifically in what concerns the pre-contractual phase, this paper proposes a reflection from a case study and, to develop the contours of the proposed issues, analyzes the concept of good faith in the contracts and the duties that result from it.
KEYWORDS: Good faith; cooperation; duty to inform.
SUMMARY: 1. Introduction; – 2. Brief considerations on good faith in Brazilian law; – 2.1. Undetermined legal concept, general clause or general principle of law?; – 2.2. Obligations attached in good faith; – 2.2.1. Informational duties; – 3. Analysis of the case presented; – 4. Conclusion.
* Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e Doutoranda em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora na Universidade Federal de Lavras.
1. Introdução
O vínculo obrigacional, antes compreendido a partir de uma concepção binária, estruturado em dois polos, cabendo a um o direito subjetivo de receber o crédito (credor) e ao outro o dever jurídico de pagar o débito (devedor), é hoje estudado a partir de sua perspectiva dinâmica. Isso porque trata-se de uma relação jurídica complexa cujo perfil não se esgota no binômio crédito e débito, existindo ainda uma série de direitos e deveres recíprocos que atingem ambas as partes.1
Sob essa ótica, o credor não possui somente poderes e faculdades para cobrar e receber o crédito, tendo também que observar deveres de conduta juridicamente obrigatórios, como, por exemplo, o dever de não agravar a situação do devedor e o de contribuir para a materialização do pagamento.2
Não obstante a certeza de que as partes devem atuar cooperativamente para o adimplemento da obrigação, a jurisprudência e a doutrina encontram dificuldades para analisar a extensão da cooperação das partes na realização, execução e conclusão dos contratos.3
Visando explorar o tema, especificamente no que tange a fase pré-contratual, o presente artigo propõe uma reflexão a partir do seguinte caso: dois irmãos, A e B, xxxxxx, em condomínio, uma fazenda ao lado de uma grande mineradora da região. O irmão A faz uma proposta para compra da parcela da fazenda do irmão B, sendo o negócio concluído em poucas semanas. Após tal venda, a mineradora faz uma proposta ao irmão A para adquirir todo o imóvel por um valor, proporcionalmente, bem acima do previamente pago por ele a B, sendo a venda também concretizada posteriormente. Diante do caso, B sente-se prejudicado por ter perdido a oportunidade de vender sua parcela da fazenda para a mineradora.
1 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A incidência do princípio da boa fé no período pré-negocial: reflexões em torno de uma notícia jornalística. Doutrinas essenciais de responsabilidade civil, vol. 8, p. 597, Out./2011.2 Sobre o tema Menezes Cordeiro leciona: “A ideia que aflora na regra da primazia a materialidade subjacente é de fácil exteriorização: o Direito visa, através dos seus preceitos, a obtenção de certas soluções efectivas; torna-se, assim, insuficientes a adopção de condutas que apenas na forma correspondam aos objetivos jurídicos, descurando-os, na realidade, num plano material. A boa fé exige que os exercícios jurídicos sejam avaliados em termos materiais, de acordo com as efectivas consequências que acarretem.
Num exemplo académico, seria contrário à boa fé e, a esse título, abusivo, o comportamento do devedor que, obrigado a colocar determinada quantidade de tijolos um prédio do credor, os descarrega no fundo do poço: ainda quando o local da entrega ficasse ao critério do devedor, deve entender-se a opção não poderia ser feita em termos danosamente inúteis” (MENEZES CORDEIRO, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e. Tratado de direito civil português – parte geral (Tomo I). 2º Ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 238).
3 Destaca-se aqui lição de Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx sobre o panorama doutrinário e jurisprudencial da boa-fé: “A explosão do emprego do instituto jurídico designado como boa-fé objetiva tem um lado virtuoso e outro perverso. Virtuoso porque assenta no Direito Brasileiro inafastável padrão ético à conduta contratual. Perverso quando o uso excessivo, desmesurado, imperito, deslocado dos critérios dogmáticos a que deve estar vinculado serve para desqualifica-lo, esvaziá-lo de um conteúdo próprio, diluindo-o em outros institutos e minorando sua densidade específica. Oferecer critérios é também oferecer limites. A ausência de limites importa necessariamente em arbítrio, como diz antigo provérbio – ‘quando as margens são ultrapassadas, caem todos os limites’” (XXXXXXX- XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 11).
Suponha-se três situações distintas: (i) o irmão A, mais propenso a riscos em comparação ao irmão, realizou o negócio com B pensando em uma futura valorização do imóvel em decorrência de possível expansão da mineradora; (ii) o irmão A realizou a compra da parcela de B motivado por um boato de expansão da mineradora; e (iii) o irmão A realizou a aquisição da parcela de B baseado em um Fato Relevante4 divulgado pela mineradora, no qual constava a informação de sua futura expansão. Suponha-se, ainda, que: (i) o irmão A more na região próxima à fazenda em questão e o irmão B resida em uma área distante, não tendo acesso facilitado às informações que o irmão A detém; e (ii) os irmãos possuem uma relação harmônica e de proximidade.
