Direito Civil
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Xxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx
Direito Civil
Contratos (Geral e Espécies)
e Direitos Reais
Edição
Revista, atualizada e ampliada
aO
2024
Introdução aos Direitos Reais
Sumário • 1. Conceito – 2. A Classificação dos Direitos Reais.
1. CONCEITO
Os direitos reais são “as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas e coisas determinadas ou determináveis, tendo como fundamento principal o con- ceito de propriedade, seja ela plena ou restrita”1. O direito das coisas é o com- plexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes aos bens susce- tíveis de apropriação pela pessoa humana. Tais coisas são, ordinariamente, do mundo físico, porque sobre elas é possível exercer o poder de domínio2. Pode ser conceituado o “direito das coisas como o conjunto de normas que regem as relações jurídicas concernentes aos bens materiais ou imateriais suscetíveis de apropriação pelo homem”3, daí porque o “direito real é a relação jurídica em virtude da qual o titular pode retirar da coisa, de modo exclusivo e contra todos, as utilidades que ela é capaz de produzir”4.
Os direitos reais regulam o fenômeno da apropriação, bem como as demais relações entre as pessoas e as coisas. Seu objeto diz respeito a bens econo- micamente relevantes, escassos. Disciplinam um conjunto de relações jurídicas extremamente relevantes para o direito privado, especialmente no plano eco- nômico. Comprovando o dito, basta se atentar para o instituto da propriedade e a sua importincia social. Sobre o tema, adverte a doutrina de Luiz Edson Fachin5: “a história do direito é, em boa medida, a história da garantia da propriedade”.
1. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 4.
2. BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos das Coisas. V. 1. p. 11.
3. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Direitos das Coisas. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24s ed., São Paulo: Sa- raiva, 2009. p. 3.
4. Citado por Xxxxx Xxxxxx Xxxxx. Op. Cit., p. 20.
5. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 71.
2. A CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS REAIS
Várias são as classificações dos direitos reais, sendo a mais importante aquela que os divide em jus in re própria e jus in re aliena, ou seja, direito em coisa pró- pria e os direitos reais na coisa alheia6.
Também chamados de direitos limitados, o jus in re propria são aqueles alu- sivos à propriedade. Os direitos reais na coisa alheia, ou seja, o jus in re aliena, relacionam-se à fragmentação das faculdades proprietárias, do domínio, compre- endendo a superfície, as servidões, o uso, o usufruto, a habitação, a promessa de compra e venda, o penhor, a anticrese, a hipoteca e a concessão de uso.
Ainda sobre os direitos reais na coisa alheia, podemos dividi-los de várias maneiras. Inicialmente, importa ressaltar que o penhor, a anticrese e a hipoteca (garantias que são) se caracterizam como direitos reais acessórios. Sim, os direitos reais acessórios são, justamente, os de garantia. Existem por conta de um direito principal. Por outro lado, os direitos reais de gozo ou fruiçio envolvem preponde- rantemente o usufruto, o uso e a habitação.
Voltando os olhos ao Código Civil, percebe-se que ele dedica o seu Xxxxx XXX, da sua Parte Especial, ao tratamento dos Direitos Reais. Assim, confere tratamento principal à posse, a propriedade (direito real na coisa própria) elencando, poste- riormente, os chamados direitos reais menores (sobre a coisa alheia), com os de gozo e fruiçio (superfície, servidões, usufruto, uso, habitação, anticrese e o direito do promitente comprador), os de disposiçio (enfiteuse, penhor, hipoteca, anticre- se, propriedade fiduciária, alienação fiduciária e cessão fiduciária).
Nessa ótica, em uma análise legalista, vê-se que o Livro III da Parte Especial do Código Civil, denominado “Direito das Coisas”, é dividido em títulos, os quais contemplam os temas da posse, direitos reais, propriedade, superfície, servidões, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador, penhor, hipoteca e anticrese.
Xxxxxxx perceber que a posse não está elencada dentre os direitos reais enu- merados, taxativamente, no art. 1.225 do Código Civil. Todavia, é tratada pela dou- trina e regulada na legislação codificada, pois a posse é justamente a exterioriza- ção da propriedade, sendo tutelada para proteger as faculdades proprietárias, como bem ensina Carlos Roberto Gonçalves7.
De mais a mais, os direitos autorais, tratado quando do Código Civil de 1916 como reais, não foram incluídos dentro do Diploma Civil vigente, sendo, há muito, tutelados por normas específicas e extravagantes (Lei 9.610/98 e Lei 9.279/96).
6. XXXXX, Xxxxxxx. Direitos Reais. Atualizador Xxxx Xxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 17. 7. Op. cit., p. 25.
Posse
Sumário • 1. Nota Introdutória. Por que Proteger a Posse? – 2. Teorias Explicativas
– 3. Mas Afinal, o que é a Posse? – 4. Posse versus Detenção – 5. A Aquisição da Posse – 6. A Perda da Posse – 7. Classificação da Posse: 7.1. Posse Direta versus Posse Indireta. Os Desdobramentos da Posse; 7.2. Composse ou compossessão;
7.3. Posse Justa versus Posse Injusta. Vícios Objetivos da Posse; 7.4. Posse de Boa-fé versus Posse de Má-fé. Vícios Subjetivos da Posse; 7.5. Posse Nova e Posse Velha; 7.6. Posse Natural e Posse Civil ou Jurídica; 7.7. Posse ad interdicta e Posse ad usucapionem.
1. NOTA INTRODUTÓRIA. POR QUE PROTEGER A POSSE?
“A posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expres- sar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econô- micos e sociais merecedores de tutela1”.
A origem da posse é controvertida, sendo, porém, incontroverso, que o seu desenvolvimento aconteceu em Roma. Nesse cenário, percebe-se que os interditos possessórios que temos hoje são originários do Direito Romano, posto que, no Direito Germânico, a proteção da posse estava condicionada à propriedade.
Mas qual seria o objetivo de proteçio da posse?
O escopo protetivo do fenômeno possessório é a paz social, pois, sem dúvida, a posse é objeto de grandes lutas. De igual sorte, busca-se proteger a posse com o objetivo de realizar interesses existenciais, sociais e econômicos merecedores de tutela. As demandas possessórias no Brasil, não só em áreas rurais, mas tam- bém nas urbanas, já ocasionaram inúmeros embates, tanto patrimoniais, como pessoais. O ranço latifundiário, decorrente das capitanias hereditárias, somado a um processo histórico desigual concentrador da terra em benefício de poucos, o qual impediu o acesso de muitos, leva à posse uma tensão desmedida. Esta tensão merece diferenciado cuidado do ordenamento jurídico nacional. Justo por isso, que merece a posse toda a atenção e tutela.
2. TEORIAS EXPLICATIVAS
O ser humano, há muito, analisa a posse e tenta entendê-la. Assim, lembra a doutrina a existência de duas teorias amplamente difundidas e “originadas do
1. Enunciado 492 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.
esforço de seus autores para uma interpretação exata dos textos romanos”. Tais teorias são fundadas no desejo de identificar, a partir dos elementos da posse, o seu conceito2. Estamos nos referindo à Teoria Subjetiva da Posse, de Savigny, e a Teoria Objetiva da Posse, de Ihering.
São três os principais pontos distintivos das teorias: (i) a determinação dos elementos constitutivos da posse; (ii) a explicação da natureza da posse; e (iii) a fundamentação da proteção possessória.
a) Teoria Subjetiva (Xxxxxxxxx Xxxx Xxx Xxxxxxx)3
Xxxxxxxxx Xxxx Xxx Xxxxxxx, no seu festejado “Tratado da Posse” (historicamente surgido em 1893), aos 24 (vinte e quatro) anos de idade, buscou teorizar a posse, no direito alemão, com base em ensinamentos provenientes do Direito Romano. Para tanto, sustentava Xxxxxxx que a posse traduziria um poder material sobre a coisa – domínio físico (corpus) – com a intenção de tê-la para si (animus).
Em Síntese, para a Teoria Subjetiva: Corpus (Elemento Objetivo, Xxxxxxx Xxxxxx)
+
Animus Rem Sibi Habendi (Elemento Subjetivo ou Espiritual, a intensão)
=
Posse
Justo por conta da exigência da intenção – o aspecto subjetivo, o animus – que a teoria em comento foi batizada como subjetiva. O corpus seria o elemento mate- rial, identificado no poder físico sobre a coisa, na apreensão física do bem, no po- der de fato, segundo uma relação externa e visível. Já o animus traduz o desejo, a vontade de ter a coisa como própria, a relação interna, invisível. Caso não houves- se o aludido animus, para Savigny, posse não existiria; mas, sim, mera detenção4.
Por conta do animus os detentores não titularizam a posse, não sendo me- recedores de tutela possessória, porquanto teriam apenas o domínio físico da coisa (corpus). Sob o ponto de vista prático, esse entendimento seria inadequado à fundamentação jurídica de direitos dos locatários, comodatários, usufrutuários e depositários, pois, como meros detentores (para a teoria subjetiva) não gozam dos efeitos da proteção possessória.
Xxxxxxx perceber que, diante do problema dos comodatários, locatários, arren- datários, dentre outros, Xxxxxxx tentou uma solução tangencial, criando uma figura intermediária entre o detentor e o possuidor, chamado de possuidor derivado. Xxxxxx, neste momento, contrariando a própria tese e defendendo existir possui- dores sem intenção, o que enfraqueceu, ainda mais, a sua matriz teórica.
2. Op. cit., p. 94/95.
3. Malgrado a maioria dos manuais e das provas informarem ser o genitor da teoria subjetiva Xx- xxxxx; há quem discorde. Para alguns, como Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx (op. cit., p. 48), a referida teoria teve como xxxxxxxx Xxxxxxx.
4. Op. Cit., p. 32.
A teoria subjetiva representou, à época, um enorme avanço, pois ao estudar a posse na Alemanha, com fundamento em Roma, conferiu autonomia ao instituto. A posse deixará de ser uma mera decorrência proprietária. Apesar disso, a referida teoria não foi isenta de críticas, sendo a principal a percepção de que a verificação do elemento subjetivo (animus) era demasiadamente dificultosa.
Pautada nessa crítica que adveio a teoria objetiva da posse, sobre a qual pas- samos a falar.
b) Teoria Objetiva (Xxxxxx Xxx Xxxxxxx)
A teoria objetiva da posse teve como seu genitor Xxxxxx Xxx Xxxxxxx, que foi aluno de Savigny, em Berlim, na Faculdade de Direito. Xxxxxxx se dedicou a tentar melhorar e aparar as arestas da teoria de seu professor, Xxxxxxx.
Para esta construção teórica, possuidor é a pessoa que se comporta como se fosse proprietária da coisa, imprimindo destinação econômica a ela, indepen- dentemente da demonstração do animus. Objetivando um contraponto à teoria subjetiva, ressalta a teoria em comento o comportamento objetivo, enxergando a posse, em regra, como a exteriorização da propriedade ou o exercício de um dos seus poderes. É possuidor aquele que tem a conduta de dono.
Dessa maneira, segundo a matriz em estudo, apenas o aspecto objetivo im- porta à configuração da posse, sendo esta igual ao corpus. Interessante, porém, que o corpus ganhou uma conotação diversa da de Savigny, pois não consistia em um mero contato físico, mas sim em uma função econômica, na forma que age o proprietário diante daquele bem, na conduta de dono.
Em síntese:
Teoria Objetiva: Posse = Corpus (conduta de dono).
A posse é considerada, pela teoria objetiva, como um direito a ser protegido para a preservação, consequencial, da própria propriedade. Trata-se de posicio- namento diverso da teoria subjetiva, na qual a posse é protegida pelo fundamento de que todo e qualquer ato de violência merece resposta Estatal, independente- mente da tutela proprietária.
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx, ao comentar a teoria objetiva da posse, que “a qua- lidade de possuidor é atribuída a muitas pessoas que, na concepção clássica, são consideradas meras detentoras”. Isto porque, todo aquele que utilizar coisas alheias, em decorrência de uma relação jurídica real ou obrigacional, será, neces- sariamente, possuidor5.
O detentor, neste cenário e na lembrança de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, configu- ra-se com a mera incidência de obstáculo legal à aquisição da posse, verificando-
-se uma posse degradada6. Aqui, arremata o doutrinador, reside uma das mais importantes diferenças entre as duas teorias:
5. Op. Cit., p. 37.
6. Op. Cit., p. 59.
a) Enquanto Xxxxxxx enxerga a detenção como um corpus – entendido como poder físico – sem o animus – desprovido de intenção.
b) Ihering enxerga a detenção como o corpus – conduta de dono – com um obstáculo legal que impeça a posse.
A crítica feita à teoria objetiva, reside no fato de esta retirar a autonomia plena da posse, e analisando conjuntamente à propriedade, remetendo à exteriorização da propriedade e conduta de dono7.
Malgrado as críticas, porém, foi a teoria objetiva a tese abraçada pelo vigente Código Civil.
3. MAS AFINAL, O QUE É A POSSE?
Diante de toda a raiz histórica trabalhada, bem como das matrizes teóricas sobre o instituto, a primeira dúvida conceitual que se colocar, ao ser enfrentada a definição da posse, é se esta seria um fato ou um direito? Tal dúvida persiste na doutrina desde o direito romano.
Sobre esta problemática, existem duas importantes correntes8. A primeira sustentando ser a posse, pura e simplesmente, um fato, como defendido por Xxxxxxxxxx, Xxxxxxxx-Xxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxxxxx, Cujacius e outros9. A segunda afirmando ser a posse um direito, como xxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxx xx Xxxx- xxx, Xxxxxxx Xxxxx, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, Xxxx Xxxxx, Xxxxxxxxx, Sintenis, Molitor, Pescatore e outros10.
🞂 Atenção!
Percebe-se, a partir do supracitado, que para a teoria subjetiva da posse, esta é, a um só tempo:
a) fato, quando analisada em si mesma;
b) direito, quando observada em relação aos efeitos dela decorren- tes.
Todavia, para a teoria objetiva da posse, esta é apenas um direito.
A posse é um direito, “levando-se em conta a teoria tridimensional de Xxxxxx Xxxxx”11, segundo a qual o direito nada mais é, senão fato, valor e norma.
Comungando, porém, com a doutrina de Carlos Roberto Gonçalves12, há uma
terceira via possível de ser enxergada, defendida por Xxxxxxx, Savigny, Pothier,
7. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Curso de Direito Civil. v. 5: Reais. 10s ed. p.
57. Salvador: Juspodivm, 2014.
8. XXXXXXX XXXXX, Xxxx Xxxxxx. Posse. Estudo dogmático. X. XX. x. X, 0x xx. Xxx xx Xxxxxxx: Forense, 1999. p. 69.
9. Apud Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Op. Cit., 73.
10. No mesmo sentido, de que a posse é um direito e a doutrina de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, ambas utilizadas no curso deste capítulo.
11. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 28.
12. Op. Cit., p. 73.
Brinz, Domat, Ribas, Xxxxxxx, Xxxxx e outros. É a teoria mista ou eclética, a qual enxerga a posse como um fato e um direito.
Nessa linha de intelecção, nos parece que ser direito não retira da posse a natureza de fato, podendo ser esta traduzida como um fato tutelado pelo próprio direito.
Com efeito, segundo a lei, possuidor é aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade (arts. 1.196 e 1.204, ambos do CC). Logo, ao ter de fato tal exercício, terá um direito à posse. Tanto isto é verdade que, de acordo com a legislação, a posse se adquire desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.204, CC). O possuidor será, desde então, protegido, seja pela inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), seja pelo direito consti- tucional à moradia (art. 6º, caput, CF), ou, finalmente, diante da função social desta posse.
Vê-se, então, que o Direito tutela este fato.
Mas em sendo um direito, a posse seria um direito real ou obrigacional (pes- soal)?
Trata-se de mais uma importante polêmica.
Para Xxxxxxx, em sendo a posse um direito, seria, seguramente, real, pois diz respeito a uma relação entre um sujeito e uma coisa, e não entre pessoas. Ade- mais, não tem por objeto uma prestação.
Ocorre que, como visto no capítulo introdutório a esta obra, o Código Civil brasileiro trabalha com um rol taxativo de direitos reais (art. 1.225 do CC), o qual não incluiu a posse. Nesta ótica, seria a posse um direito pessoal. De outro modo, como visto no mesmo capítulo introdutório, há outros direitos reais, previstos no Código Civil, e não elencados no seu art. 1.225, a exemplo do direito de retenção. Voltaria, então, a possibilidade de ser enxergada a posse como um direito real.
O dilema só aumenta.
Parece-nos que a razão, aqui, assiste a Xxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxx Xxxx Xxxxxxxx, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx e aqueles que defendem a tese de ser a posse um direito pessoal especial, típico e autônomo13.
Decerto, não estando no rol do art. 1.225 do CC, sustentar a tese de que a posse seria um direito real encontra grandes obstáculos. Todavia, pensá-la como uma mera obrigação, é igualmente difícil, porquanto ser uma relação que envolve uma coisa, com certa oponibilidade.
Encaixando o fenômeno em uma situação diferenciada, resta possível compre- endê-lo como um direito pessoal com ampla oponibilidade e, até mesmo, alguma sequela.
13. Apud Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, p. 76 e 77.
Sob o ponto de vista legislativo, porém, é clarividente que a posse resta tra- tada no livro dos direitos das coisas. Como já visto, não é um direito real por não estar inserido no art. 1.225 do Código Civil.
E, então, qual seria o conceito de posse?
A posse é um poder de fato; a propriedade, o poder de direito sobre a coisa, configurando como elemento indispensável ao proprietário para a utilização eco- nômica da coisa.
Prossegue o saudoso doutrinador baiano recordando que esta utilização eco- nômica da propriedade se verifica ou pela utilização da posse pelo próprio pro- prietário, ou, ainda, pela cessão do poder de fato que este tem para outra pessoa. Assim, deve a posse ser encarada como uma “condição ao nascimento de um direito”, ou “como fundamento de um direito”, a depender da situação jurídica concreta14.
O Código Civil vigente, de forma próxima ao anterior, se ocupou de conceituar a posse, especificamente no seu art. 1.196, afirmando ser o possuidor o sujeito de direito que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade. Assim, para ser possuidor não é necessário conservar o exercício pleno de todas as faculdades proprietárias – uso, gozo ou fruição, disposição e sequela –, bastando conservar o exercício, ainda que parcial, de um desses poderes.
Mas o Código Civil adota a teoria objetiva ou subjetiva da posse?
Voltando-se os olhos ao Código Civil, segundo a doutrina majoritiria, este ado- ta, preponderantemente, a teoria objetiva da posse (art. 1.196)15. A própria possi- bilidade, prevista no Código Civil, de desdobramentos da posse em direta e indi- reta (art. 1.197), ilustra a adoção da teoria objetiva, na medida em que reconhece ser factível a outra pessoa, não proprietária do bem, possuí-lo, ante o critério da destinação econômica.
Porém, em algumas situações codificadas, há indícios da presença da teoria subjetiva, a exemplo da usucapiio – em que se exige a posse com animus dominis
–, na posse de boa-fé – sendo aquela em que o possuído desconhece obstáculo ou vício que impeça a sua aquisição proprietária – e na detençio – quando o cidadão tem contato direito com a coisa (corpus), mas não é considerado possuidor.
De mais a mais, em uma leitura atual do conceito de posse, esta deve ser significada com base no texto constitucional, à luz dos seus valores e princípios, consoante a constitucionalizaçio do direito civil. O diuturno conceito de posse há de ser influenciado por valores repersonificadores, como a dignidade da pes- soa humana, a solidariedade social, a função social, o direito social à moradia, entre outros.
14. XXXXX, Xxxxxxx. Direitos Reais. Atualizador Xxxx Xxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34/35.
15. Vários doutrinadores afirmam o dito, citando por todos Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx (op. cit., p. 55).
