Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes
Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes
2002
A presente reimpressão feita pelo Ministério da Saúde tem autorização expressa da Universidade de Pernambuco. (Of. EDUPE n.º 25/2003)
Tiragem: 2.000 exemplares MINISTÉRIO DA SAÚDE
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V795 Violência doméstica contra a criança e o adolescente / Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx. - Recife: EDUPE, 2002.
240 p. : il.
1. Violência doméstica - crianças e adolescentes.
I. Xxxxx, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. II. Título.
CDU 241.12
Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes
Universidade de Pernambuco - UPE - 2002 Copyright@ by Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx
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Organizadora
XXXXX XXXXX XXXXXXX XX XXXXX
Enfermeira. Especialista em Pediatria e Puericultura. Docente das Disciplinas Enfermagem em Pediatria e Semiologia / Semiotécnica da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças - FENSG/UPE.
Autores
XXXXXX XXXXXXX XXXXXXXXX DO NASCIMENTO
Psicanalista. Mestre e Doutor em Lingüística. Docente da Disciplina de Psicologia da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças - FENSG/UPE.
XXXXXX XXXXXX XX XXXXX
Bacharel em Direito. Diretora Executiva do Departamento de Proteção à Criança e ao Adolescente - DPCA da Polícia Civil de Pernambuco.
XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXXXXXX
Graduanda do Curso de Enfermagem
XXXXX XXXXX XXXX XXXXXXXX
Psicóloga Clínica. Especialista em Intervenção Psicossocial da Família no Judiciário. Psicóloga do Programa de Atendimento Jurídico-Social e Psi- cológico à Crinaça e ao Adolescente, Vítimas de Violência Sexual e seus Familiares - CENDHEC. Terapeuta Comunitária. Voluntária da Pastoral da Criança. Membro da Equipe de Saúde Mental da Pastoral da Criança no Estado de Pernambuco.
XXXXX XXXXXXXX XXXXX XXXXXXXX
Pedagoga. Fonoaudióloga. Psicóloga. Terapeuta Comunitária. Especia- lista em Intervenção Psicossocial à Família no Judiciário. Coordenadora Estadual da Equipe de Saúde Mental da Pastoral da Criança do Estado de Pernambuco.
XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXX
Sociólogo. Membro do Fórum para Erradicação do Trabalho Infantil. Trabalha no Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social - CENDHEC.
XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX
Enfermeira. Mestra na Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente. Docente das Disciplinas: Pediatria, Neonatologia, Saúde Coletiva e Metodologia de Pesquisa I e Coordenadora de Extensão da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças - FENSG/UPE. Enfermeira Assistencial do Hospital Otávio de Freitas.
XXXXX XXXXX XXXXXXXX XXXXXX
Enfermeira. Mestra em Enfermagem na Atenção à Saúde da Mulher. Docente da Disciplina Ginecologia e Metodologia de Pesquisa I da Faculda- de de Enfermagem Nossa Senhora das Graças - FENSG/UPE.
XXXXXX XXXXXXX
Colaboradora
XXXXX XXXXXX XXXXXXX
Psicóloga Clínica. Atua na Vara de Crimes contra a Crinaça e o Ado- lescente do Recife. Especialista em Intervenção Psicossocial à Familia no Judiciário.
XXXXXXX XXXXXXXXXX TELES DE MENDONÇA
Assistente Social. Mestra em Serviço Social. Coordenadora do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social - CENDHEC.
“Necessidades básicas não atendidas são verdadeiros gritos de guerra”.
Xxxxx XxXxxxxxx
APRESENTAÇÃO
1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES - NOSSA REALIDADE 17
2. A DOR DA VIOLÊNCIA 45
3. NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: UM OLHAR DO PROFISSIONAL DE SAÚDE 61
4. FERIDAS QUE NÃO CICATRIZAM 83
5. VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR. RELATO DE UMA PRÁTICA EM PSICOLOGIA JUDICIÁRIA 99
6. O TRABALHO INFANTIL E AS MÚLTIPLAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES 115
7. O MAU-TRATO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: OS CAMINHOS DA PREVENÇÃO,
DA PROTEÇÃO E DA RESPONSABILIZAÇÃO. 137
8. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR COMO UMA POSSIBILIDADE DE
TRATAMENTO 181
AGRADECIMENTOS
Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx Angeiras Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx
Este livro pretende contribuir com o estado de Pernambuco, marcando uma nova fase de um trabalho que vem sendo aqui realizado desde há muito tempo. Pernambuco tem se caracterizado como pioneiro em várias frentes pela defesa dos direitos humanos, em particular dos direitos da criança e do adolescente, tendo instalado, nos mais diversos níveis da sociedade civil e no interior dos órgãos públicos, fóruns de discussão sobre esta temática. Certamente é essa marcante presença no estado da arte da violência e do mau-trato infantil que tem gerado farta e valiosa publicação sobre o tema por parte de agentes e entidades, demonstrando a grande capacidade instalada em nosso estado, especificamente em Recife.
A Universidade de Pernambuco - UPE, entidade pública, consciente de sua função social e sua identidade institucional, considerando a trágica realidade vivida por um grande número de crianças e adolescentes em toda parte do mundo, mas especialmente em nosso estado, vai ao encontro das reais necessidades da população, atuando, tanto no campo teórico como no prático, nas questões que se constituem demandas da sociedade, através de sua atuação nas áreas de ensino, pesquisa e extensão, funções primordiais da universidade, a serviço do cumprimento de sua missão maior: responsabilidade social.
Como exemplo, considerem-se as atividades de extensão junto à comunidade do bairro de Santo Amaro, que se constitui em um dos grandes bolsões de miséria da cidade do Recife, ao promover para este local a convergência de ações de várias das Instituições de Ensino da UPE, nomeadamente desde a área de saúde à de educação.
Outra iniciativa significativa foi a campanha DIGA SIM À PAZ iniciada em 1998, que conclamava toda a Universidade para promover uma cultura de paz, mobilizando a comunidade acadêmica a se engajar em todas as atividades desta ação.
Salientamos que foi exatamente numa atividade de extensão, atendendo a uma demanda da comunidade, que foi iniciado, no ano de 2000, o projeto PREVINA A VIOLÊNCIA, DIGA SIM À PAZ. Este constituiu-
se num projeto educativo voltado à prevenção da violência contra a criança e o adolescente para quarenta famílias envolvidas, tendo se desenvolvido por dois anos com resultados bastantes animadores. Logo depois, o projeto foi aglutinado pelo PROGRAMA DE ENSINO E PESQUISA EM EMERGÊNCIAS, ACIDENTES E VIOLÊNCIAS DA UPE, tendo encontrado
nesta ação mais ampla e mais abrangente o apoio necessário para se firmar.
O projeto PREVINA A VIOLÊNCIA, DIGA SIM À PAZ, para sua execução, contou com várias parcerias. A Pastoral da Criança e o Centro Xxx Xxxxxx Xxxxxx participaram do projeto em toda sua execução e foram co-responsáveis pelo sucesso obtido.
Essas parcerias foram a inspiração para o trabalho que agora realizamos. Para isso buscamos novas parceiras, como a Diretoria Executiva de proteção à Criança e ao Adolescente e a Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente, nas quais encontramos ressonância.
Desse modo, o Projeto VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE foi concebido e tem se consubstanciado ao longo do tempo. Seus objetivos concentram esforços na publicação da presente obra; na divulgação dos resultados deste trabalho sob a forma de seminário, ampla e publicamente divulgado para repercussão da temática e na capacitação de profissionais de saúde e de educação que trabalhem na assistência às crianças e aos adolescentes, em situação de violência doméstica.
Animou-nos a enfrentar as dificuldades o desafio de agregar autores de origens tão diversas e que realizam trabalhos tão valiosos junto às crianças que têm seus direitos violados.
O resultado não poderia ser outro: textos díspares, que refletem bem a solidão com que atuam as diversas pessoas e entidades envolvidas na proteção e na defesa das crianças e dos adolescentes vitimizados. Nosso livro foi então a encruzilhada em que se deram trocas enriquecedoras e consoladoras.
Foi reavivada em nós, a idéia de que devemos investir sempre mais em projetos com características intersetoriais e multiprofissionais, e que o nosso trabalho cresce mais quando desenvolvido em parceria ou em rede.
Na elaboração do livro, predominaram as pesquisas bibliográficas,
enriquecidas pelos relatos de experiências dos autores, no entanto, contamos também com uma pesquisa científica com trabalho de campo no capítulo referente à negligência.
O primeiro capítulo é conceitual e histórico. Seu objetivo é introduzir o leitor no tema, bem como situá-lo na realidade em que a temática se desenrola no estado de Pernambuco. Os conceitos, didaticamente elaborados em outras obras, são apresentados, aqui, de modo sucinto, ressaltando que aos tipos de violência psicológica, negligência e violência sexual são acrescidos o trabalho infantil.
O segundo capítulo intitulado A Dor da Violência apresenta uma abordagem psicanalítica sobre as violências resumidas, porém não reduzidas, da dor emocional que a criança violentada carrega, qualquer que seja a experiência deste específico tipo a ela imposta e, principalmente, quando os agentes deste ato são os pais.
O capítulo seguinte traz a pesquisa anteriormente referida. Desenvolvida sob a metodologia da Representação Social, traz o título: Negligência Contra a Criança: Um Olhar do Profissional de Saúde, revelando a percepção deste profissional, acerca do tema, buscando aprofundar uma reflexão mais sistemática e revelando formas de enfrentamento a estas situações em sua prática cotidiana de trabalho.
Feridas Que Não Cicatrizam é o título do quarto capítulo, que trata da violência física. Apesar da aridez do tema, o artigo foi desenvolvido com a sensibilidade de um artista ao compor a imagem desta situação, ao mesmo tempo que contou com a experiência de uma delegada que há anos testemunha a exclusão de adolescentes autores de atos infracionais, cujas vidas foram marcadas pela violência doméstica.
O quinto capítulo traz o relato de uma experiência única em nosso estado, em que a autora, psicóloga, atua no sistema judiciário e lida com uma das mazelas mais complexas de nossa sociedade. Sob o título Violência Sexual Intrafamiliar: Relatos de uma Prática em Psicologia Judiciária, o artigo traz à discussão a questão mais polêmica da violência sexual que é o tratamento dispensado ao abusador. Entendemos aqui o aspecto patológico do abuso, sem perder de vista o aspecto criminal, bem como as necessidades das vitimas.
O Trabalho Infantil e as Diversas Faces da Violência é o sexto capítulo. Nele, o autor considera a base político-econômica-social do trabalho
infantil, considerando ainda o aspecto das relações interpessoais que interferem nas características como o problema se apresenta.
No capítulo intitulado O Mau-trato Infantil e o Estatuto da Criança, o sétimo da obra, a autora explora os caminhos a serem percorridos para a responsabilização do agressor, a proteção da vítima e a prevenção da violência. Propostas de fluxograma são apresentadas, permitindo ao leitor visualizar passo a passo as ações referentes à proteção dos direitos individuais da criança e do adolescente.
No último capítulo, As Contribuições da Terapia Familiar como uma possibilidade de Tratamento, a autora enfoca a gravidade dos danos causados pela violência doméstica à vida das crianças e dos adolescentes, ao mesmo tempo em que discorre sobre as demandas da família em situação de violência.
Para concluir, e indo ao encontro do exercício de responsabilidade acadêmica da UPE, esperamos, com a conclusão e a apresentação desta obra a público, poder contribuir para o desenvolvimento da sistematização do conhecimento no tema Violência Doméstica Contra a Criança e o Adolescente, numa perspectiva ainda pouco explorada, embora muito necessária: a de cooperação entre os que operam no tema e o fortalecimento de suas ações.
Temos consciência que não pretendemos com esta publicação esgotar os problemas das crianças e dos adolescentes, mas principalmente contribuir com significativos elementos que possibilitem ampliar e aprofundar a discussão.
Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES - NOSSA REALIDADE
Xxxxx Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx
COMENTÁRIOS INTRODUTÓRIOS
Gostaríamos de introduzir nosso relato, referindo um pouco do nosso interesse por esta temática. Remonta ao ano de 1983, quando a escolhemos como objeto de estudo para a Monografia realizada para a conclusão do Curso de Psicologia. Àquela época, nos restringimos a um levantamento bibliográfico dos estudos publicados até então, focando, particularmente, a ação dos pais na produção do fenômeno a partir de uma visão teórica psicanalítica (FERREIRA,1983). A partir daí, nosso interesse pela questão foi-se ampliando, e passamos a estudá-la de uma maneira mais abrangente, considerando outras variáveis que são determinantes para a sua manifestação, à medida que a nossa prática apontava e que novos e diferentes estudos iam sendo publicados, demonstrando que não poderíamos nos restringir à dinâmica inconsciente dos pais, mas considerar também a família, o contexto em que essas famílias estão incluídas, a cultura e a estrutura social que, por sua vez, estabelecem os modelos relacionais e interpessoais prevalentes numa sociedade.
A violência é um fenômeno que se desenvolve e dissemina nas relações sociais e interpessoais, implicando sempre uma relação de poder que não faz parte da natureza humana, mas que é da ordem da cultura e perpassa todas as camadas sociais de uma forma tão profunda que, para o senso comum, passa a ser concebida e aceita como natural a existência de um mais forte dominando um mais fraco, processo que Xxxxxxx Xxxxxxxx (1995) descreve como a “fabricação da obediência”.
Por sua amplitude e disseminação vem, nos últimos trinta anos, adquirindo gradativa visibilidade desde que passou a ser discutida e estudada por diferentes setores da sociedade brasileira, preocupados em compreendê-la, em identificar os fatores que a determinam, buscando encontrar soluções de enfrentamento que possam reduzi-la a níveis compatíveis com a ordem social estabelecida.
Entre as diferentes formas como a violência se apresenta, uma particularmente vem chamando a atenção: aquela que é praticada pelos
pais ou responsáveis contra seus filhos, e sobre a qual trataremos nesta introdução.
Consideramos importante apontar, agora, as dificuldades encontradas pelos estudiosos do fenômeno quanto à construção de uma terminologia padronizada para a sua conceituação, uma vez que os fatores que o determinam são multifacetados. Faleiros e Campos, (2000, p. 4-5) no relatório de uma pesquisa realizada por elas sobre conceitos de violência, abuso e exploração sexual, explicam tais dificuldades, considerando que este é um campo ainda novo de estudos, apesar do fenômeno ser antigo, exigindo investigações aprofundadas e sistemáticas, para que, compreendendo-o melhor, seja possível conceituá-lo com maior precisão. Referem ainda que tanto a diversidade de termos conceituais, utilizados para designar o mesmo fenômeno, quanto um mesmo termo empregado para designar aspectos diferentes do fenômeno estudado, confundem ainda mais, tornando a tarefa de padronização muito mais complicada. Se, tomando apenas um tipo de manifestação do fenômeno da violência encontraram tais dificuldades, é possível deduzir que o mesmo aconteça em relação às outras manifestações e também quanto ao fenômeno em si.
No Brasil, atualmente, a violência exercida por pais ou responsáveis contra suas crianças e adolescentes é considerada pelo Ministério da Saúde como um problema de saúde pública de tamanha expressividade que a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências deste Ministério determina como devem ser tratadas e notificadas as ocorrências deste fenômeno, endossando as preocupações daqueles que, em função das atividades que exercem, deparam-se cotidianamente com seus efeitos e conseqüências.
Feitas estas observações, introduziremos outros aspectos que julgamos relevantes para que se tenha uma visão mais ampla sobre a temática em foco. Assim, incluiremos o ponto de vista proposto por Xxxxxx (1994), em que a autora refere que esta forma de violência contra crianças e adolescentes, acontece em um contexto fundamentado na própria estruturação da sociedade, marcado que é pelos processos culturais que lhe são próprios. Ponto de vista este, que também é enfocado por Xxxxx (2000) em recente trabalho realizado. Xxxxxxxxx, em seguida, o processo de mudança da concepção de infância, criança e adolescente que,
gradativamente, vem se desenvolvendo em nossa sociedade a partir do paradigma da proteção integral e abordaremos como, na vida cotidiana, são vivenciados esses conceitos, procurando correlacionar os diferentes aspectos que fomentam a violência exercida pelos pais e responsáveis contra suas crianças e adolescentes, que serão abordados especificamente na parte que vai tratar desse tema.
Consideramos importante incluir, ainda que de maneira resumida, um pouco da história deste tipo de violência em Recife, no Brasil e no mundo, como tentativa de recuperar a memória de tão insidioso problema, que começa a ser desvelado.