Diante das hipóteses apresentadas, pergunta-se: haveria, nas três situações elaboradas, o dever de informação, de A em relação a B, acerca das intenções que envolvem o negócio? Em outras palavras, A deveria ter informado a B as razões que o motivaram a realizar a compra da fazenda ou caberia a B buscar informações atreladas ao negócio antes de concretizá-lo?
Para desenvolver os contornos das questões propostas, analisar-se-á o conceito de boa-fé nos contratos e os deveres que dela decorrem.
2. Breves considerações sobre a boa-fé no direito brasileiro
2.1. Conceito jurídico indeterminado, cláusula geral ou princípio geral de direito?
O sistema jurídico é integrado, de maneira geral e sem adentrar nas polêmicas sobre o tema, por normas jurídicas, as quais se dividem em regras e princípios.
As regras podem ser elaboradas seguindo diferentes técnicas legislativas. Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxx ensina que, no tratamento da responsabilidade pré-contratual, os ordenamentos jurídicos de tradição romano-germânica preferem utilizar normas dotadas de grande teor de
4 Art. 2º, Instrução CVM n. 358/2002. “Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; III - na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados”.
indeterminação no tratamento.5 Nessa esteira, destaca-se a utilização de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais.
O conceito jurídico indeterminado é concebido com um enunciado vago6 que será preenchido, diante do caso concreto, pela interpretação do juiz. Xxxx Xxxxx Xxxxx aduz que “a intenção manifesta da doutrina dos conceitos indeterminados é lograr a abertura do sistema jurídico, evitando-se o seu fechamento exagerado e, pois, o seu isolamento do mundo sociocultural circundante”.7
Xxxx Xxxxxxx entende que o conceito de cláusula geral está contido na ideia de conceito jurídico indeterminado, não sendo necessário tecer distinções entre os termos.8 No entanto, de maneira diversa, Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx compreende que o juiz, diante dos conceitos indeterminados, limita-se a aplicar a norma ao caso concreto, enquanto, perante as cláusulas gerais, sua atuação intelectiva é mais complexa. Na mesma linha, ao tratar da distinção entre conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, Xxxxxx Xxxx Xxxxxx e Xxxx Xxxxx xx X. Xxxx ensinam que, embora em ambos se verifique vagueza e generalidade, no conceito indeterminado a solução dada pelo juiz deverá ser aquela já prevista na norma, enquanto, diante de cláusula geral, é dado ao juiz a oportunidade de criar soluções, motivo pelo qual podem ser verificadas respostas distintas para casos semelhantes. Os autores destacam, nessa esteira, que diante das cláusulas gerais a atividade jurisdicional será integrativa.9
Nota-se, pois, que a cláusula geral, assim como o conceito jurídico indeterminado, abranda a rigidez do texto legal, moldando-o “às necessidades da vida social, econômica e jurídica”.10 Não obstante as vantagens, essa técnica legislativa confere ao direito certo grau de incerteza, podendo “servir de pretexto para o recrudescimento de dominação por regimes autoritários
5 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Responsabilidade pré-contratual: subsídios para o direito brasileiro das negociações. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2011, p. 56.
6 “A vagueza do conceito não deve ser confundida com sua generalidade. Esta não traduz imprecisão ou indeterminação de sentido, mas sim indica ou refere-se a objetos integrantes de uma certa classe ou conjunto. Pode-se, e.g., refletir-se genericamente aos bens de um determinado imóvel, sem que isso implique qualquer imprecisão nas suas identificações, uma vez que eles são certos. É dizer: a expressão genérica pode ser precisa, não sendo necessariamente vaga” (XXXXX, Xxxx Xxxxx. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 81).
7 XXXXX, Xxxx Xxxxx. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 79.
8 “Ora não devemos nós, pelo menos, considerar as cláusulas gerais incluídas nos conceitos indeterminados normativos, e por vezes também nos conceitos discricionários? De facto, as cláusulas gerais não possuem, do ponto de vista metodológico, qualquer estrutura própria. Elas não exigem processos de pensamento diferente daqueles que são pedidos pelos conceitos indeterminados, os normativos e os discricionários” (ENGISCH, Xxxx. Introdução ao pensamento jurídico. 10º Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 233).
9 XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 275.
10 XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 275.
ou pela economia capitalista extremada”.11 Ademais, conforme destaca Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxx, tal técnica “insere um terceiro na relação privada das partes, uma vez que apenas o juiz poderá dar conteúdo ao tipo aberto e definir o direito aplicável àquela relação”.12
Além das regras, as normas também são compostas por princípios gerais.
A distinção entre princípios e regras é um tema controverso que possui grande espaço para debate entre os juristas, sendo as teorias de Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx precursoras.