Por tudo isso, a posse há de ser verificada, atualmente, consoante a sua funçio social, como bem posto pela Teoria Sociológica da Posse, a qual fora desenvolvi- da no século XX, na Europa, em especial na Itália, pelas mãos de Xxxxxx Xxxxxxx, na França, pelos cuidados de Xxxxxxx Xxxxxxxxx e, finalmente, na Espanha, por Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxx. Todos, em coro, e em especial o último, proclamando a necessidade de uma funçio social da posse.
Cediço, porém, que o reconhecimento da função social da posse exige flexão hermenêutica do art. 5º, XXIII, da Constituição Federal; sendo um consectário da função social da propriedade. De fato, não há nenhum artigo expresso – nem na Constituição Federal nem no Código Civil – afirmando a função social da posse.
Mas o que seria afirmar que um instituto privado possui função social?
Stefano Rodotà16 foi um dos primeiros juristas que, efetivamente, realizou um estudo mais aprofundado sobre o real significado das expressões “função” e “so- cial”. Segundo ele, o termo função opõe-se ao de estrutura, sendo o norte para a averiguação da forma pela qual o direito é operacionalizado. Dessa forma, no instante em que o ordenamento reconhece que o direito de propriedade e de posse não deve ser exercido de forma a satisfazer unicamente ao interesse do seu titular, devendo também se dirigir aos não proprietários/possuidores, consigna uma função social ao direito de propriedade.
Por social deve-se enxergar um padrão elástico por meio do qual se transfere para a órbita legislativa, e do judiciário, certas exigências do momento histórico. Logo, social seria um conceito histórico-determinado, vago, elástico, por meio do qual se encaixariam os valores relevantes, moral e eticamente, à época ana- lisada.
A expressão função traz consigo uma ideia de dever ao proprietário, con- sistindo em uma finalidade a ser dada à propriedade em prol do interesse de outrem. Já do termo social se infere “conveniente à sociedade”, que “interessa para a sociedade”. Tais valores sociais seriam os elegidos em lei e na Constitui- ção Federal. Nessa esteira, por função social depreende-se o dever do possuidor em atender as finalidades sociais relacionadas aos interesses protegidos em lei.
Esta posse-social é admitida por boa parte da doutrina17. O Código Civil, em muitas passagens e de forma oblíqua, abraça a função social da posse. Exemplifi- ca-se ao abordar a diminuição de prazos na usucapião extraordinária e ordinária, em função da posse-trabalho (arts. 1.238 e 1.242 do CC), bem como ao permitir a desapropriação judicial, nas pegadas do art. 1.228, §§ 4º e 5º. O possuidor há de ter a conduta de um bom proprietário, tendo comportamento ético e social no exercício do seu direito18.
16. BULOS, Uadi Lammêgo. “Função Social da Propriedade (Perspectiva Constitucional)”. In XXXXXXX, Xxxxxxxx (diretor). Trabalho & Processo. Revista Jurídica Trimestral. São Paulo: Saraiva, Setembro 1995. p. 143/145.
17. TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 30.
18. XXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxx da. Instituições de Direito Civil. Vol. IV, p. 14.
🞂 Atenção!
O Enunciado 492, da V Jornada em Direito Civil, afirma que a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade, e deve expres- sar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existen- ciais, econômicos e sociais merecedores de tutela, evidenciando que, sob o ponto de vista doutrinário, é assente o entendimento acerca da função social da posse.
Mas esta posse se dirige, apenas, aos bens corpóreos, ou também diria res- peito aos bens incorpóreos ou, até mesmo, à direitos? A questão é das mais im- brincadas.
Em uma anilise histórica, vê-se que, na origem do Direito Romano, se entendia que a posse se configurava apenas sobre bens físicos. Coube ao Direito Canônico, posteriormente, admitir a possibilidade jurídica da posse para todo e qualquer direito.
Verificando o direito comparado, percebe-se que as legislações oscilam, ora para aceitar a posse pura e simplesmente para bens corpóreos, ora para estender a incidência desta, também, aos bens incorpóreos.
Evidentemente que “problema não admite solução simplista”19, concluindo-se que a correta interpretação da doutrina objetiva de Ihering não levaria à vedação da posse de bens incorpóreos20.
Fato é que, no Brasil, por força da tese levantada por Xxx Xxxxxxx, durante determinado lapso de tempo, houve a posse de direitos, por utilizar o referido advogado dos interditos para a defesa de direitos pessoais, a exemplo de reinte- gração no emprego. O aludido Professor publicou, até mesmo, um livro retratando a tese, cujo batismo é a Posse dos Direitos Pessoais.
Entrementes, com a posterior criação do remédio heroico (mandado de segu- rança), em 1934, a tese do bom baiano perdeu força.
Fazendo uma análise do direito legislado, Xxxxxx Xxxxxxxxx afirma que o Código Civil de 1916 não previu a posse de direitos pessoais21. O mesmo aconteceu no vi- gente Código Civil, ainda de maneira mais clara, quando suprimiu dúbias redações da legislação pretérita.
O fato é que, hoje, consoante a doutrina majoritiria, apenas coisas (corpó- reas), em regra, são objetos de posse. Isto, porque, para que haja o corpus, é necessário o poder físico sobre a coisa e a conduta de dono. Assim, para tanto, o objeto há de ser material22.
19. XXXXX, Xxxxxxx. Direitos Reais. Atualizador Xxxx Xxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 46.
20. XXXXX, Xxxxxxx. Direitos Reais. Atualizador Xxxx Xxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 45.
21. Apud Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Código Civil dos Estados Unidos, v. 3, p. 9-10.
22. Este é o pensamento de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 68.
🞂 Como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
Todavia, registra-se, na jurisprudência sumulada, o tema é vacilante. O Superior Tribunal de Justiça afirma ser “inadmissível o interdito proibi- tório para a proteção de direito autoral” (Súmula 228, STJ), fazendo crer que não há proteção possessória de ideias, por ser um bem imaterial. Porém, a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em outra oportunidade, admitiu a posse com fins de usucapião de linha telefônica, como se infere da redação da Súmula 193.
Diante de todo este cenário, alguns direitos obrigacionais (pessoais) e extra- patrimoniais podem ser objeto de posse, sendo defendidos pela tutela dos inter- ditos23, de modo que seriam objeto de posse: a) o domínio; b) os direitos reais que dele se desmembram e subsistem como entidades distintas e independentes; e c) os demais direitos que, fazendo parte do patrimônio da pessoa, podem ser reduzidos a valor pecuniário, o que concordamos.
4. POSSE VERSUS DETENÇÃO
Uma vez consignado que o Código Civil adota a teoria objetiva da posse, de Ihering, segundo a qual a posse ocorre a partir do domínio físico da coisa, uma importante questão surge: como, então, diferenciar o possuidor do detentor?
O questionamento, efetivamente, levanta polêmica, pois tanto o possuidor como o detentor possuem apreensão física da coisa, aparentando ser o dono.
No que tange à detenção, o legislador civilista, por opção legislativa e minorita- riamente, abraçou a teoria subjetiva, informando que não haveria posse, porquan- to a ausência de animus. Em nio havendo posse, o detentor:
a) Não poderá usucapir o bem, pois inexiste posse com animus domini;
b) Não poderá se valer de tutelas possessórias (ações possessórias), sendo a hipótese de ilegitimidade ativa ad causam (CPC, arts. 17 e 18);
c) Não deverá o detentor ser demandado em ações possessórias. Xxxxx, o atu- al CPC extinguiu o instituto da nomeaçio i autoria e optou por simplificar a situação processual, de modo a autorizar ao réu suscitar como um dos temas de contestação a sua ilegitimidade passiva ad causam, nos termos do art. 339 do CPC: “Alegando o réu, na contestação, ser parte ilegítima ou não ser o responsável pelo prejuízo invocado, o juiz facultará ao autor, em quinze dias, a alteração da petição inicial para substituição do réu.”
Não há mais, pois, a nomeação à autoria, apenas a possibilidade de correção do polo passivo da relação processual pela parte autora. A propósito, reza o art. 339 do CPC: “Quando alegar sua ilegitimidade, incumbe ao réu indicar o sujeito passivo da relação jurídica discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de
23. XXXXX, Xxxxxxx. Direitos Reais. Atualizador Xxxx Xxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 45.
I
C a p í t u l o
Os Princípios Contratuais
Sumário • 1. Introdução: O Estado Principiológico – 2. Princípio da Autonomia. Da Autonomia da Vontade à Autonomia Privada – 3. Princípio do Relativismo ou da Relatividade dos Efeitos do Contrato: 3.1. Estipulação em Favor de Terceiros ou Contrato em Favor de Terceiro; 3.2. Promessa de Fato de Terceiro, Contrato por Terceiro ou Contrato por Outrem; 3.3. Contrato com Pessoa a Declarar ou a Nomear; 4. Princípio da Força Obrigatória, Intangibilidade ou Força Vinculante dos Contratos. O Pacta Sunt Servanda: 4.1. Teoria da Imprevisão e Análise da Onerosidade Excessiva – 5. Princípio da Boa-Fé: 5.1. Conceitos Parcelares da Boa-Fé Objetiva – 6. Princípio da Função Social dos Contratos. A Tutela Interna e Externa do Crédito – 7. Princípio da Equivalência Material ou da Justiça Contratual.
1. INTRODUÇÃO: O ESTADO PRINCIPIOLÓGICO
Hodiernamente é lugar comum a afirmação nos manuais dedicados ao Direito Privado de que as normas são um grande gênero, dentro dos quais os princípios e as regras estão contidos.
O batizado Estado Principiológico inaugurado pela Constituição Federal de 1988 acabou por colocar, como ordem do dia, a discussão acerca da eficicia dos prin- cípios jurídicos, seu conteúdo e aplicação. Cristalizou-se a noção de que as legis- lações devem ser dotadas de poros aptos a permitir sua diuturna atualização, em face das galopantes alterações sociais. Uma destas válvulas está na principiologia, típica do atual cenário pós-positivista.
Com tudo isso, é trazida à baila a valoraçio dos princípios: alicerce sobre o qual é erguida a legalidade constitucional. Aproxima-se o direito da ética, bem como se confere centralidade aos direitos fundamentais. Princípios ganham força normativa, com aplicação direta aos casos concretos e ponderação, acaso diante de colisões. Os modelos de compreensão dos princípios do norte-americano rONALD DWOrkIN e do alemão rOBErT XXXXX xxxxxx ainda mais espaço.
Todo este Estado Principiológico contaminou o Direito Civil, por meio da chamada Constitucionalização do Direito Civil1. Não foi diferente com a seara contratual, desde o apogeu dos contratos – quando da Revoluçio Francesa –, até os dias de hoje.
1. Para aqueles que desejam se dedicar ao tema constitucionalização do direito civil, indica-se a
leitura do tópico específico da parte geral.
Nessa senda, tem-se no Direito Contratual Princípios Liberais, da época revo- lucionária, e Princípios Sociais, acrescidos modernamente, em nítido diálogo e aplicação direta a casos concretos, com carga normativa e aptidão para solução de problemas. São os princípios:
Autonomia
Princípios liberais
ou individuais
Relativismo
Força Obrigatória
Boa-fé
Princípios
Sociais
Função
Social
Equivalência Material
das Prestações ou Justiça Contratual
Recorda FLÁVIO TArTUCE2, que o aludido Estado Principiológico acabou por promo- ver aproximação entre os diversos braços do direito, em um nítido diilogo das fontes ou das forças. Assim, os princípios sociais – função social, equivalência ma- terial e boa-fé – passaram a transitar, atentos as nuances de cada ramo do direito. Nasce uma nova e fecunda teoria geral dos contratos.
Como bem pontua o Enunciado 167 do Conselho da Justiça Federal, “com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”.
Justamente sobre tais Princípios Contratuais que se passará a falar, em tópicos apartados, propugnando sua releitura consoante os valores repersonificados e despatrimonilizados do Direito Civil hoje vigente.
2. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA. DA AUTONOMIA DA VONTADE À AUTONOMIA PRIVADA
Como fenômeno voluntarista que o é, não há contrato, a priori, sem exercício da autonomia (liberdade). XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E xXXXXXX PAMPLONA FILHO3 ensinam que contrato sem vontade não é contrato. Pode ser tudo. Até tirania. Menos contrato.
2. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 562.
3. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 72.
Logo, o estudo da autonomia – liberdade contratual – é o primeiro tópico de destaque para aqueles que desejam se aprofundar na seara dos contratos, uma das principais espécies de negócio jurídico.
Lembra ÉrICO DE PINA CABrAL4 que o vocábulo autonomia vem do grego (auto + nomos) e significa independência, autodeterminação, o que é regido por leis pró- prias. No DICIONÁrIO HOUAISS5, autonomia significa “capacidade de se autogovernar; [...] direito de reger-se segundo leis próprias”.
HELOÍSA HELENA BArBOSA6 aponta que este conceito grego, na sua origem, referia-se “à coletividade, precisamente ao seu poder autárquico, consistente na capacidade de a polis grega instituir os meios de seus poderes legítimos e fazê-los respeitados pelos cidadãos”. Somente a partir do século XVIII é que o conceito de autonomia se aplica aos indivíduos.
Autonomia, na lição de CArLOS ALBErTO DA MOTA PINTO7, é a ideia fundamental do Direi- to Civil, devendo ser compreendida: i. quer no aspecto da liberdade de exercer ou não os poderes ou faculdades de que se é titular, ii. quer no aspecto mais comple- to, da possibilidade de conformar e compor, conjuntamente ou por ato unilateral, os interesses próprios.
No domínio dos contratos, a doutrina da autonomia da vontade surge a partir do século XVI, com o Humanismo e com a Reforma. Mas é com a Escola Jusnatu- ralista que toma corpo doutrinal. Nas lições de JOHN GILISSEN8, a Escola Jusnaturalista racional, no século XVII, constituiu fator importante de laicização do direito, da con- cepção racional. Para os jusnaturalistas, o direito regia a sociedade civil e a von- tade era soberana. O livre arbítrio era o princípio base de todo o direito natural.
Com a evolução dessa noção, no século XVIII, a autonomia da vontade passa a ser interpretada como fonte e fim de todo o direito. Os ideais da Revoluçio Fran- cesa balizaram a organização jurídica no consenso das partes. O consensualismo eleva o contrato à força de lei, afirma XXxXX ANGÉLICA BENETTI ArAÚJO9.
Nessa época, a vontade chegou ao extremo de ser elevada à categoria de dog- ma. A vontade revela-se a expressão da liberdade humana. Ninguém poderia se obrigar, senão por vontade livre e espontânea. Os contratos possuíam um caráter
4. XXXXXX, Xxxxx xx Xxxx. A “Autonomia” no Direito Privado. Revista de Direito Privado, a. 5, n. 19, jul./set., 2004, p. 84.
5. XXXXXXX, Xxxxxxx; e XXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxx. Dicionirio Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 351.
6. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Reflexões sobre a autonomia negocial. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxx Xxxxx. (coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 408.
7. XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx. Teoria geral do Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p. 42.
8. XXXXXXXX, Xxxx. Introduçio Histórica ao Direito. 3. ed. Tradução de X. X. Xxxxxxxx e L.M. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 737-738.
9. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx. Autonomia da vontade no direito contratual. Revista de Direito Privado, n. 27, a. 7, jul./set., 2006, p. 288.
justo e intangível (pacta sunt servanda), devendo ser executados de acordo com o quanto disposto pelas partes.
Com o Código Civil de Xxxxxxxx – primeiro corpo legislativo a adotar em toda a sua extensão o dogma da autonomia da vontade –, as partes envolvidas nas re- lações jurídicas eram consideradas igualmente capazes, ainda que existisse desi- gualdade econômico-social entre elas. Os contratos e as leis tinham a mesma força, inexistindo hierarquia (art. 1.134). A força obrigatória dos contratos servia de pano de fundo para a doutrina da justiça, sendo intolerável a intervenção estatal. A von- tade não era vista apenas como um elemento psicológico, interno, mas, sobretudo, possuía uma força real e ativa, que levava ao nascimento e desenvolvimento das relações jurídicas.
O voluntarismo ganha ainda mais força. Tinha-se uma leitura da autonomia da vontade de forma ampla, apta a conclamar a liberdade de contratar e a liberdade contratual. A liberdade de contratar era entendida como faculdade de realizar, ou não, determinado contrato com a pessoa que desejasse. Já a liberdade contra- tual era vista como a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato; suas cláusulas e tipo de contrato, que poderia tanto ser uma figura típica, como atípica.
Aquela (liberdade de contratar) estava ligada ao aspecto da voluntariedade em celebrar, ou não, o contrato. Esta (liberdade contratual) estava afeta à liber- dade de regramento do conteúdo contratual. Liberdade de contratar e liberdade contratual eram verso e reverso de uma mesma moeda, significada como liberda- de ampla, plena, como autonomia da vontade.
No voluntarismo, dissertam CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.10, o contrato se qualificava como a expressão de submissão à vontade espontânea em três mo- mentos: (i) Liberdade contratual, na esfera positiva de livre escolha do parceiro e da estipulação do conteúdo do contrato e, ainda, em seu sentido negativo, de li- berdade de não contratar (freedom from contract); (ii) Intangibilidade do pactuado (pacta sunt servanda) e impossibilidade de intervenção estatal e (iii) Relatividade contratual, vinculando o contrato apenas com as partes envolvidas, não tocando terceiros estranhos ao ajuste.
Diante do individualismo, pouco importava a finalidade e os objetivos do con- trato. As razões das partes não era o centro. O que imperava era a vontade.
Todavia, após a Revoluçio Industrial, com o aprimoramento do princípio da repetição – produção em série –, e a decorrente massificaçio dos contratos – por meio da desigual figura do pacto por xxxxxx –, a doutrina da vontade livre, que antes libertava, passou a aprisionar. A classe burguesa, valendo-se de sua condição economicamente mais forte, redigia os contratos de maneira unilateral, submetendo a contraparte (mais fraca) apenas a sua adesão. Tais pactos eram recheados de cláusulas abusivas. O contrato, antes visto como instrumento de libertação, transmuda-se em um meio de exploração.
10. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 117.
O Estado não mais poderia permanecer inerte ao poderio econômico e social da classe burguesa. Surgem críticas ao princípio da autonomia da vontade, alicerce do liberalismo econômico. Em meio à desigualdade socioeconômica, a liberdade plena da autonomia da vontade importava em desequilíbrio contratual11.
O contragolpe do Estado veio mediante a intervençio, a qual fora ampliada para coibir os desmandos e controlar a desigualdade fática existente nos tratos negociais. Delineia-se uma nova ordem. No século XX, portanto, os negócios jurídi- cos não mais se pautavam “na causa psíquica representada pela vontade, mas nas regras extraídas de interesses socialmente relevantes”, anota ÉrICO DE PINA CABrAL12. Vivencia-se a crise do voluntarismo13.
Com força nos ensinamentos de NOrBErTO BOBBIO14, passa o estudo do direito da estrutura i funçio, devendo ser observada a finalidade do exercício do direito subjetivo, abrindo-se o sistema jurídico a percepção de outros importantes valo- res. Contratos sio funcionalizados. Ética, sociabilidade e dignidade passam a ser considerados.
A autonomia, dantes da vontade, toma nova feiçio, intitulando-se privada15. No plano da moldura legal estabelecida, segundo PAULO NALIN16, os sujeitos atuam mediante o exercício de certa autonomia privada. A vontade é um suporte fático,
11. Manifesta-se, nesse sentido, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, ao analisar os contratos: “na verdade, as transformações sociais sempre influenciaram sobremaneira o mundo jurídico. Assim, o con- trato vem sofrendo mudanças significativas, que iniciaram, de maneira mais intensa, no período pós-guerra. [...] A partir de então, a sociedade começou a passar por processos como o aumento da população mundial, o que deu margem a novas relações jurídicas, massificadas ou coletivas; acarretando, também, um grande desequilíbrio social. [...] Posteriormente, com a segunda gran- de guerra, foram aprofundadas as transformações, levando o Estado a assumir novas posturas, sempre a caminho do Estado social, onde a preocupação, no âmbito do direito dos contratos, passou a ser mais com o coletivo, com o interesse da sociedade, deixando de lado a concepção do contrato como instrumento de realização meramente individual”. (2001, x. 00).
