COORDENAÇÃO
COORDENAÇÃO
ATAS
XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXX XXXXXX
DO I CURSO SOBRE
O COMBATE À CORRUPÇÃO NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA
ATAS
DO I CURSO SOBRE
O COMBATE À CORRUPÇÃO NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA
COORDENAÇÃO
ATAS
XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXX XXXXXX
DO I CURSO SOBRE
O COMBATE À CORRUPÇÃO NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA
ATAS DO I CURSO SOBRE O COMBATE À CORRUPÇÃO NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA
COORDENAÇÃO
XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXX XXXXXX
EDIÇÃO
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO
CEDIS, CENTRO DE I & D SOBRE DIREITO E SOCIEDADE
Campus de Campolide 1099-032 Lisboa PORTUGAL
MAIO 2019
ISBN
978-972-99399-9-0
Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do(s) seus(s) autor(es).
Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infrator.
Nota introdutória
Esta obra é o resultado académico do I Curso de sobre Combate à Corrupção na Contratação Pública, que decorreu entre 30 de outubro e 3 de novembro de 2017, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Tratou-se de uma iniciativa da Escola da Advocacia-Geral da União do Brasil (AGU) e da Associação da Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa (JURISNOVA) enquadrada em protocolo de cooperação celebrado em 2016 entre as duas instituições.
Os artigos que a seguir se publicam foram elaborados por servidores da AGU que frequentaram o curso, e objeto de um processo de seleção e revisão levado a cabo por professores e doutorandos da Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa. Constituem um contributo relevante para o estudo do combate à corrupção na contratação pública na ordem jurídica brasileira, na medida em que incorporam perspetivas trazidas pelo direito português e pelo direito da União Europeia que foram objeto de análise detalhada durante o curso.
O curso e, consequentemente, a publicação deste livro só foi possível graças à visão e empenho da Dra. Xxxxxx Xxxxx, Diretora da EAGU, que era à época da realização do Curso, e a quem deixamos uma palavra especial de agradecimento.
Lisboa, 22 de maio de 2019
Xxxx Xxxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx
O papel do advogado público no combate à corrupção nas contratações públicas: a técnica jurídica como instrumento eficaz de controle
The role of public attorney fighting corruption in public procurement: the legal technique as an efficient instrument of control
Diego Pereira1
Resumo: A advocacia pública, função essencial à justiça, ocupa status constitucional à semelhança das demais carreiras jurídicas. Remunerado para defender o erário, ao tempo que também defende políticas públicas, o advogado de Estado possui o importante papel de defesa do ente que representa, judicial e extrajudicialmente, combatendo a corrupção na esfera pública por meio de sua consultoria jurídica. Neste sentido, as recomendações realizadas em pareceres e outras peças jurídicas, com fundamento na lei, mostram-se como medidas eficazes que combatem a corrupção, especialmente antes mesmo que a efetiva contratação ocorra. Atuando no mecanismo preventivo de corrupção, o papel ocupado pelo advogado público significa a economia de dinheiro público bem como medida profilática na corrupção, inclusive, evitando que outras instituições de cunho mais repressivo (como a polícia, o Ministério Público, o Judiciário e as Corte de Contas) dispendam maiores custos à Administração Pública.
Palavras-Chaves: Advogado Público. Corrupção. Combate. Mecanismos eficazes.
1 Procurador Federal-Chefe da Procuradoria Federal junto à UFOB, possui pós-graduação em Direito Público pelo Instituto Unyahana/Bahia e é Mestrando em Direitos Humanos pela UnB.
Abstract: Public advocacy, an essential function of justice, occupies cons- titutional status in the same way as other legal careers. It is paid to defend the exchequer, while also defending public policies; the state attorney has the important role of defending the entity that represents, judicial and extrajudicially, fighting corruption in the public sphere through its legal expertise. In this sense, the recommendations, made in opinions and other legal pieces, based on the law, are shown as effective measures for fighting corruption, especially before the effective public procurement occurs. The public attorney role, acting on the preventive mechanism of corruption, means the saving of taxpayer money as well as prophylactic measures against corruption, including avoiding other repressive institutions (such as the police, the Public Prosecutor, the Judiciary and the Courts of Accounts) to pay higher costs to the Public Administration
Keywords: Public attorney. Corruption. Fighting. Effective mechanisms.
Introdução
O presente artigo, ao tratar do papel da advocacia pública no combate à corrupção, demonstra o papel importante de compromisso estatal, em especial do Poder Executivo, para com toda a sociedade brasileira.
É tarefa do advogado público a defesa de políticas públicas bem como a defesa do erário. E umas das formas mais eficazes de se combater o desper- dício de dinheiro público se dá com a atuação feita pelos órgãos jurídicos estatais, por meio de advogados públicos.
A atuação da advocacia pública se dá tanto na via judicial quanto na via extrajudicial, em outros termos, pode o advogado público atuar tanto com o contencioso quanto com demandas de consultoria jurídica, assessorando
o administrador público nas mais diversas situações que necessitem de interpretação do seu corpo jurídico.
Quando se fala em contratação pública e a necessidade de prevenção no combate à corrupção, estar-se a falar da importante atuação da consultoria jurídica.
Compete ao Procurador da respectiva entidade emitir entendimentos jurídicos que, confirmem a validade de atos administrativos sem perder de vista a necessidade de se combater a dilapidação do dinheiro público, inclusive evitando a atuação de outros Poderes.
Com isto, o Poder Executivo tem suas funções fortalecidas e livres de um dos maiores problemas que impedem o crescimento social e econômico do país.
Com isto, o objetivo deste artigo é demostrar a importância exercida pela a advocacia pública para o combate à corrupção. Além disto, objetiva-
-se analisar o importante papel de prevenção exercido pelos órgãos de representação jurídica estatal, impedindo que instituições públicas como o Judiciário e o Ministério Público atuem quando já se tem a violação das regras da moralidade, consistindo em combate à corrupção quando já efetivada
Assim, inicialmente tratar-se-á do panorama do papel da advocacia pública no Brasil, inclusive com a indicação de que se trata de função essencial à justiça, especialmente ao dar importância ao trabalho desen- volvido pelas consultorias jurídicas. Destaque-se que a ênfase dada ao papel das consultorias jurídicas em contraponto à atuação litigiosa de advogados públicos, dá-se pelo fato de que neste artigo objetiva-se demos- trar o papel desempenhado pelos causídicos públicos; atuando na defesa do bem público na hipótese de contratação pública, seja ela precedida de licitação ou alocada em uma das hipóteses, previstas em lei, de contratação direta.
Na oportunidade, situo o escritor deste artigo, que, atuando na prática como advogado público lotado em uma consultoria de uma entidade pública, observa a importância exercida pelo advogado de estado quando da análise contratual pelo poder público, constatando, com precisão cirúrgica, a malversação de dinheiro público.
1. A Advocacia Pública no ordenamento jurídico brasileiro
A Constituição Federal do Brasil reservou um lugar específico dedicado ao papel desempenhado pela Advocacia Pública. Compete aos advogados públicos, selecionados mediante concurso público, a defesa das entidades públicas, tanto na esfera judicial como extrajudicialmente.
Defendendo interesses públicos, judicial e extrajudicialmente, a Advo- cacia Pública assume importante papel ao defender que a Administração Pública preserve sempre o caminho que se coaduna com o interesse público indisponível, sendo função essencial à Justiça, pois cabem aos advogados,
privados ou não, a defesa daquele quem representa. Neste sentido, reverbera Xxxxx Xxxxx Xx Xxxxxx:
O que a Constituição quis realçar, com a inclusão dessas carreiras no capítulo das “ funções essenciais à Justiça”, foi a importância de todas na busca da Justiça, entendida no duplo sentido: a) Justiça como instituição, como sinônimo de Poder Judiciário, já que este não tem legitimidade para dar início às ações judiciais, decidindo os conflitos que são postos e nos limites postos pelo advogado, pelo promotor de Justiça, pelo advogado público, pelo defensor público; sem esses profissionais, a Justiça não é acionada; ela não existe; b) Justiça como valor, incluída no preâmbulo da Constituição entre os valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, e que consiste na “vontade constante de dar a cada um o que é seu” ( justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi”).(DI XXXXXX, 2016)2
Sempre que a administração pública contrata, seja por meio de procedi- mentos licitatório ou por meio de contratação direta, a análise procedimental em relação à juridicidade da contratação, impõe-se.
Neste sentido, a Lei de Licitações e Contratos informa em seu art. 38, parágrafo único, que “as minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração”, ainda que ocorra contratação direta, esta obrigatoriedade de análise pelo órgão jurídico permanece.
Assim, a assessoria jurídica atua durante todo o processo da contrata- ção pública, com análises que dependem de informações técnicas. Como se trata de órgão verificador de conformidade com a lei, as assessorias jurídicas, compostas basicamente por advogados públicos concursados, tem o importante papel de prevenção à corrupção já que tem o condão de verificar possíveis irregularidades nas contratações públicas.
Importante que se diga, ainda, que a simples atuação dos órgãos de assessoria não equivale à isenção de quaisquer irregularidades por parte da Administração Pública que contrata.
Muitas vezes, as irregularidades existentes estão inseridas dentro do que é considerado de ordem técnica, carecendo, assim, o advogado público
2 Texto acessado em 07 de fevereiro de 2018. xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/ interesse-publico-advocacia-publica-funcao-essencial-justica.
de conhecimentos e técnicas suficientes para coibir desvios e malversação de dinheiro público.
Contudo, sempre que possível, dentro da técnica jurídica, é possível detectar falhas e recomendar seu saneamento, objetivando sempre a con- formidade com a lei e por, via direta, combate à corrupção pública.
Um exemplo que merece ser destacado se dá quando a Assessoria Jurídica atua e ainda assim é detectado indícios de corrupção na contratação pública. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou um caso em que se definiu que
O fato de a dispensa de licitação e de o aditamento do contrato terem sido precedidos de parecer jurídico não é bastante para afastar o dolo caso outros elementos externos indiciem a possibilidade de desvio de finalidade ou de conluio entre o gestor e o responsável pelo parecer. STF. 1ª Turma. Inq 3621/MA, rel. orig. Min. Xxxx Xxxxx, red. p/ o ac. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, julgado em 28/3/2017.
Nesta esteira de entendimento, percebe-se que o papel primordial exercido pelas assessorias jurídicas não é suficiente para elidir máculas de corrupção nas contratações públicas. Contudo, maioria das vezes, os mecanismos de controle do setor jurídico se mostram eficazes no combate à corrupção.
Justamente por isso, a Lei de Licitações prevê a obrigatoriedade de todo o processo de contratação pública necessitar de um parecer jurídico.
Por tudo isto, percebe-se o papel fundamental exercido pelas Procuradorias Jurídicas junto a órgão públicos, seja prevenindo seja com- batendo, a posteriori, a corrupção nas contratações públicas por meio de mecanismos de controle eficazes.
2. Consultoria Jurídica e mecanismos eficazes de controle no com- bate à corrupção
Compete às Consultorias Jurídicas o papel decisivo de invocar a juridici- dade como seu instrumento de trabalho. Atuando preventivamente (controle prévio) quanto repressivamente (controle posterior), a Advocacia Pública
consegue coibir e combater a corrupção que porventura surja quando da contratação pública. Neste sentido, reverbera Xx Xxxxxx,
Além disso, é indiscutível o papel de controle da Administração Pública desem- penhado pela Advocacia Pública na atribuição constitucional de consultoria jurídica do Poder Executivo. Com efeito, a Advocacia Pública participa ativamente do controle interno que a Administração Pública exerce sobre seus próprios atos. Isto porque, no exercício desse controle, as autoridades socorrem-se da advocacia pública. Esta não age por iniciativa própria. Ela não tem função de auditoria, de fiscal da autoridade administrativa. Ela se limita a responder a consultas que lhe são formuladas pelas autoridades, quer sobre atos que ainda vão praticar (e, nesse caso, o controle é prévio), quer sobre atos já praticados, sobre os quais surjam dúvidas quanto à legalidade (e, nesse caso, o controle é posterior). (DI PIETRO, 2016).3
Assim, sempre que a Administração Pública encaminha quaisquer atos administrativos para apreciação do setor jurídico, seja em momento anterior ou posterior à eficácia deste ato, tem-se a oportunidade de utilização de mecanismos de controle para impedir ou estancar a torneira da corrupção.
A título de exemplo, quando se emite um Parecer Jurídico no âmbito de uma licitação e se aponta a inexistência de pesquisa de preço, evita-se com isto que se contrate pelo preço acima da média, sem estabelecimento de quaisquer parâmetros.
Seja por meio de notas jurídicas, pareceres ou assessoramento do gestor, o órgão jurídico de consultoria consegue impedir que a atuação da Administração em desacordo com a lei gere um prejuízo aos cofres públicos. Portanto, as recomendações realizadas se mostram eficazes no combate à corrupção pública.
Estes exemplos culminam com o famigerado controle prévio, necessário à boa gestão pública e economia de recursos públicos. É neste sentido que se diz que o papel bem exercido pelos órgãos de controle gera tarefas que inibem os gastos públicos, uma vez que combate a existência de possível fraude e desperdício de dinheiro público.
3 Texto acessado em 07 de fevereiro de 2018. xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/ interesse-publico-advocacia-publica-funcao-essencial-justica.
Diferentemente, quando o ato que causa danos ao erário já ocorreu, a possibilidade de atuação agora, a posteriori, serve como medida de redução de impactos e recuperação de valores desviados. Contudo, trata-se de medida que não contribui com a diminuição do desperdício. A complexa máquina pública é movimentada em busca da recuperação de ativos e valores desviados. Esta modalidade de atuação da Procuradoria se assemelha ao papel exercido pelas Cortes de Conta, Ministério Público e Judiciário, de forma repreensiva, o que equivale a dizer que os gastos operacionais são maiores.
Por tudo isso, observa-se que a prevenção realizada pelas Procuradorias são essências para a diminuição de gastos públicos, sem falar que se trata de medida de cunho educativo voltado para aqueles que laboram direta- mente com a gestão pública. Por exemplo, as recomendações feitas em um Parecer Jurídico servem de modelo para a próxima licitação que já virá com determinado quesito atendido.
Para atuar desta forma, a Consultoria Jurídica precisa de independência em relação à autoridade que é assessorada em momento de contratação, por exemplo. Neste sentido, assevera Di Pietro
O papel do advogado público que exerce função de consultoria não é o de representante de parte. O consultor, da mesma forma que o juiz, tem de interpretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial, porque protege a legalidade e a moralidade do ato administrativo; ele atua na defesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade administrativa.
Por isso mesmo, a atividade de consultoria tem de estar fora da hierarquia administrativa para fins funcionais, ou seja, para desempenhar com inde- pendência as suas atribuições constitucionais. Tratando-se de competência absolutamente exclusiva, a atividade de consultoria afasta qualquer possibi- lidade de controle por órgãos superiores, ficando o órgão praticamente fora da hierarquia da Administração Pública, no que diz respeito à sua função. Ainda que os órgãos consultivos funcionem junto a ministérios e secretarias estaduais e municipais – já que integram o Poder Executivo –, eles estão fora da hierarquia, não recebem ordens, instruções, para emitir o parecer neste ou naquele sentido. Não se submetem a decisões políticas de governo que sejam emanadas ao arrepio do direito. Quem emite um parecer, tem absoluta
liberdade de apreciar a lei e de dar a sua interpretação. Isto é inerente à própria função que o órgão exerce. Ou ele é independente ou não precisa existir. (DI PIETRO, 2016).4
Semelhando a um papel profilático, de cunho preventivo e educativo, a Consultoria Jurídica de um órgão público possibilita a economia de recursos e os desvios em uma possível contratação pública em desobediência à lei. Imagine a seguinte hipótese: processo licitatório é encaminhado à Procuradoria de uma autarquia para que seja emitido parecer jurídico. Ao analisar os autos administrativos, o Procurador designado observa que não há pertinência entre o objeto licitatório e a modalidade escolhida, de modo que a modalidade escolhida diminuiu a concorrência, indevidamente. Ao se recomendar uma outra modalidade, em verdade, estará evitando desvios
ou beneficiamentos de possíveis contratados.
Com isto, percebe-se que o dispêndio da Administração foi muito menor do que uma possível invalidade de toda a contratação a ser realizada pelo Tribunal de Contas ou Ministério Público, por exemplo. Se esta última hipótese acontecesse, mover-se-ia todo o aparato do Poder Judiciário, consubstanciando maior gasto de dinheiro público.
À evidência, a advocacia pública, função essencial à justiça que é, pos- sibilita uma melhor gestão de recursos públicos bem como exerce uma função educativa e de mudança de comportamento daqueles que exercem suas funções objetivando a defesa do interesse público.
Conclusão
Função essencial à justiça, a Advocacia Pública se mostra como necessária à boa condução dos princípios que regem a coisa pública. Moralidade, ética, conformidade, transparência, são fundamentos de uma gestão pública voltada para os tempos atuais de comprometimento do setor público com a lisura e probidade.
Neste aspecto, o papel exercido pelas assessorias jurídicas se evidencia à medida que impedem que recursos públicos sejam usados de forma indevida.
4 Texto acessado em 08 de fevereiro de 2018. xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/ interesse-publico-advocacia-publica-funcao-essencial-justica.
Esta atuação, por meio do combate à corrupção pública, mostra-se como medida salutar, uma vez que a economia de recursos públicos é superior ao controle a posteriori exercido pelos demais órgãos de controle.
O Brasil vive um momento singular em sua história e muito disto decorre do combate à corrupção com que se deu com a Operação Lava Jato. O exemplo destas operações é justamente de controle a posteriori de desvios públicos. Se as empresas envolvidas tivessem uma política de compliance e uma consultoria jurídica comprometida com o combate à corrupção, certamente os danos evidenciados seriam menores.
Assim, a valorização da advocacia pública é medida importante que garante a permanência da boa gestão pública no combate à corrupção sempre que se tratar de contratações públicas.
As contratações públicas se acobertam de diversas espécies de conhe- cimentos técnicos, dentre os quais, surge a técnica jurídica emanada pelos órgãos de assessoramento. Este conhecimento jurídico, muitas vezes, mostra-se como eficazes no combate à corrupção pública.
O papel exercido pelos advogados públicos, por meio de pareceres, notas e assessoramento direto, garante que o cumprimento à lei seja mantido e a dilapidação de recursos públicos seja evitada.
Nesta toada, escrever sobre este papel desempenhado pelos órgãos essen- ciais à justiça, tal qual a Advocacia Pública, se mostra como fato importante no reconhecimento profissional de uma categoria de servidores públicos que é remunerada para a defesa de políticas públicas e resguardo do erário.
Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/ constituicao/constituicaocompilado.htm.
BRASIL. Lei de Licitações e Contratos. xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/ Leis/L8666cons.htm.
BRASIL. Consultor Jurídico. xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/xxxxxxxxx- publico-advocacia-publica-funcao-essencial-justica.
XXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxx. Administrador que contrata empresa para reforma de ginásios em situação de emergência e que depois faz
aditivo para ampliar o objeto pratica, em tese, os delitos dos arts. 89 e 92. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx- xxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxx/0x000x00x0xxx0xxxx0x00x0 e53ae8c7>. Acesso em: 28/01/2018
Processo legislativo e combate à corrupção:
a transparência como princípio fundamental e fonte de prevenção e controle de práticas lesivas ao erário nos procedimentos de contratação pública
Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx
Resumo: Neste breve artigo será abordado o tema da observância do princípio da transparência na técnica legislativa como instrumento de combate à corrupção. Trata-se de discutir, de forma sucinta, os limites e as possibilidades da adoção do princípio jurídico da Transparência como instrumento de prevenção de práticas lesivas ao erário, considerando sua utilização durante o processo legislativo de elaboração das normas de contratação pública, assim como na fiscalização da aplicação das leis. Parte-se da hipótese de que quanto mais claras, simples e objetivas as leis, maior será o seu grau de sucesso na prevenção da corrupção e outras condutas lesivas ao erário, à atividade administrativa e até mesmo à vida social em seu conjunto. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica, em especial monografias específicas sobre o tema. Considerando-se o espaço restrito de um artigo, o texto tem por objetivo apresentar apenas uma breve introdução ao tema, com observações pontuais sobre outros princípios do Direito que, caso mais fortemente presentes no processo legislativo, podem também funcionar como mecanismos de prevenção de práticas corruptas nos procedimentos de contratação pública, assim como colaborar para viabilizar uma efetiva punição destas práticas nos casos já ocorridos. Com ênfase nos princípios da Transparência e da Simplicidade, observou-se que leis complexas estimulam comportamentos nocivos, criam mecanismos que dificultam tanto sua aplicação quanto a adoção de procedimentos fiscalizatórios, fazendo com que impere o dito popular “criar dificuldades para vender facilidades”, fato que contribui para o aumento dos níveis de corrupção na contratação pública.
Palavras-chave: Princípio da Transparência; Processo legislativo; corrupção; combate.
Summary: This brief article will address the issue of observance of the principle of transparency in legislative technique as an instrument to combat corruption. It is a matter of briefly discussing the limits and possibilities of adopting the legal principle of Transparency as an instrument to prevent harmful practices, considering their use during the legislative process of drafting public procure- ment rules, as well as enforcement. The hypothesis is that the clearer, simpler and more objective the laws, greater will be their degree of success in preventing corruption and other harmful actions to the treasury, administrative activity and even social life as a whole. For this, a bibliographical research was carried out, especially specific monographs on the subject. Considering the restricted space of an article, the purpose of the text is to present only a brief introduction to the topic, with specific observations on other principles of law that, if more strongly present in the legislative process, can also act as mechanisms to prevent practices corruption in public contracting procedures, as well as collaborate to enable an effective punishment of these practices in cases already occurred. With emphasis on the principles of Transparency and Simplicity, it was observed that complex laws stimulate harmful behavior, create mechanisms that hinder both its application and the adoption of inspection procedures, making the popular saying “create difficulties to sell facilities”, which contributes to increase the levels of corruption in public procurement.