Segundo Xxxxxxx, de forma simplificada, as normas jurídicas se dividem em regras e princípios de acordo com o grau de generalidade e especialidade da norma, sendo os princípios mais gerais se comparados às regras. Já Xxxxx, em breves linhas, as divide considerando a estrutura e a forma de aplicação, sendo que as regras expressam deveres definitivos e são aplicados por meio de subsunção, enquanto os princípios são deveres prima facie que somente são aplicados quando sopesados com outros princípios colidentes.13
Xxxxxxxx Xxxxx, a partir dos conceitos clássicos das normas jurídicas propostas pelos dois estudiosos mencionados, e de vários outros autores, propõe uma definição para regras e princípios:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da criação normativa e a construção conceitual dos fatos.
11 XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 275.
12 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Responsabilidade pré-contratual: subsídios para o Direito Brasileiro das negociações. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2011, p. 57.
13 “Segundo Dworkin, um princípio é ‘um modelo (standard) que deve ser observado, não porque ele avançará ou assegurará uma situação econômica, política ou social julgada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou de imparcialidade (fairness) ou de qualquer outra dimensão da moralidade’ (Xxxxxxx, 1978: 22). [...] Ao contrário das regras, que se aplicam de uma maneira ‘ou tudo ou nada (in an all-or-nothing fashion)’ (Dworkin, 1978: 24), e que portanto comportam exceções enumeráveis previamente à sua aplicação (Dworkin, 1978: 25), os princípios comportam exceções à sua aplicação que não podem ser enumeradas previamente à hipótese concreta de sua incidência (Dworkin, 1978: 25), porque qualquer outro princípio pode, abstratamente, representar uma exceção à aplicação de um princípio. Ao contrário de Xxxxx, o que Xxxxxxx está dizendo é que não se trata de imaginar uma ponderação, ou seja, imaginar-se um conflito resolvido pela aplicação de um e não aplicação de outro princípio, orientada pela hierarquização dos mesmos, mas de se imaginar que os princípios são normas que se excepcionam reciprocamente nos casos concretos, vez que não podem, muitas vezes, ser contemporaneamente aplicados. É claro que um princípio só pode excepcionar a aplicação de outro quando isso for suficientemente fundamentado de um ponto de vista discursivo. Mas efetivamente os discursos de aplicação podem apresentar tal fundamentação” (XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação. Brasília. Revista de Informação Legislativa. nº. 143 jul./set. 1999. p. 193).
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.14
Como se verá a seguir, a boa-fé aparece no ordenamento jurídico brasileiro com diferentes configurações, ora como regra – sob as vestes de cláusula geral ou de conceito jurídico indeterminado –, ora como princípio.
Adicionalmente, é possível distinguir a boa-fé objetiva da boa-fé subjetiva.
A boa-fé, em sua concepção subjetiva, baseia-se na crença ou ignorância de um sujeito em relação a certos fatos. Conforme leciona Menezes Cordeiro, a boa-fé subjetiva pode assumir duas acepções: (i) em um sentido puramente psicológico, “estaria de boa-fé quem pura e simplesmente desconhecesse certo facto ou estado de coisas, por muito óbvio que fosse”, ou
(ii) em um sentido ético, “só estaria de boa-fé quem se encontrasse num desconhecimento não culposo; noutros termos: é considerada má-fé pessoa que, com culpa, desconheça aquilo que deveria conhecer”.15 Prevalece a doutrina da boa-fé na perspectiva ética em função dos argumentos colacionados a seguir:
A juridicidade do sistema: o Direito não associa consequências a puras casualidades como o ter ou não conhecimento de certa ocorrência; o Direito pretende intervir nas relações sociais; ora, ao lidar com uma boa fé subjectiva ética ele está de modo implícito, a incentivar o acatamento de deveres de cuidados e de diligência;
A adequação do sistema: uma concepção puramente psicológica de boa fé equivale a premiar os ignorantes, os distraídos e os egoístas, que desconheçam mesmo o mais evidente; paralelamente, ir-se-ia penalizar os diligentes, os dedicados e os argutos, que se aperceberiam do que escapa ao cidadão comum;
A praticabilidade do sistema: não é possível (nem desejável) provar o que se passa no espírito das pessoas; assim e em última análise, nunca se poderá demonstrar que alguém conhecia ou não certo facto; apenas se poderá provar que o sujeito considerado, dados os factos disponíveis, ou sabia ou devia saber, em qualquer das hipóteses, há má fé.16
14 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Teoria dos Princípios – Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 78.
15 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e. Tratado de direito civil português – parte geral (Tomo I). 2º Ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 229.
16 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e. Tratado de direito civil português – parte geral (Tomo I). 2º Ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 230.
No Código Civil Brasileiro (CC/02), se extrai, entre outros, os seguintes exemplos de boa-fé subjetiva: art. 113, o qual dispõe acerca da realização do negócio jurídico, o art. 1.242, do qual se extraia os requisitos para a usucapião, e o art. 1.561, o qual dispõe acerca do casamento putativo.