Em seguida, abordaremos o conceito de Violência Doméstica proposto por Xxxxxx e Xxxxxxx (1998) e o de Violência Intrafamiliar construído por Xxxxxxxx (1997), procurando caracterizar os aspectos que lhes são próprios com o objetivo de demonstrar as variâncias existentes entre eles, mas que são importantes para o estudo a que nos propomos realizar; pois, existe, atualmente, um consenso de que esta forma de violência é uma derivação de violências mais amplas, que marcam e são marcadas pelas diferentes relações sociais de classes, de gênero, de raça/etnia, instalando-se nos relacionamentos intrafamiliares como uma distorção do cuidar, no sentido dado por Xxxx (1999), para quem cuidar inclui necessariamente o envolvimento afetivo com o outro.
Cuidar é mais que um ato ; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo, e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, de preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.( Xxxx, 1999, p.)
Essa forma de violência contra crianças e adolescentes não é uma expressão da modernidade; faz parte da própria história cultural das sociedades desde os tempos mais antigos de que se têm registro. (FERREIRA, 1983, p.9). O que tem contribuído para que hoje ela seja mais visível talvez seja o que Deslandes chama de “...desenvolvimento de uma consciência social em torno do tema da proteção à infância”. (1994, p.178); e também a crescente mobilização em torno dos direitos humanos, nos últimos vinte anos. Daí não ser mais possível ignorar sua presença no cotidiano de milhares de crianças e adolescentes, o que
demanda a concretização de propostas e programas interdisciplinares, sensibilização, prevenção, e tratamento dos seus desastrosos efeitos, além da responsabilização e tratamento dos seus agentes, como uma tentativa de reduzir a sua incidência e de possibilitar o verdadeiro reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.
AS VIOLÊNCIAS E A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Em recente estudo, Xxxxx (2000) aponta a necessidade da contextualização do fenômeno da violência praticada contra crianças e adolescentes por seus familiares ou responsáveis, considerando-se o ambiente sociopolítico e cultural como fomentador das condições facilitadoras de sua expressão, em interação dinâmica com a família.
É fundamental que se compreenda que uma questão desta magnitude não pode ser concebida e tratada através de uma visão unilinear de causa e efeito, em que, de um lado, está o agressor motivado por sua “má índole” e do outro, sua vítima, esperando e/ou provocando o ataque. Mas como resultado multicausal e interativo de uma dinâmica sociocultural e política que repercute em todo tecido social, fazendo suas vítimas de maneira indiscriminada.
Há pouco mais de vinte anos, uma nova ordem política e econômica vem sendo implantada, alterando e agravando principalmente a situação estrutural dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Essa nova ordem, denominada de processo de globalização, vem trazendo conseqüências dramáticas para a vida de milhões de pessoas, uma vez que, em nome da modernidade capitalista, extremamente competitiva, movida por uma tecnologia de ponta, exige, cada vez mais, um desempenho altamente especializado, que os países excluídos do grupo dos desenvolvidos não têm condições de acompanhar.
No Brasil, os efeitos mais visíveis foram: os diferentes planos econômicos de ajuste às exigências do mercado internacional em detrimento da qualidade de vida de seus cidadãos; as modificações nas relações de trabalho; o fechamento ou fusão de inúmeras indústrias consideradas obsoletas; um desemprego massivo que, em outubro de
1999, atingiu o índice de 7,5%, representando em torno de 1,3 milhão de desempregados (SOLER, 2000, p.12). O resultado disto foi uma maior concentração de riqueza para uns poucos e o aumento da pobreza para a maioria da população que teve diminuído, enormemente, seu acesso aos bens de produção, a melhores condições de saúde, à educação, ao saneamento básico, à moradia, agravando situações já existentes de desigualdade que, para Minayo “...influenciam profundamente as práticas de socialização.” (XXXXXX, 1994, p.8)
Com relação à infância e à adolescência, a violência estrutural atinge particularmente aqueles indivíduos em situação de risco pessoal e social, ou seja, os vitimados, na diferenciação feita por Guerra e Azevedo (1997), que sofrem cotidianamente a violência das ruas, da falta de uma educação de qualidade, das precárias condições de moradia e de saúde.
O estudo realizado por Xxxxx, acima referido, apresenta algumas estatísticas que servem para ilustrar os efeitos dessa nova ordem econômica nas vidas das crianças e adolescentes brasileiros e suas famílias. É o Nordeste a região que mais concentra famílias vivendo abaixo da linha de pobreza – com rendimento mensal de até meio salário mínimo -, sendo que, na faixa etária de 0 - 7 anos, estão 53,4% das crianças. São milhões delas mantidas em um ciclo perverso, sendo-lhes negado o direito básico à dignidade, o que vem a ferir os Artigos 4º e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O mesmo ocorre com suas famílias que, desassistidas ou mal assistidas, repetem as condições de exploração/ abandono de que são vítimas. Um outro dado que o autor enfatiza é que não é a pobreza em si que leva milhares de crianças e de adolescentes a fugirem de suas famílias, mas os maus-tratos e abusos de que são vítimas. (XXXXX, 2000, p.12)
Como referimos anteriormente, uma outra determinante na construção da violência contra crianças e adolescentes exercida na intimidade do lar, é a cultura que, ao estabelecer normas, valores, costumes, determina também como os indivíduos se relacionarão de acordo com a distribuição do poder. Saffioti (1989, p.13-21) propôs o conceito de Síndrome do Pequeno Poder, para explicar como se instala a relação de destrutividade entre pais/responsáveis e seus filhos - através de relações interpessoais de natureza hierárquica, transgeracional, em que o adulto abusa de sua autoridade sobre crianças e adolescentes, com o respaldo da sociedade,
atingindo democraticamente todas as classes sociais .
Continuando seus estudos sobre o tema, Saffioti (1997) propõe a nomenclatura Violência Intrafamiliar após fazer uma análise das contradições existentes na construção dos sujeitos históricos, considerando gênero, raça/etnia e classe social e demonstra que existem particularidades, ainda que sutis, entre a Violência Doméstica e a Violência Intrafamiliar. De acordo com a autora, a Violência Doméstica instala-se entre pessoas que não mantêm vínculos de consangüinidade ou afetivos enquanto que, a Violência Intrafamiliar ocorre entre pessoas com vínculos consangüíneos e/ou afetivos, havendo, em comum, entre estas modalidades o espaço doméstico (SAFFIOTI, s.d, p.03). No entanto, a própria autora afirma que eles são parcialmente sobrepostos, uma vez que:
(...) a violência familiar pode estar contida na doméstica. Quando o agressor é parente da vítima, trata-se via de regra, de violência familiar e doméstica. (XXXXXXXX, s.d, p.5)
A CRIANÇA, O ADOLESCENTE E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/ OU INTRAFAMILIAR
A maneira como a infância e a adolescência são concebidas pela cultura ocidental é resultante de um processo longamente construído, marcado ideologicamente pelas contradições que fundamentam as práticas sociais.
Por muito tempo, não se reconheceu a existência da infância e adolescência como momentos delicados do desenvolvimento humano, pois logo que adquiriam alguma autonomia física, as crianças passavam a ser vistas e tratadas como pequenos adultos, aprendendo com eles – não necessariamente com os familiares – o que deveriam saber para garantir a sua sobrevivência. Foi só no final do séc. XVII, segundo Xxxxx (1981), com a mudança trazida pela escolarização, que teve início o reconhecimento e a preocupação com essas etapas da vida, passando a ser a família o grupo referência, a quem competia cuidar e acompanhar as crianças e adolescentes, zelando pelo seu bem estar. Assim, a família e a escola passaram a ser, culturalmente, o lugar da socialização e da
disciplina.
Na construção desse processo de reconhecimento, foram e são importantes as contribuições da Medicina e das Ciências Humanas que, através dos seus saberes, demonstraram ser a infância a etapa fundamental para o desenvolvimento saudável do indivíduo, e a adolescência não uma simples passagem para a vida adulta, mas um momento crítico em que, quem a vivencia está se confrontando com valores, normas, aprendizagens, escolhas afetivas, até então aceitas sem muitos questionamentos. As transformações físicas e intelectuais por que passa levam-no a buscar novas formas de lidar com esse antigo repertório, o que vai repercutir na sua identidade, nas suas escolhas e em novas responsabilidades . Está comprovado que para essas etapas se cumprirem de modo a produzirem adultos saudáveis, o elemento vital é a qualidade das relações afetivas estabelecidas.
Para a psicanálise, o bebê existe antes do seu nascimento, a partir do desejo dos seus pais, desejo este inconsciente, manifesto através das expectativas criadas e vivenciadas em torno do bebê, e que vai influenciar a qualidade das relações afetivas que se estabelecerão. O nascimento de uma criança nem sempre é conseqüência de um ato amoroso, mas de relacionamentos fortuitos, fragilizados, de gestações não desejadas, de um capricho, condições que pouco provavelmente possibilitarão o estabelecimento de relações afetivas amorosas, ternas, necessárias para um bom desenvolvimento.
Ao nascer, o bebê humano está numa situação de absoluto desamparo, incapaz que é de garantir sozinho a satisfação das necessidades do seu corpo e a organização de sua incipiente psique. Ser de linguagem, marcado, simbolicamente, pela cultura em que está inserido, precisa da presença de um “cuidador” que lhe garanta os cuidados essenciais, ajudando-o a administrar seu caos interno, identificando e traduzindo suas inquietações, angústias, medos, frustrações, acolhendo sua raiva, acalmando-o, estabelecendo limites aceitáveis às suas condições de imaturidade. Assim, poderá constituir-se como ser único-no-mundo, com um referencial interno ancorado em um sentimento de segurança, definido como: “...uma crença em algo, não apenas algo bom, mas em algo durável em que possa confiar ou que se recupere após ter sido ferido ou ter permitido que fosse destruído.” (XXXXXXXXX, 1980, p. 44).
Pouco a pouco, vai diferenciando-se em eu e não-eu, internalizando aquilo que lhe é prazeroso, calmante, por dispor de um outro que lhe proporciona essas condições e com o qual se identificará - o cuidador, que na linguagem psicanalítica é nomeado como função materna. Uma primeira e grande desilusão que vai sofrer é o início da separação da função materna, quando simbolicamente acontece a entrada da função paterna, aquela que, culturalmente, vai revelar ao bebê que ele não é o objeto único do amor de sua mãe. Ela tem outros interesses e desejos com os quais ele, bebê, não pode compartilhar. Dessa forma, vai se introduzindo a lei1 que, em nossa cultura, é a proibição do incesto. Momento de dor e angústia para o pequeno ser, que o vivencia com poderosos impulsos de destrutividade, que sendo acolhidos pelos cuidadores resultarão em uma vivência positiva – ele pode até desejar destruir na fantasia, que seus cuidadores e seu mundo interno sobreviverão.
Caso seu desenvolvimento inicial se estabeleça através de relações afetivas acolhedoras, amorosas, estarão favorecidas as condições para que, gradativamente, saia da posição de objeto de cuidados para a de sujeito humanizado, diferenciado, capaz de construir sua própria história, suportando as condições de falta impostas pela cultura e sempre buscando preenchê-las através dos meios socialmente aceitos. Caso contrário, permanecerá na condição de objeto, como coisa da qual se pode dispor. Relações baseadas na coisificação do outro geram vitimização e caracterizam-se como violentas.
Contribuições como essas e também de outras ciências, como as Sociais, ao longo do séc. XX, demonstram que a criança e o adolescente necessitam da presença de adultos que exerçam sua autoridade de maneira confiável, para que possam desenvolver recursos internos e externos que os habilitem a estabelecer relações solidárias no seu convívio social. Demonstram ainda que as famílias, para oferecer essas condições aos seus filhos, necessitam ser apoiadas e amparadas pelo ambiente sóciocultural em seu entorno.
Ao mesmo tempo que as ciências evidenciavam a importância da infância e da adolescência para a sociedade, devendo ser seu patrimônio
1 Lei, no sentido psicanalítico aqui dado, grafada com maiúscula, significa o processo interno de apreensão e internalização desse limite. Esta é uma forma muito simplificada de tratar um conceito bem complexo e fundamental na construção psicanalítica que não compete discutir nesse artigo.
maior, havia no Brasil um descompasso legal, sanado no início da década de 90 com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente que, fundamentado na doutrina de proteção integral, define crianças e adolescentes como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, devendo gozar de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, competindo à família, à sociedade em geral e ao Estado, garanti- los. Mas não é ainda o que se vivencia na prática cotidiana, pois apesar de todas essas conquistas, ainda prevalece, no senso comum, a idéia de que as crianças e os adolescentes são propriedades dos seus pais ou responsáveis, que podem abusar do poder que lhes é conferido, sempre que acharem necessário, com a conivência da sociedade.
É essa a marca da violência que os adultos – pais/responsáveis – impõem aos seus filhos, vistos como destituídos de valor e não merecedores dos direitos que lhes são conferidos, percebidos como objetos dos seus desejos, podendo ser manifestos através de imposições, indo desde ignorar suas necessidades – negligências- até os abusos sexuais.
BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA
A violência doméstica e/ou intrafamiliar contra crianças e adolescentes não é um fenômeno da contemporaneidade. Relatos de filicídios, de maus-tratos, de negligências, de abandonos, de abusos sexuais, são encontrados na mitologia ocidental, em passagens bíblicas, em rituais de iniciação ou de passagem para a idade adulta, fazendo parte da história cultural da humanidade (XXXXXXXXX, 1974; XXXXXXX, 1988). Tais relatos são ricos em expressar, de forma bem elaborada, a violência que os pais/responsáveis infligem às suas crianças e adolescentes, geralmente justificada como medida disciplinar, de obediência. Por muito tempo, ela foi uma prática instituída sem qualquer sanção, uma vez que na relação estabelecida, o pai tinha poderes de vida ou de morte sobre seus filhos.
Com a evolução das sociedades e o surgimento do Estado foram aos poucos se estabelecendo reprovações contra tais práticas, mas insuficientes para coibi-las, uma vez que, se antes não existia a atitude de cuidados para com as crianças e os adolescentes como uma prática social, depois, esses cuidados, inclusive os disciplinares, passaram a ser
de responsabilidade única da família, não cabendo ao Estado intervir em sua intimidade, mesmo porque, ideologicamente, estava sendo construída a concepção de que a família é a célula-mãe da sociedade e criticá-la seria admitir contradições sociais que não interessavam ao Estado apontar.
Em nossa sociedade, esse problema também é antigo, instalando- se desde o tempo da Colônia. Quando o colonizador aqui chegou, ele encontrou uma população nativa vivendo de modo absolutamente diferente do seu, e que não aplicava castigos físicos em suas crianças nem abusava delas, mas estabelecia uma relação de acolhimento e proteção. Foram os jesuítas que, em sua missão de civilizar e catequizar os gentios, trouxeram os castigos físicos e psicológicos como meios de discipliná-los e educá-los (XXXXXXX e XXXXXXXXX, 1999). Ao mesmo tempo, as primeiras famílias brasileiras iam se formando com configurações diferentes de acordo com a região em que viviam, mas tendo, em comum, características como: o homem e pai ser o senhor absoluto a quem todos deviam cega obediência e a submissão e subordinação das mulheres, dos filhos, dos escravos e de quem mais convivesse com a família. Assim, a base das relações familiares foi a rigorosa disciplina mantida com castigos físicos, muitas vezes cruéis, com a aprovação da Igreja. E essa forma de educar, de exercer o poder, ultrapassou todos os modelos políticos brasileiros, mantendo-se até a atualidade.
Na Europa, a violência contra crianças foi cientificamente estudada pela primeira vez pelo médico legista francês A. Xxxxxxx que, em 1860, publicou um estudo no qual descrevia vários tipos de ferimentos dispensados a crianças por seus pais, responsáveis e professores, estabelecendo pela primeira vez o conceito de criança maltratada.( XXXXXXXXX, 1999, p.133- 160)
Cem anos depois, nos EUA, em 1962, o mesmo tipo de violência foi discutido pelos médicos Xxxxxxxxx e Kempe, como a Síndrome da Criança Maltratada, e, desde 1975, foi classificada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID). Esse trabalho trouxe várias repercussões, passando o fenômeno a ser estudado internacionalmente por médicos, sociólogos, psicólogos, iniciando um movimento que resultou em legislações, programas educativos, propostas de tratamento na Europa e nos Estados Unidos.
No Brasil, o primeiro trabalho científico publicado sobre o tema foi a
descrição de um caso de espancamento de uma criança em 1973, estudo este realizado por professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Em 1975, um outro trabalho foi publicado: a descrição de cinco casos documentados de maus-tratos, pelo Dr. Xxxxxxx Xxxxxx. E, em 1984, publicou-se o primeiro livro brasileiro sobre o assunto: “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas”, de autoria da Drª. Xxxxxxx X. xx Xxxxxxx Xxxxxx (1998).