Key-words: Principle of Transparency; legislative process, corruption; combat
1. Introdução
Nos meios de comunicação, redes sociais, trabalhos acadêmicos, etc, o tema do combate à corrupção surge, em regra, diretamente relacionado à atuação da polícia, do ministério público e da justiça criminal. O que se observa é que, muitas vezes, a vertente repressiva é enfatizada e ganha maior relevo do que as formas preventivas de controle e combate à corrupção. Centenas de escândalos de corrupção relacionados à contratação de serviços e obras públicas estão no cenário de graves crises políticas, econô- micas e financeiras que têm assolado o mundo globalizado, destacando-se os fatos ocorridos no Brasil e em importantes países da América Latina.
Neste breve artigo será abordado o tema da observância do princípio da transparência na técnica legislativa como instrumento de combate
à corrupção, com ênfase no processo legislativo destinado a produzir leis relativas aos procedimentos de contratação pública. Trata-se de discutir, de forma sucinta, os limites e as possibilidades da utilização do princípio da Transparência como instrumento de prevenção de práticas lesivas ao erário nos procedimentos de contratação pública, considerando sua cui- dadosa utilização durante o processo legislativo de elaboração das normas de contratação pública e na fiscalização da aplicação das leis.
Parte-se da hipótese de que quanto mais claras, simples e objetivas as leis, maior será o seu grau de sucesso na prevenção da corrupção e de outras condutas que causam lesão ao erário, à atividade administrativa e até mesmo à vida social em seu conjunto. Isto porque leis complexas estimulam comportamentos nocivos, que se expressam no dito popular: “criar dificuldades para vender facilidades”. Eis aqui uma prática corrente que, ao estar presente no processo de elaboração das leis, estimula práticas corruptas.
Considerando-se o espaço restrito de um artigo, o texto tem por objetivo apresentar apenas uma breve introdução ao tema, com observações pon- tuais sobre os princípios do Direito que, caso mais fortemente presentes no processo legislativo, podem funcionar como mecanismos de prevenção de práticas corruptas nos procedimentos de contratação pública, assim como colaborar para viabilizar uma efetiva punição destas práticas nos casos já ocorridos.
2. Processo legislativo e princípios da contratação pública
Do ponto de vista teórico, o conjunto de técnicas e procedimentos que compõem o processo legislativo é objeto de estudo de uma ciência denominada Legística, como xxxxxx XXXXX (2009, p. 61). Segundo o mesmo autor (2009, p. 62), uma referência nesta área é o Relatório de Mandelkern (MANDELKERN, 2001), que propôs bases para uma regulamentação mais adequada da Legística no âmbito da União Européia. Sua contribuição teórica está fundamentada na descrição de sete princípios,: Necessidade, Proporcionalidade, Subsidiaridade, Transparência, Responsabilidade, Acessibilidade e Simplicidade”.
Para a discussão do tema deste artigo, destacaremos dois deles:
a Transparência e a Simplicidade.
O princípio da transparência no processo legislativo, segundo Xxxxx ( 2009, P. 61-2):
A transparência consiste na consulta e participação ativa e equilibrada dos diversos setores da sociedade afetados pela norma a ser elaborada. A presença de grupos sociais e representantes de classes nas instâncias decisórias é uma característica das nações democráticas que reforça as instituições e amplia a cidadania. Nesse sentido, a abertura à participação no Processo Legislativo promove a melhoria da qualidade da legislação por incluir nos debates as impressões trazidas pelos destinatários da mesma. Evidentemente, estes inputs são parciais e tendenciosos, e por vezes abrem margem a pressões e corpora- tivismo descabidos, mas o embate parlamentar deve ser municiado com estas visões se o legislador pretende cumprir sua função de representante. No caso brasileiro, o Congresso Nacional promove continuamente grande número de comissões gerais, audiências públicas, seminários e outros eventos com essa intenção e é improvável que uma lei deixe as suas dependências sem que a sociedade seja ouvida, salvo siga regime de tramitação sumário. A transpa- rência no Processo Legislativo é um exercício fundamental e progressivo no amadurecimento de um Estado Democrático de Direito.
Já o princípio da Simplicidade está assim conceituado (XXXXX, 2009, p. 65):
A simplicidade denota uma busca de facilitar a compreensão do significado das leis, sem que estas abram mão do detalhamento necessário. A redação de uma norma precisa obedecer a uma estrutura característica e respeitar certas formalidades, porém, dados estes limites, o texto em vigor deve ser o mais objetivo e claro possível, sem referências obscuras, conceitos herméticos ou linguajar antiquado. A imagem dos operadores do Direito como os escribas do Egito antigo, detentores do segredo de um conhecimento útil, mas mistificado, é antiquada e não condiz com a realidade dinâmica da sociedade da informa- ção, em que esta troca de mãos e é multiplicada a cada instante. Muito tem avançado esta questão, e o ideal de objetividade alcança inclusive o processo judicial, reduzindo práticas antiquadas de formalismo excessivo. Em termos de Processo Legislativo, há espaço para esse avanço, e a atuação da burocracia legislativa é primordial, pois, na maior parte das vezes, são eles que redigem as proposições e suas emendas, que promovem os exames técnicos ao longo
da tramitação e que consolidam a versão final a ser promulgada. Portanto, a simplicidade é um princípio aplicável ao Processo Legislativo em sua esfera técnica, pois as alterações promovidas precisam ser exclusivamente formais, praticadas por burocratas e não por parlamentares.
Note-se, assim, que o princípio da Transparência, na fase do processo legislativo, está diretamente relacionado à participação popular, o que implica necessariamente na realização de sessões públicas de discussão das matérias que serão submetidas à votação. Já o princípio da Simplicidade privilegia a clareza e objetividade das normas, sem retirar-lhes o caráter técnico e juridicamente válido.
Registre-se, por oportuno, que os princípios da Simplicidade e da Transparência, no estudo monográfico realizado por Xxxxx (2009, p. 88), estão diretamente relacionados à Democracia, considerada esta um princípio nucleador:
Figura 6 – Princípios nucleadores e vinculação aos demais princípios
Conclui-se, assim, que tais princípios são fundamentais em um Estado Democrático de Direito, no qual todos os membros de uma sociedade estão submetidos ao império da lei e que exige, para seu adequado desen- volvimento, o ataque a todas as formas de corrupção que atinjam a ética, notadamente as que causam lesão direta ao erário.
Para melhor compreensão da relação entre os princípios da transparência e da simplicidade e estratégias de combate à corrupção, faz-se necessária a apresentação de algumas definições.
No Brasil, o crime de corrupção passiva, classificado como crime cometido por funcionário público contra a administração em geral, está previsto no art. 317 do Código Penal:
Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indire- tamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Portanto, é crime próprio – só pode ser cometido por funcionário público. Já o crime de corrupção ativa tem previsão no art. 333 do mesmo diploma legal, pode ser cometido por qualquer pessoa mas que é, em regra, um agente privado. Sua tipificação está no ato de oferecer ou prometer vanta- gem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício. É crime o simples oferecimento ou promessa, independentemente da ação ou omissão do funcionário. Se estas ocorrerem
são causas de aumento de pena, na razão de 1/3.
A regra geral para a efetivação da contratação pública é a existência de um processo de licitação, ao longo do qual são praticados inúmeros atos administrativos. Considerando-se que a regra geral é de que os contratos da administração pública operem com valores expressivos, encontra-se aí um ter- reno fértil para o desenvolvimento de práticas corruptas e atos lesivos ao erário. Os procedimentos de contratação pública, além de obedecerem aos princípios gerais1 expressos do Direito Administrativo – legalidade,
1 O espaço limitado de um breve artigo introdutório não permite uma discussão mais aprofundada sobre uma teoria geral dos princípios, tampouco o detalhamento de cada um dos princípios que regem o Direito do Contratos Públicos; pelas razões expostas, a exposição estará limitada ao princípio da transparência, que está sendo tomado como o princípio fundamental nos temas ligados ao controle e combate à corrupção.
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, assim como aqueles reconhecidos pela doutrina e jurisprudência – supremacia do interesse público, autotutela, indisponibilidade, continuidade dos serviços públicos, segurança jurídica, precaução, razoabilidade e proporcionalidade2, devem observar princípios correlatos, conforme observa Xxxxxxxx Xxxxx (2013,
p. 298). São princípios correlatos o da competitividade, o da igualdade (isonomia). Os princípios da transparência e da concorrência são fun- damentais na contratação pública.
Uma das questões trabalhadas neste texto está relacionada a uma reflexão sobre uma fase anterior ao próprio procedimento de licitação, circunstanciada durante o processo de discussão e deliberação das leis que regem os processos de seleção para contratação pública: seria possível, na fase de criação das leis e outros normativos que regulam a contratação pública, dotar esta regulação de características que colaborassem de forma mais efetiva para o combate à corrupção ?
Uma especial atenção à observância dos princípios do processo legislativo poderia colaborar para a efetiva implementação de medidas de combate à corrupção? Esta é uma das indagações que norteiam este texto. Xxxxxxx Xxxxxxx (2011, p. 14), “os princípios do processo legislativo são normas gerais, abstratas, fundamentais, fontes primeiras das regras que regem a deliberação política nas Casas Legislativas”. Note-se, pois que são informadores dos processos decisórios. Como afirma a mesma autora, a “ compreensão do funcionamento de um sistema político perpassa não apenas as decisões finais ou sua implementação”. Muitas vezes é preciso compreender e identificar os princípios informadores do processo legislativo que foram (ou poderiam ter sido) os norteadores das decisões para que os propósitos e a efetividade de determinada regulação legislativa possam ser
otimizados. Nas palavras de Xxxxxxx:
O estudo dos princípios informadores do processo legislativo procura identificar os valores iniciais que norteiam os legisladores no processo de deliberação que visa, por meio da instituição de uma regra, a edição de uma lei, ou a implementação de uma política pública, ou a tomada de uma decisão política como resposta às demandas sociais, as quais constituem o ponto de partida, o input, de uma legislação ou deliberação do Parlamento.
2 Sobre os princípios, ver FILHO, pgs. 18 a 43.
No modelo explicativo da fraude e da corrupção elaborado por Xxxxxxx (1953), citado por Xxxx (2016, p. 9 e ss), três fatores fundamentais podem ser identificados no denominado “triângulo da fraude”:
1. Oportunidades para a prática de atos de natureza fraudulenta;
2. Racionalização relacionada ao risco percebido de eventual detecção e punição pela prática do ato (vontade e determinação);
3. Pressão no contexto da vida particular do indivíduo (dívidas, jogo, consumos, etc).
Note-se que os itens 2 e 3 – racionalização e pressão – são fatores que estão na esfera da subjetividade. Já o item 1 – oportunidades para a prática dos atos fraudulentos – são situações concretas, de alto grau de objetivi- dade, que podem ser submetidas a certo controle externo, “incentivadas” ou reprimidas pela legislação. Assim, no modelo ficam explicitadas as duas dimensões que operam no triângulo da fraude, como refere Xxxx (2016,
p. 10): uma dimensão pessoal, subjetiva (onde acontecem a racionalização e a pressão) e outra dimensão organizacional, objetiva (onde se fortale- cem ou enfraquecem as oportunidades para prática de atos fraudulentos). O modelo pode ser visualizado no gráfico:
Dentre estes fatores, a pressão opera como fator com potencial facilitador, enquanto a racionalização e as oportunidades são fatores determinantes para a prática da corrupção:
Tomando-se o processo legislativo como fator importante na prevenção e repressão à corrupção, um ponto fundamental do modelo de Cressey é a identificação da estratégia preventiva do modelo:
Conforme relata Xxxx (2016, p. 18), as oportunidades de ação fraudu- lenta ocorrem principalmente em “áreas de risco”, que são aquelas áreas e funções do serviço público que “oferecem maior exposição à ocorrência de atos desta natureza”, citando como exemplos setores de “processamento de valores monetários, exercício de funções com poderes discricionários, con- tratação pública, de aprovação e licenciamento de projetos e de fiscalização”. Segundo o mesmo autor, “os atos de corrupção traduzem informalidades, por contrariarem as normas, os procedimentos administrativos e o regular funcionamento dos serviços”.
Exatamente aí se situa a importância de elevar os princípios da trans- parência e publicidade dos atos administrativos ao patamar de fatores
basilares na elaboração e implementação das leis, de tal forma que se possa aferir a observância das formalidades e procedimentalização na execução destes atos e constatar sua conformidade ao Direito.
Nota-se que a ação sobre as oportunidades para a prática de atos de natureza fraudulenta é o único fator sobre o qual é possível uma incidência e controle diretos através da legislação, uma vez que a identificação das áreas de risco (comportamentos e situações potencialmente incentivado- ras ou permissivas em relação à corrupção) permite a adoção de medidas preventivas (e em um segundo momento, também punitivas).
Em se tratando especificamente da contratação pública, considerando que a existência de concorrência é, como regra geral, fundamental a observância dos princípios da transparência e publicidade dos atos. Como explicita Xxxxxxx (2017, p. 16), a publicização dos anúncios de procedi- mentos licitatórios é o primeiro requisito para que se possa qualificar como “concorrencial” um procedimento de contratação pública.
Conforme também enfatiza Xxxxx (2017, p. 16-7), a pouca transparência e as dificuldades no acesso à informação estão entre os fatores que favore- cem a corrupção. Como destaca a autora, a promoção de simplicidade, legalidade, clareza e transparência nos procedimentos deve ser uma das principais recomendações aos responsáveis pela contratação na admi- nistração pública.
Conclui-se, desta forma, que a ação direta sobre as oportunidades de prática de atos potencial ou efetivamente fraudulentos é a principal esfera de atuação da lei, seja durante o processo de sua elaboração (processo legislativo) ou em fase de implementação.
3. O combate à corrupção na legislação de contratação pública: Brasil e Portugal
Não há dúvidas de que a legislação, por si só, não tem poder para impedir ou punir integralmente a corrupção, dada a complexidade de suas origens. Conforme nos ensina MAIA (2016, p. 5), são vários os fatores explicativos da ocorrência da corrupção, dentre os quais:
1. Opacidade burocrática dos procedimentos administrativos (excesso de burocracia e pouca transparência);
2. Relação de conivência que tolera tanto a “pequena” corrupção (administrativa) quando a grande corrupção (política);
3. Sensação de que o criminoso não está fazendo o mal: falsa avaliação de que a corrupção é um “crime sem vítima”, quando na verdade provoca o “empobrecimento” do Estado, com desvio de recursos públicos e, consequentemente, falta de recursos para atividades essenciais e implementação de políticas públicas, o que vitimiza a sociedade como um todo e algumas pessoas, diretamente atingidas por esta privação de dinheiro, em especial;
4. Avaliação de prevalência da impunidade, na medida em que há uma tendência para a não denúncia, seja pela existência de acordos selados por “pactos de silêncio”, seja por receio de represálias, por parte das testemunhas;
5. As práticas corruptas são de difícil detecção e comprovação criminal: são crimes “de gabinete”, geralmente sem testemunhas e sem rastros.
Xxxx (2016, p. 8) também identifica quais são, em Portugal, os diplomas legislativos que reconhecem a ética (valores), a conduta (práticas adequa- das aos valores) e a transparência (procedimentos claros, que traduzam os valores da ética e condutas adequadas) como fatores de prevenção da fraude e da corrupção:
1. Constituição da República Portuguesa (artigos 266º a 271º);
2. Carta Ética da Administração Pública – 10 princípios éticos
3. Código de Boa Conduta Administrativa do Provedor de Justiça;
4. Decreto-lei n.º 73/2014, de 13 de maio (Modernização e Simplificação Administrativa – artigo 2º);
5. Lei n.º 35/2014, de 20 de junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – artigos 24º, 42º, 70º, 71º, 72º e 73º);
6. Decreto-lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro (Código do Procedimento Administrativo – artigos 3º a 16º);
7. artigo 1.º/4 do CCP/1.º-A/1 do NCCP (em destaque abaixo).
Desde primeiro de janeiro de 2018 está em vigor, em Portugal, o Novo Código de Contratos Públicos (NCCP). Trata-se da transposição das diretivas europeias de 2014 (texto de 2015) para a legislação interna. Nele há previsão expressa de mecanismos e procedimentos de combate à
corrupção e ao desperdício. O princípio da transparência encontra-se previsto no artigo 1.º/4 do CCP/1.º-A/1 do NCCP.
As Diretivas Europeias de 2014 firmaram-se no sentido de uma economia mais verde, inovadora e inclusiva do ponto de vista social. Ao mesmo tempo que houve a prescrição de observância da simplificação, desburocratiza- ção, transparência e flexibilização da legislação, enfatizaram que estas características não deveriam levar à desprocedimentalização, sob pena de vulnerabilizar mecanismos de controle.
No entanto, apesar das prescrições e da consciência acerca do fato que os excessos e a complexidade da legislação são fatores que induzem e facilitam práticas corruptas, enquanto as Diretivas de 2004 continham 500 artigos, as de 2014, apesar da prescrição de simplificação e desburocratização, vieram acrescidas de 60 artigos, fator que pode levar ao surgimento de contradições insanáveis, dado o grau de complexidade e volume de prescrições.
A elaboração de uma legislação clara, a profissionalização de quem decide em nome da administração e a previsão de mecanismos de fiscalização e controle são os principais aspectos que contribuem para o combate à corrupção.
A promoção da transparência e da publicidade, no entanto, também deve fazer parte dos procedimentos internos das empresas que contratam com a administração pública e atingir os funcionários públicos estrangeiros, como prevê o art. 8 da Convenção da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) contra o suborno transnacional:
Artigo 8 – Contabilidade
1 Para o combate efetivo da corrupção de funcionários públicos estrangeiros, cada Parte deverá tomar todas as medidas necessárias, no âmbito de suas leis e regulamentos sobre manutenção de livros e registros contábeis, divulgação de declarações financeiras, e sistemas de contabilidade e auditoria, para proibir o estabelecimento de contas de caixa “dois”, a realização de operações de caixa “dois” ou operações inadequadamente explicitadas, o registro de despesas inexistentes, o lançamento de obrigações com explicitação inadequada de seu objeto, bem como o uso de documentos falsos por companhias sujeitas àquelas leis e regulamentos com o propósito de corromper funcionários públicos estrangeiros ou ocultar tal corrupção.
Com a intensificação das relações internacionais e o avanço da globa- lização, o problema da corrupção atingiu escala mundial. Diante disso, o Estado brasileiro vem ampliando e fortalecendo sua relação com outros países, visando à cooperação e à integração na prevenção e no combate à corrupção. Com esse objetivo, o Brasil já ratificou três Tratados que pre- veem a cooperação internacional nessa área: a Convenção Interamericana contra a Corrupção, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em todos estes tratados, o princípio da transparência tem lugar de destaque.3
É muito importante ressaltar que a ênfase nos princípios da transparência e da simplicidade enfatiza a valorização da produção de leis que promovam o combate à corrupção, tanto na esfera preventiva quanto repressiva. Da mesma forma, também valoriza o papel do gestor público nesta tarefa, na medida em que cabe a ele, conforme destaca XXXXX (201, p. 19), promover a transparência, observando os deveres de zelar pela regular prestação de contas, contribuir para a fiabilidade da informação financeira e promover a transparência das operações e atividades.
4. Considerações Finais
A preocupação com a permanente observância dos princípios da trans- parência e da simplicidade durante o processo legislativo de elaboração das leis em geral, e das normas relativas à contratação pública em particular, é um importante mecanismo de controle e combate à corrupção.
Assim, ao elevar o princípio da Transparência (procedimentos claros) ao patamar de referência e pedra fundamental no combate à corrupção, torna-se possível uma avaliação de congruência entre ética (valores) e conduta (práticas adequadas aos valores.
É notório que a legislação tem limitações para incutir uma determinada ética em cada indivíduo e pode ter dificuldade para controlar todas as con- dutas, mas ao prever a transparência como exigência fundamental, tanto durante o processo legislativo (procedimento de elaboração das leis) como
3 Em razão da limitação do escopo do presente artigo, não traremos os detalhes do princípio da transparência em cada um destes diplomas legais.
na fase de implementação dos procedimentos de contratações públicas, torna-se possível a identificação dos riscos que possam ameaçar a lisura da contratação. Consequentemente, criam-se maiores oportunidades para exercer o controle, tanto o prévio quanto o posterior, das condutas dos agentes públicos que operam com contratações públicas.
Assim, resta claro que é necessário que se reconheça, na própria legisla- ção, a relevância da transparência como princípio norteador de todos os procedimentos e atos administrativos que envolvam a contratação pública (desde a elaboração das leis até a efetiva implementação), de tal forma que possam ser exigidos parâmetros objetivos de conduta que visem preservar o interesse público, a lisura dos procedimentos e o erário.
Pode-se concluir, com fundamento no exposto, que a existência de oportunidades para a prática de atos de natureza fraudulenta é fator determinante na proliferação da corrupção. Tratando-se de fato que tem natureza objetiva, relacionado a acontecimentos – oportunidades – que operam na dimensão organizacional (e não pessoal), a identificação das chamadas “áreas de risco” possibilita a adoção de medidas preventivas, previstas em lei.