A boa-fé objetiva, diferentemente, se consubstancia em fonte de direito e de obrigação, impondo aos contratantes o dever de agir segundo um padrão de conduta.17 Assim, “nestas relações é completamente irrelevante o estado psicológico de consciência de uma das partes de estar causando um dano a outra”.18 É, por exemplo, o que se extrai do art. 422, do CC/02, o qual determina que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Seja sob as vestes de conceito jurídico indeterminado, cláusula geral ou princípio19, certo é que, conforme lição de Menezes Cordeiro, a boa-fé “assegura a reprodução do sistema, seja conquistando para o seio áreas que ganham características de juridicidade, seja adaptando à nova realidade, científica ou social, dispositivos arcaicos, seja, por fim, realizando, na vida real, um projeto que o legislador deixou a meio”.20
Em suma, a boa-fé é uma “convicção teórica: mais do que princípio, norma, standard [...], a boa-fé objetiva é um modelo ou instituto jurídico do qual transcendem outros institutos e figuras parciais de sua manifestação”.21
2.2. Deveres anexos da boa-fé
De acordo com a finalidade das partes e a natureza dos negócios jurídicos, verificam-se deveres anexos de conduta impostos pela boa-fé objetiva e, nesse sentido, os contratantes
17 Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx leciona que a boa-fé objetiva desempenha três funções, quais sejam: de interpretação (nos termos do art. 113, do CC/02), de concretização (“[...] consiste na determinação do conteúdo da boa-fé, mediante o recurso aos usos, usos locais e a certos valores”) e de controle (“[...] deve ser vista como uma espécie de diretiva do comportamento das partes [...]”) (XXXXXXX, Xxxx Xxxxx de. Informar ou não informar nos contratos, eis a questão! In.: XXXXXXX, Xxxx Xxxxx de; XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx (org.). Estudos de direito privado e processo civil: em homenagem a Xxxxxx xx Xxxxx e Xxxxx. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 247).
18 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Responsabilidade pré-contratual: subsídios para o Direito Brasileiro das negociações. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2011, p. 61.
19 “O princípio não se confunde com o conceito jurídico indeterminado nem com a cláusula geral. Todos se caracterizam por conter expressões vagas e elásticas. Contudo, o conceito indeterminado e a cláusula geral são técnicas legislativas através das quais o princípio é inscrito na norma” (XXXXX, 2005, p. 89).
20 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e. Da boa fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 1984, v. I, p. 46.
21 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 8.
devem agir com probidade, honestidade e lealdade em relação a outra parte. “São deveres que não atinem ao ‘que’ prestar, mas ao ‘como’ prestar”.22
Dessa forma, a boa-fé objetiva abre “espaço para que a finalidade ética e econômica do contrato se entrelacem”.23 É através dela que as partes visam, além da execução regular do vínculo contratual, o cumprimento de deveres positivos, como a colaboração e a lealdade, ou negativos, como a abstenção de determinadas condutas, sendo-lhes exigido mais do que a simples obrigação de não prejudicar conscientemente a outra parte.24
A cooperação, na concepção de Xxxx Xxxxx Xxxxx, relaciona-se ao princípio que instiga, impele e estimula as pessoas a um agir efetivo e positivo, pela concretização de resultados benéficos na perspectiva das partes, ou até mesmo de terceiros.25-26 Já Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, ao abordar esse dever anexo, leciona que “trata-se de uma cooperação qualificada pela finalidade, que é alcançar o adimplemento satisfatório, destacando-se o vínculo com a obtenção das utilidades buscadas pelo contrato”. Adicionalmente, a autora afirma que a cooperação “inclui a probidade (Código Civil, art. 422), que é a correção da conduta, o seu direcionamento ético”.27
A cooperação, ainda, obriga as partes a não agirem em contradição com atos e comportamentos praticados antes da conclusão do contrato, durante a execução ou depois de exaurido o objeto.28 Trata-se da aplicação do venire contra factum proprium, segundo o qual “é lícito confiar e esperar que os atores sociais cumprirão corretamente os papéis que lhes são próprios na sociedade, realizando otimamente as funções que lhe foram atribuídas na organização social”.29 Do venire contra factum proprium se extraem outras figuras as quais não serão estudadas no presente artigo, quais sejam: tu quoque, supressio (ou Verwirkung) e surrectio (ou Erwirkung).
22 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 222.
23 XXXXXXXX apud XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 804.
24 XXXXXXX apud XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Responsabilidade pré-contratual: subsídios para o Direito Brasileiro das negociações. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2011, p. 60.
25 XXXXX, Xxxx Xxxxx. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 172.
26 Nessa esteira, a cooperação se contrapõe à competição: “Ao contrário da competição – onde as ações são desenvolvidas quase mecanicamente, com vistas exclusivas à realização do objetivo almejado – na cooperação recupera-se a humanidade que deve presidir asa relações travadas entre os indivíduos, havendo maior consciência e comprometimento na consecução das tarefas. Pode-se dizer que na cooperação aflora o amor e o cuidado nas condutas individuais, as quais se harmonizam, enquanto a competição desperta sentimentos negativos como a ganancia e a inveja, gerando oposições, exclusões, disputas e desarmonias” (XXXXX, Xxxx Xxxxx. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 174).
27 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 523.