Ao longo da década de 80 até os dias atuais, muitos outros estudos foram publicados, inicialmente pelas doutoras Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx X. xx Xxxxxxx Guerra que se dedicaram não apenas a compreender sua dinâmica e características, mas a proporem uma teoria explicativa do fenômeno, assim como um programa de atendimento às vítimas e a seus familiares. Além dessa produção, criaram, na Universidade de São Paulo, o Laboratório de Estudos da Criança – LACRI, centro de pesquisa e de formação de especialistas no assunto através do TELELACRI
– Curso de Formação à Distância, que vem formando multiplicadores em todo o país, construindo assim um conhecimento científico a respeito de violência doméstica contra crianças e adolescentes que é referência nacional. O pioneirismo do estudo da Drª. Xxxxxxx X. xx Xxxxxxx Xxxxxx chamou a atenção de outros estudiosos preocupados com o fenômeno da violência doméstica e, ainda na década de 80, outros livros foram publicados, como: “As crianças maltratadas” (XXXXXXX,1985); “Quando a criança não tem vez – violência e desamor” (XXXXXXX,1986); “Crianças espancadas” (XXXXXX,1987), obras que caracterizaram o fenômeno na sociedade brasileira e que continuam sendo seguidas de muitas outras, o que revela a preocupação e a necessidade dos autores de, cada vez mais, conhecerem a realidade da vitimização que sofrem nossas crianças e adolescentes, propondo também formas de abordar o problema, de preveni-lo, de tratá-lo, responsabilizando e tratando os abusadores e
orientando as famílias.
Também em meados da década de 80, começaram a ser criados os primeiros espaços com o objetivo de denunciar e encaminhar os casos de violência praticada por pais ou responsáveis contra seus filhos. Assim, surgiu o Centro Regional de Atenção aos Maus - Tratos na Infância – CRAMI, em 04 de julho de 1985, por iniciativa do Dr. Xxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxx, ligado à Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP, realizando
um trabalho de recebimento de denúncias de toda a comunidade e fazendo os encaminhamentos médicos e legais (XXXXXX, X. xx X., 1987, p. 101). Ainda em São Paulo, em 08 de fevereiro de 1988, começou a funcionar, em caráter experimental, o Serviço de Advocacia da Criança- SAC, constituído pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - São Paulo, Secretarias de Justiça e do Menor e pela Procuradoria Geral do Estado, articulado à REDE CRIANÇA, programa da Secretaria do Menor instalado para combater de forma organizada e sistemática a violência contra a criança. O objetivo maior do SAC foi oferecer à criança um profissional de advocacia que defendesse seus direitos, visando sempre o que melhor atendesse aos interesses do seu cliente, e não de familiares/responsáveis ou da sociedade.(OAB - São Paulo, 1988).
Os primeiros serviços de recebimento de denúncias e encaminhamentos em outros estados brasileiros, também começaram a ser criados por esta época: o de Goiânia, anterior ao CRAMI; o SOS- CRIANÇA de São Paulo; o DISQUE-CRIANÇA de Belo Horizonte; o SOS- CRIANÇA do Recife.
No Recife em finais da década de 80 e início da década de 90, um grande movimento foi iniciado, a partir da preocupação com o crescimento de denúncias de violências praticadas contra crianças e adolescentes nas ruas, pelas polícias, pelos grupos de extermínio e por suas famílias. Esse movimento reuniu entidades governamentais, e não-governamentais, como: Prefeitura da Cidade do Recife, através da Secretaria de Assuntos Jurídicos; Governo do Estado de Pernambuco, através da Cruzada de Ação Social; Polícia Militar, Polícia Civil, FEBEM, Mutirão contra a Violência, Comissão de Justiça e Paz - CJP, Movimento Nacional de Direitos Humanos
- MNDH, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares - GAJOP, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Grupo Ruas e Praças, entre outros.
O resultado dessa mobilização foi a de viabilizar um programa da Prefeitura da Cidade do Recife através da Secretaria de Assuntos Jurídicos, funcionando como um plantão de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência, o SOS-CRIANÇA, instalado em 12 de outubro de 1988, voltado ao atendimento de denúncias de qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes, sendo que, enquanto funcionou, o número de denúncias de violência doméstica/intrafamiliar sempre foi maior que as demais. Desse
primeiro movimento resultou o engajamento no grande movimento nacional para a construção do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em 12 de dezembro de 1989, é fundado o Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, entidade civil sem fins lucrativos, que atua com programas voltados ao direito de moradia e ao uso do solo urbano e à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, sempre que estes estejam ameaçados ou sendo violados, prestando atendimento jurídico-social às vítimas e a seus familiares em situações de abuso de autoridade, homicídios, violência doméstica e abuso sexual, e exploração do trabalho infantil. A partir de agosto de 2001, foi ampliado esse atendimento, com um projeto específico para crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos físicos e abuso sexual, e seus familiares, em que além do atendimento jurídico - social, já oferecido anteriormente, passaram a receber acompanhamento psicológico, por reconhecer a importância desse apoio às vítimas e a suas famílias durante o processo de responsabilização de seu agressor. Realiza ainda a capacitação sobre os direitos das crianças e dos adolescentes para todos que atuem com essa população, com o objetivo de proporcionar o conhecimento desses direitos, de modo que possam funcionar como multiplicadores em sua defesa.(CENDHEC, 1999).
Na década de 90, multiplicaram-se, pelo Brasil, organizações governamentais e não-governamentais que se dedicam ao combate sistemático da violência infringida a crianças e a adolescentes por aqueles que deveriam cuidá-los e protegê-los, realizando denúncias, pesquisas, publicações, programas de atendimento, com o objetivo maior de contribuir para a redução da incidência de tão desastroso problema, apoiando e orientando as famílias e responsabilizando e tratando o abusador.
Com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi em Pernambuco que se instalou o primeiro Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, e também o primeiro Fórum Informal e Institucional, em que representantes da sociedade civil e dos órgãos governamentais discutiam alternativas e soluções para o problema da violência. Ainda em Pernambuco foram criados a 1ª Vara Privativa de Crimes contra a Criança e o Adolescente, o primeiro Programa de Liberdade Assistida Comunitária, e a Diretoria Executiva de Polícia da Criança e do Adolescente – DEPCA. Foram criadas também organizações não-
governamentais, como a Casa de Passagem, o Coletivo Mulher Vida, a Rede de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do Estado de Pernambuco, o Novo Mundo, entre outros. Foram ainda instalados: o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA; o Conselho Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Cidade do Recife – COMDICA; e os Conselhos Tutelares, sendo um em cada uma das Regiões Político- Administrativas (RPAs) da cidade do Recife.
Recentemente, em 2001, a Prefeitura da Cidade do Recife, através da Secretaria de Saúde, criou a Diretoria Executiva de Prevenção aos Acidentes e Violências dando prioridade às crianças e aos adolescentes, estando em fase de implementação os Centros de Referência Contra a Violência à Mulher, à Criança e ao Adolescente, que serão localizados em cada uma das RPAs em que se encontra dividida a cidade do Recife.
VIOLÊNCIAS DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. O QUE SÃO? COMO SE APRESENTAM?
Ao introduzir nosso tema, referimos as dificuldades dos autores para conceituar esse fenômeno, devido à multiplicidade de fatores que o determinam e também porque são utilizados diferentes termos para nomeá- lo e descrevê-lo.
Utilizaremos o conceito proposto por Xxxxxx (1998) para a violência doméstica que, quando analisado, permite tanto identificar a natureza abusiva das relações de poder exercidas pelos pais/responsáveis como ainda refere as conseqüências de tais atos. E que, em nossa opinião, sintetiza, clarifica e inclui as diferentes terminologias citadas acima. Diz a autora:
Portanto, a violência doméstica contra crianças e adolescentes representa todo ato de omissão, praticados por pais, parentes ou responsáveis, contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado uma transgressão do poder/ dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto
é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.(GUERRA, 1998, p. 32-33)
Para caracterizar as diferentes formas de violência das quais as crianças e os adolescentes são vítimas, Azevedo e Guerra (1989), referem- se a dois processos de fabricação que não são excludentes:
· a VITIMAÇÃO, conseqüente das situações de desigualdades sociais e econômicas;
· a VITIMIZAÇÃO, conseqüente das relações interpessoais abusivas adulto-crianças.
Enquanto o primeiro acontece com crianças e adolescentes que vivem mais agudamente os efeitos das desigualdades sócioeconômicas; o segundo, atinge aquelas vítimas da violência doméstica/intrafamiliar que estão em todas as camadas sociais. Referimos que tais processos não são excludentes, significando com isso que crianças e adolescentes vitimados podem estar sendo também vitimizados e vice-versa.
Geralmente atribui-se a existência de violência doméstica/intrafamiliar às classes sociais menos favorecidas, mas nos parece que tal tipo de interpretação, além de revelar desconhecimento do problema, resulta de uma leitura distorcida da questão. O que pode acontecer é que as pessoas socialmente mais favorecidas contam com recursos materiais e intelectuais mais sofisticados para camuflarem o problema, como o acesso mais fácil a profissionais em caráter particular e sigiloso; histórias e justificativas mais convincentes quanto aos “acidentes” ocorridos com suas crianças e adolescentes; poder aquisitivo para burlar a lei etc. Diferentemente, aquelas pessoas que pertencem às classes populares são denunciadas com maior freqüência e não dispõem de recursos materiais para utilizarem serviços profissionais particulares, tendo que recorrer aos serviços públicos de saúde no socorro a suas vítimas.
Em nossa experiência, verificamos que as vítimas desse tipo de violência parecem ficar aprisionadas no desejo do adulto, uma vez que sob ameaças e medo, mantêm um “pacto de silêncio” com seu agressor, num processo perverso instalado na intimidade de suas famílias. O aspecto
que se destaca e que inicia todo o processo violento é o abuso da relação de poder pelo adulto, que pode ser a condição disseminadora da violência doméstica/intrafamiliar em todas as classes sociais, não sendo característica de um determinado modelo familiar, nem conseqüente apenas de uma patologia individual do agressor ou do casal.
A violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes é um fenômeno disseminado, mantido com a complacência da sociedade, que estabelece com as famílias um acordo tácito, o que dificulta o acesso ao que realmente acontece com relação ao problema. Os dados estatísticos, que se têm hoje registrados, representam uma pequena parte da incidência do fenômeno, devido principalmente a essa banalização da violência, que dificulta a denúncia, e também à maneira como são tratadas as situações de violência doméstica/intrafamiliar de acordo com a classe social a que pertence a família.
Com relação às formas como a violência doméstica/intrafamiliar se apresenta, a tipificação nos parece ter mais um efeito didático visto que, na prática, geralmente os vários tipos estão presentes na mesma vítima. Uma criança ou adolescente que é espancado, por exemplo, já sofreu negligência e abuso psicológico; assim como aquela que é abusada sexualmente sofreu também negligência, abuso psicológico e maus-tratos. Existe ainda um grande número de autores que utilizam o termo Maus - Tratos, para conceituar esta maneira de relacionamento. GABEL (1997,
p. 10) afirma que Maus-Tratos “...abrange tudo o que uma pessoa faz e concorre para o sofrimento e a alienação do outro”, utilizando o termo em seu sentido amplo. Segundo Xxxxxxx, (s.d, p.2), existe atualmente “um consenso na ciência quanto à nomenclatura a ser utilizada – Maus - Tratos”, incluindo como categorias de maus-tratos os abuso físicos, os abusos psicológicos, os abusos sexuais e as negligências.
Atualmente, são descritas as seguintes manifestações de Violência Doméstica/Intrafamiliar:
· Abuso/Violência Física: são atos de agressão praticados pelos pais e/ ou responsáveis que podem ir de uma palmada até ao espancamento ou outros atos cruéis que podem ou não deixar marcas físicas evidentes, mas as marcas psíquicas e afetivas existirão. Tais agressões podem provocar: fraturas, hematomas, queimaduras, esganaduras,
hemorragias internas etc. e, inclusive, causar até a morte.
· Abuso/Violência Sexual: geralmente praticada por adultos que gozam da confiança da criança ou do adolescente, tendo também a característica de, em sua maioria, serem incestuosos. Nesse tipo de violência, o abusador pode utilizar-se da sedução ou da ameaça para atingir seus objetivos, não tendo que, necessariamente, praticar uma relação sexual genital para configurar o abuso, apesar de que ela acontece, com uma incidência bastante alta. Mas é comum a prática de atos libidinosos diferentes da conjunção carnal como toques, carícias, exibicionismo, etc., que podem não deixar marcas físicas, mas que nem por isso, deixam de ser abuso grave devido às conseqüências emocionais para suas vítimas.
· Abuso/Violência Psicológica: esta é uma forma de violência doméstica que praticamente não aparece nas estatísticas, por sua condição de invisibilidade. Manifesta-se na depreciação da criança ou do adolescente pelo adulto, por humilhações, ameaças, impedimentos, ridicularizações, que minam a sua auto-estima, fazendo com que acredite ser inferior aos demais, sem valor, causando-lhe grande sofrimento mental e afetivo, gerando profundos sentimentos de culpa e mágoa, insegurança, além de uma representação negativa de si mesmo, que podem acompanhá-lo por toda a vida. A violência psicológica pode se apresentar ainda como atitude de rejeição ou de abandono afetivo; de uma maneira ou de outra, provoca um grande e profundo sofrimento afetivo às suas vítimas, dominando-as pelo sentimento de menos valia, de não-merecimento, dificultando o seu processo de construção de identificação-identidade.
· Negligências: este tipo de violência doméstica pode se manifestar pela ausência dos cuidados físicos, emocionais e sociais, em função da condição de desassistência de que a família é vítima. Mas também pode ser expressão de um desleixo propositadamente infligido em que a criança ou o adolescente são mal cuidados, ou mesmo, não recebem os cuidados necessários às boas condições de seu desenvolvimento físico, moral, cognitivo, psicológico, afetivo e educacional.
· Trabalho Infantil: este tipo de violência contra crianças e adolescentes tem sido atribuído à condição de pobreza em que vivem suas famílias, que necessitam da participação dos filhos para complementar a renda familiar, resultando no processo de vitimação, já mencionado. Porém, se considerarmos que muitas dessas famílias obrigam suas crianças e adolescentes a trabalharem, enquanto os adultos apenas recolhem os pequenos ganhos obtidos e, quando não atendidos em suas exigências, cometem abusos, podemos dizer que a exploração de que são vítimas essas crianças e esses adolescentes configura uma forma de violência doméstica/intrafamiliar tanto pela maneira como são estabelecidas as condições para que o trabalho infantil se realize como pelo fim a que se destina: usufruir algo obtido através do abuso de poder que exercem, para satisfação de seus desejos, novamente desconsiderando e violando os direitos de suas crianças e de seus adolescentes.
De acordo com dados fornecidos pela DEPCA, referentes ao ano de 2001, foram registradas 920 denúncias relacionadas à Violência Doméstica/Intrafamiliar, sendo: 662 denúncias de Violência/Xxxxx Xxxxxx; 79 de Violência/Abuso Sexual; 94 de Violência/Abuso Psicológico; e, 85 de Negligência. Esses dados revelam ainda, que a faixa etária em que ocorre o maior número de Violência Doméstica/Intrafamiliar é a que compreende dos 0 aos 7 anos de idade, ou seja, na infância, período da vida em que se constrói a personalidade e acontece o início da socialização , quando as crianças são mais dependentes de seus pais ou responsáveis, não podendo, por si mesmas, defender-se. De acordo com esse levantamento, o pai aparece como o principal agente nos seguintes tipos de Violência Doméstica/Intrafamiliar: Física, Sexual e Psicológica. A mãe aparece em segundo lugar, predominando a sua ação violenta nos casos de Negligência. São dados importantes para se ter idéia do que se passa no espaço familiar, revelando a urgência da necessidade de políticas públicas e intervenções junto às famílias, de forma que seja possível facilitar uma convivência saudável as nossas crianças e adolescentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo com esse trabalho foi apresentar um recorte sobre a violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes no Recife e Região Metropolitana, fenômeno insidioso que faz milhares de vítimas todos os anos, sem que ainda tenhamos acesso à sua real dimensão, mesmo que as estatísticas oficiais apontem para o aumento de sua incidência. Isto porque, os casos que são registrados representam muito mais o aumento de denúncias do que propriamente da sua ocorrência.