Referências
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Deontologia jurídica do chief compliance officer no Brasil: articulação entre os atores públicos e privado na execução da política pública de enfrentamento da corrupção transnacional
Legal deontology of chief compliance officer in Brazil: articulation between public and private actors in the implementation of the public policy to face transnational corruption
Por Ivja Neves Xxxxxx Xxxxxxx
Resumo: A partir da análise da modelagem normativa, regulatória e de con- trole dos programas de compliance transplantados pela Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção Brasileira –, este artigo se propõe a analisar uma deontologia jurídica aplicável ao Chief Compliance Officer. Com aporte nos regramentos inter- nacionais – hard e soft law – que conformaram a internalização dos programas de compliance anticorrupção no Brasil, evidenciam-se os limites a serem observados na tradução dos direitos e deveres aplicáveis ao Chief Compliance Officer – CCO, com vistas a superar possíveis distorções na política pública e potencializar a contribuição desse profissional na configuração, implementação e execução de programas de compliance anticorrupção efetivos no Brasil. Aponta-se que a regulamentação de standards mínimos de atuação do CCO pode contribuir para a redução de assimetrias decorrentes do transplante legal dos programas de compliance, ao conferir segurança jurídica, minimizar riscos penais, fortalecer a inserção de novas ferramentas anticorrupção e assegurar que o Chief Compliance Officer seja percebido como ponte entre os atores público e privado no bojo da política de enfrentamento da corrupção transnacional. Conferem substância à análise, a revisão de literatura em produções acadêmicas brasileiras e internacio- nais, julgados relevantes à temática e surveys produzidos por associações privadas de atuação internacional.
Palavras-chave: Chief Compliance Officer; Corrupção Transnacional; Transplantes legais; Política Pública.
Abstract: Based on the analysis of the normative, regulatory and control modeling of the compliance programs transplanted by Law no. 12.846 / 2013 – Brazilian Anti-Corruption Law, this article proposes to analyze a legal deontology applicable to the Chief Compliance Officer. With the support of the interna- tional regulations – hard and soft law – that conformed the internalization of anti-corruption compliance programs in Brazil, the limits to be observed in translating the rights and duties applicable to the Chief Compliance Officer (CCO) are evident, with a view to overcoming possible distortions in public policy and enhance the contribution of this professional in the configuration, implemen- tation and execution of effective anticorruption compliance programs in Brazil. It is pointed out that the regulation of minimum standards of operation of the CCO can contribute to reduce asymmetries resulting from legal transplantation of compliance programs, by providing legal certainty, minimizing criminal risks, strengthening the insertion of new anticorruption tools and ensuring that the Chief Compliance Officer to be perceived as a bridge between public and private actors in the context of the policy of confronting transnational corruption. They give substance to the analysis, the literature review in Brazilian and international academic productions, judged relevant to the topic and surveys produced by private associations of international action.
Keywords: Chief Compliance Officer; Transnational Corruption; Legal transplants; Public policy.
1. Introdução
O presente artigo objetiva, a partir de uma síntese das modelagens normativa, regulatória e de controle dos programas de compliance transplan- tados pela Lei n. 12.846/2013 – aqui denominada de Lei Anticorrupção Brasileira– examinar a deontologia1 jurídica aplicável ao Chief Compliance
1 O termo deontologia deriva da junção entre as palavras gregas “déon, déontos”, que signi- fica dever, e “lógos”, que se traduz em discurso ou tratado. Nesse sentido, o termo deontologia expressa o tratado do dever ou conjunto de deveres e direitos, princípios e normas adotadas
Officer – CCO, por se tratar de profissional responsável pela configuração, implementação e execução dos programas de compliance anticorrupção no âmbito empresarial.
Tendo em conta o papel do direito e do jurista na conformação e imple- mentação de políticas públicas, pretende-se compreender os direitos e deveres aplicáveis ao Chief Compliance Officer segundo o desenho de política pública internalizado pela Lei Anticorrupção, a fim de mitigar assimetrias, situar o Direito como mecanismo de calibragem e autocorreção operacional da política2 e, com isso, contribuir para a efetividade dos programas de compliance, enquanto novel ferramenta da política pública brasileira de enfrentamento da corrupção transnacional.
Entende-se que quatro aspectos relacionados à conformação da política pública anticorrupção brasileira, apesar de impactar na compreensão deontológica do Chief Compliance Officer, têm sido negligenciados ou mal compreendidos por parcela da literatura nacional: 1) a recente inserção do problema público corrupção transnacional, em todas as suas nuances, na agenda nacional e internacional; 2) o deslocamento do eixo repressivo de enfrentamento da corrupção para o eixo preventivo da sociedade de risco; 3) o compartilhamento facilitado de tecnologia jurídica entre atores globais, a favorecer a formatação de estratégias conjuntas de enfrentamento da corrupção, calcadas em efetividade; 4) percepção dos stakeholders3 de que o problema público corrupção demanda envolvimento e colaboração do setor público (Estado) e do setor privado (empresas).
Malgrado denote problema público recorrente, o foco de análise e enfrentamento da corrupção transnacional difere do comumente empreen- dido: enquanto em âmbito nacional se pretende assegurar a moralidade
por determinado grupo ou profissional. É nesse sentido que o termo é adotado neste trabalho. Note-se, contudo, que a expressão anglo-saxônica “professional ethics” por vezes é utilizada como sinônimo de deontologia, a despeito do conteúdo ético não se reduzir à deontologia.
2 XXXXXXXX, Xxxxx X. O direito nas políticas públicas. In: XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de (orgs). A política pública como campo multidisciplinar. São Paulo: Editora Unesp, 2013, pg.193-199.
3 A literatura compreende o termo “stakeholders” como o conjunto de pessoas físicas ou jurídicas que afetam ou são afetadas pela atividade de uma organização. Nesse sentido, caracterizam-se como stakeholders os proprietários, gestores, acionistas, funcionários, colaboradores, fornecedores, clientes, dentre outros. No âmbito do compliance anticorrupção, portanto, o Estado pode ser visto como stakeholder.
pública, em âmbito internacional, objetiva-se garantir o equilíbrio do mercado global. Afora isso, não se pode olvidar o caráter transfronteiriço dos normativos que regulam o fenômeno da corrupção, sendo certo que em um contexto de globalização econômica, empresas transnacionais
– corporações – além de diretamente suscetíveis aos regramentos de soft e hard law4, detêm as condições necessárias à configuração, implan- tação e execução de um programa de compliance anticorrupção robusto.
A publicação da Lei n.12.846/13 – “Lei Anticorrupção”, além de suprir lacunas normativas internas quanto à responsabilização civil e administra- tiva de pessoas jurídicas que praticam atos contra a administração pública nacional ou estrangeira, inaugurou nova modelagem normativa, regulatória e de controle com a previsão dos programas de compliance5 anticorrupção. Nesse contexto, natural que os países recorram ao transplante ou compartilhamento de institutos ou de tecnologia jurídica advindos de ordenamentos jurídicos distintos6. Importa, pois, examinar como ou em que medida os novos instrumentos de enfrentamento da corrupção transnacio-
4 A expressão “hard law” é empregada para designar as normas de direito internacional que, em concreto, demandam atuação positiva dos Estados-Parte, sob pena de incidência de alguma sanção. No caso, osacordos e convenções internacionais se incluem nesse grupo. Diferentemente do termo “hard law”, a expressão “soft law” faz referência aos instrumentos elaborados por Estados e atores não estatais, não vinculantes juridicamente, mas que influenciam a conduta dos Estados, das organizações internacionais e dos indivíduos. Sobre a distinção, XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Internacionalização do direito penal. A gestão de problemas internacionais por meio do crime e da pena. São Paulo: Direito GV, 2004, p.45
5 Etimologicamente a palavra compliance deriva do latim complere e o seu significado está ligado à vontade de fazer o que foi pedido, ou de agir ou estar em concordância com regras, normas, condições. A literatura costuma fazer remissão ao verbo anglo-saxão “to comply”, que significa o agir conforme uma regra, um comando e/ou um regulamento. XXXXXX XXXXXXX, Xxxxxxx. Eficacia del sistema de prevención del blanqueo de capitales estúdio del cumplimiento normativo (compliance) desde uma perspectiva criminológica. Eguzkilore Cuadernos del Instituto Vasco de Criminologia, n.23, p.120.Apesar da Controladoria – Geral da União – CGU adotar como terminologia “programa de conformidade ou de integridade”, adotar-se-á neste trabalho o termo “programa de compliance”, por se tratar de terminologia consagrada na literatura internacional e a fim de facilitar futuras pesquisas.
6 XXXXXX, Xxxxxx. 2009 apud XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito societário e globalização: rediscussão da lógica público-privada do direito societário diante das exigências de um mercado global. São Paulo: Atlas, 2014, p.58.
nal – programas de compliance – podem ser internalizados em consonância com o desenho da política pública forjado na agenda internacional.
Para o escopo desta análise, a expressão “transplantes legais” ilustra bem a inserção dos programas de compliance no contexto brasileiro. A expressão “transplantes legais” foi concebida em 1974 por Alan Watson7 para indicar o movimento de uma norma jurídica ou de um sistema legal de um país para outro, ou de um grupo de pessoas para outro. Parcela da literatura faz alusão à construção de um direito global como resultado do transplante ou intercâmbio de institutos jurídicos de um ordenamento jurídico para o outro.
Com razão, no quadro de governança global, integram o conjunto normativo do compliance anticorrupção fontes de hard e soft law, tais como leis, recomendações, diretivas, tratados e convenções. Distintos atores influenciam, formal ou informalmente, a formatação de políticas públicas locais de enfrentamento da corrupção. Apesar do envolvimento dessa rede institucional de atores robustecer os desafios inerentes à política anticor- rupção, de outra sorte, fomenta a internalização de mecanismos alinhados à agenda econômica e a ideia de conferir papel ativo aos atores privados envolvidos em atividades sujeitas a risco de corrupção.
Bem por isso, os programas de compliance anticorrupção fomentam a autorregulação privada8, por considerar que rotinas e procedimentos de prevenção e controle serão melhor formulados por aqueles que possuem conhecimento específico do segmento econômico empresarial, do nível de relacionamento com o setor público e dos fatores de risco pertinentes 9. Não obstante as vantagens relacionadas à mitigação da burocracia estatal como vetor de eficiência e de estratégia de enfrentamento da corrupção, o desmantelamento de diversos escândalos financeiros envolvendo empresas gigantes do comércio internacional (Enron, WorldCom, Parmalat, Banco
7 XXXXXX, Xxxx. Legal Transplants: an approach to comparative law. Second Edition. The University of Georgia Press, 1993, p.21ss.
8 A rigor, não existe homogeneidade nas experiências de autorregulação existentes. De acordo com Xxxxxx Xxxxxxx, abarcam regulamentos internos de conduta, códigos de autocontrole, sistemas de normatização industrial, certificações, dentre outros. XXXXXX XXXXXXX, Xxxx. Introducción a la autorregulación. In: ARROYO JIMENÉZ, Xxxx; XXXXX XXXXXX, Adán (Dir). Autorregulación y sanciones. Valladolid: Lex Nova, 2008, p.19.
9 Entende-se “risco” como qualquer evento ou ação – interno ou externo – que represente ameaça, dificulte ou impeça a organização de atingir seus objetivos.
Barings dentre outros), relacionados à corrupção e à falta de transparência de informações corporativas fomentou o debate sobre o nível adequado de controle estatal bem como os meios disponíveis ao padrão regulatório da atualidade.
Nessa quadra, o estudo sobre os pressupostos e razões para atuação efetiva do Chief Compliance Officer se afigura essencial, notadamente pelos desafios relacionados à traduzibilidade deontológica dos direitos e deveres que lhes são aplicáveis, considerados o transplante legal sedimentado na Lei n. 12.846/2013 e o crescimento de normatizações nacionais e interna- cionais preconizando diversos deveres de compliance aos setores econômicos considerados de maior risco à prática de corrupção10.
O espectro de atribuições, poderes e deveres11, graus de responsabili- dade, inclusive penal, e de aproximação com autoridades estatais do Chief Compliance Officer ainda não foi claramente analisado no ordenamento jurídico brasileiro. De fato, tanto a Lei Anticorrupção quanto o seu decreto regulamentador (Decreto n. 8420/2015) restaram silentes quando à posição institucional e os deveres de compliance imputáveis ao Chief Compliance Officer.
Vale dizer: se a política pública anticorrupção transnacional aposta em novo instrumento, há de se perquirir e reduzir as possíveis falhas que possam distorcer sua aplicação. Quando adequadamente exercida, a atividade do Chief Compliance Officer produzirá resultados positivos na prevenção à corrupção, na preservação da imagem corporativa interna e externa e na construção de um ambiente seguro e ético, em consonância com os pilares de governança. Em contrapartida, quando não desenvolvida a contento, poderá distorcer os propósitos preventivos do instrumento, malferir a responsabilidade social da empresa e expor o Chief Compliance Officer à regulação, inclusive por meio de normas penais.
10 Vide Instruções na CVM, Resoluções do BACEN, UK Bribery Act, dentre outras.
11 Fala-se em poder-dever, porque sua atuação busca tutelar, em última análise, bens jurídicos de terceiros e da coletividade. No âmbito de criminal compliance voltado ao combate à lavagem de dinheiro, o CCO vem sendo considerado garantidor das normas de compliance. Segundo Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxx, nos programas de compliance da lei de lavagem de dinheiro, o CCO funciona como gatekeeper interno da própria instituição financeira, pois a lei incumbe a ele o poder para tomar decisões vinculadas aos deveres de compliance. XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Criminal Compliance na perspectiva da Lei de Lavagem de dinheiro. São Paulo: LiberArs, 2015, pg.189.
Dito isto, por meio do método dedutivo, a partir de revisão de literatura em produções acadêmicas nacionais e internacionais bem como análise de conteúdo de relatórios de organizações governamentais, busca-se examinar e demonstrar o desenho normativo, regulatório e de controle subjacente ao transplante legal dos programas de compliance enquanto ferramenta da política pública anticorrupção nacional e que inspira a posição institucional ocupada pelos Chief Compliance Officer na Lei n.12.846/2013. Empós, a partir do método indutivo, examinar-se-á alguns atos normativos internacionais de hard e soft law bem como surveys produzidos por organizações não-
-governamentais e associações privadas, a fim de corroborar o quadro de insegurança jurídica ao qual se submetem os Chiefs Compliance Officers, a partir da indefinição dos deveres e direitos de compliance e suscetibilidade quanto aos graus de responsabilização, que podem contribuir sobremaneira para consolidação de uma regulação estatal por intermédio de normas penais, em evidente prejuízo aos propósitos preventivos inerentes ao criminal compliance12.
O desenvolvimento do estudo foi estruturado em três partes. Na primeira parte, examina-se quais os atores e os influxos externos (hard e soft law) e internos subjacentes a tomada de decisão brasileira de enfrentamento da corrupção transnacional – Lei n.12.846/2013. Analisa-se a modelagem normativa, regulatória e de controle transplantada pela Lei Anticorrupção, a fim de conceber a função desempenhada pelos Chiefs Compliance Officers na formulação, execução e monitoramento dos programas.
No segundo momento ganham destaque algumas assimetrias normativas, regulatórias e de controle provocadas pela intraduzibilidade deontológica desse profissional no Brasil, indicando, ao final, a posição institucional que pode ser assumida pelo Chief Compliance Officer, a fim de contribuir para construção de um programa de compliance anticorrupção efetivo.
Ao cabo, pretende-se analisar e demonstrar a conveniência de uma refuncionalização da atuação do Chief Compliance Officer, que se mostre
12 Xxxxxx Xxxxxx cita como primeiro registro histórico de um “Programa de Compliance”, o caso Holland Furnace co. v. United States, no qual as Cortes norte-americanas se recusaram a considerar a empresa responsável pela violação praticada por seu funcionário, ao argumento de que haviam sido dadas instruções expressas a respeito da necessidade de agir em conformidade com a lei. Nota-se claramente o viés preventivo conferido ao instrumento desde sua origem. Disponível em: <http:xxx.xxxx.xxx/xxxx/xxxxxxxxxxxx0.XXX>. Acesso em: 19 nov 2017.
mais consentânea com os propósitos que inspiraram o transplante dos programas de compliance pela Lei n.12.846/2013. Nesse sentido, verifica-se a possibilidade de fixação de standards mínimos de atuação, a fim de conferir segurança jurídica, mitigar abusos e reduzir os riscos penais associados a sua atividade profissional.
2. Desenvolvimento
2.1. A transnacionalização da política de enfrentamento da corrupção na gênese do desenho normativo, regulatório e de controle brasileiro da Lei n. 12.846/2013
Com vistas a enfrentar o problema proposto nesse artigo, qual seja, exa- minar qual a deontologia jurídica aplicável ao Chief Compliance Officer– CCO, pretende-se, em breve síntese, ressaltar a influência que a compreensão da corrupção transnacional como problema público global, exerce na construção do desenho normativo, regulatório e de controle assentado na Lei Anticorrupção brasileira.
A partir da década de 1980, o debate acadêmico brasileiro sobre corrup- ção, começou a se afastar da compreensão associada ao desvio de função pública, em razão da topologia assumida pelo delito no Código Penal Brasileiro, para incorporar as transformações conjunturais ocorridas no mundo pós Segunda Guerra, relacionadas aos processos de privatização iniciados na Europa, aos avanços tecnológicos em matéria de comunica- ção e processamento de dados e, sobretudo, aos desafios provocados pela globalização econômica.
As pesquisas acadêmicas desenvolvidas por Susan Rose-Ackerman13 enfatizavam os prejuízos à eficiência econômica provocados pela corrupção. Segundo essa perspectiva, a corrupção deveria ser compreendida segundo a lógica de custos e benefícios sob controle das autoridades públicas e não apenas como desvio ético do servidor público. Ademais, na visão de Xxxx
13 XXXX-XXXXXXXX, Xxxxx. A economia politica da corrupção. In: A corrupção e a economia global. Xxxxxxxx Xxx Xxxxxx (org): tradução de Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2002, p.59.
Chayes14, o período pós Xxxxxxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxx, mormente pelo predomínio da lógica capitalista de acumulação privada, favoreceu a sensação de corrupção global generalizada. Desde então, o fenômeno da corrupção adquiriu um novo status: deixou de ser tratado como matéria de política interna dos países, despertando a atenção dos players do comércio mundial15.
Sob o influxo da globalização econômica, do crescimento do comércio mundial e da facilitação de fluxos financeiros entre países e empresas, a abor- dagem econômica da corrupção foi albergada pela Constituição Brasileira de 1988. Do mesmo modo, a abertura constitucional para criminalização primária16 de condutas econômicas pavimentou a compreensão da corrupção transnacional como delito econômico e como parte da criminalidade de “colarinho branco”, segundo o recorte proposto por Shapiro17.
Na prática, dado o consenso dos atores globais quanto aos prejuízos causados à eficiência, ao desenvolvimento econômico e às políticas funcio- nalizadoras de direitos sociais18, cada país assumiu a posição de devedor e credor de uma política pública anticorrupção transnacional, de acordo com os respectivos graus de corrupção e os sistemas de controle existentes19.
14 XXXXXX, Xxxxx. Thieves of State: Why corruption threatens global security. W.W Norton & Company.262pp.
15 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Corrupção como sintoma da barbárie contemporânea. In: XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxx; XXXX, Xxxxxx Xxxxx (Xxxxx.). Corrupção, ética e moralidade administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 141-159.
16 Entende-se como criminalização primária, a previsão, em lei primária material, de determinada conduta como crime.
17 De acordo com a autora norte-americana, o crime de colarinho branco se caracteriza pela violação de norma de confiança relacionada à ocupação do agente. Neste norte, tem-se que a corrupção transnacional se enquadra como crime de colarinho branco, pois objetiva, em última análise, resguardar a confiança nos mercados e o equilíbrio na regulação competitiva. XXXXXXX, Xxxxx X. Collaring the crime, not the criminal: reconsidering the concept of white-collar crime. In: NELKEN, Davi (org). White-collar crime. Brookfield: Dartmouth Publishing Company, 1994. 11-39.
18 XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. O Direito ao desenvolvimento como afirmação dos direi- tos humanos – delimitação, sindicabilidade e possibilidades emancipatórias. In: XXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx (coords) Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2010. (coleção Fórum Direitos Humanos, 2).
19 XXXXXXXXX, Xxxxxx X. A corrupção sob controle. Trad. Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx Ed., 1994, pgs.23.
O maior grau de interdependência20 entre países consolidou o recurso a estratégias de atuação coordenada, esforços de aproximação normativa e cooperação entre atores formais e informais do globo, especialmente para fazer frente ao fortalecimento, sofisticação e expansão da criminalidade organizada em ambiente transnacional.
A inserção do Brasil nesse contexto global de política pública anticorrup- ção decorre do relevo econômico brasileiro21, expressamente destacado no Terceiro Relatório do Grupo de Trabalho sobre suborno transnacional da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE22:
Com um PIB de 2,240 trilhões de dólares no ano de 2013, o Brasil figura entre uma das maiores economias no Grupo de Trabalho. Dentre os 41 membros do Grupo de Trabalho, em 2013, o Brasil ocupou a 6ª posição no ranking do PIB e 16ª no ranking de exportação de bens e serviços.
O Brasil salienta que as exportações e importações representam cerca de 21,2% do PIB brasileiro, e que o desenvolvimento econômico do país é con- duzido pelos mercados internos e serviços. O Brasil também conta com um elevado número de multinacionais, algumas delas figuram no ranking como as maiores empresas de aeronaves, metal e mineração do mundo.