28 XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 805.
29 XXXXX, Xxxx Xxxxx. Responsabilidade civil e eticidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 195.
2.2.1. Deveres informativos
Dentre os deveres anexos, destacam-se os deveres informativos, os quais podem ter diferentes configurações, que irão variar de acordo com as peculiaridades do caso concreto.30 No entanto, essa configuração multifacetada faz com que sua aplicação não seja facilmente realizada.
Indubitavelmente, a boa-fé não implica em um dever universal e incondicionado de publicidade frente a terceiros.31 Contudo, tal dever, estudado geralmente sob o viés da moral e da ética, projeta-se no sistema jurídico, não podendo ser desconsiderado pelo intérprete no momento de aplicação da norma. Nesse sentido, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx afirma que o dever informativo “supõe que cada parte deva informar a outra sobre os dados que aquele ignora e que não está em condições de conhecer por si mesma”.32
Não há dúvidas, porém, de que, por exemplo, quando o indivíduo entra em uma loja para adquirir um produto, não há, para o vendedor, a obrigação de dizer que a loja da esquina vende o mesmo objeto por um menor preço.
Nesse sentido, Xxx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx leciona que inexiste “um dever geral de informação pré-contratual, uma vez que este é incompatível com a natural oposição de interesses entre as partes”.33 Assim, “a não revelação de uma informação não é sempre ilícita ou desleal, pois, em princípio, cada contraente deve cuidar, ele próprio, das informações relevantes para o contrato”.34 Na visão da autora, porém, o dever “existirá se a contraparte puder
30 “Trata-se de grupo extremamente polimorfo, pois a informação pode ser caracterizada, conforme as circunstâncias, como a própria obrigação principal (e.g., um contrato cujo objeto reside na prestação de informações sobre aplicações financeiras); um dever anexo ao dever principal (por exemplo, informar, via
<<manual de instruções>>, sobre o correto uso da máquina adquirida); um dever lateral de proteção (v.g., informar sobre os riscos de queda no chão do supermercado que está sendo lavado); um dever legal (por exemplo, a informação devida pelos administradores à assembleia de acionistas) e mesmo um ônus ou encargo material, como, por exemplo, o chamado << dever de se informar>> atribuído aos profissionais sobre o estado da arte de sua profissão [...]” (XXXXXXX-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 526).
31 “Lo más próximo a semejante ley serían las reglas de la buena fe (arts. 7.1 y 1.258 CC), pero aunque se trata de normas que tiene un carácter principal indudable – y, por tanto, muy general – nadie ha sostenido – al menos hasta ahora – que la buena fe implica un deber universal e incondicionado de publicidad veraz frente a tercero” (XXXXXXXX XXXXXXX, Xxxxx. XXXXX XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Simulación y deberes de veracidade – Derecho civil y derecho penal: dos estúdios de dogmática jurídica. Madri: Civitas, 1999, p. 18).
32 Xxxx XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 540.
33 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 78.
34 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 78.
legitimamente esperar a informação pré-contratual por esta ser conforme à boa-fé e às
concepções dominantes do comércio jurídico”.35
O problema está, então, no fato de o limite entre o que deve, ou não, ser informado ser tênue, havendo, inclusive, posicionamentos que afastam, em grande extensão, o dever nas relações privadas:
Em efecto, em los ámbitos de actividad para los que rige el principio de autonomía privada, se admite, por hipótesis cuya reiteración pudiera parecer trivial, la posibilidad de actuar o de abstenerse de ello: quienes pueden decidir compra y vender un objeto, pueden también resolver no hacerlo o, simplemente, pueden carecer de todo interés en iniciar negociación alguna al respecto o, caso de haberla comenzado, abandonarla antes las dificultades de alcanzar un acuerdo o por cualesquiera otras razones.
Pero importa resaltar desde el principio del trabajo la tesis de fondo que se defiende en él: en ninguno de los casos anteriores asumen los interesados obligación alguna de explicar al resto de los consociados su decisión de comprar y vender, cuando efectivamente la adoptaron; su falta de acuerdo, cunado no lo hubo; ni, mucho menos, las razones por las cuales – en el primer caso – cerraron el trato o – en los restantes – no llegaron a ponerse de acuerdo. En derecho privado, nadie está obligado a dar al mundo cuente las razones de su propia actividad o inactividad negocial.
Ahora bien, puede pensarse que una cosa es abstenerse de dar explicaciones y otra muy distinta actuar ofreciendo explicaciones que non son verdaderas en relación con lo actuado.36
Sabe-se que a informação inverídica é vedada pelo Direito, porém, nem sempre a omissão é sancionada. É necessário, pois, analisar se a abstenção é “tão eloquente quanto uma mentira” ou se há um dever de não silenciar.37
Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, por exemplo, leciona que o dever de prestação de informação é marcado pela instrumentalidade ou pela relacionalidade. No primeiro caso, “informa-se para atingir determinado resultado útil”, enquanto no segundo considera-se o dever em relação ao sujeito, “pois o que pode ser uma informação lacunosa ou incompreensível para um leigo,
35 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 78.