Enquanto fenômeno que se instala na intimidade da família - a partir do estabelecimento de relações de poder abusivas, com graves repercussões quanto ao desenvolvimento global de suas vítimas - a violência doméstica/intrafamiliar ainda é mantida como um segredo ou mesmo não reconhecida como algo a ser combatido, pois, na concepção popular, os pais ou responsáveis têm o direito de disciplinar suas crianças e seus adolescentes, mesmo que para isso se utilizem de meios inapropriados, até mesmo cruéis, para atingirem seus objetivos.
A sociedade, de modo geral, ainda não questionou seriamente tais práticas, mantendo uma atitude ainda um tanto permissiva em relação às famílias vitimizadoras. Talvez porque, para isso, seja necessário confrontar-se com as contradições que alimentam o problema e que estão na base de sua própria estrutura. Quando se fala de violência, necessariamente está se remetendo para a maneira como a sociedade e a cultura lidam com a questão do poder. E a marca que mais ressalta nas relações de poder, estabelecidas em nossa sociedade, é a “naturalização” do seu abuso. Para o brasileiro, de modo geral, é “normal“ o patrão abusar do seu empregado; o homem abusar da mulher; a mulher abusar de outra que socialmente esteja em uma posição inferior; os pais abusarem de seus filhos etc. E é essa “normalidade” que precisa urgentemente ser desmistificada, de modo que se identifique, na família sua real magnitude e importância para o desenvolvimento saudável de seus filhos, a fim de que seja possível desconstruir um mito para reconstruir uma referência.
Em nossa sociedade, é a família o lugar onde se estabelecerão as relações afetivas básicas através das quais a criança aprenderá como interagir com os demais, de acordo com os valores e normas prevalentes na cultura em que está inserida. Daí ser relevante, para se combater a
violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes, que se trabalhe também as famílias, não apresentando a elas um modelo a ser seguido, mas questionando e refletindo junto com elas o modelo no qual estão enquadradas, revendo como está distribuído o poder entre seus membros, de forma que seja possível uma convivência menos autoritária. Uma outra característica da violência doméstica/intrafamiliar é o silêncio instalado à sua volta, geralmente rompido apenas quando atinge os limites da crueldade. Comumente as pessoas não querem se envolver em questões desta natureza, seja por medo das ameaças que são feitas ou mesmo por terem a opinião de que não devem se intrometer em assuntos familiares. Isso contribui não só para a subnotificação do problema, mas principalmente para o agravamento do abuso, revelando um descompromisso com o bem-estar do outro que pode trazer sérias conseqüências para sua vida. Assim, faz-se necessário sensibilizar a comunidade para que cumpra a sua parte de responsabilidade nos cuidados que deve dispensar às crianças e aos adolescentes, de acordo com o que
está determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ainda poderíamos apontar outros aspectos importantes a serem considerados, quando se tem como objetivo combater a violência doméstica, como: a responsabilização do abusador seu tratamento e suas conseqüências; uma maior sensibilização dos profissionais que lidam com crianças e adolescentes, para notificarem os casos suspeitos e/ou confirmados de abuso; a aplicabilidade da lei, favorecendo as vítimas e protegendo-as, e não criando vieses para atenuarem a conduta do abusador etc.
O nosso propósito foi o de introduzir o tema da violência doméstica/ intrafamiliar contra crianças e adolescentes, destacando o seu processo de construção, as suas formas de expressão, as dificuldades para conceituá-la de modo a se ter uma terminologia inequívoca que viesse facilitar sua compreensão. Tentamos também registrar, brevemente, como se iniciou o combate à violência doméstica/intrafamiliar no Brasil através da defesa dos direitos humanos da população infanto-juvenil, especialmente no Recife, tentativas estas consolidadas com as conquistas obtidas pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, citando algumas entidades que se dedicam a esse combate. Todos esses aspectos serão abordados nos demais artigos pelos respectivos autores, com maior
propriedade e profundidade, dando o tratamento necessário ao enriquecimento desta obra.
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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A violência é, atualmente, reconhecida como um problema que mobiliza a atuação das diversas instituições, governamentais ou não- governamentais, envolvidas com a promoção da saúde pública. As vertentes desse problema são várias: a violência estrutural, determinada pelas condições socioeconômicas e políticas; a violência cultural, oriunda das relações de dominação de diversos tipos: raciais, étnicas, dos grupos etários e familiares; e a violência de delinqüência, caracterizada pelos casos socialmente vinculados à criminalidade (Brasil, 1993).
Dada a situação de pobreza da grande maioria da sociedade brasileira, historicamente caracterizada pela desigualdade social, a violência doméstica1 contra a criança e o adolescente é tida como estrutural, sem com isso, por essa mesma desigualdade social, ser também cultural e de delinqüência (Brasil, 1993). Dessa forma, as crianças e os adolescentes encontram-se ilhados no conjunto de atos violentos que os cercam, e que são oriundos e manifestos no contexto familiar, no comunitário e no social, ou em todos concomitantemente.
A violência praticada no ambiente familiar, que tanto pode ser por negligência, física e psicológica2 , embora guarde uma relação direta com a violência estrutural, não é um problema de saúde circunscrito a uma
1Os tipos de violência e suas respectivas definições serão considerados segundo o estudo de Xxxxxxxx (2002) apresentado nesta coletânea e intitulado Violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes – nossa realidade.
2Neste estudo, circunscreveremos a abordagem à violência física, à psicológica e àquela por negligência, evitando a sexual. O motivo de tal exclusão é a complexidade que o tema exige no contexto da teorização psicanalítica, especialmente quando observamos o caráter estruturante da sexualidade e do desejo incestuoso no complexo denominado por Freud de Complexo de Édipo. Tal abordagem exigiria uma explanação teórica que escapa às condições de exposição da presente coletânea. Fica, portanto, uma dívida a ser quitada em breve, inclusive para denunciar a falsa idéia de que Xxxxx descria no incesto como um fato real. Xxxxx, a bem da verdade, nunca negou o incesto real, apenas constatou que, ocorrendo ou não, o que causa angústia à criança é o desejo, o qual sempre existe. Quando o desejo incestuoso é realizado por um dos pais, caso dos sujeitos violentados, tem-se uma experiência dolorosa e desestruturante, certamente muito mais intensa do que quando apenas fantasiada.
classe social, mas, principalmente, uma conseqüência das relações interpessoais dos atores envolvidos: criança/adolescente e familiares (pais, tios, irmãos etc.). Repetindo Guerra (1988, p.31-32), observamos, em relação aos aspectos intersubjetivos, que esse tipo de violência consiste:
a) numa transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a diferença de idade, adulto-criança/adolescente, numa desigualdade de poder intergeracional;
b) numa negação do valor liberdade: a violência exige que a criança ou adolescente sejam cúmplices do adulto, num pacto de silêncio;
c) num processo de vitimização como forma de aprisionar a vontade e o desejo da criança ou do adolescente, de submetê-la ao poder do adulto a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas e as paixões deste.
Como salienta Guerra (1988, p. 32), a violência é um processo de objetalização da criança e do adolescente, na qual ambos são despidos de qualquer subjetividade e reduzidos à condição de objeto de mau- trato. Neste contexto, para a autora, é possível dizer que, entre outras características, o ato violento doméstico:
· é uma violência interpessoal;
· é um processo de imposição de maus-tratos à vítima, de sua completa objetalização e sujeição; (GUERRA, 1988 p. 32).
O presente estudo focalizará as conseqüências da violência infligida pelos pais, considerando, para tanto, que o ato violento pode decorrer de uma ação psíquica e/ou somática, mas sempre acarreta uma dor e trauma psíquico. Para qualquer tipo de violência, ainda que na violência física sobressaia a dor somática, é sempre a dor psíquica que vigora como fator traumático e desestruturante da personalidade. Diremos, então, que a descrição e a distinção fenomenológicas dos tipos de violência têm um substrato comum, a dor psíquica, que qualifica todo ato violento como uma violência psíquica. O conjunto das considerações a serem desenvolvidas, tendo o campo conceitual da Psicanálise como referencial teórico, xxxxxx propor subsídios teóricos que facilitem ao profissional envolvido com o problema da violência doméstica agir clinicamente sobre a dinâmica psíquica do sujeito violentado.
A SUBJETIVIDADE DA VIOLÊNCIA: O DESEJO DE DESTRUIÇÃO
Comecemos nossa digressão sobre o tema, discutindo as proposições de Guerra, citadas anteriormente, sobre o caráter da relação interpessoal presente na violência doméstica, e o façamos a partir da perspectiva psicanalítica. Para tanto, sintetizemos a distinção entre os conceitos de instinto e pulsão e seus correlatos tal qual formulada por Xxxxx ao longo de seus escritos. É uma distinção significativa, pois permite a derivação de uma outra, a que se realiza entre o conceito de ato agressivo e o de ato violento.
O conceito de instinto, como bem afirma Xxxxxx (1985, p. 185), não é fácil de definir, mas tem, por assim dizer, um colorido que permite reconhecê-lo quando observado no conjunto dos comportamentos de um animal:
Quando uma ação, para ser praticada por nós, exige experiência, o que não acontece quando praticada por animais, especialmente quando estes não passam de animais de filhotes inexperientes, e quando tal ação é praticada por muitos indivíduos de maneira idêntica, sem que estes desconheçam sua finalidade, costuma-se dizer que aquela ação é instintiva.
Estamos, aqui, no ambiente natural, na situação em que o organismo, orientado pelas necessidades de conservação de si ou da espécie (fome, sede, reprodução etc.), portanto, por um estado de insatisfação/desadaptação, organiza e realiza um conjunto de ações pré- determinadas, o comportamento instintivo, direcionado a um objeto específico propiciador da satisfação/adaptação.
Outra é a perspectiva quando se considera a formulação freudiana de que o impulso acionador do comportamento humano não é o instinto, mas a pulsão de vida (sexual3 ) ou de morte (destruição). Trata-se de um processo dinâmico originado no corpo e cuja manifestação suscita um estado de insatisfação (desprazer), que, por sua vez, pressiona o organismo em direção a um objetivo, a busca da satisfação (prazer), tendo como meio um objeto escolhido para tal fim. Usamos o termo
3 O termo sexual não está relacionado apenas à função genital. Toda relação situada na dicotomia prazer/desprazer é, em termos psicanalíticos, sexual.
escolhido para ressaltar que, diferentemente do que ocorre no instinto, o objeto não é fixo, podendo ser qualquer um eleito para tal. A pulsão, frisemos, não é observada diretamente, mas apenas enquanto associada a uma idéia, uma fantasia, que é a expressão de um desejo4 , em torno da qual é experienciado um estado afetivo (angústia, alegria, tristeza, euforia, medo etc.).
Neste contexto, a realização de um desejo corresponde à apropriação de um objeto, uma coisa ou alguém, por um sujeito, para que o mesmo sirva de meio à realização das fantasias sexuais (pulsão de vida) ou destrutivas (pulsão de morte), permitindo, assim, a saída do estado de insatisfação (desprazer) para o de satisfação (prazer). No âmbito das relações humanas, inclusive aquelas entre familiares, especialmente entre pais e filhos, subentendemos sujeitos que se colocam para o outro ou o outro para si, como meio de satisfação de fantasias oriundas de desejos sexuais ou destrutivos.
O conjunto dessas considerações mostra o afastamento da concepção biologizante do comportamento, tido como instintivo, e a aproximação de uma outra, a subjetiva que tem o comportamento como desejante. Nesta, como bem mostram as perversões5 , o comportamento humano não é a expressão de uma articulação pré- determinada entre o indivíduo e o objeto, mas de uma orientada pelas fantasias dimensionadas no âmbito do prazer/desprazer. O objeto perverso não é concebível como uma escolha determinada instintivamente, ao contrário, é uma escolha que ofende ao caráter adaptativo do instinto, ao menos no que se refere à perpetuação da espécie. Portanto, trata-se de uma escolha eminentemente subjetiva e sustentada, fundamentalmente, na realização de um desejo com a finalidade da obtenção da satisfação (prazer). Com a perspectiva freudiana, observa-se a passagem de uma concepção do homem como ser eminentemente biológico, instintivo, para outra, como essencialmente subjetivo, desejante, naquilo que o desejo,
4 O desejo pode ser apreendido pela consciência ou, por causa do conflito e da angústia que provoca, ser recalcado e apreendido apenas inconscientemente.
5 Para a psicanálise, as manifestações perversas (homossexualidade, fetichismo, sadismo, masoquismo etc.) são próprias à constituição do sujeito humano e evidenciam a saída da condição instintiva para uma desejante.
de vida ou de morte, é um endereçamento a si mesmo6 ou ao outro, visto como objeto pulsional.
A distinção feita, ainda que xxxxxxx, é suficiente para que apreendamos a formulação de Xxxxx (1982, p. 30), que, após tecer comentários sobre a irracionalidade de atentados a personalidades célebres, assassinatos compulsivos e a conduta brutal de pais em relação a filhos- crianças, diz:
todos esses exemplos e outros do gênero, só atestam a diferença existente entre a violência humana e a agressividade animal. O motivo é evidente: esse tipo de ação destrutiva é irracional, mas porta a marca de um desejo. Violência é o emprego desejado da agressividade com fins destrutivos. Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente ou pode ser inconsciente, involuntário e irracional. A existência destes predicados não altera a qualidade especificamente humana da violência, pois o animal não deseja, o animal necessita. E é porque o animal não deseja, que seu objeto é fixo, biologicamente predeterminado, assim como o é a presa para a fera.
O ato violento é, então, a expressão de uma realização pulsional na qual o objeto violentado serve como meio à realização de uma fantasia destrutiva ou, com outras palavras, na qual o outro é o objeto de satisfação de um desejo de morte.
O autor suscita a exigência de se distinguir o ato agressivo, impulsionado por uma necessidade (fome, sobrevivência etc.), cujo fim último é a adaptação ao meio, do ato violento que, impulsionado pelo desejo, visa, no outro, à satisfação de uma fantasia associada à realização de um desejo de destruição. O primeiro é próprio ao animal; o segundo, ao homem. Neste contexto, é possível conceber o ato violento contra a criança7 ou adolescente com a marca da morte, como expressão da realização de um desejo com fim destrutivo. O ato violento doméstico não está condicionado a uma necessidade instintual, mas à existência, no outro, de um desejo de destruição: aquele que violenta deseja, física ou psiquicamente, a destruição do violentado.
6 Trata-se aqui do narcisismo a ser comentado no tópico seguinte.
7Usamos o termo criança para abarcar a faixa etária de desenvolvimento compreendida entre o nascimento e o início da adolescência.
Nossas considerações sobre o ato violento permitem, agora, redimensionar o caráter intersubjetivo dessa relação na qual se dá a violência contra a criança e o adolescente. Assim, reconsiderando a caracterização de Guerra (1988) mencionada há pouco, diremos que o ato violento:
· Não é uma relação interpessoal que se dá entre um agressor e uma vítima, mas entre um violentador e um violentado. Essa mudança terminológica ressalta o caráter subjetivo da relação a partir da oposição traçada anteriormente, entre desejo e instinto em que o ato violento é desejado e o ato agressivo é instintivo;
· No ato violento, a objetalização e sujeição do violentado figura um desejo de morte do violentador.
Neste contexto, temos os tipos de violência como a expressão intersubjetiva de uma relação na qual o violentador é aquele que deseja e realiza, no outro (a criança ou o adolescente), um desejo de destruição: a objetalização do violentado corresponde ao violentador colocá-lo como objeto do seu desejo de morte. Diremos, então, o ato violento é aquele em que se percebe, mais ou menos, a satisfação da realização de um desejo de destruição. Para entendermos a dimensão traumática e trágica do ato violento, discutamos, agora, o conceito de dor.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO UMA EXPERIÊNCIA DOLOROSA
Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), o conceito de dor refere uma experiência desagradável, sensitiva e emocional, associada com lesão real ou potencial dos tecidos ou descrita em termos dessa lesão. Os limites dessa definição, no contexto da violência, especialmente a doméstica contra a criança e o adolescente, é visível, pois como conceber a dor associada a uma lesão real ou potencial do tecido quando se trata de uma violência por negligência, psicológica ou física? A definição só é aplicável à violência física no registro do que essa é
estritamente somática. Para articular o conceito de violência doméstica (negligência, física e psicológica) ao de dor, concebamos este último segundo a exposição de Xxxxx (1998) em O livro da dor e do amor.
O autor não distingue a dor como física ou psíquica, mas um fenômeno misto, ou melhor, limítrofe entre o físico e o psíquico. Por outro lado, relaciona o conceito de dor ao conceito de eu, que, no campo teórico da psicanálise, significa a instância psíquica que, entre outros aspectos, experiencia o desprazer associado ao surgimento dos desejos ou, ao conflito entre os desejos ou destes, com a realidade8 . Todavia, a relação proposta por Xxxxx (1998, p. 22) considera uma outra perspectiva para a articulação do eu com a dor:
ao passo que o desprazer exprime a autopercepção pelo eu de uma tensão elevada mas passível de ser modulada, a dor exprime a autopercepção de uma tensão incontrolável em um psiquismo transtornado. O desprazer é pois uma sensação que reflete na consciência um aumento da tensão pulsional, aumento submetido ás leis do princípio do prazer. Em contrapartida, a dor é o testemunho de um profundo desregramento da vida psíquica que escapa ao princípio de prazer.