00. XXXXXX, Xxxxx xx Xxxx. A “Autonomia” no Direito Privado. Revista de Direito Privado, a. 5, n. 19, jul./set., 2004, p. 91.
13. Na lição de Xxxxx xx Xxxx Xxxxxx (2004, p. 90), “a crise do voluntarismo não desconstituiu, entre- tanto, o caráter originário do poder dos particulares de estabelecerem regras entre si, mas fez entrar em cena uma outra linguagem jurídica: ‘ordem de interesses’, ‘auto-regulamento’, ‘auto- nomia privada’ etc. Esta nova ordem delineou um novo caráter de objetividade para os negócios jurídicos, agora não mais fundado na causa psíquica representada pela vontade, mas nas regras extraídas dos interesses socialmente relevantes. A interpretação dos negócios jurídicos ganhou maior escora na teoria da declaração e a vontade ficou reduzida ao foro interno das partes. A vontade perdeu o seu status de valor em si, autossuficiente a produzir efeitos jurídicos.”
14. XXXXXX, Xxxxxxxx. Dalla strutura ala funzione. p. 8.
15. A distinção aqui realizada, porém, não é uníssona na doutrina. Discordado dos autores que serão citados no corpo deste trabalho, cita-se a importante doutrina de Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx (2007, p. 168), quem trata as expressões “autonomia da vontade” e “autonomia privada” indis- tintamente. Isso porque, na visão do autor, em ambas predomina um voluntarismo semelhante. O fato é que há o predomínio de qualquer das expressões para designar o poder de manifes- tar a vontade no sentido de “autorregulamentação” ou autodisciplina dos interesses próprios. Também discorda da necessidade de distinção Pontes de Miranda (1983, p. 55-56), utilizando a expressão “autorregramento” da vontade como gênero apto a ser aplicado a todo o direito.
16. XXXXX, Xxxxx. A autonomia privada na legalidade constitucional. In: . (coord.). Contrato e Sociedade: a autonomia privada na legalidade constitucional. V. 2, Curitiba: Juruá, 2006. p. 29.
o qual deve ser acrescido à regulamentação legal, com o escopo de tutela dos direitos.
Mas, afinal, o que seria a autonomia privada?
É uma liberdade assistida. Os particulares, enquanto sujeitos dos direitos in- dividuais da liberdade, possuem o poder de autorregulação, desde que dentro das fronteiras demarcadas pelo legislador, em respeito aos princípios sociais e às normas de ordem pública. A esse poder de autorregulação, limitado pelo ordena- mento jurídico, dá-se o nome de autonomia privada.
ANTÓNIO MENEZES COrDEIrO17 defende que a autonomia privada tem, no direito, dupla utilizaçio. Em termos amplos, equivale ao espaço de liberdade de cada um den- tro da ordem jurídica – ou seja, engloba tudo que as pessoas podem fazer sob o prisma material ou jurídico – e, em termos restritos, corresponde ao espaço de liberdade jurígena, isto é, “à área reservada na qual as pessoas podem desenvolver as actividades jurídicas que entenderem”.
Para PIETrO PErLINGIErI18, a autonomia privada não se identifica somente com a iniciativa econômica, nem com a autonomia contratual em sentido estrito. Ela não é um valor em si mesmo. O poder de autonomia, nas suas variadas manifesta- ções, “é submetido aos juízos de licitude e de valor, através do quais se determina a compatibilidade entre o ato e atividade de um lado, e o ordenamento globalmente considerado, do outro”.
Nessa ótica, como bem proposto por FErNANDO NOrONHA19, autonomia da vontade não se confunde com autonomia privada. Arremata o Autor “A expressão ‘autono- mia da vontade’ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real”.
Autonomia da vontade remete a uma vontade interna, subjetiva, a qual é mar- cante nos Séculos XIX e XX. Já a autonomia privada conecta-se com a exteriori- zação, dialogando com a teoria da declaração, objetiva, com nítido amparo em função social e boa-fé, marcante na transição dos Séculos XX para o XXI. Autonomia da vontade é um retrato do estado liberal; enquanto a autonomia privada é um retrato do estado social.
Enquanto a autonomia da vontade não se submetia a nenhum limite, a não ser
o subjetivismo humano; a privada é emoldurada, havendo de curvar-se às ques- tões de ordem pública do ordenamento jurídico nacional. Vaticinam CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.20 que a definição de autonomia privada não é um dado abstrato, mas uma construção correlata a um dado ordenamento jurídico.
17. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Tratado de Direito Civil Português. Parte Geral. 3. ed. t. I, Coimbra: Livraria Almedina, 2007. p. 391.
18. XXXXXXXXXXX, Xxxxxx. Perfis de Direito Civil. Tradução de Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. 2. ed. Rio de Janei- ro: Xxxxxxx, 0000. p. 277.
19. XXXXXXX, Xxxxxxxx. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 113.
20. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 124.
As leis, antes completamente abstencionistas, passaram a intervir nas relações privadas, com o fito de promover a igualdade substancial no fiel da balança. A tutela do hipossuficiente se impôs, com sistemas como o Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Torcedor, Consolidação das Leis do Trabalho... O contrato passa a ser privado e social, de maneira concomitante, sendo que as normas cogentes não mais são vistas como mera limitação à autonomia, mas sim como conteúdo dos contratos.
Essa noção, registra-se, decorre da própria legalidade constitucional. Com efei- to, como direito e garantia fundamental que o é, o direito i autorregulamentaçio encontra assento na Constituição Federal, submetendo-se, assim como os princí- pios em geral, à ponderação de interesses, encontrando especiais limites na lei e na ordem pública; pondera DANIEL SArMENTO21.
Nessa senda, apenas há de se falar em reduçio do campo de liberdade parti- cular, quando houver relevante interesse público justificador da intervenção esta- tal, como promoção da função social, ética, boa-fé, dignidade, moral ou ordem pú- blica. A supremacia do interesse público é prerrogativa de atuação estatal, cogente e interventiva, ensina MArIA ANGÉLICA BENETTI ArAÚJO22. Conclui-se que será o interesse público que vai legitimar tais limitações à liberdade. Mas o que seria o interesse público?
Para XXXXX XXXXXXX XXXXXXxX DE MELLO23, “interesse público é uma faceta dos interesses individuais, sua faceta coletiva, e, pois, que é, também, indiscutivelmente, um inte- resse dos vários membros do corpo social”. Nesse sentido, o princípio garantidor da segurança jurídica seria um poder concedido ao Estado por toda a sociedade
– sociedade essa que estaria renegando seu direito de autonomia –, como forma de possibilitar que a segurança jurídica fosse resguardada por meio da atuação estatal.
Observa-se que a legitimação da atuação estatal dar-se-á segundo o interesse público primirio, promovendo os seus fins precípuos de justiça, segurança e bem-
-estar. Caso não haja tal interesse, estar-se-á diante de intervenção indevida e ilegal, devendo ser prontamente rechaçada.
Mas e o Código Civil, é partidário de uma autonomia da vontade ou privada?
21. XXXXXXXX, Xxxxxx. Os princípios constitucionais da liberdade e da autonomia privada. In: PEIXI- NHO, Xxxxxx Xxxxxxx et. al. (coord.). Os princípios da Constituição de 1388. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 77.
22. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx. Autonomia da vontade no direito contratual. Revista de Direito Privado, n. 27, a. 7, jul./set., 2006, p. 285.
23. XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009.
p. 61. Por oportuno, registra-se que não é a missão desse artigo aprofundar o conceito de inte- resse público, tão pouco verificar se ele consiste na soma de interesses individuais, ou traduz interesse diverso. Com efeito, o aprofundamento do tema há de ser feito na análise de obras dedicadas ao direito administrativo. O que se busca aqui é, tão somente, fincar a premissa que intervenção estatal na autonomia privada há de ser justificada na busca de um interesse público supremo, primário, sobre pena de se estar diante de uma intervenção indevida.
Voltando-se os olhos ao Código Civil vigente, percebe-se a adoção do ideal de autonomia privada. Afinal, em diversas passagens há notícias sobre a relativização da autonomia por questões de ordem pública.
A mais nítida passagem sobre o assunto encontra-se no art. 421, caput, o qual firma que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do con- trato”. A redação legal, malgrado curta, é elucidativa, no momento em que possi- bilita o exercício da autonomia, mas nos limites da função social.24
Malgrado a limitação da autonomia, não há sua extinção. Conforme o Enuncia- do 23 do Conselho da Justiça Federal, “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.
A autonomia persiste, desde que exercida em correspondência a uma função socialmente útil considerada pelo ordenamento jurídico.
Em outra passagem, prestigiando a autonomia, vaticina o Código Civil a liberda- de dotada às partes de realizar contratos atípicos, desde que respeitada a teoria geral dos contratos (CC, art. 425). É a percepção de que há, mesmo dentro da moldura da autonomia privada, espaço de exercício da liberdade.
🞂 Atenção!
Com base no ideal de autonomia é possível a fixação de foro de elei- ção em qualquer tipo de contrato?
A resposta é negativa.
Percebe-se que nas relações paritirias, como fruto da autonomia, tec- nicamente possível. Em contratos, porém, nos quais não há igualdade, a exemplo do de consumo e trabalhista, a conduta sofre restrições.
Na seara de consumo, majoritariamente, infere-se a abusividade e consequente invalidade da cláusula de fixação de foro. Os argumentos para tanto são:
i. O art. 51, IV, do CDC afirma ser ilegal a cláusula contratual que esta- belece o foro de eleiçio em benefício do fornecedor do produto ou serviço, em prejuízo do consumidor.
ii. O art. 101 do CDC veicula foro privilegiado ao consumidor, quando afirma que ele pode propor a ação no local em que for domiciliado. Trata-se de norma de ordem pública, sendo inviável o seu afastamento por mero ato de vontade das partes.
iii. O art. 424 do CC aduz ser nula a renúncia antecipada a direito em contrato de xxxxxx. Como contratos de consumo costumam ser por adesão, é inconcebível que o consumidor renuncie ao foro privilegiado em um contrato de consumo.
24. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 42.
Esse raciocínio é igualmente aplicável à seara trabalhista, especifica- mente nas relações de emprego subordinadas, impossibilitando-se, nos dizeres de AMAUrI XXXXXxX XXXXXXXXXX, a eleição de foro nessa modali- dade contratual. Acaso realizada a ilegal eleição de foro referenciada, a hipótese será de fraude e de sua desconsideração.25
Registra-se que malgrado o dito, o Superior Tribunal de Justiça vem encaminhando raciocínio no sentido de que a invalidade da cláusula de foro de eleição, em relação de consumo e veiculada em contrato de adesão, demandará comprovação da vulnerabilidade do aderente e que a aludida cláusula revele dificuldade de acesso ao Poder Judiciário
– REsp 1.675.012/SP, julgado em 2017.
Em outra passagem de restrição à autonomia, coloca o art. 426 do Código Civil a vedação de contratação sobre herança de pessoa viva, sob pena de nulidade virtual, na forma do art. 166, VII do Código Civil. Trata-se da denominada vedação à Pacta de Corvina. O motivo é lógico: evitar a instigação ao homicídio, bem como uma restrição de ordem moral.
Por tudo o quanto foi dito, conclui-se que, diuturnamente, a autonomia per- manece como um dos princípios contratuais e seu fato gerador. Entrementes, tal autonomia não mais é ilimitada como outrora. Não mais deve ser batizada como autonomia da vontade. Tem balizamentos, transmudando-se do conceito de au- tonomia da vontade para privada, em uma moldura ressignificada e revalorada.
Após todas estas considerações seria correto afirmarmos, nos dias de hoje, que, efetivamente, ainda há autonomia?
Cotidianamente verificamos contratos nos quais a desigualdade econômica faculta ao polo mais forte da relação (hipersuficiente) ditar, unilateralmente, as regras, impondo ao mais fraco (hipossuficiente) cláusulas pré-moldadas, em um contrato standard, de adesão. Vivenciamos a era dos contratos modelos, sendo reduzida a autonomia, muitas vezes, a um sim ou não (take it ou leave it).
Soma-se a isto a verificação de que atualmente há importantes restrições legais à liberdade atinente aos contratos, como já pontuado neste tópico.
Por tudo isso, o tripé de liberdade contratual vem sendo, progressivamente, reduzido, pois:
a) Liberdade de contratar – Hodiernamente não mais há plena liberdade de estar, ou não, em alguns contratos. Há contratos cuja celebração é automá- tica. Exemplifica-se com transporte, compra de alimentos, serviços públicos essenciais (luz, água, telefonia), seguro obrigatório de veículos (DPVAT)...
b) Liberdade de escolha do contratado – Nem sempre é viável a escolha do contratado, como nos contratos essenciais nos quais há monopólio da ativi- dade. Exemplos usuais, no território nacional, são os contratos de forneci- mento de luz e água.
25. XXXXXXX XXXXXXXXXX, Amauri. Curso de Direito Processual do Trabalho. 17. ed. São Paulo: Sarai- va, 1997. p. 214.
c) Liberdade de escolha das cliusulas (conteúdo) do contrato – Nos dias de hoje há cláusulas que são impostas, automáticas nos contratos, pois cogen- tes. Exemplifica-se com respeito à boa-fé, função social, vícios redibitórios nos contratos onerosos. Há, ainda, searas em que os tipos de contratos são impostos, como os contratos de licença, concessão ou cessão, no campo da Lei de Direitos Autorais, bem como os contratos de parceria e arrendamen- to, no campo do Direito Agrário.
A liberdade é cada vez mais diminuta.
Diante deste cenário surgem os chamados contratos coativos ou necessirios, entendidos como pactos que trazem consigo o máximo de dirigismo contratual. Há uma verdadeira imposição de celebração do contrato, adverte SÍLVIO DE SALVO VENOSA26.
Os clássicos exemplos remetem às concessionárias de serviços públicos e ser- viços essenciais, os quais são explorados em monopólio, a exemplo de luz e água. Nestes a concessionária não pode negar-se a ser contratada pelo usuário que cumpra com os requisitos mínimos para tanto, pois está a ofertar o serviço no mercado. Enquanto o usuário não tem como não contratar – à exceção da escolha de viver sem fornecimento estatal de luz e água, a qual não há como ser conside- rada, na média.
Por conta do contrato necessário, a figura será de um pacto de adesão, com cláusulas predispostas, em um fenômeno de um contrato imposto.
Profícua a discussão na doutrina se a figura em apreço seria contratual. Para SÍL- VIO DE SALVO VENOSA27, não seria, pois se tem apenas a aparência de um contrato. Para XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO28, a figura é contratual, pois há manifestação de vontade, ainda que diminuta, quando da adesão ao pacto.
As Casas Judiciais Nacionais percebem o fenômeno como contrato, sendo guia- do como relação de consumo – aplicação do art. 22 do CDC29 – e normatização protetiva.
3. PRINCÍPIO DO RELATIVISMO OU DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO
O princípio do relativismo, ou da relatividade dos efeitos, propugna que os contratos apenas produzem efeitos entre as partes, não se falando em oponibili-
26. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 397.
27. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 497.
28. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 72.
29. “Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, efi- cientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.”
dade em face de terceiros. Assim, o contrato firmado entre Xxxxxxx e Xxxxx não poderá, em linha de princípio, atingir a Thiago. O contrato é res inter alios acta, allis neque nocet neque potest.
Adverte CArLOS rOBErTO GONÇALVES30 que o relativismo remete ao modelo contratu- al clássico, geneticamente concebido para satisfação de desejos exclusivamente individuais, mediante acordo de vontades. Aduz PAULO LÔBO31 que fincado no or- denamento jurídico francês, a noção de relativismo se relaciona ao ideário da autodeterminação individual.
O ordenamento jurídico nacional, imbuído de influência francesa, dedicou ar- tigo expresso no Código Civil anterior ao princípio do relativismo (CC/16, art. 928). O atual, porém, não o fez. Isso não quer dizer que o relativismo não mais seja princípio contratual. Ao revés, ele persiste na principiologia contratual, mas sem contornos absolutos.
A própria noção de que os pactos devem ocasionar ganhos para a sociedade (função social), carrega consigo uma bandeira de mitigação ao relativismo cego de outrora. Terceiros hão de respeitar contratos, como também haverão de ter seus interesses preservados, não sendo prejudicados por pactos alheios.
Seguindo tais premissas, verbera o Enunciado 21 do Conselho da Justiça Federal que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”.
No mesmo diapasão da doutrina posta, é possível verificarmos alguns interes- santes posicionamentos jurisprudenciais sobre o assunto, sumulados pelo próprio Superior Tribunal de Justiça:
a) Súmula 529 do STJ: “no seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusiva- mente em face da seguradora do apontado causador do dano”.
Segue a súmula o entendimento doutrinário posto no Enunciado 544 do Conse- lho da Justiça Federal, para o qual “o seguro de responsabilidade civil facultativo garante dois interesses, o do segurado contra os efeitos patrimoniais da impu- tação de responsabilidade e o da vítima à indenização, ambos destinatários da garantia, com pretensão própria e independente contra a seguradora”. Entremen- tes, condicionou o Tribunal da Cidadania a necessidade de a demanda do terceiro ofendido ser capitaneada em face da seguradora e do segurado, ao passo que para a responsabilidade daquela (seguradora), há de ser analisada a conduta deste (segurado).
Exemplifica-se, para clarificar o dito. Se Xxxx colidir com o carro de Caio, cau- sando danos a este, e negar-se a acionar o seguro, Xxxx poderá ajuizar ação dire-
30. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 47.
31. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 64.
tamente em face da seguradora de Xxxx, desde que inclua Xxxx no polo passivo da lide. Xxxxxx, como terceiro ofendido, Caio há de ser indenizado. Todavia, para que haja responsabilidade civil da seguradora, a conduta de Xxxx há de ser com- provada. Há litisconsórcio passivo necessirio.
Clarividente a mitigação ao relativismo e benefício de Xxxx (terceiro lesado) pelo contrato entabulado entre Xxxx e a seguradora.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
Ressalta-se que com fulcro nesta função social dos contratos – tutela externa do crédito – o Superior Tribunal de Justiça determinou que mesmo na hipótese do condutor do veículo estar embriagado – o que retiraria o dever da seguradora indeniza-lo pelo dano – persistirá a responsabilidade civil da seguradora por danos ocasionados à tercei- ros (vítima), sendo viável a estas (vítimas) demandarem, diretamente a seguradora (REsp. 1.738.247, Rel. Min. Villas Boas Cuev, DJe 26.12.18).
No caso analisado, o motorista que dirigia o caminhão estava embria- gado, invadiu a pista contrária e lesionou um outro condutor. O STJ determinou o dever da seguradora em indenizar o outro condutor (ví- tima).
Registra-se que, no particular, não houve desatenção ao consolidado no item 9 da Jurisprudência em Teses n. 116, o qual aduz que “no seguro de automóvel, é lícita a cláusula contratual que prevê a exclu- são da cobertura securitária quando comprovado pela seguradora que o veículo sinistrado foi conduzido por pessoa embriagada ou droga- da”. Isto, porque, tal exclusão securitária diz respeito à cobertura dos danos causados ao veículo segurado, e não aos terceiros vítimas do evento. Neste mesmo sentido, inclusive, caminhou o STJ no ano de 2018 (REsp 1.738.247-SC, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, por maioria, julgado em 27/11/2018, DJe 10/12/2018).
Outrossim, o mesmo Superior Tribunal de Justiça firma, agora na Súmula 620, que a embriaguez do segurado não exime a seguradora do paga- mento da indenização prevista em contrato de seguro de vida.
b) Súmula 308 do STJ: “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente finan- ceiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
Percebe-se aqui que o adquirente do imóvel não pode ser prejudicado pelo contrato de financiamento entabulado entre a construtora e o agente financeiro. Com efeito, o adquirente é terceiro e, como tal, não pode ser prejudicado em con- trato que não fez parte, merecendo tutela externa do crédito. Mitiga-se o direito real (hipoteca) em face da tutela externa do crédito.