36 XXXXXXXX XXXXXXX, Xxxxx. XXXXX XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Simulación y deberes de veracidade – Derecho civil y derecho penal: dos estúdios de dogmática jurídica. Madri: Civitas, 1999, p. 16.37 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 539.
poderá ser uma informação despicienda para um profissional”.38 Vê-se, pois, que a extensão do dever é avaliada em relação a um contexto, devendo verificar: (i) elementos fáticos subjetivos ligados à pessoa dos envolvidos (ex.: possibilidade de assimetria informacional);
(ii) elementos fáticos objetivos (ex.: o risco assumido por cada uma das partes); e (iii) elementos normativos (ex.: dever jurídico de informar, como ocorrer nas relações consumeristas).39
Adicionalmente, segundo Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, “[...] os papéis sociais têm especial relevo para o plano regulatório da interação”, razão pela qual os deveres de proteção, lealdade e informação variam conforme o papel desempenhado.40 Em sentido semelhante encontra-se lição de Xxx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx:
[...] se as partes se encontram unidas por uma especial relação de confiança, o cuidado e precauções usuais no tráfego jurídico que a credora de informações deveria ter respeitado serão menos exigentes do que o cuidado e precauções a respeitar caso as partes apenas se encontrem relacionadas pela simples entrada em negociações. Ou seja, a boa fé em que deve encontrar-se a credora das informações terá um conteúdo diferente conforme o tipo de relação existente entre os negociantes.41-42
É possível perceber que os deveres anexos da boa-fé, independentemente do grau de aplicação, podem ser interpretados a partir da teoria da culpa in contrahendo, desenvolvida por Xxxxxx xxx Xxxxxxx, segundo a qual, antes mesmo da formação dos contratos, as partes têm, entre si, diversos deveres, os quais visam “prevenir que, nesta fase pré-contratual, alguma das partes possa atingir a confiança da outra, provocando-lhe danos”.43 Nessa esteira, não obstante a redação do art. 422, do CC/02, entende-se que as partes devem agir com boa- fé na fase das tratativas preliminares do contrato e não somente na sua conclusão e execução.44
38 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 530.
39 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 530.
40 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito contratual brasileiro: críticas e alternativas ao solidarismo jurídico. 2º Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 168.
41 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 116.
42 Destaca-se que a autora discorre com base no ordenamento jurídico português. Contudo, tendo em vista a semelhança desse com o ordenamento brasileiro, o mesmo entendimento poderia ser aplicado.
43 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx x. Tratado de direito civil português – parte geral (Tomo I). 2º Ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 231.
44 “[...] é há muito tempo sabido que, no direito contemporâneo, o direito dos contratos não surge exclusivamente dos princípios da autodeterminação e auto vinculação, à vista dos quais fora o mesmo moldado na doutrina posterior à Revolução Francesa. A concepção da relação obrigacional como um processo dinâmico, a incidência do princípio da boa-fé objetiva, a conformação da tutela da confiança, tudo conduz à concretização da ideia de "direito justo" - tratada com particular intensidade na Teoria Geral do Direito a qual, modernamente tem infletido, neste campo, com particular intensidade – por forma a admitir-se, hoje, que os sujeitos, quando se
Em consonância com este entendimento, Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx aduz que os deveres informativos, na fase antecedente ao contrato, servem “para possibilitar o consentimento informado. Os bens jurídicos protegidos são higidez da manifestação negocial e a confiança que possibilita não apenas acalentar expectativas legítimas, mas igualmente, avaliar riscos”.45
3. Análise do caso apresentado
O problema da insuficiência e assimetria de informações, conforme destaca Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxx, é relevante nas transações em que as partes, para obter melhor barganha e por razões estratégicas, tendem a não divulgar todas as informações que envolvem o contrato em prospecção.46-47 Nesse sentido, o Direito, através de regras ou princípios, impõe o dever de informar em certas situações.48 Contudo, nos casos como o apresentado, o limite entre o que deve ou não ser divulgado é tênue e a questão-chave passa a ser se o dever de informar é jurídico ou meramente moral.
Sem o intuito de adentrar às nuances desse complexo tema da Filosofia do Direito, recorda-se a clássica lição de Xxxxxx Xxxxx, segundo a qual Direito e Moral podem ser representados por dois círculos secantes, uma vez que existem normas no mundo jurídico que não são ditadas por motivos de ordem moral e o Direito tutela fatos que não estão naquele campo. É assim que, embora tenham elementos em comum, “o campo da moral não se confunde com o campo jurídico” e vice-versa.49-50
relacionam juridicamente, em especial quando travam negócios jurídicos, devem adotar um comportamento leal em toda a fase prévia à constituição da avença, mantendo o mesmo comportamento durante o desenvolvimento das relações já constituídas e mesmo, em certos casos, após extinta a obrigação sob a ideia da pós-eficácia das obrigações ou culpa post factum finitum (XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A incidência do princípio da boa fé no período pré-negocial: reflexões em torno de uma notícia jornalística. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil, vol. 8, p. 597, Out./2011).