Essa experiência singular ocorre com a perda de um objeto amado, o abandono pelo objeto amado, a mutilação de uma parte do corpo ou a humilhação que fere o narcisismo, e isso num processo de três tempos: o tempo da ruptura, o tempo da comoção e o tempo da reação (NASIO, 1978, p. 17-21).
Para compreendermos cada uma dessas experiências em acordo com esses tempos, tenhamos a clareza de que aí tanto se dá um processo consciente como inconsciente. É consciente naquilo que o eu percebe a dor relacionada a acontecimentos externos (perda de um objeto, abandono, lesão etc.) e inconsciente na medida que o eu desconhece os desejos e as fantasias às quais a experiência dolorosa está relacionada. Lembremos que a qualidade de ser inconsciente, em termos psicanalíticos, é atribuída aos desejos e fantasias que, por causar angústia, foram recalcados, ou seja, excluídos da consciência. As fantasias inconscientes são as representações recalcadas tanto do que desejo do outro e de
8Esta definição é extremamente limitada e simples, mas suficiente para o interesse deste estudo.
mim como daquilo que o outro e meu próprio eu é psíquica e corporalmente para mim.
Em relação à dor da perda e do abandono, temos a experiência da fratura da fantasia que laça o eu ao amado ou ao seu amor. O amado é um outro externo, todavia, presentificado no inconsciente como uma fantasia, o que faz toda experiência de perda externa ser também, e principalmente, uma perda interna. A fratura dessa fantasia é a ruptura do que sutura o eu ao amado. O desejo e as pulsões, com a perda desse objeto, por morte ou desamor, entram em desgoverno, em comoção, e isso não é outra coisa senão a dor, confrome se vê:
agora que reconhecemos a fratura da fantasia como o acontecimento maior, intra-subjetivo, que se sucede ao desaparecimento da pessoa amada, podemos afirmar que a dor exprime o encontro brutal e imediato entre o sujeito e o seu próprio desejo enlouquecido. (XXXXX, 1998, p.51) Na ausência do objeto, por morte ou desamor, portanto, na impossibilidade da satisfação, o eu é tomado pela dor e o que dói não é perder o ser amado, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o irremediavelmente perdido. (XXXXX, 1998, p.30)
A violência por negligência relaciona-se ao abandono, ou seja, quando o outro, pelo descuido, pelo desamor, rompe o laço amoroso mostrando o desejo de destruição.
Na dor da mutilação, o eu experiencia uma percepção de ruptura oriunda da excitação da lesão dos tecidos orgânicos. A ruptura é, externamente, percebida como a apreensão da lesão e da sensação (somato-sensorial) e, internamente, como o estado de comoção vivido pelo eu (somato-pulsional). Um exemplo apresentado por Xxxxx (1998, p.75), sobre a lesão provocada por queimadura, é esclarecedor:
o sujeito percebe ao mesmo tempo a dor que emana do seu braço ferido e
o sofrimento interior que o abala. A dor da lesão o incomoda na fronteira do seu corpo, enquanto a da comoção o consome a partir do interior. Tudo acontece como se houvesse primeiro a lancinante sensação de queimadura no braço, localizada em um ponto da periferia: “Tenho dor” significa que circunscrevo e, afinal, enfrento a dor. Mas logo se eleva, do âmago do ser,
uma dor, bem diferente, essencial e profunda. Essa dor, não a possuo, é ela que me possui: “Sou dor”. (1998, p.75)
Considerando também o corpo como representação inconsciente, observa-se que diante do trauma físico, da perda de uma parte do corpo, o eu superinveste a representação dessa zona lesada e dolorida, naquilo que a tem como integrante de suas fantasias. O superinvestimento no eu leva a uma autopercepção (somato-pulsional) de um estado de comoção ditado pela perda da integridade corpórea: tenho uma perda de meu corpo, tenho dor; sou uma perda de meu corpo, sou dor. Desta forma, diremos que a violência física infligida pelo outro, como ato de mutilação, gera a autopercepção (somato-pulsional) pelo eu de um estado de comoção oriundo da destruição da fantasia corpórea, uma destruição perturbadora, desregradora das tensões pulsionais, que, ao comentar a perda ou do amado ou de seu amor, vimos ser a dor. Voltemos a Nasio (1998, p.90):
a dor corporal resulta do apego reativo e apaixonado do eu ao símbolo do lugar lesado do corpo. Vamos dizer com mais rigor: o referido símbolo, hipertrofiado de afeto, se cristaliza como um corpo estranho e pesa sobre a trama do eu até rasgá-la. É essa rasgadura das fibras íntimas que provoca a dor.
É a rasgadura dessa fibra, a rasgadura do eu, que o ato violento produzido pelo outro gera na criança ou no adolescente vitimado.
E a dor de humilhação? O que vem a ser? Somos aqui levados ao conceito de narcisismo tal qual desenvolvido por Xxxxx (1974, p.104- 106): o investimento pulsional em que o eu toma a si mesmo como objeto de desejo, ou seja, uma escolha em que o sujeito ama o que ela própria é, foi, gostaria de ser ou alguém que já foi parte dela como, por exemplo, o amor da mãe pelo filho. No âmbito desta conceituação, Xxxxx diferencia duas instâncias: o eu ideal e o ideal do eu. A primeira, compreende as fantasias que colocam o eu, para si mesmo, como imagem de perfeição e, a segunda, aquelas fantasias oriundas da identificação com as figuras parentais instituidoras de um modelo para o eu.
Essa conceituação remete a um questionamento: o que se passa
no eu quando um endereçamento do outro, o que é o caso da violência psicológica, provoca uma ruptura parcial ou total dessas fantasias narcísicas? A lógica que vimos perseguindo coloca como resposta, novamente, o desregramento da pulsão e do desejo, já que aqui também se dá, pelo desdenhamento do outro, a perda de um objeto amado, ou seja, o próprio eu investido por si mesmo como objeto de perfeição (eu ideal) ou modelo (ideal de eu). O que se tem na violência psicológica é um estado de comoção no qual o outro leva o eu a submergir na dor da perda de si mesmo como objeto da sua própria pulsão e desejo. O ato que humilha diz ao sujeito que nada há nele para ser amado pelo outro e também por ele mesmo.
Analisando a dor presente no ato violento, chegamos a uma constatação única de que não é uma experiência de desprazer, é uma experiência limítrofe entre o psíquico e o somático vivida pelo eu como o desregramento das pulsões e do desejo. E o que dizer do tempo da reparação associado a cada uma dessas experiências dolorosas? Como reparar a dor vivida em qualquer dessas violências? É sempre a fala (verbal ou não), o choro e o grito, as formas pelas quais o eu, desgastando a dor, reage ao estado de ruptura e comoção e, assim, supera a idéia de enlouquecimento provocada pelo desregramento da pulsão e do desejo: a dor exprime o encontro brutal e imediato entre o sujeito e seu próprio desejo enlouquecido (NASIO, 1998, p.51). É apenas no campo da simbolização, mais ou menos articulada pela palavra, que será possível a criança ou adolescente superar sua dor de abandono, de mutilação ou humilhação.
SOBRE A VIOLÊNCIA PATERNA E MATERNA
Considerando o conjunto das digressões feitas sobre a dor, é possível dizer que o desejo expresso em um ato violento é diferenciável quanto a sua manifestação, ou seja, é negligente, psicológico ou físico, mas é idêntico naquilo que é sempre um ato endereçado à destruição do outro e, se percebido como tal, traumático, pois leva o eu a um estado de ruptura e comoção. É importante observar que a dor não se define pelo ato em si, mas pela articulação subjetiva entre o violentador e o violentado.
A dor da violência é tão mais intensa e, portanto, traumática, quanto maior é o amor que o violentado endereça ao outro que o deseja destruído, mais ainda se a fantasia que enlaça um e outro é estruturante. Qual o contexto da dor, da ruptura e da comoção, quando se tem um dos pais ou ambos como violentador?
Os pais, quando se considera a concepção psicanalítica da estruturação psíquica, especialmente as fantasias edípicas inconscientes, são o objeto de amor por excelência para a criança e o adolescente. Portanto, em qualquer dos tipos de violência haverá a percepção de que aquele que regula o desejo da criança ou do adolescente, o amado, pai e/ou mãe, deseja-lhe a morte, estando perdidos enquanto objeto do desejo de amor. Diante dessa perda, o eu da criança, segundo o que foi visto, experiencia a dor própria ao desregramento da pulsão e do desejo. Ocorre a fratura da fantasia que enlaça filho e pais, dando ao primeiro uma percepção como: esse(s) a quem dedico e suponho que me dedica(m) um amor incondiconal nega(m) tal amor, tanto que deseja(m) minha destruição, me abandona(m), me mutila(m) ou me humilha(m), mostrando-se ausente para o meu desejo de amor. O que é vivido neste contexto não é uma experiência de desprazer, de insatisfação, mas de dor, pois ocorre a perda do objeto amado.
O atributo da afiliação é, biologicamente, uma propriedade essencial, naquilo que não se pode ser filho de outros que não aqueles de quem realmente somos filhos. O biológico é, por assim dizer, inegável. O mesmo não ocorre quando se pensa tal atribuição no âmbito da subjetividade, posto que aí se impõe o reconhecimento:
o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro (LACAN, 1998, p.269).
O atributo da afiliação, em termos subjetivos, não existe a priori, é uma contingência do conjunto de sinais que permite à criança ou ao adolescente reconhecer-se como filho, portanto, como objeto do desejo (amor) daqueles que são seus pais. Com o ato violento, temos uma situação inversa na qual é sinalizada a falência desse reconhecimento, sendo a criança ou o adolescente levado a se perceber como um objeto
não desejado e, como tal, violentado física e/ou psiquicamente. Nessa situação de desconhecimento, o que emerge é a dor que, antes de tudo, é psíquica.
É importante sublinhar que nem todo ato violento é necessariamente desestruturante. Não há que se imaginar a relação da criança e do adolescente com os pais como uma relação apenas de amor depurada de qualquer expressão de ódio e destruição. Como bem mostra Xxxxx (1974) em suas considerações sobre a pulsão de morte, essas manifestações desejantes são partes da subjetividade, sendo, portanto, humano, demasiadamente humano, que tanto a criança e o adolescente as apresentem em relação aos pais, como estes últimos em relação àqueles. O caráter traumático e a dor concernente estão diretamente relacionados à percepção de que o desejo de morte prepondera ou é absoluto. Neste sentido, alguns aspectos como a freqüência e a intensidade da violência podem, sem dúvida alguma, contribuir para a consolidação desta percepção. Nem todo ato de abandono, mutilação ou humilhação é, necessariamente, traumático e desestruturante, ainda que seja mais ou menos doloroso.
Essas considerações sobre a dinâmica da violência pretenderam alertar sobre a necessidade de se observar, prioritariamente, a escuta da subjetividade da criança e do adolescente violentados. Uma vez ocorrida a violência, se olharmos para o sujeito violentado, deveremos observar mais uma questão de subjetividade, de uma dor avassaladora, do que de um fenômeno com implicações culturais, sociais e de acionamento do sistema legal em sua função punitiva. Essas últimas são de extrema importância, principalmente quando se trata de uma ação preventiva para evitar o surgimento de novos casos ou mesmo de interromper o ciclo da violência em relação a determinado sujeito, contudo não são as mais importantes quando se trata de cuidar do sujeito já violentado. Neste o que conta, principalmente, é o trauma e a dor que o invadem, desorganizando seu psiquismo.
Conhecer a implicação dinâmica da dor, gerada pela violência, é condição primeira para explicá-la e, conseqüentemente, agir clinicamente no sujeito, restituindo-lhe a integridade psíquica. Foi esse o aspecto que se pretendeu discutir sem a pretensão de uma formulação excludente ou última, mas, apenas, de contribuir para a definição de parâmetros que
norteiem a relação intersubjetiva entre a criança/adolescente violentado e o cuidador imediato (enfermeiros, médicos, assistentes sociais, advogados etc.) ou de médio e longo prazos (pedagogos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas). É preciso que os cuidadores observem, cada um no âmbito de suas atribuições, que, prioritariamente, a violência, para o sujeito violentado, além de um fenômeno sociocultural ou legal, é um trauma doloroso que comove e irrompe a estruturação psíquica do seu eu, do seu ser, da sua vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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XXXXX, X. X. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1982. XXXXXX, X. Origem das espécies. São Paulo, EDUSP, 1985.
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GUERRA, V. N. A. (org.). Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. São Paulo: Cortez, 1998.
XXXXX, X. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
XXXXX, X-X. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: UM OLHAR DO PROFISSIONAL DE SAÚDE
Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxx
INTRODUÇÃO
O fenômeno da negligência e do abuso da criança e do adolescente é uma realidade que se observa em diversas culturas desde os tempos mais remotos. A preocupação com a proteção da criança, segundo XXXXXXX et al (1985), data do século XIX, quando a criança passa a ser vista como um ser humano autônomo. As crianças, seres diversos dos adultos, precisariam de cuidados e de proteção para que pudessem se desenvolver plenamente.
A negligência é a negação desses cuidados: a falta de atenção, de interesse e de esquecimento. A negligência ocorre devido à dificuldade na interação entre os membros da família, o ambiente físico, o simbólico e a sociedade. Envolve atos de omissão, nos quais os adultos responsáveis não provêm adequadamente os nutrientes para o corpo nem suporte para o psiquismo, não oferecem supervisão e proteção adequadas e estão física e emocionalmente indisponíveis para a criança (XXXXXXXXX, 1993). Xxxxxxx Xxxxxxx & Guerra, tais falhas só podem ser consideradas abusivas quando não são devidas a carências de recursos socioeconômicos, porém, enfatizam as autoras:
Se todo o dinheiro conseguido e que seria, por exemplo, para a atenção da prole é desviado para o consumo de bebidas alcoólicas, então poderia con- figurar um cuidado negligente. (1998)
Pensa-se na criança como um ser inserido no seu meio familiar do qual derivam, de forma natural e espontânea, todas as atenções, afetivas e matérias de que necessitam para o seu desenvolvimento normal. Todavia, há ocasiões em que este mesmo núcleo familiar se torna hostil para a criança, resultando, às vezes, no abandono, nos maus-tratos, no abuso sexual e na morte da vítima.
A negligência é reconhecida mundialmente como um problema de saúde pública, devido a sua incidência ser bastante elevada, como nos mostram as estatísticas nacionais e internacionais.
Nos Estados Unidos da América, Wolock & Xxxxxxxx apud Xxxxxxx (1995) constataram que nos casos de maus-tratos à criança, 65% estão relacionados à negligência, demonstrando que esse tipo de violência é mais prevalente do que outros. Segundo Xxxxxxx, na Austrália, aproximadamente, 15% de todos os casos de negligência envolviam alguma forma de abuso físico.
Xxxxx & Xxxxxxxx (1994) afirmaram que assistentes sociais britânicos, freqüentemente, deixam de valorizar a problemática da negligência, apesar da evidência indicar que ela poderá levar sérios danos ao desenvolvimento psicológico, podendo aumentar o risco de a criança ser ferida ou morta. Eles notaram que havia uma proporção significativa das mortes de crianças terem sido atribuídas à negligência dos pais e a falha de profissionais em reconhecer adequadamente o risco para a criança pelos casos mais severos da negligência. O agressor principal era a mãe com uma incidência de 77% dos casos.
No Brasil, Xxxxxxx (s.d), analisando os casos de violência contra a criança em São José do Rio Preto (SP), verificou que a negligência aparecia em segundo lugar entre os tipos de agressão, apontando a desorganização familiar como um dos principais fatores que leva os pais a praticarem esse tipo de violência.
Em outro estudo, Garbin & Xxxxxxxx (1998), caracterizando a criança negligenciada e seus agressores na cidade de Ribeirão Preto (SP), constataram que a maioria das vítimas é do sexo masculino, e que o principal agressor era a mãe, sendo que a maioria delas trabalhava fora de casa. O período de ausência da genitora no lar poderá representar a perda de oportunidade de estabelecer uma relação de afetividade, proteção e confiança com a criança, o que desfavorece, desta maneira, o vínculo mãe-filho.