Paralelamente, os prejuízos à economia brasileira advindos da corrup- ção também são representativos. Dados divulgados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP23, indicam que o custo médio
20 Vide: <xxxx://xxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxxxxxxxxxx-xxxxx-xxxxx-xx-
-paises-diz-ocde/> Acesso em: 15 jan. 2015.
21 Desde a ascensão econômica dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), organismos internacionais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, buscam consolidar um novo padrão desenvolvimentista no plano econômico e político. XXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxx. O conceito de política pública em direito. In: XXXXXXX XXXXX, M. P. Politicas Publicas – Reflexões para um conceito jurídico. Saraiva. UNISANTOS, SP, 2006, p.12.
22 Conforme indica o Relatório do Grupo de Trabalho sobre Suborno da OCDE. Disponível em: < xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxxx-xxxxxxxxxxxxx/...xxxx/.../xxxxxxxxx0_xxxxxxxxx. pdf>. Acesso em: 14 nov 2017.
23 Dados extraídos do Relatório corrupção: custos econômicos e propostas de combate disponível em: <xxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxx-xxxxxxxxx-x-xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxxxxxx-
-custos-economicos-e-propostas-de-combate/>. Acesso em: 28 dez 2017.
da corrupção no país oscila entre 1,38 a 2,2% do Produto Interno Bruto
– PIB (de R$ 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões), soma de valores semelhante ao total de investimentos do país destinados ao Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
Dados da Transparência Internacional, organização civil que lidera a luta contra corrupção no mundo, indicam que o Índice de Percepção da Corrupção (IPC – Corruption Perceptions Index) brasileiro atingiu a pon- tuação de 4,0 no ano de 2016, alcançando a 79º posição num universo de 176 países24. Vê-se que o risco de corrupção do Brasil é considerado alto no ambiente global25.
Acrescentem-se ainda os prejuízos sociais e políticos relacionados à concentração de renda. De acordo com o ranking publicado pela revista The Economist26, os setores da economia brasileira mais suscetíveis à corrupção concentram o maior número de bilionários e representam cerca de 2,5% do produto interno bruto – PIB do país27. Não bastasse, ao contrário de outros países28, o sistema judicial brasileiro, ainda que considerados os subsistemas civil e penal, não é efetivo na luta contra corrupção 29.
24 Dados extraídos do sítio eletrônico da transparência xxxxxxxxxxxxx.xxx.
25 Expondo, em breve síntese, algumas críticas à metodologia adotada na elaboração do índice divulgado pela Transparência Internacional, vide XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Percepções pantanosas. Revista Novos Estudos, 2005. De toda sorte, ante a dificuldade de se mensurar o fenômeno da corrupção, o IPC costuma ser considerado por formuladores de políticas públicas.
26 XXXXXX, Xxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx. A queda do oligarca. Revista Exame, Ano 51, nº3, 15/02/2017. Editora Abril, pgs. 78-85. O conceito de “capitalismo de laços” fora criado por Xxxxxx Xxxxxx, diretor para banco emergentes do banco americano Xxxxxx Xxxxxxx. O autor calcula o nível de compadrio em uma economia identificando quanto da riqueza do país está nas mãos de bilionários que atuam em setores que tendem a concentrar a corrupção. Em sentido oposto ao brasileiro, países como a Alemanha e o Japão, possuem 0,2% e 0,6% respectivamente, de capitalistas compadres.
27 Soma das riquezas produzidas pelo país em um ano.
28 Algumas pesquisas, sobretudo norte-americanas, revelam certa mudança na pers- pectiva de impunidade dos crimes de colarinho branco. A partir do ano de 1982, no período pós Watergate, houve um aumento na persecução penal dos criminosos de colarinho branco. XXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. O crime de colarinho branco, a (des) igualdade e o problema dos modelos de controle. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2000.
29 XXXX XXXXXX, Xxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx de. Corrupção e Judiciário: a (in) eficácia do sistema judicial no combate à corrupção. Revista Direito GV. São Paulo 7 (1), p.075-098, jan-jun 2011. Desde 1990, diversas pesquisa versaram sobre a seletividade negativa
Com vistas a suplantar as citadas mazelas econômicas e sociais decor- rentes da corrupção e alinhar-se à agenda global de redução da corrupção transnacional, o Brasil transplantou, com o advento da Lei n. 12.846/201330, os programas de compliance anticorrupção como instrumento de política pública31.
Xxxxxxx adverte que o processo de escolha de um “instrumento” ou “ferramenta” de ação pública consubstancia um método de identificação por meio do qual a ação coletiva é estruturada para resolver um problema público32. As ideias trazidas por Xxxxxx Xxxxxxx remetem à análise e com- preensão do desenho normativo, regulatório e de controle da corrupção transnacional internalizado pela Lei n. 12.846/2013, posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 8.420/2015.
O microssistema normativo brasileiro de enfrentamento da corrup- ção, a exemplo da Lei de Licitações e Contratos, da Lei de Improbidade
dos crimes de colarinho branco. Nesse sentido Xxx Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx destacou a impunidade da criminalidade financeira no Brasil, a partir da análise de todo o processo de filtragem nas instâncias de controle. XXXXXXXX, Xxx Xxxxxx Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
30 XXXXXXXX, Xxxxx X. Op.cit, p.20.
31 Segundo Xxxxxx Xxxxx, a gênese do trato acadêmico da política pública (como disciplina ou área do conhecimento) remonta aos Estados Unidos da América e buscou compreender “como e por que os governos optam por determinadas ações”. Vide XXXXX, Xxxxxx. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias. Porto Alegre, Ano 8, no. 16, jul/dez de 2006,
p. 20-45. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxx.xx/xxx/xxx/x00/x00x00> . Acesso em: 16 dez 2017, p.20-45.
32 “As a first step in this direction, it may be useful to specify more precisely what is meant by a “tool” or “instrument” of public action. This is no simple task since tools have multiple features and can be defined at any of a number of levels of abstraction. […] As used here, therefore, a tool, or instrument, of public action can be defined as an identifiable method through which collective action is structured to address a public problem”. XXXXXXX, Xxxxxx X. The new governance and the tools of public action: an introduction. Fordham Urban Law Journal. Volume 28, Issue 5, 2000, article 4, pg.1641-1650. Em sentido semelhante, XXXXXX define instrumento governamental como um método identificável por meio do qual a ação coletiva é estruturada para lidar com um problema público. É coletiva, porque envolve outras entidades, além do setor público. É estruturada porque o instrumento define a quem cabe a operação do programa governamental, os papeias de cada um e como eles se relacionam uns com os outros. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Instrumentos governamentais: reflexões para uma agenda de pesquisas sobre implementação de políticas públicas no Brasil. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro 45 (6): 1943-1967, nov/dez 2011. pg.1945-1946.
Administrativa, Lei de Ação de Civil Pública, Ação Popular, Legislação Antitruste e outros tantos diplomas não dispõem de ferramentas aptas a enfrentar o problema público corrupção, agora com contornos transnacionais33.
Seguindo nessa linha, a Lei Anticorrupção representou uma “janela de oportunidade” (“policy window”) para incorporação de novos instru- mentos de enfrentamento da corrupção transnacional34. A Exposição de Motivos do PL n. 6.826/2010 que originou a lei anticorrupção, evidencia que o projeto se fundou em duas premissas: uma teleológica (suprimento das lacunas e adequação aos compromissos internacionais firmados pelo Brasil – obrigações de “hard law” e de “soft law”) e outra instrumental (posto que fora acrescido ao aparato repressivo, mecanismos preventivos de enfrentamento).
Na visão de Silveira35, a Lei Anticorrupção brasileira demonstra a tomada de decisão dos policy makers em direção aos modelos de autorregulação, seguindo a concepção de corregulação público-privada. Segundo Sieber36,
33 A Lei de Licitações e Contratos (lei n. 8666/1993) além de não compreender a totalidade de condutas lesivas à Administração Pública, não atinge diretamente o patrimônio da pessoa jurídica, nem gera ressarcimento do dano ao erário. As condutas mais graves, então tratadas como crimes, não se aplicam às pessoas jurídicas mandantes ou principais beneficiárias da prática do delito. A lei também não apena condutas praticadas em desfavor da Administração Estrangeira. Do mesmo modo, a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.8.429/1992) pres- supõe a comprovação do ato de improbidade do agente público, com a identificação da culpa de todos os envolvidos. Também não contém previsão de condutas contra a Administração estrangeira. Em estudo de casos, Xxxxx Xxxxxxx relembra os seguintes escândalos: fraude na previdência social, anões do orçamento, máfia das sanguessugas, corrupção na SUDAM, impeachment de Collor, operação sucupira, bancos Marka e FonteCindam, escândalo dos precatórios, escândalo na construção do fórum trabalhista de São Paulo, mensalão.
34 Para os fins da lei anticorrupção, considera-se administração pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro, sendo ainda equiparadas à administração pública estrangeira as organizações públicas internacionais.
35 XXXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxx x Xxxxx, Xxxxxxx Xxxx. Compliance, direito penal e anticorrupção – São Paulo: Saraiva, 2015, p.315.
36 XXXXXX, Xxxxxx. Programas de compliance em El derecho penal de la empresa. Uma nuevaconcepcion para controlar lacriminalidad econômica. In- ZAPATERO, XxxxXxxxxx, NIETO XXXXXX, Xxx (Direct). El derecho penal econômico el la era compliance. Valencia. Tirantlo Blanch, 2013.
essa seria a formatação mais apropriada a “sociedade (de risco) global e complexa”, posto que adota como premissa a construção de uma influência estatal “branda” ao comportamento empresarial.
Assentado o contexto de transnacionalização da política anticorrupção brasileira, cumpre perquirir os contornos advindos da internalização do instrumento– programa de compliance – no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no que tange à deontologia aplicável ao Chief Compliance Officer, com vistas à consecução efetiva dos resultados almejados pela política pública anticorrupção transnacional.
2.2. O“transplantejurídico”dosprogramasdecomplianceanticorrupção
Hodiernamente, enfrenta-se a corrupção transnacional por meio do intercâmbio de experiências e harmonização de legislações nacionais de diversos países, a fim de evitar a criação de zonas de impunidade e compro- meter o equilíbrio de mercado. Em que pese a uniformidade regulatória se colocar como necessidade dos agentes econômicos no ambiente de interdependência global, o “transplante” de instrumentos forjados em sistemas estrangeiros suscita questionamentos e desafios.
Fala-se em transplante legal37 dos programas de compliance por se tratar de instrumento de política de origem norte-americana, surgido no contexto pós-crise de 1929. O termo “compliance” deriva da tradução literal do verbo anglo-saxão “to comply”, cujo sentido parece expressar uma obviedade – o dever de agir conforme uma regra, um comando e/ou regulamento. Etimologicamente, a palavra deriva do latim complere, cujo significado está atrelado à vontade de fazer o que foi pedido, ou de agir ou estar em concordância com regras, normas, condições.38
37 Parte da literatura cita como marco normativo expresso da existência de normas de compliance em nosso ordenamento jurídico a Resolução do Banco Central n. 2.554/98, que pôs em prática as Recomendações da Basiléia I, no ambiente das instituições finanneiras e combate à lavagem de Dinheiro. A título ilustrativo, vide XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Criminal Compliance na perspectiva da Lei de Lavagem de dinheiro. São Paulo: LiberArs, 2015, 208p.
38 XXXXXX XXXXXXX, Xxxxxxx. Eficacia del sistema de prevención del blanqueo de capitales estúdio del cumplimiento normativo (compliance) desde uma perspectiva crimi- nológica. Eguzkilore Cuadernos del Instituto Vasco de Criminologia, n.23, p.120.
Note-se, pois, que a palavra compliance traduz certa ambivalência: em sentido estrito, denota o dever de observância da normativa legal pertinente; em sentido amplo, esboça o caráter ético e de governança empresarial. Adota-se neste artigo a acepção ampla, por ressaltar o conteúdo ético e de responsabilidade social atrelado à incorporação de programas de compliance pelas empresas. Afora isso, auxilia na compreensão da prática de corrupção transnacional como indicativo de falha de governança pública e/ou privada. O “transplante” de instrumentos de políticas públicas pode suscitar três ordens de problemas: 1) ineficiência, inadequação e insuficiência do sistema vigente; 2) esforço de alinhamento com as premissas que lastreiam o mecanismo; 3) distorções na adaptação do mecanismo estrangeiro, quando
a harmonização constitui premissa da transplantação39.
A incorporação dos programas de compliance anticorrupção fora extraída do desenho de política contido nas convenções internacionais ratificadas pelo Brasil (hard Law) e nos dados coletados por organizações não governamentais (soft Law). A ratificação e promulgação da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais pelo Brasil – OCDE, representou a construção de um novo paradigma regulatório e de controle40bem como
39 XXXXXX, Xxxx. Op.cit.p, 21ss.
40 Art.3º da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais – OCDE: 1 A corrupção de um fun- cionário público estrangeiro deverá ser punível com penas criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas. A extensão das penas deverá ser comparável àquela aplicada à corrupção do próprio funcionário público da Parte e, em caso de pessoas físicas, deverá incluir a privação da liberdade por período suficiente a permitir a efetiva assistência jurídica recíproca e a extradição. 2 Caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico da Parte, não se aplique a pessoas jurídicas, a Parte deverá assegurar que as pessoas jurídicas estarão sujeitas a sanções não-criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas contra a corrupção de funcionário
público estrangeiro, inclusive sanções financeiras.
3 Cada Parte deverá tomar todas as medidas necessárias a garantir que o suborno e o produto da corrupção de um funcionário público estrangeiro, ou o valor dos bens corres- pondentes a tal produto, estejam sujeitos a retenção e confisco ou que sanções financeiras de efeito equivalente sejam aplicáveis.
-da.../pdf>. Acesso em: 19 de set. 2015.
o compromisso com a efetividade e equivalência dos instrumentos de implementação.
A abertura da agenda brasileira promovida pela Convenção da OCDE41 fomentou a participação brasileira em inúmeros tratados regionais anti- corrupção, dentre os quais, destacam-se a Convenção Interamericana contra a Corrupção no âmbito da Organização dos Estados Americanos
– OEA, assinada em 1997 e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, assinada em 09 de dezembro de 2003 na cidade de Mérida, no México. No plano normativo, legitimada pelo quantitativo expressivo de Estados participantes, a Convenção de Mérida fixou relevantes diretrizes de política, consubstanciando uma tomada de decisão global pelo trato político-criminal e cooperativo de enfrentamento do problema público corrupção.
Evidente que para assegurar a legitimidade dos tratados internacionais, as normativas fixadas nesses fóruns não podem ser reduzidas a meras cartas de boas intenções. Adquirir efetividade é, sobretudo, acompanhar a implementação das medidas, ocupar-se dos resultados alcançados, assegurar transparência e accountability.
Extraem-se desses documentos o fomento à adoção de medidas preventi- vas, de perfil dissuasório, em contraponto as medidas repressivas, post facto, voltadas especialmente a recuperação futura dos prejuízos suportados pelo dinheiro público desviado. Importante destacar que a busca por efetividade no enfrentamento da corrupção não reflete apenas uma demanda do Estado (dada à ineficiência demonstrada no controle pontual deste problema público), mas, sobretudo uma demanda do setor privado interessado em se manter integrado, em condições equilibradas no ambiente comercial global e resguardado em termos reputacionais.
Sem embargo da influência norte-americana na concepção dos programas de compliance anticorrupção, são claras as irritações jurídicas provocadas pela tentativa de se reproduzir fielmente institutos do sistema anglo-saxão em um sistema de civil Law, e que precisam ser superadas. Para os críticos da tese de Xxxxxx acerca de “transplantes jurídicos”, as diferenças exis- tentes entre os sistemas jurídicos anglo-saxão (EUA) e romano-germânico (Brasil) desaconselhariam o transplante legal dos programas de compliance
41 XXXXX, Xxx. Brazil: The creaking champions. Financial Times, 2013, conforme terceiro relatório do grupo de trabalho sobre suborno da OCDE.
anticorrupção, dada a impossibilidade de transposição do instrumento “puro”, desconectado dos valores sociais que o conformam.
Sem embargo do paralelo infeliz que a expressão “transplante jurídico” induz, o que justifica o transplante jurídico dos programas de compliance é justamente o sentido de mudança e aperfeiçoamento da política, seja pela ineficiência dos mecanismos então vigentes no Brasil, seja pela necessi- dade de integração e coordenação global com os propósitos da política. Nesse sentido, irritações jurídicas provocadas pelo transplante, ainda que decorrentes dos valores sociais que lhes são subjacentes, são desejáveis e até esperadas.
Nesta senda, fundamental que o processo de transplantação guarde consonância com as premissas do instituto adotadas no país de origem e com as finalidades que motivaram a transplantação42. Bem por isso, não cabe aqui construir um programa de compliance à brasileira, totalmente apartado das diretrizes que justificaram sua criação. Impõe-se a harmo- nização de ordenamentos. Nessa senda, o Chief Compliance Officer deve assumir o protagonismo no processo de implementação dos programas de compliance anticorrupção.
2.3. O Chief Compliance Officer enquanto ator privado-público na implementação dos programas de compliance anticorrupção brasileiros
Em um cenário ideal, todos os atores devem, em alguma medida, orientar esforços e atuar no sentido de assegurar efetividade aos instrumentos de enfrentamento da corrupção transnacional. Acredita-se que a efetividade dos programas de compliance demanda o estabelecimento de um ambiente cooperativo entre o Estado e empresas privadas – corporações internacio- nais – sem descuidar do papel desempenhado por cada um nesse processo (empresa- conhecimento do mercado e Estado – contenção de abusos, dado o fim último de atendimento ao interesse público).
42 Trata-se, na classificação proposta por Xxxxxxxx Xxxxxxxx de uma espécie de norma- tização planificada voluntária ou informação provocada. Considera-se que a discussão se deu na origem, no ambiente transnacional, razão pela qual subsiste um esforço para uniformização ou harmonização dos textos de lei.
Aqui, a moldura adotada na interação público-privada deve ficar clara, para que os atores envolvidos na consecução conjunta da política pública disponham da segurança jurídica necessária para atuar. Cumpre ao Estado manejar adequadamente os incentivos necessários a atuação efetiva do setor privado. O ideal é encontrar o limite que sirva para coibir abusos do agente privado, mais sem excessos fiscalizatórios ou regulatórios, especialmente, porque, com visto, o excesso de regras favorece um ambiente propício à corrupção43.
De pronto, ressalta-se o relevo da função desempenhada pelo Chief Compliance Officer, eis que situada no vértice desse novo modelo de relaciona- mento entre o setor público e privado na consecução de políticas públicas. A despeito do protagonismo na transplantação e efetividade dos programas de compliance anticorrupção, o conjunto de direitos e deveres aplicáveis ao Chief Compliance Officer ainda é pouco conhecido ou mal compreendido pela literatura nacional.
Quando do surgimento da profissão de Chief Compliance Officer, no ambiente pós-crise de 1929, sua atividade se aproximava daquela exercida por advogados, pois consistia, precipuamente, em atestar a aderência das instituições financeiras ao conjunto de regras, diretrizes e normas incidentes sobre a atividade por exigência do Federal Reserve System
– FED44.
Desde então, sucessivas alterações regulatórias na concepção dos instru- mentos de compliance têm ampliado o rol de atribuições do Chief Compliance Officer45. Na fase denominada pelo mundo corporativo de Compliance 2.0, além de checar a aderência normativa, o CCO passou a analisar políticas e diretrizes de gerenciamento de risco46. Na fase atual de desenvolvimento da atividade, denominada Compliance 3.0, o CCO assume uma posição mais
43 ROSE-XXXXXXXX, Xxxxx. A economia politica da corrupção. In: XXXXXXXX, Xxx Xxxxxx (Org). A corrupção e a economia global. Tradução de Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2002.p.63.
44 Criado no ano de 1910.
45 Disponível em: <xxxxx://xxx0.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxx/Xxxxxxxx/xx/Xxxxxxxxx/ risk/us-aers-download-the-full-report-the-chief-compliance-officer-05012015.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2017.
46 Xxxxxxxxx, Xxx Xxxxx. Governança Corporativa em foco: inovações e tendências para a sus- tentabilidade das organizações. 2014.
estratégica e menos burocrática na empresa47. Esse modelo de inserção transversal do Chief Compliance Officer na governança das corporações segue as conclusões de um estudo realizado pela International Organization of Securities (IOSCO) desde o ano de 200348, com o objetivo de estudar os papéis dos profissionais responsáveis pela conformidade no setor de valores mobiliários.
De pronto, pode-se dizer se tratar de função em processo de constru- ção deontológica. Na visão de Ana Candeloro49 o estudo promovido pela IOSCO já demonstrava a necessidade de uma compreensão holística sobre a posição estratégica ocupada pelo Chief Compliance Officer (CCO) na orga- nização, cabendo-lhe, inclusive, oferecer soluções criativas e inovadoras as situações-problema que lhes fossem apresentadas, em evidente papel de décimo homem50, a fim de promover a sustentabilidade da instituição e a sofisticação da estrutura de governança corporativa51.