45 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 529.
46 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Responsabilidade pré-contratual: subsídios para o Direito Brasileiro das negociações. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2011, p. 31.
47 O autor ressalta, porém, que a estratégia “pode mostrar-se equivocada, pois a parte que contrata assumindo mais riscos que assumiria se tivesse as informações necessárias descontará os riscos assumidos no preço do contrato” (XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Responsabilidade pré-contratual: subsídios para o Direito Brasileiro das negociações. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2011, p. 31).
48 A título de exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, em inúmeros artigos, impõe o dever de informar para proteção dos consumidores e a Lei das Sociedades Anônimas dispõe acerca do dever de informar dos administradores para com a companhia, investidores e reguladores (Bolsa e Comissão de Valores Mobiliários).
49 XXXXX, Xxxxxx. Lições preliminares de Direito. 27º Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 42.
50 Em outro sentido: “A teoria do ‘mínimo ético’ [elaborada por Xxxxxxxx Xxxxxxx] consiste em dizer que o direito apresenta apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade posso sobreviver [...] Assim, o direito não é algo de diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantia específicas. A teoria do ‘mínimo ético’ pode ser reproduzida através da imagem de dois círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, que ‘tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo que é moral é jurídico’” (REALE, Xxxxxx. Lições preliminares de Direito. 27º Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 42).
O dever jurídico de informação é o dever de elucidar a outra parte, espontaneamente ou via cumprimento de lei ou contrato, sobre as condições reconhecíveis como importantes para a decisão que, se não informadas, permaneceriam ocultas51. No entanto, não se trata de um dever “geral devido à natural oposição de interesses entre as partes. O dever só existirá se a contraparte puder, legitimamente, esperar ser informada, ou seja, se o princípio da boa-fé e as concepções dominantes do comércio jurídico o impuserem”.52- 53
Ademais, para análise do caso, é importante verificar a relação existente entre os contratantes, já que o tipo de vínculo que une as partes é imprescindível para determinar se há entre elas a “justificação para a confiança”.54
Entende-se que a relação familiar estabelecida entre os irmãos A e B é um fato objetivo razoável para supor uma relação de lealdade particular55. Contudo, não se pode analisar da mesma maneira as três hipóteses citadas no início deste artigo. Observam-se nelas peculiaridades essenciais ao julgamento.
Com base nessa premissa, compreende-se que na primeira hipótese (compra realizada com base em expectativas individuais de retorno), o elemento subjetivo que influenciou a tomada de decisão do irmão A não é suficiente56 para dar origem ao dever jurídico de informar. Poder-se-ia questionar que, talvez, se o irmão A apresentasse ao irmão B suas intenções de retorno financeiro futuro baseado na venda para a mineradora, o irmão B optaria por não vender sua parte. No entanto, estar-se-ia diante de uma situação absurda, na qual a contraparte teria o dever de expor todo o seu pensamento, expectativas, desejos, receios atrelados ao negócio. No âmbito jurídico esse pensamento não pode prosperar.
51 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 130.
52 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 130.
53 “É óbvio que, em qualquer negociação, as partes se esforçam por ganhar vantagens, por prosseguir os seus interesses. E a lei não é assim tão ingênua que acredite, sequer, na conveniência de obrigar as partes a agir ‘nas suas relações como se estivessem em graça de santidade ou em postura de permanente confissão’” (XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 83).
54 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 116.55 XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 127.
56 “Fabre-Magnan utiliza, neste contexto, o critério da pertinência das informações. Um facto pertinente, objeto de um dever de informação, será todo o elemento susceptível de provocar uma reacção no credor da informação, no sentido de que, se este conhecesse a informação, teria agido de forma diferente. Facto pertinente é aquele que se reporta ao objeto das obrigações nascidas do contrato útil para a contraparte, sendo que a sua revelação não deve ser ilícita. Com o devido respeito, parece-nos que não basta que o facto seja pertinente, no sentido de que seja um facto útil. Os factos em causa terão de ser verdadeiramente essenciais à decisão de contratar, o que significa que seu conhecimento teria alterado significantemente esta decisão” (XXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxx da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 133).
Seguindo a mesma lógica, na segunda hipótese (compra realizada com base em boatos de expansão da mineradora) não há para o irmão A o dever de informar, pois é inviável pensar em dever jurídico fundado em meros boatos. Poder-se-ia dizer que moralmente ele teria o dever, mas entende-se que o Direito não deveria se projetar para tutelar essa situação.
A última hipótese (compra realizada com base em informação divulgada em Fato Relevante pela própria mineradora) é mais problemática e relaciona-se a contraposição entre dever de informar e dever de manter-se informado.