Para Xxxxxx apud Morais (1999), os pais negligentes são adultos que não se ocupam com seus filhos, apresentando deficiências importantes em suas funções parentais que podem ser resultado de três dinâmicas que se entrelaçam: a biológica, a cultural e a contextual.
Segundo esta autora, a deficiência biológica trata-se de uma perturbação no “attachement” (apego, união, vínculo) biológico entre o adulto e a criança, particularmente entre a mãe e o filho. No segundo caso, a cultural, o problema situa-se na transmissão transgeracional dos
comportamentos e modos adequados de cuidar de seus filhos. O terceiro tipo de negligência, a contextual, trata da ausência ou insuficiência de recursos do meio onde está inserida a família. Geralmente este tipo de negligência é provocado pela pobreza e pela exclusão social.
A identificação da negligência no dia-a-dia do trabalho do profissional de saúde é complexa, devido às dificuldades socioeconômicas da população, o que leva ao questionamento da existência de intencionalidade. No entanto, independente da culpabilidade do responsável pelos cuidados da vítima, é necessária uma atitude de proteção em relação a esta.
Percebe-se que na prática, a identificação e a suspeita de violência contra a criança surgem durante o procedimento da anamnese e do exame físico da criança. Na anamnese, os profissionais têm a oportunidade de detectar casos de violência em que não há evidências físicas.
A entrevista é de fundamental importância para se estabelecer uma relação de confiança entre o profissional e os pais ou responsáveis pela criança. Os questionamentos devem ser isentos de qualquer conotação de acusação ou de censura, porém se deve esclarecer a suspeita ou confirmação de maus-tratos.
Segundo o Guia de Atuação Frente aos Maus-tratos na Infância e na Adolescência da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, a negligência é um dos tipos de maus-tratos mais freqüentes, aparecendo, muitas vezes, associada a outras formas. Refere que são necessários dois critérios para caracterizar a negligência: a cronicidade e a omissão. Mesmo em condições de pobreza, a família possui um estoque de responsabilidades para prover os cuidados de que a criança necessita (SOCIEDADE DE PEDIATRIA, s.d).
Azevedo & Guerra (1989) descrevem a negligência contra a criança através de algumas modalidades:
1) Médica (incluindo a dentária) - as necessidades de saúde de uma criança não estão sendo preenchidas;
2) Educacional - os pais não providenciam o substrato necessário para a freqüência à escola;
3) Higiênica - quando a criança vivencia precárias condições de higiene;
4) De supervisão - a criança é deixada sozinha, sujeita a riscos;
5) Física - não há roupa adequada ao uso, não recebe alimentação suficiente.
A negligência física, conforme as autoras, pode ser classificada:
a) Severa - nos lares das crianças, submetidas a essas práticas, os alimentos nunca são providenciados, não há roupas limpas, o lixo se espalha no chão, há fezes e urina pela casa; não existe rotina para as crianças; são deixadas sós, por muitos dias, podendo vir a falecer de inanição, de acidentes. Nesses lares, pode haver uma presença relevante do uso de álcool, de drogas pesadas, de quadros psiquiátricos complicados e de retardos mentais;
b) Moderada - nos lares de crianças, submetidas a essas práticas, existem alimentos, estão cozidos, mas com balanceamento errado; há sujeira nas casas, mas sem as características do tipo anterior; há algumas roupas limpas; as crianças são deixadas sós, por algumas horas; os pais ignoram, por exemplo, um resfriado crônico, mas levam ao hospital para emergências.
Para abordar a família negligente, os profissionais de saúde devem adotar uma abordagem que alguns autores qualificam como empática, o que não implica em endossar ou diminuir a responsabilidade do agressor, mas, sim, em entender o ato negligente como resultado de elementos associados à dinâmica da família. Ao conduzir o processo desse modo, a equipe evita atribuir a um único membro da família a responsabilidade da agressão.
A violência doméstica (intrafamiliar) envolve uma dinâmica complexa, resulta de valores sociais mais amplos que integram a história de vida do sujeito e, às vezes, eclodem na forma de uma reação violenta ou de omissão.
A negligência é vista como um tipo de violência em que o agressor é passivo, e a agressão acontece justamente pela falta de ação; portanto, é, muitas vezes, tida como menos importante. O adulto negligente não pode ser “culpado” pelo que não fez, entretanto, a falta de ação em prover as necessidades da criança, o classifica como “culpado”. Não devemos esquecer que a negligência é crime, já que suas conseqüências
podem provocar a morte ou deixar seqüelas na saúde da criança para o resto da vida.
Neste sentido a violência doméstica, caracterizada pela negligência, é uma violação aos direitos humanos fundamentais da criança, tais como: direito à vida, à liberdade, à segurança e ao lazer. Faz-se necessário que medidas sejam tomadas, principalmente por parte dos profissionais de saúde, no que diz respeito a diagnosticar e a denunciar, para possibilitar maior visibilidade desse tipo de violência. Daí, avaliar a dimensão de sua magnitude e contribuir para a redução do sofrimento de crianças e de adolescentes que a ela estão submetidos, garantindo, em todos os aspectos, que seus direitos humanos sejam preservados.
Não devemos esquecer que a atuação do profissional de saúde é de fundamental importância no sentido de prevenir a ocorrência da negligência contra a criança, quando, no seu dia-a-dia de trabalho, ele tem a oportunidade de identificar fatores de risco para a família cometer esse tipo de violência. Ao mesmo tempo, buscamos no Estatuto da Criança e do Adolescente, Artigo 13, alertar o profissional de saúde sobre “a sua obrigação de denunciar os casos de maus-tratos, e no Artigo 245 determina a punição destes profissionais com multa de 3 a 20 salários de referência, e o dobro, caso aconteça reincidência do não-cumprimento da Lei “ (Brasil, 1991).
Para Xxxxx (s.d), o descrédito nas possíveis ações do Estado para solucionar o problema e a banalização dos efeitos provocados nas vítimas decorrentes da violência sofrida, interfere no enfrentamento dos profissionais face à violência contra a criança.
Xxxxxxxxx (1994) refere que apesar da violência contra criança e adolescente não ser um problema novo, enfrentado pelos profissionais de saúde, no seu dia-a-dia de trabalho, pode-se perceber que grande parte dos casos de maus-tratos que chegam a esses serviços não é identificada. Os motivos para tal situação são vários e se interligam. O primeiro diz respeito ao nível insuficiente de informação que os profissionais de saúde dispõem sobre o tema. Essas informações, geralmente, provêm dos meios de comunicação de massa ou de eventuais casos identificados na prática clínica. O segundo refere-se ao desconhecimento da lei por parte desses profissionais.
Para a autora acima, outro aspecto que também dificulta a
identificação dos casos de violência é o processo de atendimento, geralmente condicionado pelas limitações estruturais do serviço, como uma prática unicamente socorrista. Dificilmente as verdadeiras causas dos agravos são investigadas, o que contribui para seu ocultamento e repetição. Talvez isso seja justificado por questões éticas de não querer se envolver com problemas alheios, ou seja, problemas do âmbito familiar. Nesse caso a família é entendida como uma propriedade privada, caracterizada pelo sigilo dos acontecimentos internos, na qual a violência vem a público eventualmente, necessitando, muitas vezes, da interferência
de terceiros para que seja divulgada e comunicada.
Em virtude das conseqüências orgânicas, físicas e psíquicas para a saúde das crianças, procuramos com este trabalho buscar, através das representações sociais do profissional de saúde acerca da negligência, respostas que possibilitem melhor compreensão do significado desse fenômeno, a fim de que se possa vislumbrar a possibilidade de prevenção, com o intuito de melhorar a qualidade de vida da população infantil. É um fenômeno extremamente complexo que perpassa por todas as classes sociais, produzindo sérios agravos à saúde física e mental das crianças, chegando, em alguns casos, à morte das vítimas.
A questão norteadora da pesquisa constituiu-se em identificar qual a representação social do profissional de saúde acerca da negligência contra criança. Os pressupostos que orientaram a análise neste estudo estão calcados na Teoria das Representações Sociais, proposta por Xxxxxxxxx (1978), em “A Representação Social da Psicanálise”. Sendo uma das funções da representação social a de orientar, ou seja, guiar os comportamentos e as práticas, apreender as representações da negligência dos profissionais de saúde serve para interpretar a realidade que rege as relações destes com o seu meio físico.
O ato de representar é dinâmico, envolvendo os sujeitos atores e suas construções mentais em torno de um objeto sobre o qual se constroem as representações e o meio (social, econômico, político, cultural), no qual se dá a relação entre ambos, sendo também fonte de representação e de recriação desta.
Portanto, a importância deste estudo se traduz na busca da representação do profissional de saúde, acerca da negligência contra criança, por acreditar que a relação que se estabelece entre o profissional
de saúde e a vítima poderá determinar uma linha de conduta, orientada pelas representações sociais.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa. O campo de realização da pesquisa foram os setores de Puericultura, Alojamento Conjunto e Berçário do Centro de Saúde Amaury de Medeiros, sendo este referência para o atendimento à criança em todo o seu processo de desenvolvimento. Como método de coleta de dados, foi utilizado um formulário semi-estruturado através de uma entrevista com os profissionais de saúde (Enfermeiros, Assistentes Sociais, Psicólogos e Médicos Pediatras) gravada com autorização prévia dos entrevistados. Os dados foram categorizados e analisados através da análise temática, fundamentados na Teoria das Representações Sociais.Considerando a fala no cotidiano do ser humano como um modo mais puro e sensível de relação social, Bakhtin (1986) apud Minayo (1998) refere ser a palavra a arena onde se confrontam interesses contraditórios, vinculados e sofrendo os efeitos das lutas de classe, servindo, ao mesmo tempo, a compreensão das relações sociais que expressam.
ANÁLISE DOS DADOS DA FAMÍLIA À SOCIEDADE
Em geral, a família é vista pelos profissionais de saúde de maneira positiva, quando esta segue o padrão do modelo tradicional que não foge de suas obrigações, como estrutura responsável pela formação do indivíduo na sociedade, portanto como célula primária de socialização da criança. Isto fica evidente nos discursos dos profissionais de saúde entrevistados, como se segue:
A família é o conjunto, é a base de tudo. Sem a família, você não tem estrutura
(...) É o começo do desenvolvimento do caminhar de qualquer ser humano. ( Ent. 02)
A família é a base da sociedade, sendo o primeiro grupo social. É nela (família) que se aprende conceitos, valores para uma melhor formação do homem. (Ent. 04)
(família) É necessária. É importante para que você possa se direcionar, para você ter ajuda, ter apoio. Família é apoio, é tudo, é a base do ser. (Ent. 05)
Segundo Xxxxxxx (1993), a família dá à criança tradições, costumes, linguagem, religião, noções de moral e caráter, ética, atitudes, preconceitos, crenças e valores sociais. Forma-lhe a consciência e a existência. Portanto, uma criança, que desde o seu nascimento, vivencia experiências favoráveis, é tratada com amor, carinho, respeitada pela sua personalidade em desenvolvimento, será uma criança física e mentalmente sadia.
Saffioti acrescenta que essa instituição é também responsável pela reprodução biológica e social dos seus membros.
Não basta que os casais tenham seus filhos. É preciso criá-los, ensinando- os a desempenharem os papéis sociais, específicos de cada idade, de cada gênero (masculino e feminino), de cada raça/etnia e de cada classe social. (SAFFIOTI,1997. p44)
Percebe-se, também, no imaginário dos profissionais de saúde, a família como um ambiente de ordem, harmonia e disciplina, na qual os pais têm a função de educador, orientador e condutor.
Os pais são guardiões dos filhos, são responsáveis pela orientação, educação e encaminhamento desses filhos na vida. (Ent. 08)
Os pais têm uma responsabilidade imensa, em todos os aspectos, ele tem que ser um grande observador para identificar muitos pontos na criança...tem que ser um protetor, protegê-la tanto em termos biológicos como psíquicos, dar carinho, afeto, abraçar e quebrar arestas. (Ent. 06)
Os dados referentes ao relacionamento entre pais e filhos revelam alguns pontos a serem destacados no que se refere à afetividade dos pais e ao estabelecimento de relações abertas como forma de respeito mútuo.
Acho que (a relação entre pai e filho) deve ser de amizade, de confiança, não de autoridade. Deve ser de troca. (Ent. 07)
(Deve ser um) Relacionamento aberto. Tem que conversar. Com um bom diálogo, você consegue tudo (...). Agora, tem momentos, é claro, que você vai ter que usar sua autoridade, não deixar a criança fazer de tudo. (Ent. 01)
Diante desses discursos, fica evidente que a família na visão desses profissionais, comporta, além do relacionamento democrático, o relacionamento de poder, demonstrando, dessa forma, que o adulto em posição superior, desempenha o papel tanto de protetor afetuoso quanto de chefe autoritário.
Na lógica dominante da sociedade, a família é um espaço na qual seus membros se unem por amor, respeito e solidariedade. De acordo com Guerra (1985, p. 106) “família e sociedade estão unidas (...) na luta pela preservação do mito que ela representa, um lugar de proteção para a criança, mito este que não só a família, como a sociedade tem se esforçado em perpetuar”.
A INFÂNCIA NA VISÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
Entre os vários conceitos de infância, referidos pelos profissionais de saúde, encontra-se como a fase primária do desenvolvimento do ser humano um período de aquisição de conhecimentos responsável pela formação do indivíduo.
A infância, eu vejo assim, como a formação, ou seja, primeiro é a hora da descoberta. Xxxx é que vai a criança aprender valores, ter conhecimento para uma melhor formação quando homem. (Ent. 04)
É um período onde a criança está abrindo os olhos para o mundo, tá começando a perceber o mundo, ter contato com esse mundo. A infância
é a base de tudo, por isso deve ter um acompanhamento, uma orientação adequada. (Ent. 08)
Nesta última fala, a entrevistada traz a infância como um período de fantasia que deve ser vivido plenamente, ao mesmo tempo em que vislumbra uma infância diferente daquela esperada para toda criança.
NEGLIGÊNCIA, UM DIFÍCIL CONCEITO
É notório que o tema da negligência contra criança é difícil de ser abordado pelas formas convencionais de conhecimento, em razão da carga de ideologia, de preconceitos e de senso comum que, invariavelmente, o acompanham, como também, por ser um fenômeno multifacetado.
Os profissionais tentam construir conceitos, apoiando-se nos seus conhecimentos do cotidiano de trabalho. Observam-se, nos discursos dos entrevistados, que esses conceitos são polissêmicos e, muitas vezes, controversos.
(Negligência) É uma expressão bastante forte. Negligência, onde? E até quando os pais são negligentes com seus filhos? É difícil. Negligência é o descuido. Todo ser humano tem um pouco de negligência. (...) Na vida em que estamos vivendo, a gente está tão bitolada ao social, ao econômico, que a gente deixa de lado o chamado amor familiar. (Ent. 02)
É muito difícil de julgar. A mãe chegar aqui e a gente dizer: aquela mãe é péssima, ela nem pega no seu bebê. Como é que ela pode dar amor se ela nunca teve? Ela saber cuidar, se ela nunca foi cuidada? Ela sai para fumar, ir ao banheiro, não pede ajuda de ninguém, não vê as necessidades do bebê... (Ent. 05)
(Negligência) É toda essa falta de cuidado, de atenção. Você pode ser negligente quando você não cuida da criança adequadamente, quando não tem tempo para perceber o que está acontecendo com ela, em relação ao desenvolvimento psicológico, social e físico. Porque não tem tempo, deixa pra lá, a criança come qualquer coisa, adoece com freqüência. (Ent. 07)
Um dos problemas principais que o tema da negligência apresenta é a interpretação de sua pluricausalidade, na qual os profissionais tentam explicações para sua ocorrência, muitas vezes, relacionando-a a problemas
de ordem psicológica, biológica e social dos pais. Xxxxxx apud Morais (1999) refere que os pais negligentes são adultos que não se ocupam de seus filhos e que apresentam deficiências importantes em suas funções parentais.
IDENTIFICANDO A NEGLIGÊNCIA
Todos os profissionais entrevistados relataram que já identificaram a negligência contra criança no seu ambiente de trabalho. Porém, revelam dificuldades em determinar o que é uma negligência. Vale ressaltar que a questão da violência contra a criança demanda uma série de serviços, e não, apenas aqueles específicos de atendimento às vítimas. Entretanto a escassez e as deficiências dos recursos, aliadas, muitas vezes, ao despreparo dos profissionais, podem levar ao não-vislumbramento dos casos.
Na maternidade, a gente vê o abandono de bebês no berçário, a rejeição do RN (recém-nascido) no alojamento conjunto. (Ent. 04).