Para além da concepção dos programas de compliance em geral, verifica-se uma evolução na compreensão da função desenvolvida pelo Chief Compliance Officer, sobretudo após os sucessivos escândalos contábeis ocorridos nos EUA na década de 1990, a exemplo da Xxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx, WorldCom, Xerox. Além do viés preventivo, no sentido de evitar a ocorrência de delitos, os Chiefs Compliance Officers passaram a ser responsáveis pela criação de
47 Xxxxxxxxx, Xxx Xxxxx. Compliance 360º – riscos, estratégias, conflitos e vaidades no mundo corporativo. 2015.
48 Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxx/xxx/XXXXXXX000.xxx>. Acesso em: 05 mar.2017
49 Sobre o tema, vide <xxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/xxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxx-
-officer-assume-papel-advocatus-diaboli>. Acesso em: 10 maio 2016.
50 Xxx Xxxxxxxxx define como atuação segundo “décimo homem” aquela que suplanta a cultura do olhar retrospetivo, a partir dos erros cometidos, apreendendo-lhe como lição de casa. Segundo a autora, o CCO deve assumir postura contestatória, na contramão do consenso, tendo como norte prejuízos reputacionais à empresa. Uma previsão de riscos eficiente demanda a descoberta do imprevisível, do improvável. Trata-se de se preocupar com o impoderável no ambiente corporativo.
51 Xxxxxxxx a esta concepção holística, o Vice – Presidente da PFIZER sustenta que o CCO precisa ter consciência e compreensão quanto aos riscos em todas as facetas de atividade da empresa, incluindo pesquisa, fabricação, marketing, desenvolvimento de estratégias de negócios e inovações. Vide Deloitte Insights Video, o Chief Compliance Officer of the Future: abraçando um risco Visão Inteligente. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxx.xxx/xxxxx?xxXx0xXx00XXx>. Acesso em: 16 nov 2017.
mecanismos capazes de identificar delitos corporativos tão logo ocorressem. A promulgação da Sarbanes-Oxley Act em 30 de julho de 2002, favoreceu a contratação e capacitação de Chief Compliance Officers pelas como membros independentes das empresas52. Por sua vez, com a aprovação pelo congresso norte-americano do Dodd Frank Wall Street Reform53 e do Consumer Protection Act em 21 de julho de 2010, o Chief Compliance Officer passou a figurar como parte relevante da equipe de gestão das empresas, com disponibilização maior de recursos materiais e humanos, mais responsabilidade e maiores salários54.
O país europeu com legislação anticorrupção mais avançada é o Reino Unido. O United Kingdom Bribery Act entrou em vigor em 01 de julho de 201155. Aplica-se a qualquer pessoa, autoridade pública ou não, vinculada à atividade empresarial no Reino Unido. Dentro da modelagem dos pro- gramas de compliance do Reino Unido, o Chief Compliance Officer possui independência suficiente ao desempenho das funções que lhe são atribuídas de forma objetiva, acesso direto à alta administração, expertise no segmento econômico da empresa e acesso irrestrito aos registros relevantes da empresa. Exerce a função de aconselhamento sobre regras, regulamento e normas em todas as linhas de negócio de forma coordenada com outras funções de controle; mantém comunicação eficaz com órgãos reguladores; promove a estruturação e desenvolvimento de negócios por meio de soluções criativas
52 Essa lei afeta qualquer empresa nacional ou estrangeira que mantenha American Depositary Receipts – ADRs negociadas na New York Stock Exchange – NYSE. Nesse contexto, aplica-se a inúmeras empresas brasileiras, a exemplo da Petrobrás, Ambev, Bunge Brasil, GOL linhas aéreas, Brasil Telecom, Grupo Pão de Açúcar, Banco Bradesco, Banco Itaú, TIM, Vale S/A, Natura Comésticos S/A, CLARO, GERDAU, CSN, Eletrobrás, dentre outras. Em adendo, registre-se que a regra n.342 da NYSE obriga as empresas associadas a indicarem um sócio diretor executivo responsável pelo controle interno e conformidade. Ao Chief Compliance Officer cumpre examinar e monitorar todo o procedimento de conformidade da organização.
53 Advinda de iniciativa do Presidente do Comitê de Serviços Financeiros Xxxxxx Xxxxx e pelo ex-Presidente do Comitê Bancário do Senado Xxxxx Xxxx. Disponível em: <https:// xxx.xxx.xxx/xxxxx/xxxx/xxxxxxxxxxxxxxxx-xxx.xxx>. Acesso em: 06 nov. 2017.
54 17 CFR § 3,3 (d), (e), (2012)
55 Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/0000/00/xxxxxxxx>. Acesso em: 22 abr 2016.
em questões regulatórias e de expansão empresarial; define os regulamentos e padrões éticos da empresa56
Cotejando-se os aspectos considerados de maior relevo na experiência estrangeira, sem pretensão de esgotar as múltiplas nuances envolvidas no tratamento jurídico do chief compliance officer, nota-se, em síntese, que as boas práticas globais envolvem: 1) autonomia da área com políticas bem definidas e escritas; 2) fomento e administração pela alta diretoria;
3) treinamentos robustos – interno e externo; 4) delegação de poderes e responsabilidades definidas; 5) fiscalização e disciplinas constantes;
6) monitoramento e auditoria de riscos; 7) melhoria contínua do programa. A despeito disso, boa parte dessa modelagem incorporada formalmente pela Lei n. 12.846/2013, não tem sido adequadamente traduzida pelos ope- radores do direito, o que tem gerado assimetrias normativas, regulatórias e de controles capazes de comprometer os propósitos do instrumento e
assim afetar a efetividade do programa de compliance anticorrupção.
Embora parcela da literatura57 observe de forma entusiasmada a popu- laridade dos programas de compliance, sobretudo após a promulgação da Lei Anticorrupção brasileira58, parcela da literatura se mantém reticente quanto ao potencial do instrumento. Em boa medida, esse descrédito59 é motivado por certa assimetria de informação quanto às atividades ou fun-
56 Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxx/xxx/XXXXXXX000.xxx>. Acesso em: 14 out. 2015.
57 Dentre outros autores, XXXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxx; XXXX-XXXXX, Xxxxxxx. Op.cit. p.303; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Compliance e Lei Anticorrupção nas empresas. Revista de Informação Legislativa. v.52.n.205.p.87-105.jan-mar 2015. Disponível em: <xxxx://xxx0.xxxxxx.xxx.xx/xxxx/xxxx/xx/000000>. Acesso em: 17 dez 2017. XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Programas de Compliance Anticorrupção: importância e elementos essenciais. In: DEL DEBBIO, Xxxxxxxxxx e outros (coord). Temas de Anticorrupção S Compliance. Rio de Janeiro. Elsevier, 2013. p.168.
58 Ainda que se possa indicar que a obrigatoriedade dos programas de compliance no Brasil provenha do atendimento às recomendações da Basileia I e posterior previsão na lei de lavagem de dinheiro, inequívoco que o instrumento ganhou em popularidade com a promulgação da Lei Anticorrupção no ano de 2013.
59 Vide à alusão a “indústria do compliance” Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxx.xxx.xx/ noticia/a-campanha-anticorrupcao-e-a-industria-do-compliance-por-andre-araujo>. Acesso em: 07 jan. 2016. No mesmo sentido, o jornalista Xxxxxxx Xxxx. Disponível em: <xxxx://xxxxx. xxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxx/xxxxx-xxxxx-xxxxxx-xxx-xxxxxxxx-xxxxxxxx-xx-xxxxxxx-
-do-compliance.html>. Acesso em: 17 fev. 2017.
ções de fato assumidas pelo Chief Compliance Officer. Por vezes as atividades de compliance, controle interno, auditoria e jurídica são tratadas como se fossem sinônimos, esboçando certa redundância, modismo ou incremento desnecessário de custos empresariais.
A desinformação quanto aos propósitos do instrumento bem demonstra a recorrente falta de compromisso com modelos mais eficientes de gestão60, que procuram romper a lógica do capitalismo de compadrio61, tão recor- rente no Brasil62. Nessa linha de intelecção, os programas de compliance não podem ser vistos como custo63. Malgrado algumas pesquisas concluam, sob a ótica da análise econômica de direito, que a regulação premial ou os incentivos contemplados na lei anticorrupção brasileira não sejam suficientes para estimular a adoção de programas de compliance64, certo é que o conjunto de medidas e instrumentos compreendidos pela política
60 Na visão de LAUFER, “Em um sentido, a transformação da lei que acompanhou o movimento da cidadania da boa governança sugeriria uma troca bem-vinda. [...] Ademais, estratégias de comando e controle fundamentadas em uma leitura literal da lei não são páreo para tal autorregulação ou estilos menos formais de regulação cooperativa. Contudo, onde há risco de que a autorregulação e demonstrações de boa cidadania sejam incentivos de policiamentos não determinantes, a troca é qualquer coisa, menos positiva”. Apesar da visão pessimista quanto ao movimento de boa governança corporativa, o autor afirma que a ausência de evidência empírica de apoio a boa cidadania corporativa não pode ser entendida como prova de falha desse movimento de integridade. XXXXXX, Xxxxxxx X. Ilusões de Compliance e Governança. In: SAAD-DINIZ e outros (org). Tendências em governança corporativa e compliance. São Paulo. LiberArs, 2016, p.15.
61 Atribui-se a expressão “capitalismo de compadrio” às empresas que procuram atingir sucesso empresarial por meio de associações espúrias com o poder público e não por melhorias de gestão ou busca por eficiência. Sobre uma faceta desse capitalismo e o surgimento das empresas chamadas de “campeões nacionais” vide reportagem publicada na Revista Exame, intitulada “Como nascem os campeões nacionais”. Revista Exame. ed. 1139, ano 51, n.11. de 07 de junho de 2017. Editora Abril.
62 Em entrevista concedida à revista exame, o professor de ciência política da Universidade Stanford, Xxxxxxx Xxxxxxxx, acredita que o problema de fundo da corrupção brasileira é o entreleçamento entre a elite política e empresarial acostumada com corrupção. Revista Exame, ed.1139, ano 51, n.11, 07 de junho de 2017.
63 XXXXXX, Xxxxxxx. Reflexões sobre a Lei n. 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas – Lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12.n.47, p.33-43, out/dez.2014.
64 DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx. Lavagem de dinheiro – ideologia da criminalização e análise do discurso.Ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012. p. 246.
anticorrupção pode complementar ou fornecer incentivos adequados ao instrumento65.
São adotados no Brasil, basicamente, quatro modelos de inserção do compliance e funcionalização do chief compliance officer na estrutura empre- sarial: (a) o compliance officer integra a área de gestão de riscos, sem qualquer comprometimento com a questão ética da empresa; (b) o compliance officer se vincula ao departamento jurídico, tangenciando a implantação do pro- grama em si; (c) cada unidade da empresa assume funções de compliance, sem indicação de um profissional específico, responsável pelo programa. Ao final, cada um dos setores reporta-se ao departamento jurídico; (d) o compliance officer possui autonomia, vinculando-se ao CEO, diretor finan- ceiro ou conselho de administração da empresa66. A presença de modelos tão distintos reflete a falta de clareza quanto à atividade desenvolvida pelo Chief Compliance Officer.
Outra assimetria verificada durante a execução da política pública tem caráter regulatório. Tendo em conta as premissas estabelecidas pela política pública, os programas de compliance anticorrupção não podem ser utilizados predominantemente como instrumento de individualização de responsabilidade penal no ambiente corporativo. Nesse contexto de dis- torção regulatória, a atividade do Chief Compliance Officer passa, ela mesma, a se constituir um risco67. Ao contrário de fortalecer o papel colaborativo desse profissional na interface com o Estado, a distorção regulatória o torna alvo dos órgãos de controle.
65 Pesquisa realizada pela consultoria Delloite em setembro de 2014 com 124 correspon- dentes pertencentes, em sua maioria, a setores altamente regulados no Brasil, considerados com alto risco de corrupção (Bancos e serviços finaceiros, petróleo, gás, mineração e construção civil), identificou que 60 % das empresas tem um profissional dedicado a área de compliance. Pesquisa “Lei anticorrupção – um retrato das práticas de compliance na era da empresa limpa”. Disponível em: <xxxxx://xxx0.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxx/Xxxxxxxx/xx/Xxxxxxxxx/xxxx/ LeiAnticorrupcao.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.
66 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. As posições de garante na empresa e o criminal com- pliance no Brasil –primeira abordagem. In: XXXXX, Xxxxx Xxxxxx (org). Compliance e direito penal. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p.188ss.
67 SCANDELARI, Xxxxxxx Xxxxxx. As posições de garante na empresa e o Criminal com- pliance no Brasil: primeira abordagem. In: XXXXX, Xxxxx Xxxxxx (org). Compliance e direito penal. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p.191ss.
A manutenção de assimetrias regulatórias e de controle e a flexibili- dade funcional normalmente associada ao Chief Compliance Officer (CCO) acaba contribuindo para um washing compliance, expondo-o à indevida responsabilização criminal, ora pela tradução inadequada de precedentes estrangeiros; ora, pela leitura amorfa (não cristalina) da legislação nacional sobre lavagem de dinheiro ou organizações criminosas.
Como dito alhures, o modelo regulatório escolhido pelo policy maker no enfrentamento da corrupção transnacional – autorregulação regulada – expressa a ideia de cooperação funcional na formatação de novos padrões de gestão e condução da atividade empresarial68.
No papel de condutor dos programas de compliance anticorrupção, o Chief Compliance Officer acaba exercendo uma espécie de múnus público, afastando-se da lógica oposicional entre o público e o privado. Além disso, por centralizar as atividades do programa e conhecer em profundidade as vulnerabilidades do segmento econômico de atuação, o Chief Compliance Officer assegura avaliações qualitativas do instrumento e substancia a cooperação funcional entre o público e o privado no enfrentamento da criminalidade corporativa e preservação da atividade econômica.
3. Conclusão
Na visão de Xxxxx Xxxxxxxx, os juristas podem e devem contribuir com o aperfeiçoamento das políticas públicas, com vistas a tornar mais efetivos e eficazes os direitos. Sob esse norte, cumpre ao jurista selecionar e formatar os meios a serem empregados segundo os objetivos preestabelecidos da política.
Aqui, a traduzibilidade deontológica do Chief Compliance Officer se afigura essencial, mormente porque sua atuação pode ser potencializada ou enfraquecida, seguindo a lógica de equilíbrio entre incentivos e puni- bilidade já referida no texto.
A inequívoca incorporação de normativos internacionais de hard e soft law como fonte da legislação anticorrupção brasileira pode falsamente
68 O modelo normativo brasileiro da Lei n. 6.404/76 contempla claramente a mistura de normas cogentes com normas dispositivas.
incutir no observador da política pública a ideia de adequação às pre- missas internacionais quando, em verdade, essa adequação é meramente simbólica69.
A legitimidade do Direito em sede de políticas públicas anticorrupção
– law matters- dar-se-á na medida em que ele viabilizar transparência e possibilidade de controle adequado. Sendo certo que o direito serve para cristalizar decisões políticas, nessa condição, pode contribuir para superação de assimetrias e consolidação do ferramental necessário – sanção premial ou punitiva –, servindo como canal de transparência e segurança jurídica. Assentada a compreensão da atividade do Chief Compliance Officer xxxxxxxx à evolução conceitual dos programas de compliance, sustenta-se que a implantação de um programa de compliance efetivo, comprometido com a boa governança e não apenas com os possíveis benefícios legais das empresas, pressupõe um Chief Compliance Officer independente70, autônomo e protagonista na interface público-privada. Esse modelo é visto como opção mais consentânea com o desenho dos programas de compliance anticorrup- ção transnacional, sobretudo em mercados fortemente regulados como o brasileiro, onde os riscos de ocorrência de práticas corruptas costumam
ser maiores.
Ante as assimetrias regulatórias e de controle verificadas, a compreensão do Chief Compliance Officer enquanto profissional responsável pela elaboração, implantação e fiscalização dos programas de compliance anticorrupção nas empresas, precisa ser clara e expressamente traduzida no Brasil. A ausência de standards mínimos definidos, permite que cada empresa tenha ampla liberdade de inserção do Chief Compliance Officer (CCO) em sua estrutura, definindo o conjunto de direitos e deveres que lhes são aplicáveis por
69 XXXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxx. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo. Xxxxxxx, 2015, p.67.
70 De acordo com a pesquisa CEO Access Study elaborada pela Strategy&, consultoria estratégica da PWC, o número de CEOs afastados de seus cargos por desvios éticos nas empresas de capital aberto no mundo teve um aumento de 36 % nos últimos 05 anos. Dentre os países integrantes do BRICs, o Brasil apresentou o maior aumento, sendo que 141% do número de CEOs foram afastados por má-conduta. Nesse contexto, fica clara a importância de se assegurar a independência da atividade do CCO. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxxx. xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxx/0000000/xxxxxx-xxxx-xxxxxxxxx-xxx-xxxxxxx-xxxxxxxxx-
-aumentou-brasil-tem-maior>. Acesso em: 30 maio 2017.
instrumento contratual, a partir de critérios meramente pragmáticos ou conjunturais.
A ausência de um código de governança corporativa nacional, formal- mente instituído, como dispõe os Estados Unidos e o Reino Unido71 agravam o quadro de insegurança jurídica do Chief Compliance Officer. Esse modelo coloca o CCO em posição de alta vulnerabilidade jurídica, em evidente prejuízo ao potencial de atuação na consolidação da política pública, em descompasso com a condição de representante do compromisso público-
-privado de atuação cooperativa em prol da efetividade do instrumento no enfrentamento da corrupção e em desequilíbrio com os riscos penais assumidos, inclusive pessoais.72
Scandelari reconhece que no Brasil tem se tornado cada vez mais frequente a colocação do chief compliance officer como bode expiatório nos programas de compliance anticorrupção. Em um cenário de insegurança jurídica, a ameaça real de sanção penal pode comprometer a disposição do Chief Compliance Officer a bem desempenhar suas funções, descobrindo e denunciando irregularidades e infrações, inclusive quando praticadas pela alta administração, seja pela ameaça de perder o emprego, seja pela ameaça de assumir tarefas regularmente formalizadas no contrato de trabalho, sem, de fato, dispor de condições fáticas para desempenhá-las. Atribuir a cada empresa a possibilidade de manejar funções e obrigações sem qualquer comprometimento com standards mínimos de atuação des- ses profissionais pode comprometer o escopo do programa de compliance enquanto instrumento de enfrentamento da corrupção transnacional. Daí ser desejável que seus riscos pessoais sejam mitigados.
Diferentemente da heterogeneidade essencial à efetividade de um programa de compliance robusto, no sentido de adequação do instrumento aos riscos próprios de cada realidade empresarial, a heterogeneidade de
71 Segundo pesquisa publicada pela FGV-RJ, intitulada “Diagnóstico institucional: primeiros passos para um plano nacional anticorrupção”. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; RAGAZZO, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx (coord.). Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, 2017, 159f.
72 XXXXXXXX, Xxxxxxxxx. La posición juridical (en especial, posición de garante) de los compliance officers. Traducción a cargo de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx. In: XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxx Xxxxx; XXXXX XX XXXXXX XXXXXX, Xxxxx. Compliance y teoria del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p.211ss.
direitos e deveres aplicáveis ao chief compliance officer não se revela salutar. Sustenta-se, pois, que o Estado auxilie na superação das assimetrias identificadas, evitando-se um indesejável vazio, propiciador de distorções regulatórias e insegurança jurídica.
Não se pode olvidar que a ausência de standards mínimos propicia a aplicação de normativas e regulamentações esparsas e descoordenadas pertencentes a cada uma das categorias que podem ver seus profissionais atuando como Chief Compliance Officer. Nesse contexto, a procura por determinada categoria profissional a fim de se desvencilhar dos deveres de compliance e do modelo colaborativo público-privado que informa o compliance anticorrupção, compromete severamente os propósitos do instrumento e o desenho regulatório e de controle da política pública anticorrupção. De fato, deve servir como critério definidor da obrigação ou não de observância aos deveres de compliance a natureza da atividade desenvolvida.
A fixação de standards mínimos de atuação, noutro giro, não reflete a mera reprodução da herança romano-germânica de disciplina jurídica, no sentido de que regras jurídicas são capazes de corrigir, por si só, comportamentos indesejados73. Contudo, os inúmeros casos de corrupção identificados em empresas que possuíam programas de compliance estruturados podem indicar um problema de enforcement na conformação desses instrumentos. Nessa linha, o estabelecimento de standards mínimos de atuação ao Chief Compliance Officer, com previsão de garantias, pode fornecer o incentivo necessário à adoção de programas de compliance anticorrupção efetivos. Sem prejuízo, por certo, de possíveis acréscimos de outros mecanismos, a exemplo do aumento de benefícios legais74.
Ao cabo, não se desconhece que características basilares da atividade empresarial como competitividade e lucratividade não são facilmente com- patibilizadas com as premissas que justificam o compliance anticorrupção. A função de Chief Compliance Officer será submetida a constantes dilemas éticos, se não estiver bem delimitada. Interesses comerciais poderão
73 XXXXXX, Xxxxxxx. Reflexões sobre a Lei n. 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas: Lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público, RBDP, Belo Horizonte, ano 12.n.47, out/dez.2014. p.33.
74 DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx. Lavagem de dinheiro – ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012.
constituir óbices as políticas de compliance anticorrupção, sobretudo quando representarem os valores predominantemente perseguidos pela alta administração. Por certo, a capacidade de resolução de problemas públicos por instrumentos de governança é limitada, assim como a capa- cidade de construção de alianças entre atores. Trata-se de um processo de troca motivada por interesses recíprocos. Convém forjar, todavia, por meio dos programas de compliance anticorrupção, um novo caminho de enfrentamento da corrupção transnacional.