Ainda que, em regra, se espere das partes diligência mínima em relação a auto informação, é possível que sua exigibilidade seja flexibilizada em função da relação de confiança existente entre as partes. Logo, a ignorância será legítima quando o dever de manter-se informado for afastado por circunstâncias particulares. É legítimo pensar que, em razão do vínculo que une os irmãos A e B, xxxxxxx, por parte de ambos, a iniciativa espontânea de comunicar as informações relevantes ao contrato. Assim, diante da omissão, o irmão A estaria descumprindo com o dever de informar, devendo o irmão B ser indenizado, em linha com o art. 927, do CC/02, pelos danos sofridos, os quais seriam quantificados pelo valor que deixou de lucrar em virtude da omissão.
Para melhor entender os argumentos expostos, destaca-se que no caso de as partes serão unidas tão somente pelo negócio, ou até mesmo se fossem irmãos que não tivessem um bom convívio familiar, não haveria entre elas a lealdade particular existente entre sujeitos unidos por uma relação de confiança. Dessa forma, não haveria, em qualquer das três hipóteses, o dever de informar. Ademais, nesse acaso, ainda que uma das partes, por residir na região, a princípio, poderia ter acesso diferenciado às informações relacionados à fazenda objeto das negociações, não se visualizaria impossibilidade, fática ou jurídica, para que a outra buscasse as informações relevantes ao negócio. Xxxxxxx, então, aos contratantes, o ônus de auto informar e diligenciar os próprios interesses, buscando informações que os auxiliariam na tomada de decisão de concretizar ou não a venda. Nessa linha, os contratantes diligentes deveriam fazer perguntas, averiguar e analisar as respostas que recebe, buscar dados e refletir sobre as informações que lhe são transmitidas.57
O que direciona, então, a resposta aos casos apresentados na introdução deste texto é exatamente a relação existente entre os irmãos A e B, da qual deriva a confiança entre as partes e uma expectativa mais ampla do dever informativo.
57 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 540.
Por fim, ressalta-se que a análise proposta não leva em consideração a intenção de uma das partes de lesar ou não a outra, o que poderia configurar vício de consentimento derivado do dolo.58 A solução jurídica diante dessa hipótese seria diversa, já que com base no art. 145 do CC/02, o negócio jurídico entre as partes seria anulável.
Vê-se, então, que ao analisar o caso é necessário verificar se trata-se de aplicação da responsabilidade civil (verificando existência de culpa em sentido lato sensu – culpa e dolo) ou de vício de consentimento (verificando a existência de dolo essencial59). Exemplificadamente, se o irmão A possui o dever de informar, mas por culpa ou xxxx, não o faz, deverá indenizar B pelo valor que este deixou de lucrar em função da venda da fazenda. Diferentemente, se o irmão A, como estratégia, induz B a vender a fazenda para se beneficiar futuramente ao vendê-la por um valor bem superior, nascerá para B o direito subjetivo de pleitear a anulação do negócio jurídico, visando restaurar às partes ao status quo ante.
4. Conclusão
É fundamental o papel exercido pela boa-fé nas relações jurídicas. Nesse sentido, sempre que possível, deve-se buscar o equilíbrio contratual sob a inspiração das ideias de justiça, eticidade e sociabilidade, e estimular a cooperação entre as partes contratantes, incentivando a troca espontânea de informações. Contudo, não é possível impor às partes o dever amplo e irrestrito de comunicar à contraparte as intenções e motivações que circundam o contrato, sob pena de até mesmo inviabilizar o tráfego jurídico negocial. Também não se pode desconsiderar aspectos peculiares de cada caso concreto. Foi visto que há diversos elementos capazes de alterar as soluções apresentadas, devendo o intérprete estar atento a eles para melhor aplicar a boa-fé nos negócios jurídicos.
Referências bibliográficas
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58 Conceito de dolo: “Expediente ou estratégia astuciosa direcionada no sentido de induzir alguém à prática de um ato que lhe pode causar prejuízos, em benefício de quem realiza a ação intencional de engodo ou em benefício de terceiros a quem o ato viciado possa interessar” (XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 514).
59 Distinção entre dolo essencial e dolo acidental: “Só é suscetível de anulabilidade o chamado dolus causam, ou principal ou essencial, que se liga à causa determinante do negócio, causa essa sem a qual ele não teria sido concluído [...] se o dolo comprometer a liberdade do agente, apenas quanto às circunstâncias acidentais que motivaram a emissão de sua vontade, não terá o condão de conduzir o negócio à anulação, podendo ensejar, contudo, eventual reparação por perdas e danos (CC 146, 186 e 927; CC/16 93 e 159)” (NERY JUNIOR, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx X. Código Civil comentado. 11º Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 514).
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XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito Contratual Brasileiro: críticas e alternativas ao solidarismo jurídico. 2º Ed. São Paulo: Atlas, 2015.
xxxxxxxxxxx.xxx |
Recebido em: 26.11.2017 Aprovado em: 08.03.2018 (1º parecer) 23.03.2018 (2º parecer) |
Como citar: VERSIANI, Xxxxxxxx Xxxxx. Dever de informar versus dever de manter-se informado: a boa-fé nos contratos. Xxxxxxxxxxx.xxx. Rio de Janeiro, a. 7, n. 1, 2018. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxx.xxx/xxxxx-xx- informar-versus-dever/>. Data de acesso.