Eu não sei até que ponto eu posso considerar negligência ou até mesmo falta de orientação. Eu já identifiquei assim: mães que não ligam para os seus bebês, que não os querem. São mães com muitos filhos que moram na rua. (Ent. 05)
A criança chegou com o abdome superdistendido. O que foi dado para ela? Foi dado farinha. Então, foi dado por quê? Pela cultura da mãe ou por que ela não tinha outra coisa para dar? Ou, se ela tinha leite materno, por que não deu? (Ent. 05)
A mãe aparece sempre nos discursos das entrevistadas como o principal agressor. Analisando este fato à luz das relações de gênero1 , percebe-se que a divisão do trabalho doméstico, dominante em sociedades patriarcais como a nossa, os cuidados com os filhos sempre foram considerados uma tarefa materna. De acordo com Azevedo & Guerra
1 O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais e culturais fundadas sobre as diferencias percebidas entre os sexos e o gênero, é o primeiro modo de dar significado às relações de poder. (XXXXX, 1990)
2 Esta teoria postula que a mãe é a única capaz de ocupar-se do bebê, porque está biologicamente determinada para isso...legitima-se, assim, a exclusão do pai e se reforça a simbiose mãe-filho... (BADINTEr apud AZEVEDO & GUERRA, 1998)
(1998), esta tarefa guarda relação com a teoria do instinto materno 2
que constitui um dos mitos da divisão sexual de tarefas.
Estas autoras destacam a importância de desmistificar que a mãe é o único membro familiar responsável pelos cuidados com seus filhos, que ela não é um ser perfeito e que a qualidade de ser “boa mãe” está relacionada com a história de vida de cada mulher, do momento da gravidez, do grau de desejo de ter o filho, das relações que mantém com o pai, assim, como também, de fatores sociais, culturais, profissionais etc.
Observa-se, nos discursos dos entrevistados, que a negligência aparece como resultado da história de vida dos pais, levando-os ao não- cumprimento de suas funções. Para Xxxxxx apud Morais (1999), tais falhas podem estar relacionadas à deficiência biológica, que se trata de uma perturbação no “attachement” (apego, união, vínculo) biológico entre os pais e a criança; às deficiências culturais que se dão através de transmissão transgeracional do comportamento e modo de cuidar da criança e à deficiência contextual, causada pela falta de recursos econômicos dos pais, ou seja, deficiência de meios para sobrevivência digna do ser humano, conforme visto anteriormente.
SENTIMENTOS DOS PROFISSIONAIS DIANTE DA CRIANÇA NEGLIGENCIADA
Dentre vários sentimentos relatados pelos profissionais de saúde, a raiva se sobressai como sentimento de revolta contra aqueles que praticam a negligência com a criança, chegando, muitas vezes, a verbalizar o desejo de agredir o responsável. Num estudo realizado por Brêtas et al (1994) com enfermeiros, o autor descreve o que ele chama de paradoxo emocional, no qual ele relata que aprendemos que as crianças e suas famílias constituem unidades psicológicas e sociais. Quando ocorre o rompimento dessas unidades por um caso de negligência, costumeiramente, resulta numa resposta de justa raiva, expressada pelo profissional.
Os autores ainda acrescentam que esse sentimento exacerba-se e torna-se uma difícil tarefa controlar-se diante dos adultos que maltratam as crianças, principalmente tratando-se de seus próprios pais.
Na hora, você sente um pouco de revolta contra os pais. (Ent. 10)
O primeiro sentimento da gente é raiva daquele ser que está com aquela criança. Você fica com raiva da pessoa, você quer julgar e você, realmente tem aquela vontade, assim, de até agredir também. Você vai dizer: Como é que você foi tão irresponsável desta maneira? (Ent. 03)
Mesmo em meio a esse turbilhão de emoções, percebe-se que os entrevistados se dão conta de que seus sentimentos necessitam ser controlados, para que se possa desenvolver o papel que lhes cabe num caso de negligência, como assistir à vítima e fazer os devidos encaminhamentos necessários. Os depoimentos acima, ratificam, respectivamente, esta necessidade:
Mas depois você vai pensando, aparecem outros motivos na história e você começa, não é entender a negligência, mas você descobre o motivo que levou estes pais a negligenciarem a criança. ( Ent. 08)
A gente tem que manter o lado profissional, se controlar, procurar abordar por que aquela mãe deixou aquilo acontecer e procurar aconselhar, ajudar, dar uma orientação naquele momento. (Ent. 06)
Os discursos acima também revelam que é necessário, como afirma Brêtas et al (1994), ter conhecimento do problema, que é maior que as idéias dramáticas e externas, para que se possam cumprir as responsabilidades profissionais, legais e morais ao comunicar este problema. Agir dessa maneira não só implica em identificar a negligência, mas desvelar os fatores culturais, psicossociais e econômicos que envolvem esta problemática.
A impotência é outro sentimento que se mostrou como algo desmotivador para atuação do profissional.
Um sentimento de impotência muito grande. A tristeza, porque você está trabalhando num serviço, onde as condições são mínimas. (Ent. 12)
Um sentimento de falta de capacidade, da gente não poder procurar fazer o melhor (...). Então, muitas vezes, a gente sente-se até desiludido com o trabalho. (Ent. 08)
Acredita-se que a pluricausalidade desse fenômeno aliada à falta de conhecimento gera este sentimento que causa angústia. Segundo Xxxxx (1998), quando estamos angustiados, nos damos conta do que verdadeiramente somos. Esta situação nos ensina e educa, porque percebemos que o ser humano não é um dado firme e estável, mas, sim, um ser constituído, também, de fragilidades, medos e incertezas.
Esse pensamento facilita a compreensão de alguns casos de negligência, proporcionando, assim, não uma conduta condenadora com o agressor, mas oferece uma abertura para se trabalhar de forma real e humana.
ATUANDO NA NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA
Os profissionais, ao interagirem com situações de negligência e ao organizarem seus ambientes de trabalho, o fazem de acordo com as representações e expectativas que têm sobre as mesmas. Essas representações são adquiridas em suas experiências de vida e em um meio sociohistórico específico, culturalmente estruturado e organizado, exercendo forte poder significativo sobre os membros ali inseridos. Vejamos os depoimentos.
É na presença dos pais que eu procuro conversar, aconselhar e mostrar, ver dentro do que eles podem fazer, em termos de alimentos, de higiene e de saúde para os filhos, na maneira de se comportar, passando educação para os filhos. (Ent. 06)
Os casos maiores, como são os de abandono no berçário, a gente entra com a questão judicial, que é acionar o Conselho Tutelar. E no caso de rejeição, o que a gente tem que fazer é conversar com esta mãe. (Ent. 04)
Em relação ao abandono da criança no berçário referido pelos profissionais, vale salientar que este tipo de negligência é classificada como a forma mais grave, tido como negligência precoce, no qual ocorre desordem na ligação afetiva da mãe em relação ao bebê. Trata-se de uma situação onde a criança está privada do relacionamento com a mãe, tão necessário para o seu desenvolvimento afetivo e neurológico (BALLONE, s.d).
Procurei orientar a família, tentar chamar a responsabilidade, mas eu digo que não é fácil, mesmo porque, em alguns casos, a criança é o produto de uma relação totalmente desajustada. (Ent. 08)
Nessa última fala, percebe-se que o profissional enfrenta dificuldades em lidar com a questão da negligência que, muitas vezes, foge de seu controle, já que esta negligência, em alguns casos, é fruto de uma sociedade desorganizada, na qual o indivíduo é oprimido e excluído pelas classes dominantes, marcadas pela desigualdade social, refletindo nas relações interpessoais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a elaboração dessa pesquisa, nos deparamos com algumas dificuldades. Em primeiro lugar, em relação à escassez de pesquisas sobre esta temática. Em segundo lugar, em abordar um tema em que os profissionais não estavam habituados a refletirem sobre ele no seu ambiente de trabalho, causando, de certa forma, dificuldades em se expressarem em relação ao problema.
Ao mesmo tempo, constatou-se que o conhecimento apropriado pelos profissionais de saúde sobre a negligência, ficava, de certa forma, subordinado a sua verificação na prática cotidiana de trabalho, já que não tinham tido nenhum preparo, porém, todos referiram já terem identificado casos de negligência no seu ambiente de labor.
Observou-se também que os pesquisados não estão alheios à situação da negligência contra a criança, uma vez que eles sentem, reagem, mas não exteriorizam, controlam-se, a fim de que os seus sentimentos não atrapalhem nas suas condutas.
Ficou evidente que o saber científico sobre a negligência contra a criança é constituído de um corpo de conhecimento que faz parte do senso comum, não havendo, portanto, oposição entre os dois, mas ao contrário, há uma predisposição à formação de aliança de saberes que guiam os comportamentos e as práticas dos indivíduos.
Acredita-se que este trabalho trouxe, de certa forma, a reflexão sobre a negligência contra a criança, possibilitando ao profissional de saúde
repensar as suas práticas diante desse fenômeno para que haja uma maior visibilidade, contribuindo de alguma maneira para a melhoria da qualidade de vida da população infantil.
Diante do exposto, percebe-se a necessidade de elaborar proposta que venha facilitar o trabalho do profissional de saúde no enfrentamento da violência contra a criança, tais como:
1 - Curso de capacitação para atuação do profissional frente à violência contra a criança;
2 - Palestras educativas para as mães, pais e/ou responsáveis pela criança nos setores de pré-natal, alojamento conjunto, puericultura e pediatria;
3 - Protocolo de atendimento para as crianças vítimas de violência.
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Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx (colaboração)
Ao ser convidada a participar da elaboração deste livro, em decorrência da vivência com crianças e adolescentes, vítimas de violência, para dar um depoimento sobre violência física, fui tomada por um sentimento de ousadia, de tentar romper o paradigma da aceitação e da banalização da violência por nossa sociedade, sem a preocupação de investigar a sua origem. Como policial, tenho por missão investigar o crime ocorrido; como cidadã, tenho a obrigação de me policiar, para não permitir que crimes ocorram, acobertados por preconceitos de uma sociedade da qual faço parte e que, lamentavelmente, ainda entende que garantir direitos de crianças e adolescentes, principalmente daqueles que entram em conflito com a lei, é se tornar cúmplice da criminalidade. A violência é uma doença contagiosa e como tal, provoca feridas que não cicatrizam nem no corpo nem na mente daqueles que foram contaminados, tanto como oprimido quanto como opressor.
A VIOLÊNCIA HOJE E SEMPRE
Na atualidade, abordar, sob qualquer aspecto, o tema violência, implica trazer, às claras, uma realidade de banalização que acontece nas suas mais diversas variáveis.
A violência, no mundo de hoje, parece tão entranhada em nosso dia-a -dia que pensar e agir em função dela deixou de ser um ato circunstancial, para se transformar numa forma do modo de ver e de viver o mundo do homem. (ODALIA, 1986)
Desde o princípio de sua existência, o homem, dentre os seres vivos, é o ator principal na prática de violência. Não se pode pensar que ela é característica específica de nossa época, levando-se em conta que o primeiro registro oficial de homicídio tem assentamento na Bíblia, em Gênesis (cap. IV), relatando a conhecida história de Xxxx e Xxxx.
O fenômeno da violência teve o seu alicerce na forma de sobrevivência do homem primitivo, para superar a hostilidade da natureza no início dos tempos. Entretanto, hoje, ele assume uma nova face: a de continuar existindo como conseqüência da organização humana no espaço. Tanto no passado quanto no presente, retrata o ser humano diante das desigualdades na relação entre superior e inferior, utilizando o poder com fins de dominação, exploração, opressão e morte.
A sociedade em que vivemos cultiva a ficção da cordialidade, para mascarar a prática histórica da violência em suas várias formas, dentre elas destaca-se aquela que covardemente atinge seres humanos completamente indefesos, por se encontrarem no processo biológico de desenvolvimento.
CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO VÍTIMA DE VIOLÊNCIA FÍSICA
Diferente dos animais irracionais, o homem ao nascer sofre a incapacidade de sobreviver por seus próprios meios, necessitando
estabelecer vínculos sociais com as figuras de apego capazes de garantir a sua sobrevivência. O grupo familiar é o primeiro contexto que pode satisfazer às suas necessidades físicas (alimentação, abrigo e proteção) e socioemocionais (aceitação, afeto, atenção etc.), bem como é o primeiro causador da sua vitimização.
Aquele que retém a vara, quer mal ao seu filho, mas o que o ama, cedo o disciplina. (Pv. 13:24)
Através deste provérbio bíblico, é possível, claramente, entender-se que, há séculos, a humanidade se escuda em justificativas de caráter religioso para praticar violência contra criança e adolescente. Nossa cultura e nossas religiões apoiam, de modo quase unânime, a onipotência da autoridade parental.
A agressão física ou punição corporal se configura na primeira representação simbólica que habita o imaginário coletivo, partindo-se do pressuposto de que esta medida é eficaz para o controle ou modificação de um comportamento.
As conseqüências desse tipo de violência se apresentam desde simples marcas no corpo até a presença de lesões tóraco-abdominais, auditivas e oculares; traumatismos cranianos; fratura dos membros superiores e inferiores, queimaduras e ferimentos diversos que podem causar invalidez temporária ou permanente, quando não, a morte. A mortalidade por violência se constitui, atualmente, na segunda causa morte para crianças e jovens na faixa etária de 5 a 19 anos e é a segunda causa de morte na faixa etária entre 1 a 4 anos de idade, perdendo, por pouco, para as doenças do aparelho respiratório.
Porém, nem só de violência física padece uma criança. Negligências, abusos e explorações de todas as espécies são formas camufladas ou declaradas da negação do seu direito de ser tratada como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, mas estas outras faces da violência não são, no momento, objeto central de discussão.
Fazendo-se uma análise do “locus” do problema da violência física e das demais formas de agressões, obviamente não é apenas no núcleo familiar que essas vítimas são alvos fáceis de serem atingidos. Nos demais
grupos sociais, a violência as persegue como a qualquer outro cidadão. A criança e, principalmente, o adolescente são atingidos tanto pela discriminação quanto pela violência urbana, que se vinculam numa relação de causa e efeito, interferindo diretamente na ocorrência da violência física.
A partir dessas idéias, a apreensão do conceito de violência física se torna bem mais próxima de nosso entendimento lógico. Deixando de lado as barreiras culturais que, porventura, permeiem nosso ser, a violência física contra criança e adolescente deixa de ser apenas aquela que se encontra estatisticamente registrada nas ocorrências policiais ou nas entradas dos hospitais, onde se constata um número assustador de graves lesões contra aqueles seres. O conceito é ampliado e passa a abranger, principalmente, as agressões que essa mesma estatística não aponta, agressões estas ditas “menos severas” que passaram invisíveis aos olhos da comunidade e não foram denunciadas:
A violência física é caracterizada por qualquer ação única ou repetida, não acidental (ou intencional), perpetrada por um agente agressor adulto ou mais velho, que provoque dano físico à criança ou ao adolescente, este dano causado pelo ato abusivo pode variar de lesão leve a conseqüências extremas como a morte. (DESLANDES, 1994)
É bem verdade que definir violência contra criança e adolescente é também variar junto às mudanças culturais e históricas em todo o mundo, entretanto, é meta mundial ampliar esse conceito, de modo mais universal possível e, junto a ele, buscar o aumento da conscientização de que efeitos podem ser gerados sobre o desenvolvimento de uma criança ou de um adolescente em decorrência da violência sofrida e vivida.
Na atualidade, essas formas de violências, assim apresentadas, merecem destaque e atenção de muitos dos segmentos sociais; contudo, essa temática ainda encontra resistência tanto na discussão aberta quanto na erradicação do problema. Tais dificuldades remontam a uma história de aceitação da prática de violência na sociedade; seja como método satisfatório de educação, seja como mecanismo presente no cotidiano de sanção utilizado junto às crianças e aos adolescentes por seus responsáveis:
O estudante A.J.S., 13 anos, cresceu vendo sua mãe e seus irmãos serem espancados diariamente. No último sábado, ele tentou defender a irmã, M.M., 12, da fúria do pai, o agricultor Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxx. No tumulto, teve parte do seu dedo médio esquerdo arrancado a pauladas. Também sofreu trau- matismo encéfalo-craniano. O crime aconteceu no Sítio Balança, em Macapa- rana, Zona da Mata, e engrossa a lista da violência contra menores no Estado. (...) A mãe de A.J.S., Xxxxx Xxxx Xxxxx, contou que é casada há 16 anos, mas o excesso de bebida deixou o marido mais violento. No sábado, Xxxx Xxxxxxx xxxxx o dia inteiro e chegou brigando com todos em casa. Meu marido tem os pés defeituosos e nunca fica descalço. Quando chegou, pediu para minha filha buscar os chinelos, mas ela não ouviu e, por isso, apanhou com várias chineladas no rosto, contou.