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Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx
Resumo: O presente artigo tem como finalidade analisar a correlação entre a corrupção e a frustração dos direitos fundamentais, com uma análise centrada no fenômeno da pobreza. Parte-se da premissa de que a pessoa humana está no centro dos sistemas constitucionais democráticos e que esta condição irradia efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, orientando a interpretação das normas e indicando as ações a serem adotadas pelo poder público. Posteriormente, adotando como fonte, estudos de instituições vinculadas ao combate à corrupção e à proteção dos direitos humanos e, também, alguma doutrina sobre Direito Econômico e Direitos Fundamentais, trataremos do impacto da corrupção no desenvolvimento econômico e na governança pública. Como resultado, será demonstrado que tais impactos acabam por atingir de forma mais gravosa as populações mais pobres, agravando o seu processo de exclusão e marginalização. Por fim, concluímos a existência de um Direito Fundamental a uma vida livre de corrupção e que suas normas protetivas ostentam hierarquia constitucional mais elevada, o que inibe modificações que levem a retrocesso.
Palavras Chave: Corrupção; Pobreza, Ordem Econômica; Governança; Direitos Fundamentais.
Abstract: This article intends to analyze de link between corruption and the frustration of fundamental rights, centering the analysis on the fenômenos of poverty. It starts from de premisse that the human person is at the center of democratic constitutional systems, a condition that radiates effects on the whole legal order, guiding normative interpretation, indicating actions to be adopted
by public power. Later, adopting as a source papers of institutions linked to the anticorruption fight and the protection of human rights, as wele some doctrine on Economic Law e Fundamental Rights, we will address the impact of corruption on economic development and public governance. As a result, it will be shown that such impacts reach the poorest population most seriously, exacerbating their exclusion and marginalization. Finally, we conclude the existence of a Fundamental Right to a corruption free life and that its protective rules have constitutional hierarchy, which inhibits retrocedent modifications.
Key words: Corruption; poverty; Economic Ordem; Governance; Fundamental Rights.
1. Introdução
O presente artigo tem como origem a participação do seu autor no Curso sobre Mecanismos de Controle e Combate à Corrupção na Contratação Pública, ministrado pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa no período entre 30/10/2017 e 03/11/2017.
Trataremos do fenômeno da corrupção a partir duas premissas princi- pais extraídas do modelo constitucional brasileiro: i) o ser humano como núcleo central dos sistemas constitucionais democráticos; ii) o impacto que a corrupção promove tanto no surgimento como na concreção dos direitos fundamentais.
O estudo está centrado na ideia de que a corrupção macula os Diretos Fundamentais em duas dimensões, que embora diversas estão intimamente correlacionadas.
Quanto à dimensão econômica, pretende-se demonstrar como os fenô- menos corruptivos levam ao esvaziamento do conteúdo normativo previsto no artigo 170 da Constituição Federal, prejudicando o desenvolvimento econômico, e consequentemente sua capacidade de construir condições para uma existência digna, segundo ditames da justiça social.
Em outra linha, o estudo busca analisar como a corrupção impacta nos mecanismos de governança pública, prejudicando os processos de tomada de decisões no âmbito do Estado e de oferta de serviços públicos vinculados à dignidade da pessoa humana.
Importante, também, observar que os impactos nocivos causados pela corrupção em desfavor da ordem econômica e da governança pública não repercutem da mesma forma em todos os núcleos populacionais, eis que, como será demonstrado, as consequências são muito mais dramáticas em relação à parcela mais pobre da população.
Defendemos, ainda, a percepção de que a sociedade detém Direito a uma existência livre de corrupção e que o mesmo se situa dentre os Direitos Humanos Fundamentais.
2. Ser humano como nucleo do sistema constitucional brasileiro
A inspiração republicana, inerente aos modelos constitucionais demo- cráticos, nos impõe a inexorável conclusão de que os Estados não são constituídos como um fim em si mesmo. Ou seja, o Estado não é primor- dialmente uma estrutura burocrática tendente a estabelecer suas próprias regras de funcionamento, promover distribuição de competências, conceber seu modelo de governo, sua higidez territorial ou mesmo perseguir sua identidade nacional.
Como pacto de sua sociedade, cuja partícula indivisível, detentora de vontade e de direitos, é a pessoa humana, a função primeira de um Estado que se propõe democrático é a garantia da dignidade da existência de cada um de seus cidadãos. Nesse sentido, tem-se que todas as funções do Estado, da mais singela a mais complexa, todas as suas regras, normas, princípios e ações atuam com o principal propósito de garantir e promover a concreção dos direitos fundamentais enquanto elementos constituintes da Dignidade Humana.
Significa dizer, portanto, que o núcleo central dos Estados Democráticos se assenta exatamente na pessoa humana, mais precisamente na dignidade de sua existência.
Nesse ponto, é relevantíssimo atentar para o que dispõe o artigo 3º da Carta, que em todos os seus quatro incisos, enumera como objetivos fun- damentais de República Federativa do Brasil a consecução de providências intimamente relacionadas a dignidade humana, tais como liberdade, justiça, erradicação da pobreza e promoção do bem comum.
Ressalte-se que, embora diversos textos jurídicos, inclusive muitos consultados e citados neste artigo, tratem a dignidade da pessoa humana
como um dos princípios integrantes do modelo constitucional brasileiro, somos obrigados a externar nossa discordância com essa classificação, porquanto não é esse o tratamento dado pelo texto constitucional em seu artigo inaugural, cujo terceiro inciso, enumera a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Brasileiro1, isto é, como um dos alicerces sem os quais a formação do estado sequer encontraria justificação pragmática.
Portanto, a dignidade da pessoa humana não se posiciona dentre os princípios do Estado Brasileiro, que são construções jurídicas de natureza instrumental, que atuam em favor de uma finalidade ou de um propósito a ser perseguido. A dignidade da pessoa humana é o valor em si, é o propósito que deve ser perseguido não apenas pelo Estado, mas também pela socie- dade. É o fundamento em favor do qual os princípios militam e interagem com os demais elementos que compõe o sistema normativo nacional.
Nesse contexto, é correto afirmar que a dignidade da pessoa humana, mesmo não referida expressamente, é o ponto comum que integra cada uma das regras e normas que compõe a Ordem Jurídica, por isso mesmo é o vetor a orientar toda a exegese normativa nacional, não sendo dado ao intérprete conferir um sentido que se contraponha ou mesmo torne menos denso os pilares que concretizam a dignidade da pessoa humana.
Outrossim, além de orientar a interpretação da Ordem Jurídica, a dignidade da pessoa humana impõe ao Estado e a sociedade civil dever de comportamento ativo – no sentido de agir de forma compatível com o valor
– e negativo – no sentido de se abster de adotar condutas que detenham o potencial de infirmar a dignidade humana.
Neste ponto, convêm citar a doutrina de XXXXXX XXXXXXXX, em seus ensinamentos faz referência ao eminente professor XXXXX XXXXXXXXX:
“Foi por estas razões que afirmamos, em outro estudo de nossa lavra, que o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado como fundamento da República Federativa do Brasil (art., 1º, inciso III, CF), e que costura e
1 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana;
unifica todo o sistema pátrio de direitos fundamentais, “representa o epi- centro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado”. Na mesma linha, ressaltou Xxxxx Xxxxxxxxx que “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição Federal do que o princípio da dignidade da pessoa humana”, já que, apesar do caráter compromissário da nossa Constituição, decorrente da sua base social pluralista, ela é toda perpassada pela preocupação com a tutela da pessoa humana. Por isso, é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana é o princípio mais relevante de nossa ordem jurídica, que lhe confere unidade de sentido e de valor, devendo por isso condicionar e inspirar a exegese e aplicação de todo o direito vigente, público ou privado. Além disso o princípio em questão legitima a ordem jurídica, centrando-a na pessoa humana, que passa a ser concebida como o “valor-fonte fundamental do Direito”. Dessa forma, alicerça-se o direito positivo sobre profundas bases éticas, tornando-o merecedor do título de “direito justo”.
O princípio da dignidade exprime, por outro lado, a primazia da pessoa humana sobre o Estado. A consagração do princípio importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e a promoção dos seus direitos fundamentais.”
3. Desenvolvimento econômico como instrumento concreção da dignidade humana
Neste tópico, flutuaremos entre a elementos teóricos e pragmáticos
– porque, em verdade, é no mundo dos fatos que habitam as pessoas
– para justificar a indispensável interação entre desenvolvimento econô- mico e concretude do propósito constitucional da dignidade da pessoa humana.
Como asseveramos no tópico anterior, segundo o modelo constitucional brasileiro, todas as condutas humanas, estatais ou privadas, devem ter como norte a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, não é diferente a conclusão quando tratamos da atividade econômica, que, garantida pela Constituição como um dos princípios do Estado Brasileiro, também deve operar em regime compatível com a dignidade humana. Não por menos
o artigo 170 da Carta expressamente estabeleceu que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Ressalte-se, por outro lado, que o artigo 173 da CF, estabeleceu como regra a não exploração da atividade econômica pelo Estado, eis que somente a admite em situações específicas atreladas a segurança nacional e a relevante interesse coletivo. Ou seja, em regra, o Estado não opera diretamente na
ordem econômica, ou, ao menos, não o deveria fazer.
Portanto, existem dois elementos fundamentais a serem extraídos dos artigos 170 e 173 da Constituição:
a) o Brasil adotou um modelo de livre iniciativa e livre mercado, esta- belecendo que a ordem econômica é papel primordial dos agentes econômicos privados;
b) Os agentes econômicos apenas justificam o exercício de sua atividade quando esta é explorada tendo como norte a existência digna e a justiça social;
Em outras palavras, resta absolutamente cristalina a opção feita pelo constituinte originário. O Estado Brasileiro promoverá o desenvolvimento econômico como instrumento para atingir ao propósito da dignidade humana, ou melhor, segundo o Poder Constituinte Originário, o desenvol- vimento econômico exerce decisivo papel no desenvolvimento social, dada a sua capacidade de gerar emprego, distribuir renda, reduzir a pobreza e combater as desigualdades regionais e sociais.
E aqui nasce a necessidade de adentrar nos aspectos pragmáticos decorrentes das escolhas constitucionais estampadas nos artigos 170 e 173 da Constituição Federal e sua interação com a busca pela concreção da dignidade da pessoa humana.
Por óbvio, a efetivação de direitos, garantias e serviços que concretizam a dignidade humana possui um custo econômico, que ora suportado pelo próprio Estado, e ora suportado pelo cidadão quando escolhe utilizar sua renda para tal finalidade.
Ocorre que o Estado não é capaz de gerar riqueza, pois assume papel menor e absolutamente extraordinário na atividade econômica. Esse papel passa a ser desempenhado pelos agentes econômicos, cuja parcela da riqueza produzida será assenhorada pelo Estado na forma de tributos, os quais deverão custear os direitos, garantias e serviços ofertados pelo
Estado como forma de concreção da dignidade, e outra será distribuída a trabalhadores, em razão do se encontra previsto no inciso VIII, do artigo 170 da CF.
Portanto, quando maior e mais diversificada for a atividade econômica, maior será a riqueza produzida. Consequentemente, maior será a parcela distribuída ao Estado e aos trabalhadores.
Em sendo maior a fração arrecada pelo Estado, melhores serão suas con- dições econômicas de prestar serviços à população. E quanto, mais elevada a parcela destinada aos empregados, maior será o número de beneficiados capazes de autodeterminação e independência financeira.
Ou seja, quanto melhor funcionar a ordem econômica, maior será a probabilidade de se “assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social” seja porque o Estado poderá prestar serviços de qualidade, seja porque as próprias pessoas tenderão a possuir renda compatível com suas necessidades.
Em contraponto, quando se impõe à ordem econômica eventos que desorganizam o seu pleno funcionamento, que inibem a manutenção de seus elementos estruturantes, como plena concorrência, livre iniciativa, não intervenção estatal e segurança jurídica, o sistema que tende operar como gerador de desenvolvimento econômico e social, entra em colapso, passando a produzir pobreza, ou, o que é muito mais dramático, uma riqueza inapta a “assegurar a todos existência digna”, seja pelo lastimável fenômeno da concentração ou da mera insuficiência dos recursos.
4. A relação entre corrupção e pobreza. Risco de não efetivação das promessas constitucionais
4.1. Algumas linhas sobre a probreza
Não há dúvida que a corrupção assola com maior dramaticidade os países ditos em desenvolvimento, ou, nas palavras de Lênio Streck2, de modernidade tardia, onde os avanços civilizatórios e as instituições ainda se encontram em um nível, por assim dizer, incipiente.
2 In VERDADE E CONSENSO – Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Lúmen Juris. Rio de Janeiro, 2006.
Quando trazemos a este artigo o tema da pobreza, é importante destacar que este é um conceito que possui diversas dimensões caracterizadoras, não se limitando apenas ao baixo nível de renda. A pobreza possui outras dimensões como o baixo nível de educação e saúde, vulnerabilidade a fatos que atentem contra sua vida, impotência, falta de liberdade, baixa autoestima, ignorância quanto aos seus próprios direitos, discriminação e tantas outras
Os economistas XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX XXXXXX e XXXXXX
GUROVITZ3 asseveram que o indiano XXXXXXX XXX, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1999, introduziu no conceito de pobreza variáveis mais amplas, admitindo que as pessoas podem sofrer privações em diversas esferas de suas vidas. Desse modo, a pobreza não pode ser definida, tão-somente, a partir da baixa renda do indivíduo. O economista buscou definir a pobreza a partir de uma ótica ligada à privação das capacidades básicas do ser humano, como autodeterminação, liberdade de escolha e de se fazer ser ouvido.
O mesmo artigo escrito para a Revista Eletrônica da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, faz referência a uma pesquisa desenvolvida pela senhora XXXXX XXXXXXX, que foi analista de desenvolvimento social sênior do Banco Mundial. Visando informar o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001 sobre Pobreza e Desenvolvimento, a pesquisadora buscou ampliar os horizontes acerca da conceituação da pobreza e suas causas. Para tanto, realizou entrevistas com populações desprovidas em diversos países do mundo, por meio das quais, destaca o artigo, foi possível detectar uma dimensão psicológica da pobreza que muito explica a indignidade decorrente da impossibilidade de autodeterminação das pessoas que vivem nestas condições marginais:
“Há o aspecto psicológico da pobreza. Os pobres têm consciência de sua falta de voz, poder e independência que os sujeita à exploração. A pobreza os deixa mais vulneráveis à humilhação e ao tratamento desumano pelos agentes públicos e privados a quem, freqüentemente, solicitam ajuda. Os pobres também
3 In A PROBREZA COMO UM FENÔMENO MULTIDIMENSIONAL. Revista Eletrônica da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, Volume 1, Número 2, Jul-Dez/2002. Disponível em xxxx://xxx. xxx.xx/xxxxx/xxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/00.0000_X0000-00000000000000000.xxx, Consultado em 27/12/2017.
falam sobre a dor causada pela inevitável ruptura com as normas sociais e sua incapacidade de manter sua identidade cultural por meio da participação em tradições, festivais e rituais. A incapacidade de participar na vida comunitária leva a uma ruptura das relações sociais.”
Reproduzindo as conclusões de XXXXX XXXXXXXX, o artigo transcre o conceito de pobreza desenvolvido pela ex-analista do Banco Mundial:
“Pobreza é fome, é falta de abrigo. Pobreza é estar doente e não poder ir ao médico. Pobreza é não poder ir à escola e não saber ler. Pobreza é não ter emprego, é temer o futuro, é viver um dia de cada vez. Pobreza é perder o seu filho para uma doença trazida pela água não tratada. Pobreza é falta de poder, falta de representação e liberdade”.
Portanto, está claro que para as populações marginalizadas do globo, o conceito de pobreza vai muito além da baixa renda, pois envolve a falta de perspectiva, o desespero com o futuro, a falta de amparo social, que pode- riam ser supridos por um Estado cujos serviços públicos se encontrassem organizados para tal finalidade.
Significa dizer que que a pobreza se materializa por um duplo viés; o econômico, decorrente da baixa renda, e o de governança, decorrente da incapacidade ou da indiferença das instituições do Estado em tentar socorrer as pessoas de baixa renda, entregando-lhes serviços sociais que aprimoras- sem suas perspectivas de dignidade, autoconfiança e autodeterminação. Nesse sentido, cabe destacar que são exatamente esses dois aspectos que, estudiosos da temática entenderam ser maculados pelos processos de corrupção sistêmica presentes em Estados onde se detectam populações em situação de pobreza. A corrupção impacta o desenvolvimento econô- mico ao mesmo tempo em que gera a putrefação dos próprios órgãos de Estado, que deixam de ser estruturados porque o exercício do poder sofre
influências nocivas da corrupção.
No ponto, gostaria de citar no Relatório Final denominado “Corruption and Poverty – A Review of Recente Literature”4, de autoria de Xxxx Xxxxxxxx,
4 Relatório da xxxxx xx XXXXXXXX, Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx: Corruption And Poverty – A Review of Recent Literature. Janeiro de 2003, Management Systems International. Com referência ao World Bank 2000c at 170, citing EBRD Transition
Xxxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx, que é cristalino ao diagnosticar que apesar de, por si só, não produzir pobreza, a corrupção promove danos diretos em desfavor da economia e da governança, elementos estes que, quando desconstruídos, tem o efeito de causar pobreza.
“The literature points to the conclusion that corruption, by itself, does not produce poverty. Rather, corruption has direct consequences on economic and governance factors, intermediaries that in turn produce poverty. Thus, the relationship examined by researchers is an indirect one. This paper discusses two major models explaining this moderated linkage between corruption and poverty: an economic model and a governance model.5”
O que se quer dizer é que a corrupção tem o efeito de frear o desen- volvimento econômico, inibindo o seu papel constitucional de garantir uma existência digna a todos, ao mesmo tempo que distorce o funcionado do próprio Estado que deixa de exercer os papeis de tutor e provedor de direitos fundamentais. Há uma dupla desassistência dos pobres; i) uma por parte da economia, eis que a riqueza gerada não lhes alcança e; ii) outra por parte do próprio Estado que não consegue atender os excluídos em suas necessidades mais básicas. Nesse contexto a pobreza se estabelece em todos os seus aspectos multidimensionais.
Tentaremos, humildemente, adiante, tratar desse duplo impacto da causado pela corrupção.
4.2. Impactos da corrupção no desenvolvimento econômico
A corrupção indubitavelmente atua como um elemento desestrutu- rante da ordem econômica, porque ela cria mecanismos de concorrência
Report (1999). Disponível em xxxx://xxx.x0.xx/xxxxxxxxxxx-xxxxxxx/xxxxxxxxxx-xxx-
-poverty-a-review-of-recent-literature/. Consultado em 28/12/2017
5 Em tradução livre: “A literatura aponta para a conclusão de que a corrupção, por si só, não produz pobreza. Na verdade, a corrupção tem consequências diretas sobre fatores econômicos e de governança, intermediários que, por sua vez, produzem pobreza. Assim, a relação examinada pelos pesquisadores é indireta. Este artigo discute dois modelos principais que explicam essa ligação moderada entre corrupção e pobreza: um modelo econômico e um modelo de governança.” Disponível em xxxx://xxx.x0.xx/xxxxxxxxxxx-xxxxxxx/xxxxxxxxxx-
-and-poverty-a-review-of-recent-literature/. Consultado em 28/12/2017.
desleal entre os agentes econômicos. Aquele que corrompe para obter um contrato ou benesses estatais, como financiamento público, isenções fiscais ou menor fiscalização, gozam de vantagens que não se estendem aos agentes que atuam segundo primado da legalidade. A corrupção gera, ainda, cartel, concentração de mercado, manipulação de preços, controle da oferta, associações inescrupulosas, que tem o efeito de desestruturar a Ordem Econômica.
Ainda no âmbito da desestruturação da ordem econômica, a corrupção promovida por agentes econômicos desonestos tem o efeito de gestar uma simbiose nociva com o Estado, que capturado passa a exercer a sua com- petência reguladora e fiscalizadora do mercado no interesse dos agentes desonestos, públicos e privados.
Como prova real do acima afirmado, podemos lembrar que o Brasil vive hoje sobre o impacto de duas grandes operações policiais – Xxxx Xxxx e Xxxxxxx – que descortinou essa relação promiscua entre agentes econômicos e o poder público.
A primeira desarticulou um cartel de empreiteiras que, associada a agentes públicos que encobriam o ilícito, por anos simulou um ambiente de plena concorrência, com o intuito de dominar as grandes contratações públicas, direcionando processos licitatórios, elevando artificialmente os preços e influindo diretamente no processo eleitoral mediante o financia- mento ilícito de candidatos.
A segunda, dentre os seus achados, descobriu um mecanismo em que agentes de mercado cooptavam relevantes autoridades nacionais para a “compra” de normas que atendiam aos seus interesses pessoais, gerando vantagens em relação aos seus concorrentes.
Nos dois casos, percebe-se que as práticas corruptivas faziam parte do modelo operacional adotado pelas corporações, que, em determinados casos, mantinham departamentos ou diretorias destinadas exclusivamente a materializar o pagamento de propinas e realizar a lavagem dos recursos ilícitos envolvidos. Ou seja, a corrupção integrava a atuação comercial de empresa, tal qual o singelo pagamento de seus fornecedores.
Esse comportamento promíscuo entre agentes públicos e privados tem o efeito de gerar desequilíbrio na concorrência, favorecimentos pes- soais, intervenção estatal indevida e insegurança jurídica, ou seja, produz um ambiente econômico absolutamente hostil. Como consequência há redução do número de players, inibição de novos investimentos no país,
enfraquecimento do dinamismo econômico, prejuízo ao processo de inovação, com consequências diretas na geração de empregos e de renda.