A súmula em questão, porém, tem tido sua incidência diminuída. Firmou o Su- perior Tribunal de Justiça, na Jurisprudência em Teses n. 104, item 2, “não se aplicar a Súmula 308 do STJ nos casos envolvendo contratos de aquisição de imóveis não submetidos ao Sistema Financeiro de Habitação – SFH”.
De mais a mais, a própria noção de transmissão dos contratos impessoais quebra, em certa medida, o relativismo. Interessante exemplo verifica-se na seara das locações. Tanto a Lei do Inquilinato – Lei 8.245/91, art. 11 –, como o Código Civil
– art. 577 – firmam que a morte do locador, ou do locatário, não gerará, automati- camente, a extinção do contrato. Este seguirá com os seus respectivos sucessores. Ademais, a alienação da coisa locada não gerará a extinção do contrato, havendo o adquirente de respeitá-lo, caso haja termo certo e cláusula de vigência – Lei 8.245/91, art. 8º e Código Civil, art. 576.
Persistindo na análise da parte geral do Código Civil, percebe-se que há re- gramento expresso sobre institutos que, claramente, significam mitigações ao re- lativismo. São eles: a Estipulação em Favor de Terceiros; a Promessa de Fato de Terceiro; e o Contrato com Pessoa a Declarar.
3.1. Estipulaçio em Favor de Terceiros ou Contrato em Favor de Terceiro
Na estipulação em favor de terceiros, o contratante (estipulante) convenciona com o contratado (promitente), que este deverá realizar determinada prestação em benefício de outrem (estipulado), terceiro estranho à relação jurídica obriga- cional. Tem-se um verdadeiro contrato em favor de um terceiro.
Diante da força do relativismo, originariamente, tanto em Roma, como na Fran- ça, a estipulação em favor de terceiros não gozava de grande prestígio. Foi com a evolução do direito romano e, posteriormente, francês, que notícias passaram a habitar sobre o instituto. No Brasil, o Código Civil de 1916 já o contemplava, fato que fora reproduzido no vigente, dentre os arts. 436 usque 438.
Em termos diditicos, na estipulação em favor de terceiro há três sujeitos reu- nidos:
– Estipulante: é o contratante, sendo aquele que estabelece a contratação.
– Promitente ou Devedor: é o contratado, consistindo naquele que se com- promete a realizar a obrigação.
– Estipulado, Terceiro ou Beneficiirio: um estranho ao contrato base, destina- tário final da obrigação pactuada.
O estipulante contrata com o promitente uma determinada vantagem ao bene- ficiário. Os contratantes celebram um contrato em nome próprio, visando benefício a um terceiro, estranho ao negócio. Tem-se uma exceçio ao relativismo, pois ter- ceiro, estranho ao contrato, será tocado pelo pacto.
Obviamente, lembra CArLOS rOBErTO GONÇALVES32, que o beneficiirio haveri de con- cordar com a benesse, quando do recebimento. A ninguém é dado ser obrigado por mero ato de vontade de terceiro. Tal benefício hi de ser gratuito, não sendo
32. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 117.
crível falar-se em estipulação em favor de terceiro onerosa. Ensina OrLANDO GOMES33 que eventual onerosidade dessa atribuição patrimonial invalidará a estipulação. Na mesma linha coloca-se a doutrina de XXXXX XXXX.34
🞂 Atenção!
XXXX XXxXX XX XXXXX XXxXXxX,35 minoritariamente, realiza distinção entre a estipulação em favor de terceiros gratuita e onerosa. De acordo com o Autor, na gratuita, a alteração do beneficiário poderá ser feita a qual quer tempo. Já na onerosa, arremata, a liberalidade do estipulante encontra obstáculo no interesse do beneficiário. Logo, em uma estipu- lação feita para compensar um débito do estipulante, que desse modo obtém quitação do beneficiário, restará não equânime a possibilidade de liberação unilateral.
Caminhando em linha similar, MArIA HELENA DINIZ36 ensina que o terceiro beneficiário poderá ter uma vantagem gratuita ou não. O que se de- manda é que a estipulação não seja contra, mas sim a favor do tercei- ro; seja ela gratuita ou onerosa.
Majoritariamente, recorda CArLOS rOBErTO GONÇALVES37, entende a doutrina a estipula- ção em favor de terceiro como um contrato, cuja existência e validade dependem apenas das partes originárias. Somente a eficicia restari adstrita i aceitaçio do terceiro. Trata-se de pensamento que teve como um de seus grandes defensores, no Brasil, CLÓVIS BEVILÁQUA. O terceiro não necessita ter vontade, conhecimento ou capacidade negocial, para a perfeição do contrato originário.
A forma do contrato é livre, sendo uma figura consensual. Nada impede que o terceiro seja determinivel, como a prole eventual, contemplada em testamento e que será concebida após o falecimento do de cujus (CC, arts. 1.799 e 1.800).
O exemplo clássico que soa ser ventilado nos manuais, sobre a estipulação em favor de terceiro, é o contrato de seguro de vida. Neste tem-se o segurado (es- tipulante), a seguradora (promitente) e o beneficiário (terceiro). Assim, uma vez implementado o risco (sinistro), a seguradora pagará ao beneficiário o montante indenizatório. Se Xxxx realiza seguro de vida com a empresa “Vai com Deus”, e ele- ge Xxxxx como sua beneficiária, na hipótese de sinistro (morte de Xxxx), a empresa “Vai com Deus” haverá de indenizar Xxxxx.
Trazendo exemplo diverso, obtempera ÁLVArO VILLAÇA AZEVEDO38 que igualmente há estipulação em favor de terceiro quando um pai (estipulante) determina que uma
33. Contratos. Op. Cit., p. 166-167.
34. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 144.
35. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. Op. Cit., p. 97.
36. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 129.
37. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 120.
38. XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. São Paulo: Atlas, 2002. p. 105.
empresa (promitente) pague os dividendos correspondentes a suas ações a seu filho (beneficiário), à época que forem devidos.
Ainda nos exemplos, CArLOS rOBErTO GONÇALVES39 recorda-se das Convenções Coleti- vas de Trabalho, as quais são feitas entre sindicatos e beneficiam toda uma classe; dos acordos de divórcio, nos quais é usual a disciplina de transferência de bens à prole, com cláusula de usufruto vitalício aos genitores; das doações onerosas com encargos em favor de terceiro, quando o donatário obriga-se com o doador a executar encargo a benefício de pessoa determinada ou determinável e das constituições de renda, pela qual o promitente recebe do estipulante um capital e obriga-se a pagar a terceiro renda por tempo certo ou pela vida toda.
Outra casuística de estipulação em favor de terceiros relaciona-se ao contrato de seguro de vida coletivo. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça fixou o Tema 1.112, nos seguintes termos:
(I) Na modalidade de contrato de seguro de vida coletivo, cabe exclusivamente ao estipulante, mandatário legal e único sujeito que tem vínculo anterior com os membros do grupo segurável (estipulação própria), a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados acerca das condições contratuais quando da formalização da adesão, incluídas as cláusulas limi- tativas e restritivas de direito previstas na apólice mestre, e
(II) não se incluem, no âmbito da matéria afetada, as causas originadas de es- tipulação imprópria e de falsos estipulantes, visto que as apólices coletivas nessas figuras devem ser consideradas apólices individuais, no que tange ao relacionamento dos segurados com a sociedade seguradora.
Tem-se, ainda, estipulação em favor de terceiro no depósito no interesse de terceiro (CC, art. 632), quando o depositário haverá de entregar o bem a um ter- ceiro designado pelo depositante. Ainda ilustrando o tema, recorda PAULO LÔBO40 da casuística de um pai que faz a assinatura de uma revista em nome de seu filho. Segue MArIA HELENA DINIZ41 com o exemplo do contrato de transporte, celebrado entre contratante e transportadora, para que o bem seja entregue a um terceiro.
Uma vez diante de uma estipulação em face de terceiros, três efeitos principais
hão de ser observados:
a) A obrigaçio poderi ser exigida tanto pelo estipulante como pelo benefi- ciirio. Uma vez anuindo o beneficiário, expressamente, com as condições e normas do contrato, restará incorporado ao seu patrimônio o direito de exigir a prestação. Logo, tanto o beneficiário como o estipulante poderão constranger o devedor ao cumprimento obrigacional (CC, art. 436).
39. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 47.
40. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 143.
41. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 57.
🞂 Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o tema?
[…]
2 – Ainda que o plano de saúde seja contratado por intermédio de terceiro, que é o estipulante, o beneficiário é o destinatário final do serviço, sendo, portanto, parte legítima para figurar no polo ativo de ação que busque discutir a validade das cláusulas do contrato.
3 – Desse modo, considerando que na estipulaçio em favor de tercei- ro, tanto o estipulante quanto o beneficiirio podem exigir do devedor o cumprimento da obrigaçio (CC, art. 436, parágrafo único), não há que se falar, no caso, na necessidade de suspensão do presente feito até o julgamento final da ação proposta pela estipulante em nome de todos os contratados.
(AgRg no REsp 1336758/RS, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxx, 3s Turma, DJe 04.12.2012).
🞂 Atenção!
O que seria a estipulaçio em favor de terceiro imprópria?
Traduz hipótese na qual o terceiro, estipulado, não possui legitimidade para requisitar a execução do contrato, por disposição expressa de vontade apta a excepcionar o art. 436 do Código Civil. Nesse contexto, o único credor será o estipulante, sendo apenas este indenizado na hi- pótese de descumprimento do pacto. Há clara exceção aos caracteres da estipulação em favor de terceiro, como bem advogam CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.42
b) Caso o terceiro tenha o direito de reclamar a execuçio do contrato, nio poderi o estipulante exonerar o devedor (CC, art. 437).
c) O estipulante poderi, a qualquer tempo, alterar o beneficiirio, unilateral- mente, independentemente da anuência deste ou de terceiro, desde que se reserve tal direito no próprio contrato. Tal alteração pode ser feita por ato inter vivos ou mortis causas (CC, art. 438). A possibilidade de modifica- ção é regra prática, desde que haja comunicação ao terceiro. Consiste em conduta muito usual no contrato de seguro de vida (CC, art. 791). Todavia, há de acontecer, obviamente, antes da aceitação do beneficiário. Caso a aceitação já tenha acontecido, concordamos com CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.43 sobre a impossibilidade de alteração do estipulado, pois as condições do contrato já passaram a integrar a esfera de direitos do beneficiário. Outrossim, igualmente impossível a alteração do beneficiário quando esta estipulação decorrer de uma contraprestação preteritamente assumida, como bem pontua o Superior Tribunal de Justiça.
42. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 445.
43. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 444.
🞂 Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
1. Ação de anulação de nomeação de beneficiário de contrato de segu- ro de vida fundada em descumprimento de acordo de separação ho- mologado judicialmente em que o segurado se obrigou a indicar como beneficiários outras pessoas (filhos do primeiro casamento).
[…]
4. No contrato de seguro de vida há uma espécie de estipulação em favor de terceiro, visto que a nomeação do beneficiário é, a princípio, livre, podendo o segurado promover a substituição a qualquer tempo, mesmo em ato de última vontade, até a ocorrência do sinistro, a me- nos que a indicação esteja atrelada à garantia de alguma obrigação (art. 1.473 do CC/16, correspondente ao art. 791 do CC/2002).
5. Se a indicação do beneficiário não for a título gratuito, deverá ele per- manecer o mesmo durante toda a vigência do contrato de seguro de vida, pois não é detentor de mera expectativa de direito, mas, sim, possuidor do direito condicional de receber o capital contratado, que se concretizará sobrevindo a morte do segurado. Todavia, se a obrigação garantida for satisfeita antes de ocorrido o sinistro, esse direito desaparecerá, tornando insubsistente a indicação.
6. É nul5 5 5lter5çio 4e beneficiirio em contr5to 4e se@uro 4e vi45 feita por segurado que se obrigou, em acordo de separaçio homo- logado judicialmente, a indicar a prole do primeiro casamento, nio tendo desaparecido a causa da garantia.
(REsp 1197476/BA, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, 3s Turma, DJe 10.10.2014).
Interessante dúvida diz respeito à (im)possibilidade de estipulação cujo conte- údo seja unicamente dotar o terceiro da titularidade de uma pretensão, alheia a qualquer prestação a seu favor. É possível?
XXXXXXX XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXX XXxXXXX e MArIA CELINA BODIN DE MOrAES44 entendem que sim,
veiculando exemplo sobre o tema: “um acordo de acionistas que disponha sobre voto. Neste caso, o terceiro não é propriamente o destinatário da prestação, mas, por força de uma estipulação ao seu favor, passou a ter legitimidade para exigir o cumprimento de um acordo do qual não é parte. A situação é anômala, mas nem por isso parece ser incompatível com a disciplina da estipulação em favor de terceiro”.
🞂 Atenção!
A estipulação em favor de terceiro não se confunde com a representa- ção. Nesta o representante não titulariza direitos, mas apenas repre- senta o representado, quem se obriga no contrato.
Outrossim, não se confunde estipulação em favor de terceiro com sub- contrato. Neste há uma duplicidade de negócios jurídicos, a exemplo da empreitada e da subempreitada. Já na estipulação em favor de ter- ceiro o negócio é uno. Ademais, o beneficiário não é parte, enquanto o subcontratado o é.
44. XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; e XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx de. Código Civil Inter- pretado. Vol. II. Op. Cit., p. 53.
3.2. Promessa de Fato de Terceiro, Contrato por Terceiro ou Contrato por Ou- trem
O Código Civil anterior dedicava-se ao tema na seara obrigacional, enquanto o vigente deslocou o assunto para os contratos.
Trata-se de obrigação assumida por uma parte no contrato, de obter a pres- tação de um terceiro, no interesse da outra e da consecução do fim contratual. Assim, consoante o Código Civil de 2002, é viável que seja estabelecida uma decla- ração de vontade para que um determinado ato seja realizado por um terceiro, estranho à relação jurídica. Tal percepção deixa clara mais uma exceção ao ideal do relativismo45.
Vaticinam XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO46 tratar-se de um negócio ju- rídico submetido a um fator eficacial. Há um elemento acidental que limita não o debitum (obrigação, em si), mas a obligation (responsabilidade). O terceiro é tão somente objeto da prestação, ensina SÍLVIO DE SALVO VENOSA47.
Exemplifica-se, para clarificar o pensamento. Imagine que Xxxx promete, a Rede de Rádio, que Xxxx, importante cantor, em um determinado dia e horário, conferirá uma entrevista na aludida emissora. Obviamente que em sendo Xxxx terceiro estranho ao contrato, não terá obrigação de cumpri-lo. Entrementes, negócio jurídico há – existente, válido e eficaz –, entre a Rede de Rádio e Caio. Negócio este, inclusive, com obrigaçio de fazer e de resultado, imposta a Caio, apta a gerar responsabilidade civil objetiva. Caso descumprido o pacto, respon- derá Caio, mesmo que tenha encetado todos os esforços para levar Xxxx até lá (CC, art. 439).
Nessa toada, segundo CArLOS rOBErTO GONÇALVES48, o promitente funciona como uma espécie de fiador, assegurando a obrigação prometida. Mas seria possível ao con- trato, expressamente, afastar a obrigação de resultado e imputar uma responsabi- lidade civil por obrigação de meio na promessa de fato de terceiro?
Seguramente que sim. Em claro exercício da autonomia privada, entendemos viável que a própria obrigação, de forma expressa, afaste a obrigação de resulta-
45. No particular, discordamos de Xxxxxxxxx Xxxxxx de Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxxx Xx. (Op. Cit. p. 448), para quem a promessa de fato de terceiro não consiste em exceção ao relativismo. Para tais autores, como o terceiro não se obriga no pacto, o relativismo continuaria a reinar. Data vênia, a exceção não reside aí, mas sim na percepção de que o terceiro será tocado pelo pacto, mormen- te quando aceitar a avença e der cumprimento. Outrossim, seguindo o argumento dos doutos doutrinadores levaria a crer que a estipulação em favor de terceiro também não seria exceção ao relativismo, pois o estipulado, igualmente, não é parte no contrato e nem está obrigado a aceitar a avença. Ainda assim, como consabido, estipulação é um das mais veiculadas exceções ao relativismo.
46. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 78.
47. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 503.
48. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 124.
do, fazendo incidir uma de meio. Concordamos, no particular, com CrISTIANO CHAVES DE
XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.49
A promessa de fato de terceiro traz consigo uma obrigação infungível; afinal, o desejo é que o próprio terceiro realize o cumprimento do acordado. Por conse- quência, na hipótese de descumprimento do terceiro, não será viável que outrem cumpra a obrigação em seu lugar. O caminho será o pleito de perdas e danos, em face do contratado – e não do terceiro –, porquanto ser o contratado o obrigado no vínculo base (CC, art. 439).
E seria possível o afastamento da noção de infungibilidade da promessa de fato de terceiro?
Mais uma vez a resposta é positiva, em atenção à autonomia privada. Não se olvida que os contratantes originários pactuem uma obrigação alternativa, já ha- vendo, desde o nascedouro obrigacional, uma alternância de objetos pactuados (CC, art. 252 e ss.). Igualmente viável que seja pactuada uma obrigação facultativa, restando ao promitente a possibilidade de alteração do terceiro cumpridor da avença. Todos estes são desdobramentos da autonomia privada, possíveis e que pedem vontade expressa.
Outro exemplo corriqueiro de promessa de fato de terceiro relaciona-se ao pa- cote turístico, no qual a operadora e a agência de viagens se obrigam a hospedar turista em hotel determinado, com características informadas. Caso o turista seja acomodado em hotel diverso, em condições inferiores, há claro descumprimento da obrigação de fazer e de resultado atinente à promessa de fato de terceiro.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
DIREITO CIVIL. SHOPPING CENTER. INSTALAÇÃO DE LOJA. PROPAGANDA DO EM- PREENDIMENTO QUE INDICAVA A PRESENÇA DE TRÊS LOJAS-ÂNCORAS. DES- CUMPRIMENTO DESSE COMPROMISSO. PEDIDO DE RESCISÃO DO CONTRATO.
1. Conquanto a relação entre lojistas e administradores de Shopping Center não seja regulada pelo CDC, é possível ao Poder Judiciário re- conhecer a abusividade em cláusula inserida no contrato de adesão que regula a locação de espaço no estabelecimento, especialmente na hipótese de cláusula que isente a administradora de responsabilidade pela indenização de danos causados ao lojista.
2. A promessa, feita durante a construção do Shopping Center a poten- ciais lojistas, de que algumas lojas-âncoras de grande renome seriam instaladas no estabelecimento para incrementar a frequência de públi- co, consubstancia promessa de fato de terceiro cujo inadimplemento µo4e justific5r 5 rescisio 4o contr5to 4e loc5çio, notadamente se tal promessa assumir a condição de causa determinante do contrato e se não estiver comprovada a plena comunicação aos lojistas sobre a de- sistência de referidas lojas, durante a construção do estabelecimento.
49. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 449.
3. Recurso especial conhecido e improvido.
(REsp. 1259210/RJ. Rel. p/ acórdão Min. Xxxxx Xxxxxxxx, 3s Turma, DJe 07.08.2012).
CONTRATOS. TELEVISÃO. JOGOS.
A confederação que engloba os times de certa atividade desportiva firmou contrato com a empresa de televisão a cabo, pelo qual lhe ce- dia, com exclusividade, os direitos de transmissão ao vivo dos jogos em todo o território nacional, referentes à determinada temporada.