(Jornal do Commercio, Cidades/Violência, 29/ 05/2001)
Durante muito tempo, a criança e o adolescente eram simplesmente objetos de realização das determinações paternas. Sem vontades próprias e sem necessidades claramente estabelecidas, a responsabilidade com criança e adolescente significava ter poder absoluto sobre seus caminhos até certa idade. Tudo isso, inclusive, com respaldo legal. Basta lembrarmos de visões arcaicas do instituto do pátrio poder e do texto infraconstitucional, que até 1988 estava em vigor no país, trazendo em seus dispositivos distinções entre filiação, classificando-a em legítima e ilegítima.
CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS
Uma série de mudanças sociais trouxeram essas questões para o centro das atenções; mudanças estas que foram desde a mera alteração nos trajes e vestimentas infantis até a importância que assumiu a estrutura escolar em nossa sociedade. Todavia, essas questões ainda sofrem a interferência dessa herança cultural:
A Violência Doméstica Contra a Criança e o Adolescente tem suas raízes na maneira como nossa sociedade percebe a criança e o período de infância, concepção essa que só pode ser compreendida e transformada dentro do seu contexto histórico. (...) Dentre as formas de manifestação do fenômeno em questão, culturalmente a Violência Física é adotada pela sociedade como método educativo e disciplinar. (SILVEIRA, 1999)
A despeito dessa realidade cultural, ainda, ser uma constante em nosso dia-a-dia, o fato é que não se pode permitir pessoas fazendo uso do bordão do senso comum de que “violência gera violência”, sem se perceber que para a violência física contra a criança e o adolescente, a premissa também é verdadeira:
É curioso ouvir-se, com freqüência, que violência gera violência, quando se trata de apreciar uma medida repressiva a ser ou já aplicada a agressores de adultos. Por que não se aplica o mesmo raciocínio quando se trata de agressão doméstica, no sentido de que pais que praticam violências contra os filhos estão criando filhos violentos quando adultos? (...) Laços de consangüinidade não asseguram o amor. (SAFFIOTI, 1985)
Nas atividades de conscientização desse fenômeno e no combate a ele, as características familiares são importantes para se constatar e se modificar essa prática, sendo necessário fazer perceber que a criança e o adolescente não podem ser mais vistos como meros objetos; não permitir que eles sirvam de válvula de escape dos problemas familiares que, porventura, existam e, sobremaneira, fazer seus responsáveis perceberem que eles não são de sua propriedade. É um trabalho a ser desenvolvido ao longo do tempo, para que as previsões legais de proteção a essa parcela de cidadãos, que alicerça o nosso futuro, possam ser eficazes.
As próprias crianças e os adolescentes necessitam desse trabalho de conscientização de seus direitos, trabalho este que se encontra prejudicado pelo fosso enorme entre a realidade e o dispositivo constitucional que prevê ensino público e de qualidade para todos. Ainda assim, as tentativas existem, como é o caso do autor infanto-juvenil Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx:
Em O goleiro e a fada de batom, de Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx (Atual Editora), Xxxxxxxx e Xxxxxxxx são vítimas de maus-tratos. O livro aborda, de modo ficcional, a violência familiar - que atinge um número assustador de crianças e adolescentes -, mas também dá informações sobre o que deve ser feito. Xxxx não nega que o tema seja espinhoso, mas acha que a sociedade e a cultura são extremamente repressoras e domesticadoras com a criança e o jovem. A grande maioria ainda acredita que pancada xxxxxx: então, a Xxxxx
deveria ser uma fábrica de gênios, Prêmio Nobel de produção em série, certo?’
(Jornal do Commercio, Família/Cultura, 02/09/2001)
OS INEVITÁVEIS REFLEXOS DE UMA INFÂNCIA MARCADA PELA VIOLÊNCIA
Na humanidade, o único segmento portador do futuro é aquele representado por crianças e adolescentes. Essa afirmativa é de perto acompanhada pela realidade vivida por esse segmento. Uma criança que tem os seus direitos fundamentais violentados, certamente, no futuro, terá dificuldades, para se livrar dos ensinamentos que lhe foram impostos de forma brutal.
Negando a sua culpa, acobertando-se em seus preconceitos e ignorando a dramática realidade da maioria das crianças e dos adolescentes no País, a nossa sociedade tende a imaginá-los como um grande problema sem solução.
Independentemente da classe social em que viva, tudo começa quando as necessidades físicas e socioemocionais de uma criança e um adolescente são desrespeitadas. O primeiro reflexo geralmente atinge o grupo familiar em forma de rebeldia, desrespeitos e fugas. Quantas vezes já ouvimos pais dizendo que não conseguem mais controlar os seus filhos? O segundo reflexo atingirá, de alguma forma, a omissa sociedade que ajudou a violentar os seus demais direitos e os considera como potenciais agressores.
Em alguns casos, o jovem, sobremaneira aquele cercado pelo estereótipo da classe e da cor, consegue expressar seu sentimento de revolta diante dessas violências, sem que, necessariamente, se envolva em atos infracionais. Não é exagerado afirmar que há mais adolescentes engajados em ações, para melhorar a sociedade, do que envolvidos em delitos. No entanto, são, muito pouco, valorizados e divulgados pelos seus feitos. Em Pernambuco, o movimento hip-hop é um exemplo bastante claro desse tipo de extravasamento da juventude. Em pesquisas feitas para o mestrado em Sociologia da UFPE, Sílvia G. Xxxx Xxxxxxx identificou essa realidade:
Eles encontram no hip-hop um modo de ser diferente, ante a massificação dos produtos destinados ao consumo juvenil e ante a opressão relacionada ao estigma de classe e de cor, que os associa à violência e à marginalidade (....) por meio do hip-hop reformulam suas identidades, excluídas ou desva- lorizadas(...), atribuindo a estas um valor positivo. (BARRETO, 2000)
Vários outros exemplos poderiam ser mencionados, como é o caso dos adolescentes do bairro de Jardim São Paulo, em Recife, que em busca de sensibilizar e mobilizar jovens para a questão do enfrentamento da violência contra criança e adolescente, formaram a Rede Infanto Juvenil de Combate à Violência Sexual e Doméstica.
No entanto, uma outra boa parte de jovens não descobre meios alternativos e acaba sendo alvo fácil para a forma de violência física mais sórdida e intangível: a morte.
Quando, em um crime de homicídio, a vítima ou o autor é um adolescente, com raras exceções, encontraremos dados biográficos diferenciados. Os históricos assemelham-se em vitimização e vitimação. Uma vida marcada pela violência, com total carência de apoio afetivo, espiritual e mesmo material de um ambiente familiar, propício ao seu desenvolvimento, somada, na maioria das vezes, à falta de habitação em condições dignas e da alimentação indispensável ao seu crescimento sadio, além da absoluta falta de perspectiva de um futuro decente, contribuem para um provável direcionamento ao mundo do crime. Mas a análise seria incompleta, se não percebêssemos o porquê desse envolvimento. A freqüência com que esses fatos ocorrem, de alguma forma, nos faz banalizar esse tipo de violência. Dr. Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, Psicanalista e Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ, assim se expressa:
A terrível freqüência com que episódios como esse chegam até nós: ado- lescentes, matando e sendo mortos, são personagens cada vez mais freqüen- tes nas páginas dos jornais. A violência invadiu o cotidiano de forma surpreen- dente, já começa a fazer parte daquelas coisas esperadas que compõem um dia-a-dia qualquer: lutas entre gangues, a violência no trânsito, a ferocidade nos trotes, o ataque covarde a menores de rua e a mendigos, a valentia in- sensata dos alunos de lutas marciais, a agressão anunciada nos bailes e
boates, o clima de insegurança onipresente. Ser adolescente, hoje, nas metrópoles do país, é ter de dominar um complicado código de sinais e condutas, uma cartografia bélica dos espaços públicos, que lhe permita cir- cular pela cidade, reduzindo os riscos de se tornar alvo preferencial da violência disseminada grifo nosso. (XXXXXXX XXXXXX, 1999)
Ao se discutir essa realidade, há um agente institucionalizado da violência que não pode ser esquecido: o Estado, que por suas omissões e abusos, sempre presentes em nosso dia-a-dia, permite que crianças e adolescentes estejam sujeitos à violência em todas as suas variáveis.
Polícia ineficiente ou corrupta, pobreza, má distribuição de renda, desem- prego, alta evasão escolar, aumento do narcotráfico, descrença na Justiça, valorização dos esquadrões da morte, vistos nas comunidades como justi- ceiros. Esses fatores banalizam a morte, tornando as comunidades insen- síveis. (DIMENSTAIN, 1999)
A MÍDIA NO PROCESSO DE BANALIZAÇÃO
As noções das pessoas sobre criminalidade nem sempre correspondem à realidade, pois são, em grande parte, influenciadas pela forma como os meios de comunicação tratam o tema. Existe geralmente uma distorção, na percepção da população, sobre criminosos e criminalidade, causada, entre outros fatores, pelo preconceito social, pela ênfase da mídia em certos tipos de crimes de interesse jornalístico, pelo contato com filmes e livros de ficção sobre o tema, pela exploração política do tema da segurança pública ou ainda por simples desinformação, principalmente quando a conduta delituosa é atribuída a um adolescente em conflito com a lei.
A imprensa tem insistentemente pecado, quando o assunto é adolescente em conflito com a lei e parece-nos que, ainda, levará muito tempo para se corrigir, pois tal fato depende da quebra de mais um paradigma: o jornal mais vendido é o que divulga espetáculos de miséria. De um modo geral, a mídia se revela preconceituosa, superficial e mal informada, quando em suas matérias sensacionalistas, que não
conseguem prever uma trajetória de vida, refere que menino de rua é vítima, criança abusada é vítima, pequeno trabalhador é vítima, mas adolescente que comete algum delito é apenas bandido, dando ênfase à imagem de um facínora que ameaça cidadãos desprotegidos e pagadores de seus impostos. Assim, a mídia é a primeira a legitimar a criminalização das questões sociais, omitindo o ponto crucial do problema, prestando assim um desserviço à comunidade à que serve.
E.F.G.S., 15 anos - Homicida e traficante. Começou a matar aos 12 anos de idade e assume, desde então, a autoria de 30 homicídios, todos relacionados ao tráfico de drogas. Participou das duas chacinas de Rio Doce. Assume tam- bém ser um dos autores de um crime que chocou os moradores da região, ao matar um rapaz dentro de uma igreja durante a missa e outro durante um show no Centro de Convenções.
(in Folha de Pernambuco, Polícia, p.03, 19/02/2002)
A matéria acima mencionada transformou o infrator em um caso único e exclusivo de polícia, omitindo que esse adolescente, antes de entrar no mundo de crime, teve uma trajetória de vida marcada pela violência doméstica e desestruturação familiar, trazendo, em seu corpo, marcas de violentos castigos e surras que seu pai lhe dava com facão e borracha de sofá, nas ocasiões em que se encontrava drogado. Os seus responsáveis, pai e mãe, passaram a maior parte da sua infância cumprindo pena por assalto e tráfico de drogas respectivamente, enquanto ele e seus irmãos eram depositados em abrigos públicos, de onde quase sempre conseguia fugir, passando a mendigar e a fazer pequenos furtos
. Aos 10 anos de idade, retornou ao convívio familiar, em razão do seu genitor ter voltado para casa após sair do presídio, passando a “trabalhar” com o mesmo, vendendo maconha, tendo contato direto com arma de fogo. Com essa mesma idade, presenciou o seu responsável ser assassinado em decorrência de um acerto de contas por um assalto. Estava só outra vez, e tal fato o fez jurar vingança. A delinqüência passou a ser o seu cotidiano. Usar de violência física, em seus atos, passou a ser a sua característica. Já havia sido privado da sua liberdade, antes dessa última apreensão, cumprindo Medida Socioeducativa. No entanto, revelou que, durante o período de seis meses que passou acolhido, não
recebeu nenhuma orientação pedagógica que o ajudasse a se ressocializar, uma vez que era temido pelos seus feitos rebeldes em tentar fugir. Seu maior desejo era possuir uma submetralhadora para matar “almas sebosas”, expressão que certamente aprendeu com a mídia.
A vida desse adolescente e de tantos outros com a mesma biografia, certamente, não pode ser tratada da forma piegas do “ coitadinho “ nem tampouco com a visão distorcida da maior parte da sociedade, de que pelo fato dele ser “ menor” os delitos praticados “ não vão dar em nada”. Ele é uma vítima que se transformou em vitimizador em decorrência de todas as formas de violência com que foi obrigado a conviver. Como infrator, irá responder pelos delitos que cometeu, mas quem irá responder pela destruição da sua vida na mais tenra infância? Onde estão as falhas? Desafio o leitor, a, durante poucos segundos, mentalmente, interpretar essa história real de vida, assumindo o papel do autor principal e, no final da trajetória, responder a ele mesmo qual seria o seu destino e se as suas feridas, abertas pelo sofrimento da violência, conseguiriam cicatrizar.
Certamente, a mídia ainda levará muito tempo para entender que os fatos (o crime, a violência) nunca deveriam ser narrados desprovidos das trajetórias e histórias de vida das vítimas e dos agressores. A biografia revela os determinantes sociais, culturais e econômicos que levam ao encontro/desencontro entre agressor e vítima e que podem revelar causas, contextos e fatores que os levaram à violência. Fazem-se necessárias a reeducação e a sensibilização do profissional de comunicação, principalmente dos que dão cobertura às matérias policiais, da sua responsabilidade e da sua participação no aumento da criminalidade, quando reforça e mitifica a imagem do jovem que exerce atividade marginal. Os adolescentes, principalmente na faixa dos 15 aos 17 anos, diante da ausência de Políticas Públicas articuladas, vivendo em ambientes familiares marcados pela violência, sendo constantemente motivados a consumações fora da sua realidade social e com raríssimas possibilidades de inserção no campo do trabalho, tendem a copiar as ações dos infratores da lei que são apresentados como super-heróis, na esperança de encontrar, no mundo da criminalidade, a oportunidade de subsistência e de pertinência social, mesmo que, para isso, a sua vida deixe de ter valor e o seu destino seja fatal.
GARANTIR DIREITOS É UM DEVER DE TODOS E NÃO UMA FANTASIA
A sociedade clama por segurança e justiça no nosso país, diante do constante aumento da criminalidade que nele impera. Cria-se lei, para que seja cumprida, revogada ou tenha a sua pena aumentada. A implementação da pena de morte e a redução da maioridade penal são temas, hoje, bastante debatidos como pressupostos para a erradicação desse grande problema. Entende-se que a solução desse caos tem que, necessariamente, passar pelo aumento da repressão ou até mesmo pelo extermínio das pessoas que praticam crimes considerados como hediondos. Essa mesma sociedade ignora ou dá pouquíssimo valor ao real significado da palavra prevenção e muito pouco ou quase nada está verdadeiramente comprometida em combater a violência praticada contra criança e adolescente, esquecendo que eles serão os adultos do amanhã. É muito cômodo ignorar que a criança vista na rua mendigando, dormindo embaixo de marquises enroladas em trapos ou em pedaços de papelão é o resultado do somatório dos problemas sociais que ajudamos a construir. É mais fácil não nos preocuparmos com a erradicação do trabalho infantil e da exploração sexual de crianças e de adolescentes, porque, assim,
não corremos o risco de ver refletida a nossa omissão.
Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à ali- mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá- los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CF – 88)
A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu Artigo 227, a consolidação dos direitos e garantias individuais de crianças e adolescentes, que em sua decorrência, posteriormente, foram reafirmados através da Lei Nº 8069, datada de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, puni- do na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direi- tos fundamentais. (ESTATUTO)
Discorrer acerca dos avanços alcançados e das distorções sobre as interpretações decorrentes dessa Lei, foge ao objeto deste texto. Contudo, não seria nenhum exagero afirmar que no cumprimento integral dos seus preceitos jurídicos e conseqüências decorrentes, se encontra o mais próspero caminho para modificar a caótica realidade em que vivemos.
Tal desafio para o Brasil somente será vencido quando a sociedade se despojar do preconceito de ver a garantia dos direitos da criança e do adolescente como algo fantasioso, romântico ou irreal e arrancar as máscaras daqueles a quem interessa, por auferir vantagens pessoais, que esses direitos nunca sejam reconhecidos. Somente quando a sociedade entender que as feridas, provocadas pela violência de hoje, não cicatrizarão na criança que será o adulto do amanhã, é que poderemos adotar políticas verdadeiramente eficazes para a maior parte da população, sem qualquer discriminação e sem privilégios.
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VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR
RELATO DE UMA PRÁTICA EM PSICOLOGIA JUDICIÁRIA
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