Outro efeito decorrente dessa promiscuidade é o aumento artificial de custos e preços, dificultando, ainda mais, o acesso tanto pelas pessoas como pelo próprio Estado a bens e serviços associados a dignidade humana. Nesse sentido, partindo da lógica constitucional de que a ordem econô- mica exerce o papel de protagonista na implementação do desenvolvimento econômico, parece-nos óbvio que a subversão de seus pilares tem o efeito de estagnar esse processo evolutivo, gerando relevantes impactos sobre o desenvolvimento social, afastando o Estado Brasileiro do propósito estabelecido no Texto Magno de garantir uma existência digna a todos. Precisa ser considerado que estabelecido um processo corrosivo sistêmico entre agentes estatais e agentes econômicos, há uma redução do número de agentes com acesso à riqueza em potencial e com capacidade de ofertar vagas de trabalho. A falta de inovação e de investimentos colabora para a estagnação econômica, inibindo que a riqueza circule por outros agentes. O mercado se mantém concentrado, o que infirma o inciso IV do artigo
170 da Constituição.
Portanto, tem-se que Ordem Econômica não evolui horizontalmente, mantendo-se controlada por um pequeno grupo de atores. Nessa dimen- são, ela permanece menor que a própria sociedade, o que significa dizer que, no aspecto subjetivo, a Ordem Econômica não consegue alcançar a integralidade das pessoas, tendo como resultado a concentração da riqueza e exclusão dos grupos não alcançados.
A concentração da riqueza acima referida gera impactos extremamente nocivos a dignidade humana, como i) a incapacidade de se atingir o pleno emprego; ii) a redução dos salários pagos aos trabalhadores, já que a mão de obra disponível se afigura abundante; iii) controle ilícito da oferta de bens produtos e aumento artificial dos preços praticados, dificultando, ainda, mais o acesso a bens e serviços; iv) sendo pouco os atores, havendo menor auto fiscalização do próprio mercado, há maior facilidade de manipulação de ordem econômica e do próprio Estado.
Também na linha de concentração do mercado e da riqueza, é impor- tante destacar que estudos do Banco Mundial detectaram que os custos da corrupção atingem de forma especialmente gravosa as pequenas empresas, cujo poderio econômico não se compara aos das grandes corporações. Tais empresas sofrem para exercer suas atividades empresariais e não raramente
são obrigadas a fechar suas portas achatando o mercado e inibindo uma melhor distribuição das riquezas. Nesse sentido, o já referido relatório subscrito por Xxxx Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx des- tacou “que uma exame mais profundo dos vínculos entre corrupção e desigualdade demonstram que os custos da corrupção são particularmente mais pesados para as pequenas empresas”(livre tradução).
No ponto, é imperativo advertir quanto à necessidade de se tomar cui- dado com a análise bruta dos indicadores econômicos, eis que, por vezes, embora os números demonstrem uma evolução da riqueza nacional, tal se dá apenas no aspecto financeiro (quantidade de dinheiro gerado pela economia). Como a corrupção inibe que a ordem econômica cresça também na dimensão horizontal, não alcançando a integralidade da sociedade, uma grande parte das pessoas não compartilham esse crescimento econômico, permanecendo em situação de pobreza.
As percepções acima delineadas também foram observadas no já refe- rido Relatório denominado “Corruption and Poverty – A Review of Recente Literature”6:
“The Economic Model postulates that corruption affects poverty by first impacting economic growth factors, which, in turn, impact poverty levels. Economic theory and empirical evidence both demonstrate that there is a direct causal link between corruption and economic growth. Corruption impedes economic growth by discouraging foreign and domestic investment, taxing and dampening entrepreneurship, lowering the quality of public infrastructure, decreasing tax revenues, diverting public talent into rent-seeking, and distor- ting the composition of public expenditure. In addition to limiting economic growth, there is evidence that corruption also exacerbates income inequality; regression analysis has shown a positive correlation between corruption and income inequality. Explanations for this link are that corruption distorts the economy and the legal and policy frameworks allowing some to benefit more than others; there is unfair distribution of government resources and services; corruption reduces the progressivity of the tax system; corruption increases the inequality of factor ownership; and lower income households (and businesses) pay a higher proportion of their income in bribes than do
6 Obra citada.
middle or upper-income households. Economic growth and income inequality are important because they link corruption to poverty. Studies show that the absence of economic growth (or negative growth) increases poverty. Inversely, tests have shown that an increase in GDP produces na increase in the income of the poor. However, income distribution is an important mediating factor because economic growth may not always benefit the poor.
...
Several studies have demonstrated a relationship between corruption and income inequality. The theoretical foundations for this relationship are derived from rent theory and draw on the ideas of Xxxx-Xxxxxxxx (1978) and Xxxxxxx (1974), among others. Propositions include:
• Corruption may create permanent distortions from which some groups or individuals can benefit more than others.
• The distributional consequences of corruption are likely to be more severe the more persistente the corruption.
• The impact of corruption on income distribution is in part a function of government involvement in allocating and financing scarce goods and services (Xxxxx, Xxxxxxx, and Xxxxxx-Xxxxx, 1998)7.
7 Em tradução livre: “O Modelo Econômico postula que a corrupção afeta a pobreza impactando primeiro os fatores de crescimento da economia, que, por sua vez, afetam os níveis de pobreza. Teoria econômica e evidências empíricas demonstram que existe uma ligação causal direta entre corrupção e crescimento econômico. A corrupção impede o crescimento econômico ao desencorajar o investimento estrangeiro e doméstico, taxando e inibindo o empreendedorismo, reduzindo a qualidade da infra-estrutura pública, diminuindo a receita de impostos, desvirtuando o talento público na busca de benefícios e distorcendo a composição da despesa publica. Além de limitar o crescimento econômico, há evidências de que a corrupção também exacerba a desigualdade de renda; A análise de regressão mostrou uma correlação positiva entre corrupção e desigualdade de renda. As explicações para este link são que a corrupção distorce a economia e xxxxxx xxxxxx e políticos, permitindo que alguns se beneficiem mais do que outros; Há uma distribuição injusta de recursos e serviços governamentais; A corrupção reduz a progressividade do sistema tributário; A corrupção aumenta a desigualdade dos fatores que garantem a propriedade; as familias de renda mais baixa (e as empresas) pagam uma maior proporção de seus rendimentos em subornos do que as famílias de renda média ou superior. O crescimento econômico e a desigualdade de renda são importantes porque eles ligar a corrupção à pobreza. Estudos mostram que a ausência de crescimento econômico (ou negativo crescimento) aumenta a pobreza. Inversamente, os testes mostraram que um aumento no PIB produz um aumento da renda dos pobres. No entanto, a
Exatamente por conta do efeitos perniciosos que a corrupção estabelece sobre o desenvolvimento econômico, impactando diretamente na dignidade das pessoas, é que muitos países, incluindo o Brasil, que o fez por meio da Lei nº 12.846/2013, passaram a adotar normas, mecanismos e ferramentas tendentes a combater a participação dos agentes econômicos em atos de corrupção envolvendo autoridades e servidores públicos, punindo-os pesadamente enquanto pessoas jurídicas, e impondo-lhe obrigações de adoção de programas de integridade e de self cleaning, como mecanismos de prevenção a novos desvios.
Não é objetivo deste artigo dissecar o conteúdo da Lei nº 12.846/2013, uma vez que o mesmo busca perquirir os efeitos que a corrupção causa sobre o desenvolvimento econômico e social. Mas, na linha do que tra- tamos aqui, é preciso destacar que a norma veio, em grande parte, dar cumprimento ao compromisso assumido pelo Brasil junto à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE, quando da assinatura da Convenção Sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (promul- gada pelo Decreto nº 3678/2000), de que se dedicaria a punir a corrupção internacional e a responsabilizar as empresas envolvidas enquanto pessoas jurídicas.
Interessante é destacar que, já em seu preâmbulo, a convenção da OCDE deixa evidenciada a grave a preocupação com os efeitos nocivos da corrupção sobre o desenvolvimento econômico, demonstrando que não são áreas dissociadas. Veja que a OCDE é um organismo vinculado à economia,
distribuição de renda é um importante fator porque o crescimento econômico nem sempre beneficia os pobres.
...
Vários estudos demonstraram que uma relação entre corrupção e desigualdade de renda. Os fundamentos teóricos desse relacionamento derivam da teoria dos aluguéis e estão descritas nas ideias de Rose-Ackerman (1978) e Krueger (1974), dentre outros. As proposições incluem:
• Corrupção tende a criar distorções permanentes das quais alguns grupos ou indivíduos
podem se beneficiar mais que outros.
• As consequências da corrupção da distribuição provavelmente serão mais severas quanto mais persistente for a corrupção.
• O impacto da corrupção na distribuição de renda é, em parte, decorrente da envolvi-
mento governamental na alocação e financiamento de bens e serviços escassos (Grupta, Davoodi e Alonso-Terme, 1998).
o que permite constatar que sua preocupação com a corrupção decorre do impacto negativo que esse fenômeno impõe a sua área de atuação.
Nesse cenário, inclusive, há se considerar o papel relevante que os órgãos de controle de concorrência devem exercer para detectar e denunciar processos corruptivos que tem o efeito de promover distorções substanciais no mercado, tais como concentração, concorrência desleal, cartelização e controle de preços.
4.3. Impactos da corrupção na governança
Primeiramente, cabe destacar que a expressão governança (governance) foi cunhada a partir de provocações titularizadas pelo Banco Mundial, objetivando alcançar o necessário conhecimento e implementação das condições garantidoras da eficiência estatal. O professor Alcindo Gonçalves, Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, e titular do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Santos, escreveu artigo8 dedicado a dissecar o conteúdo jurídico de governança tendo asseverado que:
“Segundo o Banco Mundial, em seu documento Governance and Development, de 1992, a definição geral de governança é “o exercício da autoridade, controle, administração, poder de governo”. Precisando melhor, “é a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país visando o desenvolvimento”, implicando ainda “a capacidade dos governos de planejar, formular e implementar políticas e cumprir funções”
Em um ambiente em que a corrupção está invariavelmente presente, ela assume uma dinâmica epidêmica, contagiando não apenas o mercado, mas também o próprio funcionamento do Estado, desvirtuando o processo decisório, distorcendo as escolhas, invertendo prioridades, o que faz com que as atividades estatais, das mais singelas, como limpeza urbana, às mais complexas, como o processo legislativo, sejam exercidas sob influência
8 In CONCEITO DE GOVERNANÇA. Disponível em http://www.publicadireito.com. br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/078. pdf. Consultado em 29/12/2017
de processos corruptivos, e, consequentemente, sem compromisso com a eficiência e com o seu próprio propósito institucional, como o bem comum. O que se quer dizer é que quando a corrupção integra o dia a dia das organizações estatais, ela, em alguma medida, intervém na forma como o poder é exercido e no processo por meio do qual as escolhas são realizadas, o que significa dizer que causa dano à governança e impacta diretamente
nos serviços públicos colocados à disposição da população.
Ressalte-se que as populações mais pobres, em regra, por falta de poder econômico, não têm outra opção senão buscar os serviços ofertados pelo Estado. Nesse sentido, quando governança se vê afetada pela corrupção, são essas comunidades menos favorecidas que mais sentirão os efeitos deletérios das más escolhas.
Não raras vezes, presente a corrupção, as decisões no sentido de se implementar determinadas políticas públicas e/ou quanto ao aporte de recursos são adotadas apenas para gerar oportunidade de desvio de valores ou concessão de benefícios mútuos entre os envolvidos, sem haver qualquer preocupação real com sua eficiência, necessidade e efetivo atendimento da população (vide os casos concretos citados adiante). Em outras oportunidades, os serviços públicos mais elementares, que haveriam de ser disponibilizados graciosamente às pessoas, apenas são realizados mediante pagamentos ou ante a troca de favores, como o caso denunciado pela imprensa de médicos públicos que cobravam por procedimentos9.
A conduta dos agentes públicos desonestos, ou inseridos em organismos estatais contaminados pela corrupção, deixa de ser regida pelo interesse público e pelas promessas constitucionais inerentes ao bem comum, para se estabelecer com base em uma nociva relação regida pela troca de favores, que, obviamente, não comporta a presença das camadas desfavorecidas da sociedade.
Cria-se, assim, pouco a pouco, um mecanismo que além de gerar ine- ficiência, consolida uma cultura de exclusão dos menos favorecidos, um sentimento de que o estado das coisas não pode ser diferente, agravando o processo de marginalização e de indignidade social dos mais pobres, que sequer reconhecem em si mesmo a condição de titulares de direitos.
9 http://g1.globo.com/hora1/noticia/2016/11/medicos-do-sus-sao-denunciados-por-
-cobrarem-de-pacientes-por-cirurgias.html. Consultado em 29/12/2017.
Ou seja, os mais pobres, exatamente os que mais dependem da proteção e dos serviços disponibilizados pelo Estado, como forma de efetivação dos seus direitos e garantias fundamentais, são excluídos pelo desumano processo instaurado a partir das relações não ortodoxas estabelecidas no seio das instituições públicas, aspecto esse que agrava a situação de indignidade humana.
E essa perversa mecânica, tal qual constatado pela pesquisadora DEEPA NARAYAN, citada em artigo referido acima, sedimenta nos mais pobres a percepção de que não são detentores de direitos, que suas vozes não têm valor e que suas aflições são desimportantes, o que tem o efeito de agravar suas condições sociais, tornando-os, ainda, mais vulneráveis a abusos de autoridade, a negligência com sua saúde, a segurança, etc. Os desfavore- cidos, que imprescidem de uma conduta proativa do Estado no sentido do resgate de sua dignidade, são os primeiros a serem excluídos do sistema pelos processos corruptivos.
São diversos os papers, artigos e estudos que analisam a conexão entre corrupção associando a corrupção à violação ou não efetivação dos direitos humanos básicos. Nesse ponto, vale citar manifestações das Nações Unidas sobre o tema:
Human rights are indivisible and interdependent, and the consequences of corrupt governance are multiple and touch on all human rights — civil, political, economic, social and cultural, as well as the right to development. Corruption leads to violation of the government’s human rights obligation “to take steps… to the maximum of its available resources, with a view to achieving progressively the full realization of the rights recognized in the [International] Covenant [on Economic, Social and Cultural Rights]”. The corrupt manage- ment of public resources compromises the government’s ability to deliver an array of services, including health, educational and welfare services, which are essential for the realization of economic, social and cultural rights. Also, the prevalence of corruption creates discrimination in access to public services in favour of those able to influence the authorities to act in their personal interest, including by offering bribes. The economically and politically disadvantaged suffer disproportionately from the consequences of corruption, because they are particularly dependent on public goods.
Corruption may also affect the enjoyment of civil and political rights. Corruption may weaken democratic institutions both in new and in
long-established democracies. When corruption is prevalent, those in public positions fail to take decisions with the interests of society in mind. As a result, corruption damages the legitimacy of a democratic regime in the eyes of the public and leads to a loss of public support for democratic institutions. People become discouraged from exercising their civil and political rights and from demanding that these rights be respected.10
É importante destacar que a questão não se resume apenas a uma argumentação teórica. Nossa experiência profissional na área já demons- trou situações que se enquadram exatamente no que acima foi descrito. Citamos alguns exemplos:
• Operação Sanguessuga da Policia Federal em que se descobriu um esquema envolvendo um grupo empresarial, parlamentares federais, servidores públicos e prefeitos municipais que desviavam recursos do Ministério da Saúde sob a justificativa de compra de Unidades
10 Em livre tradução: Os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes, e as conse- quências da governança corrupta são múltiplas e abordam todos os direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, bem como o direito ao desenvolvimento. A corrupção leva à inobservância da obroigação governamental em relação aos diretos humanos de “tomar medidas ... até o máximo de seus recursos disponíveis, com o objetivo de alcançar progressi- vamente a plena realização dos direitos reconhecidos no Pacto Internacional [sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais] “. A gestão corrupta dos recursos públicos compromete a capacidade do governo de oferecer uma variedade de serviços, incluindo serviços de saúde, educação e assistência social, que são essenciais para a realização de direitos econômicos, sociais e culturais. Além disso, a prevalência da corrupção cria discriminação no acesso aos serviços públicos em favor daqueles que podem influenciar as autoridades para atuarem em seu interesse pessoal, inclusive oferecendo subornos. Os economicamente e politicamente desfavorecidos sofrem desproporcionalmente as consequências da corrupção, porque são particularmente dependentes dos serviços públicos.
A corrupção também pode afetar o gozo dos direitos civis e políticos. Corrupção pode enfraquecer instituições democráticas, tanto em democracias novas como nas antigas. Quando a corrupção prevalece, muitos que ocupam cargos públicos não tomam decisões com os inte- resses da sociedade em mente. Como resultado, a corrupção danifica a legitimidade de um regime democrático aos olhos do público, e leva a uma perda de apoio público às instituições democráticas. As pessoas desanimam de exercer os seus direitos civis e políticos e de exigir que estes direitos sejam respeitados. Fraude eleitoral e corrupção no financiamento dos partidos políticos são outras práticas corruptas, mais diretamente relacionados com o gozo dos direitos civis e políticos”
Móveis de Saúde para atender a população dos municípios. Na verdade, percebeu-se que o principal propósito do esquema era viabilizar o recebimento de propinas pelos parlamentares envolvidos, e que seriam pagas por meio do grupo empresarial toda vez que conseguissem concretizar uma venda, e não o efetivo atendimento da população. Em alguns casos detectou-se que o veículo entregue estava sem uso, abandonado, tendo sido seus equipamentos retirados. Algumas prefeituras receberam veículos sem sequer possuir uma equipe para operá-lo11;
• Em outro caso, descobriu-se um esquema envolvendo agentes muni-
cipais, particulares e entidade do 3º setor concebido para desviar recursos do Ministério da Saúde. No caso, uma ONG foi contra- tada para administrar serviços municipais de saúde, os quais não foram disponibilizados à população. Nos trabalhos de investigação descobriu-se que ONG, embora tenha recebido milhões de reais, teve apenas um funcionário integrante dos seus quadros por um período de apenas 2 meses. O município em tela possui um dos menores IDHs do Estado do Paraná (307º entre 399 – dados de 2010);12-13
• Um terceiro esquema envolveu desvio de recursos destinados à
aquisição de medicamentos para assistência farmacêutica básica por prefeitos municipais. Nesse caso, constatou-se concorrências públicas e contratos simulados, montados apenas para justificar a movimentação dos recursos. Auditorias realizadas detectaram que os medicamentos jamais foram entregues;14
• Um quarto exemplo envolveu um esquema que desviou alguns
milhões de um programa de inclusão digital de crianças carentes. Tratou-se de uma parceria firmada com uma fundação privada que previu a criação de 5 centros de informática móveis, que deveriam
11 http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/125453 e http://www.agu. gov.br/page/content/detail/id_conteudo/80480. Consultas realizadas no dia 29/12/2017.
12 http://www.agu.gov.br/noticia/improbidade-agu-ajuiza-acao-contra-acusados-de-
-desviar-mais-de-r-1-milhao-da-saude--418797. Consultado em 29/12/2017.
13 http://www.ipardes.gov.br/pdf/indices/IDHM_municipios_pr.pdf. Consultado em 29/12/2017.
14 http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/571224. Consultado em 29/12/2017.
se deslocar nos bolsões onde viviam as pessoas mais pobres, e um fixo. Constatou-se que os computadores novos previstos no programa nunca foram adquiridos e que os veículos onde seriam instalados os centros móveis foram objeto de aquisição simulada;15
Os exemplos acima demostram violações a serviços públicos ligados às necessidades básicas das populações mais carentes, como saúde e educação, o que agrava a situação de pobreza econômica já enfrentada por estas pessoas e suas famílias, importando em severa violação de seus direitos humanos. Importante destacar que essas consequências que a corrupção impõe sobre os direitos fundamentais não são uma exclusividade do Brasil, tratando de percepções comuns a todos os Estados que sofrem com o fenômeno. Nesse sentido, destaco relevante trabalho desenvolvido conjuntamente pelo International Council on Human Rights Policy e pela Transparency International,
denominado Corruption and Human Rights: Making the Connection:
As identified in the ICHRP report, it is the vulnerable and marginalised – women, children and minority groups – who often suffer corruption’s harshest consequences. In dealings with police, judges, hospitals, schools and other basic public services, poor citizens tend to suffer more violations than the rich and see a larger share of their resources eaten away. In Mexico, it is estimated that approximately 25 percent of the income earned by poor households is lost to petty corruption.
Those with the least influence are left with little recourse against bribery. In Bangladesh, surveys show that nearly one-third of girls trying to enrol in a government stipend scheme for extremely poor students had to pay a bribe, while half had to make a ‘payment’ before collecting their awarded scholar- ship. In Madagascar, one-quarter of all households are forced to cover school ‘enrolment’ fees although all primary education is ‘free’.
...
Those who commit corrupt acts will attempt to protect themselves from detection and maintain their positions of power. In doing so, they are likely to further oppress people who are not in positions of power, including most
15 http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/568211. Consultado em 29/12/2017.
members of the groups listed above. The latter tend both to be more exploited, and less able to defend themselves: in this sense, corruption reinforces their exclusion and the discrimination to which they are exposed.16
Como se observa, a corrupção além de reduzir as possibilidades de desenvolvimento econômico, o que atinge com maior rigor os grupos menos favorecidos, também tem o efeito de inibir a gozo de direitos por esta mesma parcela da humanidade, que, por substancialmente dependente dos serviços públicos, vê agravada a sua situação de pobreza.