Sucede que 16 times, em conjunto com a associação que formaram, e outra empresa de televisão também firmaram contratos com o mes- mo objetivo. Daí a interposição dos recursos especiais. Pela análise do contexto, conclui-se que, apesar de figurar no primeiro contrato como cedente e detentora dos direitos em questão, a confederação firmou, em verdade, promessa de fato de terceiro: a prestação de fato a ser cumprido por outra pessoa (no caso, os times), cabendo ao devedor (confederação) obter a anuência dela quanto a isso, tratando-se, pois, de uma obrigaçio de resultado. Pela lei vigente à época (art. 24 da Lei n. 8.672/1993), somente os times detinham o direito de autorizar a transmissão de seus jogos. Assim, visto que a confederação não detém o direito de transmissão, cumpriria a ela obter a anuência dos times ao contrato que firmou, obrigação que constava de cláusula contratual ex- pressa. O esvaziamento desse intento, tal como atesta notificação posta nos autos realizada pela própria confederação, de que não conseguiu a anuência dos clubes, enseja a resolução (extinção) desse contrato e sua responsabilização por perdas e danos (art. 929 do CC/1916, hoje art. 439 do CC/2002). Contudo, não se fala em nulidade ou ineficácia, pois, houve, sim, a inexecução (inadimplemento) de contrato válido, tal como con- cluiu o tribunal a quo. Tampouco há falar em responsabilidade solidária dos times porque, em relação ao contrato firmado pela confederação, são terceiros estranhos à relação jurídica, pois só se vinculariam a ele se cumprida a aludida obrigação que incumbia ao promitente, o que, como dito, não se realizou. Já a associação, mesmo que tenha anuído a esse contrato, não pode ser responsabilizada juntamente com a con- federação: não há previsão contratual nesse sentido e pesa o fato de que a obrigação de obter a aceitação incumbia apenas à confederação, quanto mais se a execução dependia unicamente dos times, que têm personalidades jurídicas distintas da associação que participam e são os verdadeiros titulares do direito. Com esse e outros fundamentos, a Turma negou provimento aos especiais.
(REsp 249.008-RJ, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx (Desembargador convo- cado do TJ-RS), julgado em 24.08.2010).
🞂 Atenção!
O Código Civil vigente, inovando a legislação pretérita, firma hipótese le- gal de exclusio da responsabilidade civil do estipulante. Tal se dará se o terceiro for cônjuge do promitente, dependente de sua anuência para o ato que será praticado e, em virtude do regime de bens, a indenização, de algum modo, venha a recair sobre os seus bens (CC, art. 439).
Trata-se da casuística em que Xxxx, promete a Xxxxxxx, que sua esposa (de Xxxx), com quem é unido matrimonialmente no regime de comu- nhão universal de bens, irá permiti-lo transferir um imóvel para Rober- to. Caso a esposa de Xxxx xxxxxxxxx, não conferindo a vênia conjugal, a responsabilidade civil de Xxxx xxxxxxxx também sobre o patrimônio dela, que não faz parte da relação jurídica obrigacional.
Situação diversa haverá se o próprio terceiro, pessoalmente, comprometeu-
-se. Nessa toada, não mais haverá prestação de fato de terceiro, falando-se em obrigação em nome próprio e responsabilidade civil do próprio terceiro, diante de eventual inadimplemento (CC, art. 440). Aqui, em tendo concordância do terceiro, por razões óbvias, o promitente estará liberado da obrigação.
Por fim, nada impede que seja pactuada responsabilidade solidária entre o terceiro e o promitente. Descortina-se uma solidariedade convencional, plenamen- te aceitável diante da redação do art. 265 do Código Civil.
🞂 Atenção!
Não confunda promessa de fato de terceiro com mandato, fiança, ges- tão de negócio e estipulação em favor de terceiro.
Infere-se que a promessa de fato de terceiro não se aproxima do man- dato, contrato no qual há poderes de representação preestabelecidos, obrigando-se em nome de outrem.
Igualmente não se confunde com a fiança, que retrata contrato aces- sório, enquanto a promessa de fato de terceiro é principal. A fiança é uma obrigação de garantia, acessória. A promessa de fato de terceiro é garantia de resultado na obrigação principal.
Não é sinônimo da gestão de negócios, quando o promitente se coloca na posição da defesa dos interesses de terceiros; o que não é o caso.
Não se confunde com a estipulação em favor de terceiros. Nessa o terceiro é apenas beneficiado pela conduta de outrem (estipulante e promitente). Já na promessa de fato de terceiro, o terceiro será o executor.
3.3. Contrato com Pessoa a Declarar ou a Nomear
Desconhecido do direito romano e de origem medieval, o instituto do contrato com pessoa a declarar tinha por intuito esconder a participação de nobres na ven- da judicial de bens, com o fito de evitar constrangimentos. Com o passar dos anos, o instituto se aprimorou e merece destaque nas codificações ocidentais.
O Código Civil Nacional dedica-se ao tema nos arts. 467 a 471, como o fez o italiano e o português. Trata-se, nos dizeres de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO50, de uma verdadeira promessa de fato de terceiro, que também titularizará
50. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 78.
os diretos e as obrigações decorrentes do negócio, caso aceite a indicação realiza- da. A indicação terá efeitos retro-operantes, ex tunc (CC, art. 469).
Ensina OrLANDO GOMES51 que no contrato com pessoa a declarar há uma cláusula especial pro amico elegendo, electo amici ou pro amico electo (pessoa a nomear), por meio da qual uma das partes (stipulans) reserva-se o direito de nomear xxx- xxxxx (electus ou amicus) para que assuma a posição do contratante. O nomeado, aceitando a nomeação, tomará a posição daquele que o nomeou, como se ele mesmo houvesse realizado o contrato, sendo avisado ao outro contratante (pro- mittens). Sintetiza o Autor baiano que “em suma, o contratante in proprio nomeia terceiro titular do contrato”.
Têm-se, então, nesta figura contratual, três sujeitos:
– Promitente – que assume o compromisso de reconhecer o amicus ou eligendo;
– Estipulante – que pactua em seu favor a cláusula que admite a sua substi- tuição, tendo a prerrogativa de nomeação do terceiro;
– Electus (elegido) – que é validamente nomeado e aceita sua indicação, a qual é comunicada ao promitente.
O modelo contratual em análise tem como centro um ato unilateral e receptício de nomeação, o qual demanda aceitação da contraparte e tem eficicia retroativa (ex tunc). Todos os envolvidos hão de ser capazes para a prática dos atos da vida civil. Infere-se um negócio jurídico bilateral, o qual se aperfeiçoa com o consenti- mento dos contraentes, que são conhecidos.
As partes envolvidas são previamente conhecidas e determinadas, restando a uma delas a faculdade de indicar pessoa que assumirá as obrigações e adquirirá os respectivos direitos, no futuro, ocupando o local do sujeito primitivo da relação jurídica. A declaração acabará por fulminar a temporária indeterminação subjeti- va, como ensina PAULO LÔBO52.
A nomeação há de ser pura e simples, não se falando em condição ou termo imposto ao terceiro para que a aceite.
Malgrado as divergências sobre o tema, concordamos com CrISTIANO CHAVES DE FA- rIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.53 no sentido de que a teoria que melhor explica a dinâmica do contrato em análise é a da condiçio. Com efeito, o negócio originário fica sob condição, esta vista sob dupla face: a) resolutiva, pois o negócio, desde logo, já produzirá efeitos entre as partes originárias (CC, art. 127); e b) suspensiva, ao passo que o terceiro assume o negócio com efeitos retroativos, sendo desfeitos eventuais atos contrários praticados entre a assinatura do contrato e a assunção da posição pelo nomeado (CC, art. 126).
51. Contratos. Op. Cit., p. 166-167.
52. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 150.
53. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 453.
CArLOS rOBErTO GONÇALVES54 verbera que há duas fases no contrato com pessoa a declarar:
a) Na primeira o estipulante comparece em caráter provisório, ao lado do contratante previamente acertado, até a aceitação do nomeado;
b) Na segunda, com a nomeação e aceitação do nomeado (contraente in eligen- do), este passa a figurar no negócio, atuando como parte e substituindo o estipulante, quem sairá do contrato.
O prazo legal para a nomeação do declarado é de cinco dias, salvo se outro lapso restou estipulado (CC, art. 468). Trata-se o prazo de cinco dias, por conse- guinte, de regra supletiva, sendo plenamente viável ao contrato eleger prazo di- verso. Outrossim, para que fique claro, não há ilegalidade em o contrato silenciar acerca do prazo, valendo a regra geral dos cinco dias.
A natureza jurídica do prazo é decadencial convencional, tratando-se a no- meação de direito potestativo. A aceitação do terceiro nomeado há de ser feita na forma do contrato para nomeação. Assim, em sendo a nomeação, segundo o contrato, por escrito, a aceitação, igualmente, há de ser por escrito.
A forma da aceitaçio, segundo PAULO LÔBO55, não é condição de validade, mas sim de eficicia. Caso a aceitação seja feita de forma diversa da nomeação, o contrato persistirá válido e com eficácia entre as partes originárias. Demanda-se que a no- meação seja comunicada a contraparte, como dever anexo de conduta.
Nada impede que a escolha seja feita por terceiro já designado no contrato. É o que batiza a doutrina de electio per relationem. Desde que a dinâmica esteja prevista no pacto, em respeito à autonomia privada, a conduta é plenamente aceitável.
O que fazer se a nomeação não se operar como o esperado?
Caso haja algum outro problema com a nomeação, esta será ineficaz, persistin- do o negócio eficaz entre as partes contratantes. Logo, o contrato será eficaz entre as partes originárias caso (CC, arts. 470 e 471):
a) Não haja indicação da pessoa, ou se o nomeado se recusar a aceitá-la;
b) Se o nomeado era insolvente e outra pessoa o desconhecia no momento da aceitação;
c) Se a pessoa a nomear era incapaz ou insolvente no momento da nomeação. Nessas hipóteses, o contrato que seria transitório, pois figuraria um terceiro no-
xxxxx, passará a ser definitivo, sendo válido e eficaz entre as partes originárias.
Malgrado raro, o contrato com pessoa a declarar costuma habitar algumas ne- gociações imobiliárias, nas quais há receio de que a manifestação de interesse de
54. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 171.
55. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 56.
compra por um determinado sujeito, valorize o preço do imóvel. É a casuística de um famoso, que deseja comprar um imóvel, mas não quer aparecer no início das negociações, sequer representado por outrem por meio de procuração, para que o mercado não seja inflacionado. Assim, por vezes, em compromissos de compras e vendas o compromissário comprador reserva-se a opção de receber a escritura definitiva ou indicar terceiro para nela figurar como adquirente.
Em outra situação usual, infere-se a presença do contrato com pessoa a nome- ar em revendedoras de automóveis, que adquirem veículos usados para revenda. Não desejando fazer dois atos de aquisição, a loja compra nas mãos do vendedor com uma cláusula de pessoa a nomear, indicando o comprador futuro posterior- mente, quem assume a posição do contrato.
Fato que, apesar de a prática demonstrar a incidência desse tipo de contrato nas promessas de compras e vendas, nada impede a sua aplicação em outras figuras, desde que compatíveis. Outro exemplo corriqueiro se dá nos condomínios, quando condôminos se utilizam do instituto para aumentar sua propriedade exclu- siva, visando consolidar a propriedade plena, sem serem percebidos.
O que não é viável, todavia, é a aplicação do instituto em contratos persona- líssimos, diante, obviamente, da pessoalidade do vínculo e impossibilidade de admissão de terceiro, ensina CArLOS rOBErTO GONÇALVES56.
🞂 Atenção!
Não se deve confundir cessão de posição contratual com contrato com pessoa a declarar. Apesar de ambas figurarem como mecanismo de sucessão contratual, possuem diferenças entre si. No contrato com pes- soa a declarar a faculdade de indicar terceiro já vem prevista no nas- cedouro do contrato, sendo possível, inclusive, jamais ser exercitada. Tal substituição, no contrato com pessoa a declarar, tem efeitos ex tunc. Já a cessão de contrato é mecanismo não originariamente previsto no contrato, demandando o seu exercício aceite da contraparte, com efeitos ex nunc.
Igualmente não se confunde o contrato com pessoa a declarar com a estipulação em favor de terceiros. Nesta (estipulação) os contratantes originários permanecem vinculados, sendo beneficiado um terceiro, que não é parte do contrato. Já naquela (contrato com pessoa a decla- rar) o contratante originário é substituído, após nomeação e aceitação do terceiro, que integrará o contrato com efeitos ex tunc.
Não se confunde contrato com pessoa a declarar com a promessa de fato de terceiro, a qual acarreta obrigação apenas ao promitente. O terceiro, aqui, prestará um fato por ter o promitente se obrigado. Já no contrato com pessoa declarar, o contratante promete algo em nome próprio, mas eventual e alternativamente fato de outrem, validamente nomeado. Outrossim, em sendo válida a nomeação, não é crível que o nomeado negue-se a cumprir o contrato.
56. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 168.
Diverge o contrato com pessoa a declarar da representação. Nesta, os efeitos do negócio são manifestados entre representado e a contra-
-parte; enquanto no contrato com pessoa a nomear o nomeado apenas terá efeitos contratuais quando assumir sua declaração, com efeitos ex tunc. Logo, se nomeação não houver, o contrato apenas produzirá efeitos entre as partes originárias.
4. PRINCÍPIO DA FORÇA OBRIGATÓRIA, INTANGIBILIDADE OU FORÇA VINCULANTE DOS CONTRATOS. O PACTA SUNT SERVANDA
Desprestigiado seria o contrato se não fosse dotado de coerção. Consistiria em uma mera carta de intenções, desprovido de qualquer validade e eficácia jurídica. Perderia sua razão de ser, ao passo que contratos nascem para serem cumpridos e, sem coerção, nenhuma medida poderia ser entabulada na hipótese de inadim- plemento.
Justo por isto, ensina OrLANDO GOMES57 ser “essa força obrigatória, atribuída pela lei aos contratos, a pedra angular da segurança do comércio jurídico”. Afirma MArIA HELENA DINIZ58 que “o contrato, uma vez concluído livremente, incorpora-se ao or- denamento jurídico, constituindo uma verdadeira norma de direito, autorizando, portanto, o contratante a pedir a intervenção estatal para assegurar a execução da obrigação acaso não cumprida, segundo a vontade que a constituiu”.
O contrato deve trazer estabilidade e previsibilidade. A vontade geradora do contrato deve gerar a coercibilidade desta, em claro diálogo entre os princípios da força obrigatória e da autonomia.
Durante a fase de predomínio dos ideais liberais e individualistas, tinha-se uma noção instransponível de igualdade entre as partes e o caráter cogente absoluto dos contratos. O dogma da vontade elevou o contrato (produto da autonomia) à força de norma, imutável e aplicável a qualquer custo. Falava-se, nas palavras de CAIO MÁrIO DA SILVA PErEIrA59, na irreversibilidade da palavra dada. Nem as partes, nem o Juiz, poderiam alterar a base autônoma do contrato, recorda CArLOS rOBErTO GONÇALVES60.
Entrementes, com o avançar da história e a maturação das ideias, conclui-se que a força obrigatória não poderia ser significada de forma absoluta.
Como visto no tópico destinado à autonomia, a evolução social demonstrou que a suposta liberdade passou a aprisionar. A igualdade entre as partes não era tão clara e os contratos se transformaram em instrumentos de opressão, nos
57. Op. Cit., p. 36.
58. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 48.
59. XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições. Vol. III. p. 14-15.
60. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 49.
quais as partes mais fortes, unilateralmente, redijam as cláusulas, cabendo às mais fracas aderir ao bloco e sofrer abusos (contratos de adesão). Vive-se a era dos contratos-padrões, com conteúdo preestabelecido e engessado.
Nessa linha evolutiva, assim como a autonomia precisou ser (re)significada, a força obrigatória também o foi. O Estado passou a intervir nas relações privadas, em busca de justiça contratual, por meio do dirigismo contratual. Vozes propug- nando pela possibilidade de revisões contratuais ganharam eco e amadureceram institutos aptos a tais revisões.
Dentre os principais institutos que propugnam a revisão dos contratos, em cla- ra mitigação à força obrigatória, coloca-se a teoria da imprevisão.
4.1. Teoria da Imprevisio e Xxxxxxx da Onerosidade Excessiva
A primeira notícia histórica sobre a teoria da imprevisão remete ao art. 48 do Código de Hamurabi, o qual propugnava a aplicação da tese às colheitas. Assim, “se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano”.
Aponta CArLOS rOBErTO GONÇALVES61 os estudos de NErATIUS, na Idade Média, derredor da condictio causa data causa non secuta, as bases da hodierna teoria da impre- visão. Segundo tais estudos, fatores externos podem gerar, quando da execução da avença, situação diversa da existente no momento da celebração do contrato, onerando por demais o devedor.
Aqui se percebe a famosa cliusula rebus sic stantibus, no sentido de que con- tractus qui habent tractum succesivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur. Assim, em claro diálogo com os ideais do Direito Canônico, propugna a cláusula que apenas há exigibilidade contratual caso as condições econômicas do tempo de sua execução sejam semelhantes as do tempo de sua celebração. Tratava-se de ideal implícito aos contratos comutativos de trato sucessivo.
Foi, porém, com a Primeira Guerra Mundial que o tema ganhou mais espaço de debate. As nefastas consequências do conflito, sentidas principalmente em solo europeu, atingiram fortemente os contratos de execução continuada, celebrados antes da guerra e cuja execução adentraram o período de combate.
Não era crível que contratos celebrados em uma atmosfera sem guerra, não sofressem nenhuma modificação durante a guerra, em atenção a uma aplicação míope da força obrigatória. O conflito, obviamente, modificou os custos de execu- ção contratual. A mão de obra era escassa. Faltava matéria-prima, rodovias foram destruídas, a estrutura desmoronou...
61. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 51.
Neste cenário nasceu na França a primeira norma a disciplinar o tema: a Xxx Xxxxxxx, datada de 21 de maio de 1918, ensina rUY rOSADO DE AGUIAr JÚNIOr62. A lei foi ne- cessária diante do embate ideológico entre a Corte de Cassação Francesa – contra a imprevisão e a favor da força obrigatória – e o Conselho de Estado Francês – contra a força obrigatória e a favor da imprevisão. Xxxxxx a norma um recrudesci- mento da noção historicamente pretérita da cláusula rebus sic stantibus, abraçando a teoria da imprevisão.
Há, obviamente, outras notícias de adoção de teses de equilíbrio contratual no mundo, como a Frustration of Adventure, na Inglaterra. O leading case inglês é o clás- sico caso da coroação do rei inglês Xxxxxxx XXX (1901). Nesse caso o demandante havia alugado sua casa, situada em Londres, para o dia do desfile de Xxxxxxx XXX. O imóvel situava-se no percurso do desfile, de maneira que o locatário sublocou os postos nas janelas de suas casas. Entrementes, o desfile de coroação fora suspen- so. Assim, entendeu o Tribunal a impossibilidade de cobrança dos aluguéis, pois o sentido do contrato (substance of the contract) fora modificado, ante a ausência do cortejo. Com a alteração da base objetiva do pacto, necessária sua resolução. O ideal manteve-se até os dias de hoje e, desde então, adota-se na Inglaterra a teoria da base objetiva do negócio.
Não se olvida que outras teorias também surgiram com o objetivo de contra- por-se ao ideal de força vinculante dos contratos e busca da equivalência material das prestações. Exemplifica-se com a teoria da pressuposiçio, de WINDSCHEID, segun- do a qual o contratante obrigou-se confiando na permanência de uma situação, sem a qual não teria contratado. Não se mantendo esse pressuposto, viável a resolução do contrato.
Ainda passeando por teses que visavam abrandar a noção de pacta sunt ser- vanda, vê-se a teoria da desapariçio, formulada por XXxXXXXX e divulgada por LA- rENZ, consoante a qual no momento da formação dos contratos, as partes conside- ram suas condições, como valores, reposição, entrega... estas hão de ser próximas quando da execução do pacto, sob pena de desfazimento.
E no Brasil?
Em terras brasilis, abraçou-se a teoria da imprevisão, aplicável quando há um acontecimento novo, superveniente, imprevisível e extraordinário, o qual atinge a base econômica de um contrato comutativo e de duração, gerando onerosidade excessiva para uma das partes e extrema vantagem para a outra, ocasionando a revisão ou resolução do contrato (CC, arts. 478 e 479).
Percebe-se na teoria da imprevisão arcabouço teórico apto a mitigar a noção do pacta sunt servanda, propugnando a revisio ou resoluçio do contrato por mudança no seu cenário, durante a execução, apta a ocasionar onerosidade ex- cessiva para uma das partes e extrema vantagem para a outra. Seu escopo é de
62. XXXXXX, Xxx. Extinçio dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2003. p. 144.
manutençio do equilíbrio contratual, de maneira que os benefícios percebidos por cada contratante sejam proporcionais aos sacrifícios assumidos.
O tema, há muito, é veiculado no direito brasileiro, datando a primeira decisão sobre o assunto de 1930, do então juiz XXXXXX XXXXxXX. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, acolheu de forma inédita a tese em 1935, sinaliza PAULO LÔBO63.
A partir do conceito brasileiro legislado de imprevisio, verifica-se que sua ocorrência demanda a constatação de alguns requisitos cumulativos. São eles:
a) Contrato de duração; b) Contrato comutativo; c) Acontecimento de fato novo, superveniente, imprevisível e extraordinário; e d) Alteração da base econômica do contrato – também chamada alteração da base objetiva – gerando onerosida- de excessiva para uma das partes e extrema vantagem para a outra, quando em comparação com a base econômica originária do contrato.
A partir de então, seguindo no tema teoria da imprevisão, iremos abordar, analiticamente, requisito a requisito.
a) Contrato de duraçio
A aplicação da teoria da imprevisão demanda a presença de um contrato de duraçio.
Entende-se por contrato de duração aquele no qual há razoável intervalo de tempo entre a sua celebração e a sua execução. Contrato de duração é um gênero, cujas espécies são: i. de execuçio continuada, também chamado de trato sucessi- vo ou execuçio periódica; e ii. execuçio diferida. Explica-se:
i. Contrato de execuçio continuada, periódica ou de trato sucessivo – é aque- le que se renova no tempo, durante período determinado ou indetermina- do. Exemplifica-se com um contrato de locação. Este, de forma sucessiva, renova-se no tempo, sendo que, mês a mês, há o pagamento de aluguel.
ii. Contrato de execuçio diferida – entendido como aquele protraído no tem- po, no qual a execução dar-se-á de uma única vez, porém em um momento posterior. É o exemplo da compra e venda, celebrada no dia de hoje e na qual resta acertado o pagamento e a entrega do produto em trinta dias para frente, de maneira diferida (protraída) no tempo.
Em ambas as situações (trato sucessivo ou diferido) é possível que haja um acontecimento novo, superveniente, imprevisível e extraordinário que atinja a base econômica do contrato, ocasionando onerosidade excessiva para uma das partes e extrema vantagem para a outra. Neste momento, há aplicação da teoria da imprevisão.
Ressalta-se ser inviivel a aplicação da teoria da imprevisão em contratos de execuçio imediata, como uma compra e venda na qual já há o pagamento do preço e a entrega do objeto. A explicação é simples. Nesse modelo contratual não há como se verificar a incidência de um fato superveniente, pois quando da ocor- rência deste, o contrato já findou.
63. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 205.
🞂 Atenção!
A Súmula 286 do Superior Tribunal de Justiça afirma que a renegociação de contrato bancário ou a confissão de dívida não afasta a possibilida- de de revisão de contratos extintos.
Trata-se de excepcional hipótese de revisão de contrato extinto, auto- rizada jurisprudencialmente diante da relação de consumo e tutela do hipossuficiente (Súmula 297 do STJ).
De ordinário, um contrato extinto não pode ser revisado, pois apenas é possível revisão daquilo que ainda existe (persiste).
b) Contrato comutativo
Contrato comutativo é modalidade de contrato oneroso e bilateral na qual, previamente, é possível ser verificado o custo x benefício do pacto.
Exemplifica-se com a compra e venda. Nessa, em regra, o comprador verifica qual o item a ser adquirido e o seu preço, realizando uma prévia equação finan- ceira de custo x benefício. Imagine uma pessoa, em uma loja, olhando o preço de uma camisa e decidindo, diante do produto, se o custo x benefício compensa. Casuística clara de contrato comutativo.
Para CArLOS rOBErTO GONÇALVES64 contratos comutativos possuem uma cliusula implí- cita impondo a obrigatoriedade de seu cumprimento, desde que haja inalterabili- dade da situação fática. Esta, acaso alterada, modifica toda a base contratual (cus- to x benefício), impondo sua revisão ou resolução. Justo por isso, são os contratos comutativos o locus de aplicação da teoria da imprevisão.
Nessa toada, a priori não é possível a aplicação da teoria da imprevisão em contratos aleatórios. Estes também traduzem modalidade de contrato oneroso e bilateral, mas, diferentemente dos comutativos, possuem uma álea, entendida como um fator de sorte, de variação e imprevisibilidade. O contrato aleatório é geneticamente imprevisível.
Exemplifica-se com o contrato de seguro de automóveis, no qual paga-se para assegurar a ocorrência de um risco, o qual nem sempre é implementado. Com efei- to, plenamente possível que haja o pagamento do seguro e, durante todo o ano, não seja este acionado. Igualmente possível que se pague o seguro e o veículo seja roubado, recebendo o segurado indenização bem superior ao pagamento do prêmio. Tudo dependerá do quê de imprevisibilidade; de sorte.
🞂 Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o tema?
[…] 2. Nos contratos agrícolas de venda para entrega futura, o risco é inerente ao negócio. Nele não se cogita a imprevisão. (AgRg no REsp 1210389/MS, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, 3s Turma, DJe 27.09.2013)
64. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 51.
Mas seria possível, excepcionalmente, verificarmos a aplicação da teoria da imprevisão em contratos aleatórios?
A resposta é positiva. Lembra rUY rOSADO DE AGUIAr JÚNIOr65 que em sendo a impre- visibilidade decorrente de fato estranho à álea do contrato, plenamente viável a incidência da teoria da imprevisão em sede de contrato aleatório. Assim sendo, tudo dependerá do imprevisível estar, ou não, inserto na própria álea do contrato, como bem adverte XXXX XXxXX XX XXXXX PErEIrA66.
Sintetizando o dito, coloca-se o Enunciado 366 do Conselho da Justiça Federal, ao afirmar que “o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade exces- siva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contrata- ção”. Logo, arremata o Enunciado 440 do mesmo Conselho da Justiça Federal, “é possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contratos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione à álea assumida no contrato”.
E nos contratos unilaterais onerosos, seria possível a aplicação da teoria da imprevisão?
Como visto, a imprevisão incidirá, no ordinário, em contratos comutativos e, nos extraordinários, em contratos aleatórios. Ambos – contratos comutativos e aleatórios – são bilaterais e onerosos.
Mas será que, excepcionalmente, seria viável aplicarmos a imprevisão em con- tratos unilaterais e onerosos?
A resposta é positiva. O Código Civil dedica-se ao tema em seu art. 480. Assim, nos contratos em que haja obrigações impostas a apenas uma das partes (unila- terais), com o fito de ser evitada a onerosidade excessiva, é viável que o devedor pugne pela redução da prestação, ou pela modificação do modo de executá-la. A norma tem um viés cautelar, pois o escopo é evitar onerosidade, conduzindo o contrato a níveis suportáveis de cumprimento.
Veicula-se um exemplo elucidativo. Imagine que Xxxx comprometeu-se a doar 100 kg de alimentos não perecíveis, a cada dois meses, a uma comunidade isolada, cujos únicos acessos são uma estrada de barro, ou embarcações. Xxxx compro- meteu-se a levar os alimentos, bimestralmente, de carro. Ocorre que, no inverno, ficou inviável levar os alimentos de carro, diante da precariedade da estrada, aca- bada por conta das chuvas. Xxxx, então, opta por enviar os alimentos em embar- cações, durante todos os meses, em quantias menores e sucessivas, para evitar a onerosidade excessiva. Infere-se clarividente aplicação do art. 480 do Código Civil.
🞂 Atenção!
Poderia o devedor em mora arguir a tese da teoria da imprevisão em seu favor?
A resposta é negativa. Não é viável que aquele que esteja a violar uma norma jurídica, venha a arguir a incidência da teoria da imprevisão,
65. XXXXXX, Xxx. Extinçio dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2003. p. 157.
66. XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil. Vol. III. p. 167.
sob pena de nítida configuração de abuso de direito. Seria um claro exem- plo de tu quoque, tema adiante estudado nas fi@ur5s µ5rcel5res 45 bo5-fé.
D’outra banda, uma vez configurada a mora, haverá a perpetuaçio da obrigaçio (perpetuation obligationes), respondendo o devedor mesmo no caso fortuito e na força maior, salvo se comprovar isenção de culpa ou que o dano sobreviria ainda que a obrigação tivesse sido oportuna- mente desempenhada (CC, art. 399).
Exemplificando o dito, CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.82 veicu- lam a seguinte situação: imaginem que A faria o transporte marítimo de uma mercadoria do Brasil à Espanha. Todavia A estava em mora há trinta dias, sendo que a prestação ainda era do interesse de B. Neste interim eclode uma Guerra, elevando o preço do combustível em 50% (cinquenta por cento). Caso A solicite a aplicação da teoria da imprevi- são, para revisão do pagamento do transporte por aumento do preço do combustível, a tese não deve ser acolhida. Isso porque, A já estava em mora quando do fato que gerou a excessiva onerosidade.
Seria um claro exemplo de tu quoque. Ademais, A, que já está em mora, terá a obrigação perpetuada, respondendo pela perda mesmo que no caso fortuito ou na força maior, salvo se comprovar isenção de culpa ou que o dano sobreviria ainda que a obrigação tivesse sido oportuna- mente desempenhada (CC, art. 399).
c) Acontecimento de fato novo, superveniente, imprevisível e extraordinirio67
Não será qualquer acontecimento apto a ocasionar imprevisão. Vê-se pela pró- pria evolução histórica do tema que a primeira normatização sobre o assunto foi em decorrência de um evento impensado até então: Primeira Guerra Mundial.
O acontecimento gerador da imprevisão, verbera PAULO LÔBO68, há de ser exterior ao contrato, não tendo sido provocado pelas partes. Caso uma das partes tenha sido causadora da circunstância onerosa, haverá de responder por sua conduta, não se falando em imprevisão.
O acontecimento é qualificado como extraordinirio por ser anormal e estranho ao vínculo contratual. Está fora dos riscos usuais do negócio.
🞂 Como o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se sobre o tema?
DIREITO CIVIL. NÃO CARACTERIZAÇÃO DA “FERRUGEM ASIÁTICA” COMO FATO EX- TRAORDINÁRIO E IMPREVISÍVEL PARA FINS DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO. A ocor-
rência de “ferrugem asiitica” na lavoura de soja nio enseja, por si só, a resoluçio de contrato de compra e venda de safra futura em razio de onerosidade excessiva. Isso porque o advento dessa doença em lavoura de soja não constitui o fato extraordinário e imprevisível exigido pelo art. 478 do CC/2002, que dispõe sobre a resolução do contrato por onerosi- dade excessiva. Precedente citado: REsp 977.007-GO, Terceira Turma, DJe 2/12/2009. (REsp 866.414-GO, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 20.06.2013)
67. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5s ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 565.
68. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 202.
Nessa toada, assim como causas comezinhas não devem ser entendidas como imprevisíveis, não há como exigir acontecimentos espetaculares e magnânimos, sob pena de ocaso teórico do instituto. Leva-se em conta na análise da imprevisi- bilidade, advoga FLÁVIO TArTUCE69, circunstâncias subjetivas das partes naquele deter- minado negócio jurídico.
Todavia, não é possível, igualmente, ser admitido como fato apto a ocasionar a imprevisão situações subjetivas exclusivamente ligada às partes. Necessita-se, afirma XXXXXX XX XXXXX VENOSA70, que o fato diga respeito a certa camada social.
d) Alteraçio da base econômica do contrato – também chamada de alteraçio da base objetiva – gerando onerosidade excessiva para uma das partes e extrema vantagem para a outra, quando em comparaçio com a base econômica originiria do contrato
O fato superveniente, imprevisível e extraordinário há de atingir a base econô- mica ou objetiva do contrato, gerando onerosidade excessiva para uma das partes e extrema vantagem para a outra.
A imprevisibilidade “deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz”, como bem coloca o Enunciado 175 do Conselho da Justiça Federal. Logo, pontua o Enuncia- do 17 do Conselho da Justiça Federal, “a interpretação da expressão ‘motivos imprevi- síveis’, constante do art. 317 do Código Civil, deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis”.
Contrato é uma balança. O direito tenta equalizar o fiel da balança, gerando justiça contratual. O contrato deve gerar trocas úteis e justas (Enunciado 22 do Conselho da Justiça Federal). Nessa ótica, uma vez desbalanceado o contrato, há de existir dirigismo contratual, in casu, por meio da teoria da imprevisão. Logo, fatos mesmo que previsíveis (greve, fome, guerra) podem se encaixar como ex- cessivamente onerosos e abrir caminho à aplicação da teoria, caso sejam fatos capazes de gerar, no contrato, excessiva onerosidade a uma das partes e extrema vantagem para a outra. A anilise é casuística.
O fato há de gerar uma lesio objetiva para uma das partes, que assumiu o compromisso obrigacional. Nesse sentido, na forma do Enunciado 365 do Conse- lho da Justiça Federal, “a extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da re- solução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena”.
🞂 Atenção!
A teoria da imprevisão não pressupõe, para sua configuração, xxxxxxx- xxxxxxx de uma das partes em detrimento da outra. Como bem ensinam
69. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 34. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 618.
70. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 476.
XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E xXXXXXX PAMPLONA FILHO71, a superveniência de cir- cunstância inesperada poderá ocasionar onerosidade excessiva para ambas as partes, sendo viável, inclusive neste cenário, a aplicação da teoria.
Mas, uma vez verificada a imprevisão, o que fazer?
Duas são as saídas positivadas no Código Civil: i. Revisio do contrato; e ii.
Resoluçio do contrato.
i. Revisio do contrato
Como visto no volume de Parte Geral, negócios jurídicos, sempre que possível, devem ser conservados. Logo, vaticina o art. 479 do Código Civil ser viável evitar a resolução do contrato por imprevisão, se o réu oferecer modificar, equitativamen- te, as condições do contrato.
O réu é justamente aquele que percebeu a extrema vantagem com o fato su- perveniente. Nessa esteira, poderá o réu evitar a resolução do contrato, o reen- quadrando em bases razoáveis, sendo restabelecida a justiça contratual.
Obviamente que não é dado ao réu o poder de, ao seu alvitre, decidir sobre as novas bases contratuais. Propugna o Enunciado 367 do Conselho da Justiça Federal que “em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e ob- servado o contraditório”.
Mas a revisão apenas será possível na hipótese de o réu se oferecer para tanto?
Excelente debate. Pela literalidade do art. 479, sim. Todavia, ensina MArIA HELENA DINIZ72 que se é possível ao magistrado o mais – resolver o contrato –, igualmente será possível o menos – revisá-lo –, em atenção ao princípio da conservação dos atos e devido processo legal.
Assim coloca-se o Enunciado 176 do Conselho da Justiça Federal, ao afirmar que “em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, a revisão judicial dos contratos e não a resolução contratual”.
E poderia o réu (beneficiado pela imprevisão), ao revés de aguardar ser de- mandado para propor a revisão, já ajuizar a ação revisional do contrato, tornan- do-se autor?
A resposta, mais uma vez, é positiva. Malgrado a norma fale na possibilidade de o réu pleitear a revisão do contrato, atento ao fato de ser este aquele que está
71. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 316.
72. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 48.
a gozar da extrema vantagem, nada impede que haja antecipação, ajuizando-se ação de revisão do contrato antes do prejudicado pleitear a incidência da impre- visão.
Neste cenário, quem seria futuro réu em uma ação de resolução do contrato por imprevisão, torna-se autor em uma ação de revisão do pacto, como obtempe- ra CArLOS rOBErTO GONÇALVES73.
Outrossim, essa “revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Có- digo Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empre- sariais, observar-se-á a sofisticação dos contratantes e a alocação de riscos por eles assumidas com o contrato”. Decerto, os riscos inerentes ao negócio, em cada caso concreto, hão de ser considerados.
Por fim, obviamente que os efeitos da pandemia da Covid-19 impactaram os contratos, com aplicação da teoria da imprevisão e necessidade de revisão judi- cial.
Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça?
No REsp 2070354, a 3a Turma do Superior Tribunal de Justiça, com relatoria da Min. Xxxxx Xxxxxxxx, determinou a revisão de um contrato de mútuo, com a pror- rogação do vencimento das cédulas de crédito bancário, celebrado entre o Banco e uma empresa de transportes, tendo em vista a paralisação das atividades desta, por determinação estatal, durante a pandemia da Covid-19.
ii. Resoluçio contratual
Não sendo viável a revisão, o caminho será a resolução do contrato, compre- endida como sua extinção e retorno das partes ao status quo ante.
Revisando ou resolvendo o contrato, nas pegadas do art. 478 do Código Civil, a decisão retroagirá à data da citação.
Teoria da imprevisão confunde-se com lesão?
A confusão feita por alguns reside no fato de que tanto a teoria da imprevisão, como a lesão, tem uma circunstância em comum: a desproporção entre as parcelas pactuadas. Assim, combatendo a desproporção, tanto a lesão como a imprevisão são calcadas em um ideal de justiça contratual.
Apesar da aproximação, os institutos em apreço são bem diferentes. A lesão combate a desigualdade contratual genética, manifestada no seu nascedouro; en- quanto a imprevisão vai ao encontro da desigualdade contratual posterior, verifi- cada por fato superveniente.
Lesão relaciona-se aos defeitos do negócio jurídico, ligando-se às invalidades (plano de validade do negócio). Para que seja configurada a lesão, demandam-se dois requisitos:
73. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 200.
a) Objetivo: caracterizado pela desproporçio entre a prestação e a contra- prestação fixadas no negócio jurídico. Importante observar que o Código Civil não indica o nível de desproporção, o que é positivo, por prestigiar o princípio da operabilidade, por meio de conceitos abertos que serão preenchidos pelo magistrado in casu, de acordo com a boa-fé e os usos e costumes do lugar.
b) Subjetivo: Inexperiência ou premente necessidade de uma das partes, a ser percebida de acordo com o caso concreto, em que as condições pessoais do lesado serão verificadas ao lado do elemento objetivo, ou seja, da des- proporção entre as parcelas. É possível que essa premente necessidade transcenda o viés econômico, manifestando-se, por exemplo, para situa- ções de cunho moral.
Há lesão, portanto, quando da verificação da desproporção entre as parcelas pactuadas, no momento da celebração do negócio jurídico, por inexperiência ou premente necessidade de uma das partes. Tais requisitos, por dizerem respeito à validade, hão de ser analisados no momento da celebração do negócio jurídico. A lesão nasce com o negócio jurídico. A consequência da lesão será a revisão ou anulação do ato (CC, art. 157). O tema é tratado no volume de Parte Geral.
Já a imprevisão está no campo da eficácia do negócio jurídico (plano de efi- cácia), dialogando com seus efeitos. Na imprevisão há um negócio jurídico válido, mas que fora atingido no seu plano eficacial, por fato um superveniente que dese- quilibrou sua base econômica ou objetiva. Na imprevisão verifica-se desproporção por fato superveniente. A consequência será a revisão ou resolução do negócio.
E no Código de Defesa do Consumidor, também haveria aplicação da teoria da imprevisão?
O Código de Defesa do Consumidor afirma, dentre os direitos básicos do con- sumidor, a revisão do contrato, em razão de fatos supervenientes, que o torne excessivamente oneroso (CDC, art. 6º, V).
Diferentemente do Código Civil, que demanda ser o fato imprevisível, o Código de Defesa do Consumidor exige apenas a onerosidade excessiva. Logo, os uni- versos são diferentes. Enquanto o Código Civil adota a teoria da imprevisio, de base francesa, o Código de Defesa do Consumidor acolhe a teoria da onerosidade excessiva, também chamada de teoria da base objetiva do contrato ou teoria de equidade contratual, de base alemã.
A teoria da onerosidade excessiva não corresponde exatamente à teoria da imprevisão. Aquela (onerosidade excessiva) está mais focada na questão da des- proporção, deixando ao largo a imprevisibilidade.