5. Direito fundamental a uma existência livre de corrupção
No já referido trabalho denominado Corruption and Human Rights: Making the Connection há uma passagem, que embora secundária, merece referência, eis que acopla perfeitamente ao presente estudo:
Alguns estudiosos defendem o reconhecimento de um direito de viver em um mundo livre de corrupção. Eles tomam por base o fato de que a corrupção endêmica destrói os valores fundamentais da dignidade humana e da igualdade
16 Em livre tradução: “Como identificado pelo relatório do ICHRP, são os vulneráveis e marginalizados – mulheres, crianças e grupos minoritários – que frequentemente sofrem as mais duras consequências da corrupção. Nas relações com a polícia, com juízes, hospitais, escolas e outros serviços públicos básicos, os pobres tendem a sofrer mais violações do que os ricos e vem uma grande parte dos seus recursos sendo consumidos. No México, é estimado que aproximadamente 25% da renda das famílias pobres é perdida para pequenos atos de corrupção. Aqueles com menor influência ficam com poucos recursos frente ao suborno. Em Bangladesh, dados demonstram que aproximadamente 1/3 das meninas que tentam obter subsídios do governo para alunos extremamente pobres foi obrigado que pagar propina, enquanto a metade tinha que fazer um “pagamento” antes de usufruir de sua bolsa de estudos.
Em Madagascar, ¼ das famílias são obrigadas a pagar taxa de “inscrição” nas escolas, muito embora o ensino primário seja gratuito.”
Aqueles que cometeram atos de corrupção vão tentar proteger a si mesmos da prisão e manter suas posições de poder. Ao fazê-lo, é provável que continuem a oprimir pessoas que não estão em posições de poder, incluindo a maioria dos membros dos grupos listados acima. Estes últimos tendem a ser mais explorados, e menos capazes de se defender: neste sentido, a corrupção reforça sua exclusão e a discriminação a que estão expostos. Disponível em http:// www.ichrp.org/files/reports/40/131_web.pdf. Consultado em 24/12/2017.
política, tornando impossível garantir os direitos à vida, à dignidade pessoal e à igualdade, e muitos outros direitos” (tradução livre)
Em março de 2013 na cidade de Genebra, a ONU emitiu o Relatório A/HRC/23/26, no qual se confirma a corrupção como um grave atentado aos Direitos Humanos17:
“Durante el debate, todos los oradores hicieron hincapié en los vínculos entre la corrupción y los derechos humanos, desde los efectos negativos de la corrupción en una amplia gama de derechos humanos hasta la importancia de los derechos humanos en el fortalecimiento de las actividades anticorrup- ción. Muchos reconocieron que la corrupción afectaba a todos los países y subrayaron la necesidad de combatirla en los planos nacional e internacional con un enfoque integral y una mayor cooperación. La corrupción generaba injusticia y obstaculizaba el ejercicio de los derechos humanos, la consecución del desarrollo y de los ODM, entre otras cosas, la erradicación de la pobreza y del hambre y la prestación de servicios básicos. También limitaba gravemente la capacidad de la administración pública para garantizar el disfrute de los derechos humanos. La lucha contra la corrupción era un aspecto importante para la garantía de los derechos humanos y se necesitaban esfuerzos concertados para combatir la corrupción y sus manifestaciones.”18
17 A esse respeito, veja-se ONU. Asamblea General. Consejo de Derechos Humanos. Informe resumido acerca de la mesa redonda sobre las consecuencias negativas de la corrupción en el disfrute de los derechos humanos. Mesa redonda celebrada en Ginebra el 13 de marzo de 2013 (A/HRC/23/26).
18 Em tradução livre: “Durante o debate, todos os oradores enfatizaram os vínculos entre corrupção e direitos humanos, desde os efeitos negativos da corrupção em uma ampla gama de direitos humanos e da importância dos direitos humanos no fortalecimento das atividades de combate à corrupção. Muitos reconheceram que a corrupção afeta todos os países e enfatizaram a necessidade de a combater nos níveis nacional e internacional com uma abordagem abrangente e uma maior cooperação. A corrupção gera injustiça e impede o exercício dos direitos humanos, a realização do desenvolvimento e os ODM [Objetivos do Milênio], dentre outras coisas, a erradicação da pobreza e da fome e a prestação de serviços básicos. Também limitou severamente a capacidade da administração pública para garantir o gozo dos direitos humanos. A luta contra a corrupção constitui um aspecto importante para garantir os direitos humanos e são necessários esforços concentrados para combater a corrupção e suas manifestações”.
Com fundamento no Relatório da referida Conferência, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU editou a Resolução 23/9, de 20 de junho de 2013 (A/HRC/RES/23/9). Por meio dela foi solicitado ao Comitê Assessor a apresentação de um relatório de investigação sobre as consequências negativas da corrupção no gozo dos Direitos Humanos.
Como resultado dessa pesquisa, o Comitê Assessor do CDH da ONU elaborou o Relatório Final A/HRC/28/7319, de 05 de janeiro de 2015. Este documento foi construído com base nas respostas a um questionário por 73 instituições, sendo 37 países, 16 instituições de Direitos Humanos, 14 organizações não governamentais ou sociedade civil, e 6 organizações internacionais ou regionais e instituições acadêmicas. No referido Relatório, o Comitê Assessor do CDH da ONU afirma que:
“18. Esta visão é apoiada por muitas das respostas ao questionário, por diferentes partes interessadas. As respostas deixam claro que a corrupção tem um impacto negativo sobre o gozo dos direitos humanos. Eles mencionam uma ampla gama de direitos humanos que podem ser violados pela corrupção. Estes incluem os direitos econômicos e sociais, tais como o direito ao trabalho, o direito à alimentação, o direito à moradia, o direito à saúde, o direito à edu- cação, bem como o direito aos serviços públicos; o direito ao desenvolvimento; o princípio da não-discriminação; e direitos civis e políticos, como o direito a um julgamento justo e o direito à participação do público. Esta visão geral ilustra a tese acima referida, que quase todos os direitos humanos podem ser afetados por corrupção;” (tradução livre)
Portanto, na visão das Nações Unidas, a corrupção, com efeito, tem a capacidade de, direta ou indiretamente, causar relevante abalos ao nasci- mento e ao gozo dos direitos fundamentais, bem como aos serviços públicos indispensáveis a sua concreção.
No âmbito da ordem econômica, como já visto, a corrupção prejudica o desenvolvimento inibindo que ele, na forma do artigo 170 da Constituição, crie condições para uma existência digna para todos, tendo ainda o perverso efeito de causar desigualdades sociais.
19 Disponível em http://undocs.org/en/A/HRC/28/73. Consultado em 29/12/2017
No condizente à governança, a corrupção passa a influenciar na forma como o poder é exercido e como as escolhas são tomadas, causando prejuí- zos aos serviços públicos e danos aos seus usuários, como maior relevância os menos favorecidos economicamente, eis que mais dependentes das prestações públicas.
Ora, se a corrupção se contrapõe aos direitos fundamentais, é correto dizer que estando o Estado e a sociedade livre de tal mal, estarão esta- belecidas, em grande parte, as condições para que os direitos e garantias fundamentais se efetivem, aprimorando a qualidade de vida de todas as pessoas. Em outras palavras, é correto afirmar que se qualificam dentre os Direitos Fundamentais a expectativa de viver em um mundo livre de corrupção.
E aqui somos forçados a invocar a previsão constitucional presente no parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Brasileira, que estabelece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Ou seja, os direitos fundamentais não são apenas aqueles que se encon- tram referidos no texto constitucional, já que podem ser os decorrentes do seu regime e dos princípios adotados pela Carta, mesmo que escritos. Ressalte-se, inclusive, que pelos textos transcritos acima, parece-me haver uma tendência das Nações Unidas em fixar o direito a um mundo
livre de corrupção no rol dos Direitos Humanos.
Nesse contexto, sendo certo que tudo aquilo que densifica e aprimora os direitos fundamentais, passam a gozar do mesmo status normativo, tem-se que um Estado e uma sociedade livres de corrupção, assim como os mecanismos legais concebidos para garantir esta condição, constituem direito fundamental titularizado pela sociedade brasileira.
O reconhecimento deste status ao Direito a uma vida livre de corrupção tem grande importância jurídico-constitucional, porquanto passam as políticas públicas tendentes a limpar o Estado a ser regidas pelo princípio constitucional da vedação de retrocesso, não podendo ser atacadas, revogadas ou desconstituídas por aqueles que integram um Poder conta- minado pela corrupção.
Sabidamente, em momentos de descoberta de grandes escândalos de corrupção, forças obscuras, advindas das classes que se beneficiam dos imbróglios, iniciam movimento para atacar tanto os agentes responsáveis
pelas investigações, suas instituições e o próprio arcabouço normativo que legitima as ações anticorrupção, pelo que a construção de uma blindagem se faz necessária.
Assim, esse imoral movimento, à luz do princípio da vedação de retrocesso, não teria condições constitucionais de se efetivar, porquanto representaria um ataque a ferramentas legalmente instituídas para garantir o Direto Fundamental a uma vida livre de corrupção. E, como qualquer ataque a uma garantia ou a um Direito Fundamental, ou mesmo a uma ferramenta que o densifica, o retrocesso afigurar-se-ia inconstitucional. A mesma força normativa da constituição que se aplica aos Direitos Fundamentais deve ser estendida aos comportamentos que atentem contra suas ferramentas defesa, motivo pelo qual é correto classificar o Direito a um Estado e a uma sociedade livre de corrupção dentre os Direitos e
Garantias Fundamentais.
6. Conclusões
Ante a análise realizada no presente artigo, podemos concluir que:
a) A corrupção gera evidentes impactos sobre o desenvolvimento eco- nômico, porquanto tem o efeito de subverter os pilares que sustentam a ordem econômica, tais como a livre concorrência, a vedação de favorecimento concorrencial e controle artificial de preços, dentre outros;
b) Prejuízos ao desenvolvimento econômico, inibem a concreção do primado constitucional presente no artigo 170, CF, no sentido de que a Ordem Econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. De fato, ao distorcer os princípios sustentadores da Ordem Econômica, a corrupção tem o efeito de reduzir a criação de riqueza e sua difusão sobre toda a sociedade, gerando não apenas pobreza, mas também concentração da riqueza produzida;
c) No âmbito do Estado, a corrupção impacta negativamente na governança, fazendo que o exercício do poder não se dê segundo os propósitos constitucionais, e que o processo de tomadas de decisões não tenha como norte orientador único o bem comum.
d) O impacto negativo sobre a governança gera serviços públicos deficitários e ineficientes, com maior impacto sobre as populações menos favorecidas, que se afiguram mais dependentes das prestações públicas do que as de melhor renda. Com isso, os mais pobres, pro- vavelmente já vitimados pelo esfacelamento que a corrupção impôs sobre a Ordem Econômica, não são eficazmente protegidos pelo Estado, não detendo perspectiva para a efetivação de seus Direitos Fundamentais e para a melhoria de suas condições de vida;
e) Por gerar reflexos prejudiciais aos Diretos e Garantias Fundamentais, a corrupção deve ser compreendida como um atentado a tais prerrogativas. Por outro lado, o sistema normativo concebido para combater a corrupção e garantir um Estado e uma sociedade limpa, bem como seus instrumentos de efetivação, integram o mesmo espectro de Direitos Fundamentais, pelo que se submetem ao princípio constitucional da vedação de retrocesso.
Assim, pode-se afirmar que a corrupção atinge duplamente os mais pobres; causa pobreza por desestruturar a Ordem Econômica, e prejudica lhes a oferta e qualidade dos serviços públicos indispensáveis a sua digni- dade. Dessa forma, os instrumentos de combate à corrupção, por atacarem um fenômeno que atenta contra os Direitos Humanos Fundamentais, devem ostentar tratamento normativo mais robusto, de modo a se manterem hígidos mesmo diante de investidas promovidas por integrantes de um Poder Público contaminado pela corrupção.
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Breves apontamentos sobre o sistema jurídico europeu e os instrumentos de controle da corrupção
Brief appointments on the european legal system and the control instruments of corruption
Mário Miranda de Oliveira1
Resumo: A União Europeia apresenta uma ordem jurídica com caracterís- ticas que a tornam especial, tendo em vista que ela é distinta da ordem jurídica interna dos Estados e também da ordem jurídica internacional, além de possuir princípios e conceitos próprios. O sistema jurídico da União Europeia apresenta atualmente grau de amadurecimento e evolução do bloco, seja em função das normas vigentes, seja em razão da jurisprudência criada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Entre os princípios norteadores da aplicação do direito da União Europeia, temos o da autonomia e do primado, exemplificativamente. Normas e dispositivos de controle e combate à corrupção são temas e valores de interesse da União Europeia, com aplicação em todos os Estados do bloco, no limite e alcance de suas normas.
Palavras-chave: Direito da União Europeia. Ordens Jurídicas Próprias. Conflitos de Aplicação e Princípios. Convivência. Normas sobre Corrupção.
Abstract: The European Union presents a legal order with characteristics that make it special, since it is distinct from the internal legal order of States and also
1 Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2001). Pós-graduado em Direito Público pelo CAD/Universidade Gama Filho (2001). Pós-graduado em Direito Constitucional pelo IEC/PUC/MINAS (2009). Advogado militante no foro de Belo Horizonte (2001-2003) até ingresso na Advocacia Geral da União (2003). Atualmente exerce as funções de Procurador Federal. Possui experiência em docência acadêmica no ensino superior de Direito. Autor de artigos. Vide currículo na Plataforma Lattes: <http:// lattes.cnpq.br/8437603713479697>.
from the international legal order, and has its own principles and concepts. The legal system of the European Union is currently showing a degree of maturity and development in the bloc, depending on the rules in force, or on the basis of case law established by the Court of Justice of the European Union. Among the guiding principles of the application of European Union law is that of autonomy and primacy, exemplarily. Norms and mechanisms to control and combat corruption are themes and values of interest to the European Union, with application in all the States of the bloc, within the limits and scope of its norms.
Key words: European Union law – Own legal orders – Conflicts of application and principles – Coexistence – Norms on Corruption.
1. Introdução
Este artigo surge como resultado de uma experiência profissional sem precedentes, ligada ao módulo inaugural do Curso Mecanismos de Controle e Combate à Corrupção na Contratação Pública (nos termos do Acordo de Cooperação firmado entre a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – NOVA Direito), realizado em setembro de 2017, na cidade de Lisboa, Portugal.
A escolha do tema surgiu do contato com o sistema jurídico europeu, no qual visualizam-se diferentes ordens jurídicas sobrepostas, cuja integração se aprimora a cada dia, na medida do amadurecimento e evolução do bloco.
De um lado, as ordens jurídicas nacionais. De outro, a União Europeia e suas fontes normativas, com aplicação nos Estados nacionais.
Importa afirmar a existência de um constitucionalismo além do Estado, de níveis múltiplos, com características próprias, em comparação com o modelo brasileiro ou clássico, aqui considerado como um Estado, indivi- dualmente visto e analisado.
O direito nacional e o direito da União Europeia são duas partes interde- pendentes, intervenientes e que se influenciam. Assim, uma breve pesquisa às fontes do direito da União Europeia se mostrou instigante e necessária. A existência, no mesmo espaço jurídico, de dois ordenamentos distintos potencialmente aplicáveis aos mesmos casos propicia o aparecimento de conflitos entre as normas provenientes de cada um deles, pelo que se afigura
necessário definir regras de aplicação normativa, bem como permear a lógica de sua solução.
Alguns princípios que atuam na solução desse conflito, isto é, direito da União Europeia versus direito dos Estados nacionais, serão tratadas neste artigo. Contudo, tal abordagem não possuirá pretensão exauriente.
Sem perder o foco na questão que motivou o aludido Curso, trato, somente como referência, de tema que será melhor aprofundado em outra oportunidade, qual seja, a previsão de combate à corrupção no âmbito da União Europeia.
Enfim, muito mais que respostas, o Curso deixou diversas perguntas em aberto, as quais desafiarão novos estudos aprofundados sobre a matéria.
2. Breves linhas sobre o constitucionalismo da União Europeia
Muito se discute, em comparação ao Direito Constitucional clássico, sobre a existência de uma Constituição Europeia, muito embora tenha ocorrido o fracasso do Tratado Constitucional de Roma de 29 de outubro de 2004. Sob uma perspectiva formal e material de Constituição, poderíamos definir alguns elementos que seriam comuns dentro da conceituação
tradicional do tema:
1. a existência de um ou mais documentos que codificam a maior parte de um Direito Constitucional;
2. hierarquia ou possibilidade de coerção em relação ao restante da legislação;
3. fruto da manifestação do poder constituinte originário, um dos elementos formadores do Estado, o povo, e;
4. conjunto de normas que definem os valores, fins, objetivos, direitos e garantias fundamentas, seja em face dos demais indivíduos, seja em face do Estado, bem como formatam o Ente estatal, definindo seus órgãos e funções.
Ainda com foco na perspectiva material, a função da Constituição2 prende-se à formatação de instituições da máquina governamental, com o
2 Entendemos como Constituição, o conjunto de regras fundamentais com uma força jurídica vinculante, as quais tratam de conceitos, valores e definições como sistema de governo
respeito a determinados valores e princípios consagrados pelos documentos instituidores.
Colocadas tais premissas, neste contexto, continua a ser problemático individualizar no direito da União Europeia uma Constituição no sentido de um instrumento criado por um poder constituinte originário, proveniente de um povo em um determinado momento histórico, com representantes previamente escolhidos para tal finalidade nos moldes de uma tradicional assembleia nacional constituinte.
Igualmente é certo que as atuais Constituições, mesmo considerando os modelos clássicos, admitem a inserção de normas, de igual grandeza, até mesmo colocadas em posição de destaque no contexto do texto, mesmo que não proveniente do poder constituinte originário,3 mas por procedimentos específicos dos poderes instituídos.
Por outro lado, encontra-se, certamente, no direito da União Europeia, um conjunto de regras e princípios básicos relativos aos três poderes públicos – legislativo, executivo e judiciário – bem como um conjunto de regras e princípios, atinentes aos direitos dos cidadãos.
O TUE (Tratado da União Europeia) indica explicitamente no seu artigo 2º,4 a base valorativa da União, com vinculação do legislador e do administrador da União e dos seus Estados, inclusive dos Tribunais da União e dos Tribunais nacionais. Neste ponto, identificamos valores eleitos como o respeito pela dignidade humana, a liberdade, democracia, igualdade, do Estado de direito, o respeito as minorias, similares aos consagrados tradicionalmente pelas Constituições dos Estados.
O artigo 3º do TUE prevê os fins da União que coincidem com as finali- dades dos Estados que compõem o bloco. Seriam eles, a promoção da paz,
de uma comunidade política ou de uma pluralidade de comunidades políticas integradas num todo mais vasto.
3 A título de exemplo, cito o artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição Brasileira:
“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem apro- vados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
4 A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da demo- cracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.
dos seus valores e do bem-estar dos povos (nº 1); a liberdade, a segurança e a justiça (nº 2); O desenvolvimento sustentável, face num crescimento econômico equilibrado, o pleno emprego e o progresso social e a melhoria da qualidade do ambiente (nº 3, par. 1º); o combate à exclusão social e às discriminações, a promoção da justiça e da proteção social, a igualdade entre homens e mulheres, a solidariedade entre gerações e a proteção dos direitos das crianças (nº 3, par. 2º), caminham no sentido dos bens e inte- resses comuns, tradicionalmente adotados em constituições dos Estados.
Os órgãos da União, que possuem personalidade jurídica própria,5 dentro da sua atual estrutura e atribuição, devem respeitar os valores consagrados quando editam atos legislativos ou administrativos. Tais fatores são coloca- dos pelo TUE desde as práticas administrativas internas até a sua atuação externa (artigos 3º, nº 5, e 21º, nº 1, e nº 2, al. a).
Os Estados, igualmente, devem respeitar valores eleitos da União. Segundo o artigo 49º6 do TUE, a adesão à União de um novo Estado-membro depende, antes de qualquer coisa, do respeito dos valores referidos no artigo 2º do mesmo Tratado. Ainda de acordo com o artigo 7º7 a existência de violação ou até mesmo o risco de violação dos valores referidos no artigo 2º, pode levar à suspensão de certos direitos dos Estados. A repercussão
5 Artigo 47º: A União tem personalidade jurídica. TUE. Disponível em: <https://www. parlamento.pt/europa/Documents/Tratado_Versao_Consolidada.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2018.
6 Qualquer Estado europeu que respeite os valores referidos no artigo 2º e esteja empe- nhado em promovê-los pode pedir para se tornar membro da União. O Parlamento Europeu e os Parlamentos nacionais são informados desse pedido. O Estado requerente dirige o seu pedido ao Conselho, que se pronuncia por unanimidade, após ter consultado a Comissão e após aprovação do Parlamento Europeu, que se pronunciará por maioria dos membros que o compõem. São tidos em conta os critérios de elegibilidade aprovados pelo Conselho Europeu. As condições de admissão e as adaptações dos Tratados em que se funda a União, decorrentes dessa admissão, serão objeto de acordo entre os Estados-Membros e o Estado peticionário.
Esse acordo será submetido à ratificação de todos os Estados Contratantes, de acordo com as respetivas normas constitucionais.
7 Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2º, por parte de um Estado- Membro. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado-Membro em questão e pode dirigir-lhe recomendações, deliberando segundo o mesmo processo.