Sinaliza PAULO LÔBO74 que o Código de Defesa do Consumidor é o melhor sinal de situação na qual se afasta a teoria da imprevisão e se adota a teoria da base
74. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 207.
objetiva do contrato, também chamada de equidade contratual, muito bem desen- volvida pelos alemães, em claro sinal de recuperação do ideal da cláusula rebus sic stantibus.
🞂 Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou acerca do tema?
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. HIPÓTESE DE INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA BASE OBJETIVA OU DA BASE DO NEGÓCIO JURÍDICO.
A teoria da base objetiva ou da base do negócio jurídico tem sua apli- cação restrita às relações jurídicas de consumo, não sendo aplicável às contratuais puramente civis. (REsp 1.321.614-SP, Rel. originário Min. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Rel. para acórdão Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, julgado em 16.12.2014, DJe 03.03.2015)
O clissico exemplo na jurisprudência nacional de aplicação da teoria da one- rosidade excessiva foi a revisão dos contratos de consumo de arrendamento mer- cantil (leasing), em função do dólar, após a transição do câmbio fixo para o móvel, nos idos de 1999. Com a excessiva onerosidade aos consumidores, o Superior Tribunal de Justiça ordenou a revisão, independentemente da imprevisibilidade do fato, com a consequente divisão do ônus entre as partes (arrendante e arren- datário). Há inúmeros julgados nesta linha. No particular, data vênia, registra-se dois estranhamentos: i. a tese da divisão do ônus, mormente em uma relação de consumo, na qual há, nitidamente, um hipossuficiente; e ii. moderna decisão do mesmo Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário a decisões históricas sobre o assunto. Cita-se:
🞂 Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou acerca do tema?
Maxidesvalorizaçio do real em face do dólar americano e teorias da imprevisio e da onerosidade excessiva.
Tratando-se de relação contratual paritária – a qual não é regida pelas normas consumeristas – a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999 não autoriza a aplica- ção da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, com intuito de promover a revisão de cláusula de indexação ao dólar americano. (REsp 1.321.614-SP, Rel. p/ ac. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, 3s Turma, DJe 03.03.2015 – Info STJ, 556)
Ainda voltando os olhos ao Código de Defesa do Consumidor, percebe-se que a consequência da onerosidade excessiva será a revisão do contrato, ao revés de sua resolução.
Do dito, conclui-se que há atecnia no Código Civil nacional no momento em que intitula a sua Seção IV “Da Resolução do Contrato por Onerosidade Excessiva” e disciplina, no art. 478, a teoria da imprevisão, ao exigir a imprevisibilidade como requisito. O legislador nacional, impropriamente, trata como sinônimos coisas que não o são – imprevisão e onerosidade excessiva –, fato cristalino quando do cotejo do Código Civil com o Código de Defesa do Consumidor.
Ainda nas dúvidas e nos debates sobre o tema, pergunta-se: é viável, por meio do exercício da autonomia privada, ser aposta cliusula contratual expressa afas- tando a incidência do instituto da imprevisão?
Na seara do consumo, seguramente a resposta é negativa, sendo nitidamente uma cláusula abusiva e, consequentemente nula, nas pegadas do art. 51 do CDC. Nos contratos de adesio, igualmente nula a disposição, por implicar na vedada renúncia antecipada a direito (CC, art. 424).
E nos contratos paritirios, seria possível a cláusula de exclusão?
Concordamos com XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E xXXXXXX PAMPLONA FILHO75 no sentido de ser a imprevisão uma questão de ordem pública, impassível de afastamento pela vontade das partes, pois relacionada à função social e equivalência material das prestações (CC, art. 2.035).
rUY rOSADO DE AGUIAr JÚNIOr76 pontua que, em verdade, diante do sistema de cláusu- las gerais do Código Civil, é plenamente possível a revisão ou extinção dos contra- tos pautada nos princípios da boa-fé e função social. Arremata o Autor, nessa linha de pensamento, que imprevisão acaba sendo reduzida a um locus subsidiário, de aplicação apenas em situações nas quais as revisões e extinções não são viáveis pela teoria geral.
Seguindo esse pensamento, é possível concluir pela inviabilidade de afasta- mento, por ato de vontade, da prerrogativa de revisão ou extinção do contrato por desbalanceamento superveniente. O próprio sistema principiológico contratu- al, mormente o ideal de equivalência material das prestações, impõe a revisão ou resolução em casos como esse.
Registra-se que o pensamento ora defendido nio é uníssono da doutrina, en- contrando vozes dissonantes, como a de SÍLVIO DE SALVO VENOSA77. Segundo esse Autor, inviável seria apenas a cláusula geral de renúncia à revisão dos contratos. A cláu- sula específica – como aquela que impede revisão por imprevisão, em função de um novo plano econômico – para o Autor é possível, coadunando-se com o exercí- cio da autonomia privada.
O pensamento de possibilidade de restrição de aplicação da imprevisão em contratos paritários, em especial empresariais, tende a ganhar força, mormente após as modificações legislativas implementadas pela Lei de Liberdade Econômica, nos arts. 000 x 000-X do Código Civil.
Com efeito, hodiernamente é viável em contratos paritários a clara alocação de riscos e determinação de critérios para revisão e resolução contratual, tornando-
-se a intervenção estatal excepcional e diminuta. O tema será retomado no item dedicado à interpretação dos contratos.
75. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11s ed. São Paulo: Método, 2015. p. 326.
76. XXXXXX, Xxx. Extinçio dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2003. p. 152.
77. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 482.
🞂 Atenção!
O que é a cláusula hardship?
Hardship pode ser significada como adversidade, infortuito. Afeta ao Direito Internacional, a cláusula hardship se aplica quando durante a execução do contrato há mudanças em circunstâncias econômicas, po- líticas ou sociais capazes de alterar o equilíbrio econômico-financeiro do pactuado. Nessa toada, a depender da extensão dos eventos, os contratantes restarão tolhidos de executar o contrato na forma origi- nariamente pactuada.
A cláusula hardship demanda previsão expressa no contrato, signifi- cando uma espécie de aplicação dos ideais da imprevisão e de one- rosidade excessiva à seara internacional. Sua previsão tem notícia nos princípios relativos à Unidroit. Uma vez verificada a adversidade, há um dever de readequação contratual, afirmam CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.78
Para que reste configurada a incidência da cláusula, são requisitos necessirios e cumulativos:
a) Alteraçio fundamental das condições econômicas – tal alteração poderá decorrer tanto do aumento dos custos envolvidos, como da diminuição do valor da contraprestação;
b) Superveniência do evento – tais eventos decorrem de amplos mo- vimentos de mercado, demandando-se que os efeitos do evento sejam sentidos, pelas partes contraentes, após a celebração do contrato;
c) Imprevisibilidade do evento – o evento gerador do hardship há de ser avesso à vontade das partes, exterior, bem como não dizer respeito ao eventual risco assumido pelos contratantes (álea).
Nada impede que a própria cláusula hardship elenque quais os eventos que compreendem sua incidência, em uma normatização atinente à autonomia privada. Outrossim, plenamente viável a adoção da cláusula em contratos paritários nacionais, desde que expressamente discipli- nada.
5. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
A significação da boa-fé remete a leitura de dois conceitos de microrracionali- dades diversas. Em um primeiro momento, o conceito romano, interno, psíquico de fidelidade à palavra dada e boa-fé subjetiva (bona fides). Em um segundo momento, o conceito alemio, externo, comportamental, traduzido no Treu und Glauben (lealdade e confiança), de boa-fé objetiva.
A Codificação Civil nacional oitocentista, de 1916, adotava o ideal da boa-fé subjetiva (bona fides), a significar, nas lições de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA
78. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5s ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 225.
FILHO79, como “uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivência de dada situação, sem ter ciência de vício que a inquina”.
Ter boa-fé subjetiva seria equivalente a desconhecer fatos impeditivos ao exer- cício de uma dada prerrogativa, reconhecendo, dentro do respectivo nível de compreensão da situação, que a própria conduta está correta. Traduz a ignorância, naquela situação, sobre a realidade dos fatos e lesão a direito alheio.
CArLOS rOBErTO GONÇALVES80 bem recorda que a boa-fé subjetiva é uma norma de interpretação, servindo à consciência daquele que está agindo, supostamente, conforme o direito. Para JUDITH MArTINS-COSTA81 é um estado de consciência ou con- vencimento individual da parte em seu agir estar em conformidade com o direito. Condiz com um estado psicológico de íntima convicção. Trazendo notícia sobre o direito romano, PAULO LÔBO82 informa que, nos dizeres de Xxxxxx, a boa-fé subjetiva liga-se a honestidade e retidão.
O Código Civil de 2002 não abandonou por completo o ideal de bona fides. O adota, por exemplo, na seara dos Direitos Reais, ao tratar sobre o conceito de posse de boa-fé, a entendendo com aquela na qual o possuidor desconhece vício ou obstáculo que impeça a aquisição da coisa (CC, art. 1.201).
Entrementes, na seara dos negócios jurídicos e dos contratos (obrigações), o legislador nacional de 2002 – assim como o alemão de 1900, o português de 1966 e o italiano de 1942 – abraçou o conceito de boa-fé objetiva, comportamental, significando-a como uma verdadeira e exigível regra de comportamento ético. Seguiu o legislador civilista o influxo de ideias já adotadas no Código de Defesa do Consumidor, o qual abraça a boa-fé no seu art. 4º, III. Caminhou com a boa-fé significando eticidade negocial, materializando um dos princípios do Código Civil83.
A boa-fé objetiva considera um padrio comum de conduta, verificando se o sujeito agiu, ou não, consoante este determinado padrão. Trata-se de regra de conduta veiculada mediante uma cliusula aberta, como o foi em boa parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais.
Seu conteúdo é amoldado na anilise do caso concreto, sendo uma espécie de confiança adjetivada. Justo por isso, recorda XXXXXX XX XXXXX VENOSA84 que na análise da boa-fé “devem ser examinadas as condições em que contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, o momento histórico e econômico”.
79. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11s ed. São Paulo: Método, 2015. p. 100.
80. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 55.
81. XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: XX, 0000. p. 411.
82. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 73.
83. Os princípios do Código Civil são eticidade, sociabilidade e operabilidade. Estão tratados no volume de Parte Geral, para o qual se remete o leitor que deseje se aprofundar sobre o tema.
84. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 524.
Para CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.85, a boa-fé objetiva é um arqué- tipo ou modelo de comportamento social que nos aproxima de um conceito ético de proceder de forma correta. É uma conduta esperada consoante os padrões sociais.
Então é possível diferenciar boa-fé subjetiva da objetiva?
Seguramente. FErNANDO NOrONHA86, diferenciando a boa-fé subjetiva da obje- tiva, verbera que “a primeira diz respeito a dados internos, fundamentalmente psicológicos, atinentes diretamente ao sujeito; a segunda a elementos externos, a normas de conduta que determinam como ele deve agir. Num caso está de boa-fé quem ignora a real situação jurídica; no outro, está de boa-fé quem tem motivos para confiar na contraparte. Uma é boa-fé de estado, a outra, boa-fé de princípio”.
Infere-se, então, ser plenamente viável o sujeito agir com boa-fé subjetiva – por desconhecer vício que inquine o seu direito –, mas não observar a objetiva – por ter comportamento, em relação ao outro, que afronte padrões médios de condu- ta, segundo os usos de determinado lugar.
A boa-fé objetiva incorpora-se ao direito nacional em nítida importação Alemã. Com tal incorporação, passa a doutrina a veicular as funções da boa-fé objeti- va, sendo elas: a) Interpretativa ou de Colmataçio. Funçio de Interpretaçio; b) Criadora de Deveres Jurídicos Anexos ou de Proteçio. Funçio de Integraçio e c) Delimitadora de Exercício de Direitos Subjetivos. Funçio de Controle. Sobre este cariter multifuncional da boa-fé que se passará a abordar, analisando cada uma das funções.
a) Funçio Interpretativa ou de Colmataçio. Funçio de Interpretaçio
Nas pegadas do art. 113 do Código Civil, na interpretação dos negócios jurí- dicos deve o operador do direito considerar a boa-fé e os usos do local de sua celebração.
Vaticina CLÓVIS DO COUTO E SILVA87 que “o princípio da boa-fé revela-se como delinea- dor do campo a ser preenchido pela interpretação integradora, pois, da perquirição dos propósitos e intenções dos contratantes, pode manifestar-se a contrariedade do ato aos bons costumes ou à boa-fé”.
Digno de nota, porém, que a boa-fé e a ética não são conceitos jurídicos. São ideais que ultrapassam, em muito, um dado sistema e o próprio direito. Nessa toa- da, enxergando a boa-fé em sua faceta interpretativa, o Enunciado 27 do Conselho da Justiça Federal afirma que “na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros esta- tutos normativos e fatores metajurídicos”.
85. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5s ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 146.
86. XXXXXXX, Xxxxxxxx. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais, p. 132.
87. XXXXX X XXXXX, Clóvis do. A Obrigaçio como Processo. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 33-34.
Em sendo a ética conceito além do direito, o operador do direito deve ir além das barreiras normativas, visando melhor interpretar e executar os contratos sob a lente da ética.88
🞂 Atenção!
Recorda PAULO LÔBO92 que a boa-fé, como ideal de ética, transborda as raias do Direito Civil, sendo aplicável em outros campos normativos. Apenas como exemplos, lembra o Autor do princípio da moralidade, atinente à Administração Pública (CF, art. 37), ou ainda do regramento sobre o tema no Código de Defesa do Consumidor (CDC, art. 51).
Em cada uma dessas searas a boa-fé adequa-se, exercendo importante
papel de lente significadora de valores confiáveis, probos e éticos.
b) Funçio Criadora de Deveres Jurídicos Anexos ou de Proteçio. Funçio de Integraçio
Conforme estudado na parte dedicada às obrigações, hodiernamente enxerga-
-se a relaçio jurídica obrigacional como um processo. Sua leitura deve ser feita a partir do paradigma de uma série de atos encadeados visando o adimplemento. A satisfação do credor e a dinâmica da relação obrigacional são premissas que orientam seu estudo.
Lembra XXXXXX XXxXXXX-COSTA89 que o direito das obrigações é construído dentro de um processo relacional contínuo de cooperaçio, devendo ser encarado como uma relação complexa, “compreendendo uma série de deveres, situações jurídicas e obrigações”, voltados ao adimplemento. Infere-se a ideia de obrigaçio como um processo voltado ao cumprimento de um dever, como já lecionava CLÓVIS DO COUTO E XXXXX. É um processo com atividades necessárias à satisfação dos interesses do credor.
Neste iter procedimental há deveres principais e anexos (acessórios, implícitos, satelitirios, de conduta), os quais perduram até depois do pagamento, com a efi- cicia pós-objetiva da obrigação. São deveres ligados à boa-fé, sendo exemplos o de informar, cooperar, cuidar, zelar etc. Por conseguinte, infere-se que as relações obrigacionais de tráfego jurídico não devem ser analisadas apenas sob o ponto de vista econômico, mas também consoante deveres não patrimoniais.
Nessa ótica, o arrepio da concepção obrigacional clássica, não mais deve ser enxergado o vínculo contratual apenas como o dever de prestar e o correlato direito de exigir ou pretender a prestação. O vínculo é total, devendo ser com- preendido em sua inteireza, contemplando os deveres principais, mas também os anexos, todos integrantes do processo obrigacional.
Credor e devedor não mais são compreendidos como sujeitos antagônicos, mas sim como parceiros, atuando de mãos dadas rumo ao implemento do resulta-
88. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 74.
89. n Comentirios ao Novo Código Civil. Coordenação Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. Volume V, Tomo I.
do contratual. Não se enxerga o contrato de um ringue de boxe, ou uma partida de tênis, mas sim como um jogo de cooperação, a exemplo do frescobol, no qual os sujeitos se apoiam visando um resultado útil a todos os envolvidos. Há uma visio solidiria do processo obrigacional.
Neste conjunto procedimental coloca-se a boa-fé objetiva na sua função integra- tiva, apta a veicular os deveres de comportamento entre credor e devedor, ainda que não previstos no contrato ou na norma (deveres laterais). Passa-se a verificar que no caso concreto há deveres que decorrem da vontade, outros da norma e ou- tros, ainda, da boa-fé. Justo esses últimos são os batizados como laterais.
Logo, tais deveres laterais – também chamados de anexos, colaterais, de con- duta, satelitários, implícitos –, decorrentes da boa-fé objetiva, são impostos não apenas ao credor, mas também ao devedor, como bem se infere da redação do art. 422 do Código Civil. Estes deveres se curvam a uma enumeraçio exemplifi- cativa, apta a englobar, nas lições de XXXXXX XXxXXXX-COSTA90, deveres de: a) cuidado, previdência e segurança; b) aviso e esclarecimento; c) informação; d) prestação de contas; e) colaboração e cooperação; f) proteção e cuidado com a pessoa e patrimônio da contraparte e g) omissão e de segredo.
ANTÔNIO MANUEL DA rOCHA MENEZES COrDEIrO91, trabalhando com a enumeração exempli- ficativa dos deveres anexos, os divide em três grandes categorias: a) deveres de proteçio; b) deveres de esclarecimento e c) deveres de lealdade. Nessas catego- rias, enxerga o sempre festejado Professor português, enumeração exemplificativa dos deveres de conduta.
Os deveres implícitos, nas lições de CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.92, tem dupla funçio: i. Negativa, cujo escopo é evitar comportamentos que atinjam o desenrolar do processo obrigacional; e ii. Positiva, permitindo às partes unir-se em busca do adimplemento obrigacional. São funções, claramente, coligadas.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
O Superior Tribunal de Justiça, há muito, adota a tese das três fun- ções da boa-fé objetiva – interpretativa, integrativa e limitadora –, bem como a noção da existência de deveres anexos nos contratos. Cita-se aresto elucidativo sobre o tema:
DIREITO CIVIL. NECESSIDADE DE COMUNICAÇÃO AO EMPREGADO ACERCA DO DIREITO DE OPTAR PELA MANUTENÇÃO NO PLANO DE SAÚDE EM GRUPO.
O empregado demitido sem justa causa deve ser expressamente co- municado pelo ex-empregador do seu direito de optar, no prazo de 30 dias a contar de seu desligamento, por se manter vinculado ao plano de saúde em grupo, desde que assuma o pagamento integral. De início, esclareça-se que o art. 30 da Lei 9.656/1998, com a redação
90. XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: XX, 0000. p. 439.
91. XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx. Xx Xxx-Xx xx Xxxxxxx Xxxxx. Xxxxxxx: Almedina, 2001. p. 604.
92. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5s ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 154.
dada pela MP 2.177-44/2001, dispõe: “Ao consumidor que contribuir para produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, em decor- rência de vínculo empregatício, no caso de rescisão ou exoneração do contrato de trabalho sem justa causa, é assegurado o direito de manter sua condição de beneficiário, nas mesmas condições de cobertura as- sistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral”. Por seu turno, o art. 35-A da mesma lei criou o Conselho de Saúde Suplementar (CONSU), com com- petência para “estabelecer e supervisionar a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde suplementar”. Assim, o Conselho, ao regulamentar o art. 30 da Lei 9.656/1998, por meio da Resolução 20/1999, dispôs em seu art. 2º, § 6º: “O exonerado ou demitido de que trata o Art. 1º, deve optar pela manutenção do benefício aludido no caput, no prazo máximo de trinta dias após seu desligamento, em resposta à co- municação da empresa empregadora, formalizada no ato da rescisão contratual”. A melhor interpretação da norma é no sentido de que o prazo de trinta dias é razoável, mas o empregador deve comunicar ex- pressamente o ex-empregado sobre o seu direito de manter o plano de saúde, devendo o mesmo formalizar a opção. Trata-se de aplicação do dever de informação, nascido do princípio da boa-fé objetiva, expres- samente acolhido pelo ordenamento pátrio no art. 422 do CC. De fato, a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento, impondo, concretamente, a todo cidadão que atue com honestidade, lealdade e probidade. As múltiplas funções exer- cidas pela boa-fé no curso da relação obrigacional, desde a fase anterior à formação do vínculo, passando pela sua execução, até a fase posterior ao adimplemento da obrigação, podem ser vislumbradas em três gran- des perspectivas, que foram positivadas pelo CC: a) interpretação das regras pactuadas (função interpretativa); b) criação de novas normas de conduta (função integrativa); e c) limitação dos direitos subjetivos (função de controle contra o abuso de direito). A função integrativa da boa-fé permite a identificação concreta, em face das peculiaridades pró- prias de cada relação obrigacional, de novos deveres, além daqueles que nascem diretamente da vontade das partes (art. 422 do CC). Ao lado dos deveres primários da prestação, surgem os deveres secundários ou acidentais da prestação e, até mesmo, deveres laterais ou acessórios de conduta. Enquanto os deveres secundários vinculam-se ao correto cum- primento dos deveres principais (v.g., dever de conservação da coisa até a tradição), os deveres acessórios ligam-se diretamente ao correto processamento da relação obrigacional (v.g., deveres de cooperação, de informação, de sigilo, de cuidado). Decorre, portanto, justamente da função integradora do princípio da boa-fé objetiva, a necessidade de comunicação expressa ao ex-empregado de possível cancelamento do plano de saúde caso este não faça a opção pela manutenção no prazo de 30 dias. E mais, não pode a operadora do plano de saúde proceder ao desligamento do beneficiário sem a prova efetiva de que foi dada tal oportunidade ao ex-empregado. Por fim, destaque-se que o enten- dimento aqui firmado encontra guarida na Resolução Normativa 279 da ANS, de 24/11/2011, que “Dispõe sobre a regulamentação dos artigos 30 e 31 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, e revoga as Resoluções do CONSU nos 20 e 21, de 7 de abril de 1999”. (REsp 1.237.054-PR, Rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, julgado em 22.04.2014).
Em vista dos deveres anexos, o adimplemento do contrato passou a demandar anilise mais larga, apta a atender não apenas o cumprimento dos deveres contra- tuais principais, mas também dos anexos. Eventual descumprimento de dever ane- xo equivale ao descumprimento do próprio contrato, configurando violaçio positi- va do contrato, também chamada de adimplemento ruim, fraco ou insatisfatório, com consequente responsabilidade civil objetiva (independentemente de culpa).
Sufragando o dito, o Enunciado 24 do Conselho da Justiça Federal afirma que “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de cul- pa”. Justo por isso, em vista da desnecessidade de comprovação da culpa, agora na ótica do Enunciado 363 do Conselho da Justiça Federal, “os princípios de probi- dade e de confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência de violação”.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
Recurso especial. Civil. Indenização. Aplicação do princípio da boa-fé contratual. Deveres anexos ao contrato. O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qual- quer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. A alteração dos valores arbitrados a título de reparação de danos extrapatrimoniais somente é possível, em sede de Recurso Especial, nos casos em que o quantum determinado revela-
-se irrisório ou exagerado. Recursos não providos.
(REsp 595631/SC, Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, 3s Turma, julgado em 08.06.2004)
MORA. PAGAMENTO. EXTERIOR.
A sociedade empresária recorrida tem sede na Itália e foi contratada para prestar serviços relativos à atualização de uma usina termelétrica no Brasil. No contrato, há a determinação do pagamento em liras italia- nas, mas nada consta quanto à regularização da situação da recorrida no Banco Central do Brasil (BC). Essa instituição exigia, para a remessa do numerário ao exterior, a apresentação de documentos dos funcio- nários que prestaram o serviço (cópia de passaportes, declarações de renda), fato que atrasou o envio de determinadas parcelas. Discutiu-se, no especial, quem seria o responsável pela demora nos pagamentos e, por consequência, quem arcaria com os efeitos da mora relativamente aos juros moratórios e à correção monetária. Nesse contexto, essa determinação passa pelo crivo da boa-fé objetiva, que impõe deveres acessórios, princípio consagrado pelo Direito alemão (Treu and Glau- ben), implícito no CC/1916 e expresso no art. 422 do CC/2002. Na hipóte- se, em razio de a exigência do BC dizer respeito aos funcionirios da recorrida, faz-se necessirio reconhecer que a ela pertence essa obri- gaçio de regularizar sua situaçio (dever acessório de cooperaçio), apesar da omissio contratual. Assim, não tendo desempenhado a con-
tento aquele dever, que constitui ônus jurídico a afastar a necessi- dade de culpa do credor para sua caracterização, fica a recorrida sujeita à mora creditoris, cuja eficácia liberatória eximiu a recorrente devedora até o momento da purgação da mora (art. 958 do CC/1916, atual art. 400 do CC/2002) da qual se incumbiu a recorrida, não se po- dendo imputar à recorrente a obrigação de consignar o pagamento. Anote-se que a variação cambial da moeda estrangeira, desde que autorizada sua utilização, atua como índice de correção monetária quando convertida para a moeda nacional na data do pagamento, momento em que sua cotação dimensionará o valor do crédito de- vido. Sucede que, no caso, o contrato celebrado alinha-se com a exceção prevista no art. 2º, IV, do DL n. 857/1969, que permite o pa- gamento em moeda estrangeira se o credor ou devedor seja resi- dente e domiciliado no exterior. Não sendo necessária a conversão da moeda, não se pode conceber a utilização de variação cambial como índice de correção monetária, quanto mais se não há previsão legal que discipline o modo como se deva dar essa atualização. As- sim, mostra-se razoável permitir o cálculo do montante devido com a correção monetária pelo INPC. Para esse efeito, deverá a obrigação ser convertida para valores da moeda nacional na data em que de- veria ter sido cumprida, tal qual decidido pelo tribunal a quo. Com esse entendimento, a Turma deu parcial provimento ao especial para reconhecer a mora da recorrida e afastar a cobrança dos juros mo- ratórios. Precedentes citados: AgRg no REsp 716.187-RS, DJ 6/6/2005, e REsp 1.112.524-DF, DJe 30/9/2010.
(REsp 857.299-SC, Rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, julgado em 03.05.2011)
c) Funçio Delimitadora do Exercício de Direitos Subjetivos. Funçio de Controle
Como terceiro componente no tripé das funções da boa-fé objetiva, coloca-se o seu papel limitador do abusivo exercício de direitos. O abuso há de ser limita- do pela ética (boa-fé), falando-se na prerrogativa de revisão dos contratos para emoldurá-lo em limites éticos (CC, art. 187).
Como visto no item dedicado à Responsabilidade Civil, a violação da boa-fé objetiva conduz a uma responsabilidade civil objetiva, consoante um critério ob- jetivo-finalístico (Enunciado 37 do Conselho da Justiça Federal). Assim, soma-se aos já trabalhados Enunciados 24 e 363 do Conselho da Justiça Federal, mas este, caminhando na linha da objetivação da responsabilidade civil.
Nessa toada, possível a intervenção judicial hábil a revisar contratos e ade- quá-lo a ética, como sói ocorrer nas relações civis e de consumo. Exemplifica-
-se com a revisão de taxas de juros abusivas, com a retirada de cláusulas contratuais que violem preceitos de ordem pública – a exemplo da cláusula que impossibilite a redução equitativa, pelo magistrado, de cláusula penal abusiva (CC, art. 413).
Assim, verifica-se a possibilidade do uso da boa-fé como fator justificante à revisão e adequação contratual. Neste contexto que se coloca o Enunciado 26 do
Conselho da Justiça Federal, ao afirmar que “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como comportamento leal dos contra- tantes”.
Uma vez vencida as funções da boa-fé objetiva, indaga-se: tal boa-fé aplica-se apenas durante a execução do contrato, ou seria possível falar-se também em uma boa-fé pré e pós-contratual?
Voltando os olhos, novamente, ao tratamento da boa-fé no Código Civil, infere-
-se ser a redação do art. 422 um tanto quanto obscura no que tange aos limites da aplicação do instituto. Isso, porque, afirma o Código Civil a “obrigação dos contra- tantes a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Da leitura, não se tem claro se a boa-fé se aplica nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual.
Apesar da aparente obscuridade normativa, a doutrina caminha a passos lar- gos no sentido de aplicação da boa-fé desde o pré-contrato, passando pelo con- trato e chegando ao pós-contrato.
Assim, mesmo na fase de formaçio dos contratos – negociações preliminares, proposta e aceitação –, impõe-se a observância da boa-fé, sob pena de responsa- bilidade civil do lesante. Veja-se o clássico exemplo, veiculado em todos os livros, sobre o tema: o case da Xxxx, também chamado de caso dos tomates. Corriqueira- mente a Xxxx distribuía sementes aos agricultores do sul do país, para o plantio de tomate, adquirindo, quando da colheita, toda a safra. Em um determinado ano, porém, após distribuir as sementes e criar expectativa de aquisição de toda a safra, não o fez. Os agricultores, então lesados, ajuizaram ação indenizatória, por quebra da boa-fé pré-contratual, pelo que lograram sucesso. Cita-se uma das várias ementas destes casos análogos:
Contrato. Teoria da aparência. Inadimplemento. O trato, contido na inten- ção, configura contrato, porquanto os produtores, nos anos anteriores, plantaram para a Cica, e não tinha por que plantar, sem a garantia de compra.
(TJ/RS, Embargos Infringentes 591083357, 3º Grupo de Câmaras Cíveis, Rel. Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, julgado em 01.11.1991. Comarca de Ori- gem: Cangaçu).
Em outro exemplo de violaçio da boa-fé pré-contratual, lembra rUY rOSADO DE AGUIAr JÚNIOr93 a ilicitude da conduta daquele que “abandona inesperadamente as negociações já em adiantado estágio, depois de criar na outra parte a expectativa de celebração de um contrato para o qual se preparou e efetuou despesas, ou em fun- ção do qual perdeu oportunidades. A violação desse dever secundário pode ensejar indenização”.
93. XXXXXX, Xxx. Extinçio dos Contratos por Incumprimento do Devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2003. p. 250.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL.
A parte interessada em se tornar revendedora autorizada de veículos tem direito de ser ressarcida dos danos materiais decorrentes da con- duta da fabricante no caso em que esta – após anunciar em jornal que estaria em busca de novos parceiros e depois de comunicar àquela a avaliação positiva que fizera da manifestação de seu interesse, obri- gando-a, inclusive, a adiantar o pagamento de determinados valores
– rompa, de forma injustificada, a negociação até então levada a efeito, abstendo-se de devolver as quantias adiantadas. A responsabilidade civil pré-negocial, ou seja, a verificada na fase preliminar do contrato, é tema oriundo da teoria da culpa in contrahendo, formulada pioneira- mente por Xxxxxxx, que influenciou a legislação de diversos países. No Brasil, o CC/1916 não trazia disposição específica a respeito do tema, tampouco sobre a cláusula geral de boa-fé objetiva. Todavia, já se res- saltava, com fundamento no art. 159 daquele diploma, a importância da tutela da confiança e da necessidade de reparar o dano verificado no âmbito das tratativas pré-contratuais. Com o advento do CC/2002, dispôs-se, de forma expressa, a respeito da boa-fé (art. 422), da qual se extrai a necessidade de observância dos chamados deveres anexos ou de proteção. Com base nesse regramento, deve-se reconhecer a responsabilidade pela reparação de danos originados na fase pré-con- tratual caso verificadas a ocorrência de consentimento prévio e mútuo no início das tratativas, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo destas, a existência de prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. Nesse contexto, o de- ver de reparação não decorre do simples fato de as tratativas terem sido rompidas e o contrato não ter sido concluído, mas da situação de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material.
(REsp 1.051.065-AM, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, julgado em 21.02.2013)
Igualmente aplicável é a boa-fé na fase pós-contratual. Chama-se, aqui, da pós eficicia objetiva do contrato ou pos pactum finitum. Cita-se o famoso caso Xxxx Xxxxxxxxx, que fez propaganda da Xxxxxxxxxxx e, meses depois, ao arrepio da cláusula de exclusividade do contrato anterior e vigente, fez propaganda de cerve- jaria concorrente (Ambev), cantando uma música que, inclusive, depreciava a con- tratante primitiva. Trata-se de clara conduta atentatória a boa-fé pós-contratual.
🞂 Com se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
Responsabilidade Civil. Concorrência desleal. Intervenção em contrato Alheio. Terceiro Ofensor. Violação à boa-fé objetiva. Ação de reparação de danos em que se pleiteia indenização por prejuízos materiais e morais decorrentes da contratação do protagonista de campanha pu- blicitária de agência autora pela agência concorrente, para promover produto de empresa concorrente. Concorrência desleal caracterizada.
Aplicação dos ditames derivados do princípio da boa-fé objetiva ao comportamento do terceiro ofensor. (REsp 1316149/SP, Rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, 3s Turma, DJe 27.06.2014)
Registra-se que há outros cases do Superior Tribunal de Justiça sobre a violação da boa-fé objetiva pós-contratual. Assim, verbera o Tribunal da Cidadania a responsabilidade pós-contratual do credor em informar o pagamento da dívida para retirada do nome do devedor do cadastro de inadimplentes.
CADASTRO DE INADIMPLENTES. BAIXA DA INSCRIÇÃO. RESPONSABILIDADE. PRAZO.
O credor é responsivel pelo pedido de baixa da inscriçio do de- vedor em cadastro de inadimplentes no prazo de cinco dias úteis, contados da efetiva quitaçio do débito, sob pena de incorrer em negligência e consequente responsabilizaçio por danos morais. Isso porque o credor tem o dever de manter os cadastros dos serviços de proteção ao crédito atualizados. Quanto ao prazo, a Min. Relatora definiu-o pela aplicação analógica do art. 43, § 3º, do CDC, segundo o qual o consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus da- dos e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas. O termo inicial para a contagem do prazo para baixa no registro deverá ser do efe- tivo pagamento da dívida. Assim, as quitações realizadas mediante cheque, boleto bancário, transferência interbancária ou outro meio sujeito à confirmação, dependerão do efetivo ingresso do numerário na esfera de disponibilidade do credor. A Min. Relatora ressalvou a possibilidade de estipulação de outro prazo entre as partes, des- de que não seja abusivo, especialmente por tratar-se de contratos de adesão. Precedentes citados: REsp 255.269-PR, DJ 16/4/2001; REsp 437.234-PB, DJ 29/9/2003; AgRg no Ag 1.094.459-SP, DJe 1º/6/2009, e AgRg no REsp 957.880-SP, DJe 14/3/2012.
(REsp 1.149.998-RS, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 07.08.2012)
Nessa esteira de pensamento, afirma o Enunciado 170 do Conselho da Justiça Federal que “a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negocia- ções preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”. Outrossim, como bem posto no Enunciado 25 do Conselho da Justiça Federal, “o art. 422 não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”. Assim, seja pela ótica das partes, seja pela ótica do julgador, a ética contaminará todo o contrato, desde o pré até o pós-contratual.
🞂 Atenção!
Promovendo-se um passeio no Código de Defesa do Consumidor, per- cebe-se que este microssistema foi mais atento à aplicação da boa-fé pré e pós-contratual.
Justo por isso, infere-se no Código de Defesa do Consumidor a integra- ção das mídias aos contratos (CDC, art. 30); a necessidade de assegurar ao consumidor o conhecimento e a compreensão prévia do contrato (CDC, art. 46); ao tornar vinculante escritos particulares, recibos e pré-
-contratos (CDC, art. 48) e determinar a oferta de peças de reposição após o contrato, mesmo que o bem venha a sair de linha (CDC, art. 32).
De mais a mais, em vista da relação desigual do Código de Defesa do Consumidor, a atenção à ética e aos deveres anexos de informação são ainda mais veementes. Cita-se julgado do Superior Tribunal de Justiça, sobre o tema, promovendo interessante considerações sobre boa-fé e dever de informação nas relações de consumo:
DIREITO DO CONSUMIDOR. VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO PELO FOR- NECEDOR.
No caso em que consumidor tenha apresentado reaçio alérgica ocasio- nada pela utilizaçio de sabio em pó, nio apenas para a lavagem de roupas, mas também para a limpeza doméstica, o fornecedor do produto responderi pelos danos causados ao consumidor na hipótese em que conste, na embalagem do produto, apenas pequena e discreta anotaçio de que deve ser evitado o “contato prolongado com a pele” e que, “de- pois de utilizar” o produto, o usuirio deve lavar e secar as mios. Isso porque, embora não se possa falar na ocorrência de defeito intrínseco do produto – haja vista que a hipersensibilidade ao produto é condição inerente e individual do consumidor –, tem-se por configurado defeito extrínseco do produto, qual seja, a inadequada informação na embalagem do produto, o que implica configuração de fato do produto (CDC, art. 12) e, por efeito, responsabilização civil do fornecedor. Esse entendimento deve prevalecer, porquanto a informação deve ser prestada de forma inequívoca, ostensiva e de fácil compreensão, principalmente no tocante às situações de perigo, haja vista que se trata de direito básico do consu- midor (art. 6°, III, do CDC) que se baseia no princípio da boa-fé objetiva. Nesse contexto, além do dever de informar, por meio de instruções, a forma correta de utilização do produto, todo fornecedor deve, também, advertir os usuários acerca de cuidados e precauções a serem adotados, alertando sobre os riscos correspondentes, principalmente na hipótese em que se trate de um grupo de hipervulneráveis (como aqueles que têm hipersensibilidade ou problemas imunológicos ao produto). Ademais, o art. 31 do CDC estabelece que a “oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, os- tensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”. Por fim, ainda que o consumidor utilize o produto para a limpeza do chão dos cômodos da sua casa – e não apenas para a lavagem do seu vestuário –, não há como isentar a responsabili- dade do fornecedor por culpa exclusiva do consumidor (CDC, art. 12, § 3º, III) em razão de uso inadequado do produto. Isso porque a utilização do sabão em pó para limpeza doméstica não representa, por si só, conduta descuidada apta a colocar a consumidora em risco, haja vista que não se trata de uso negligente ou anormal do produto, sendo, inclusive, um comportamento de praxe nos ambientes residenciais.
(REsp 1.358.615-SP, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, julgado em 02.05.2013)
E seria a boa-fé uma questão de ordem pública?
A resposta é positiva. A conjugação do art. 422 com o art. 2.035, ambos do Códi- go Civil, faz concluir que a boa-fé é uma questão de ordem pública, sendo passível sua invocação ex officio, por parte do Juiz.
De tudo o quanto fora estudado sobre a boa-fé, infere-se que ela se configura como uma cláusula geral apta a permitir ao intérprete, nas situações cambiantes, adequá-la aos valores éticos vigentes em uma dada microrracionalidade.
Com efeito, não veicula o Código Civil um rol fechado de situações na qual se aplique a boa-fé. Não traz o legislador civilista conceito fechado sobre o tema. Não há como o operador do direito, à frente de um fato, subsumi-lo ao conceito prévio de boa-fé. A boa-fé contratual, tratada no Código Civil, é a objetiva, comportamen- tal. Demanda do operador do direito verificação da adequação comportamental à ética, na análise de cada caso concreto.
5.1. Conceitos Parcelares da Boa-Fé Objetiva
A boa-fé objetiva, em sua amplitude, acaba por gerar desdobramentos. São os chamados conceitos parcelares da boa-fé objetiva, nas importantes lições de ANTÔ- NIO MANUEL DA rOCHA MENEZES COrDEIrO94. São tais conceitos parcelares, agora nos dizeres de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO95, subprincípios da boa-fé objetiva.
Assim, veicula-se alguns dos desdobramentos da boa-fé objetiva amplamente reconhecidos no direito nacional.
5.1.1. Nemo Potest Venire Contra Factum Proprium. A Proibição do Comporta- mento Contraditório
Nemo potest venire contra factum proprium, em bom português, significa a proi- bição do comportamento contraditório. A sua noção é simples. Xxxxx a confiança aquele que praticar um ato, ou uma série de atos, em um determinado caminho e, posteriormente, realizar conduta diametralmente oposta, sem justificativa plausí- vel. A premissa é que a coerência deve guiar a expectativa dos comportamentos. Consiste em tema que tem nítido diálogo com a Teoria dos Atos Próprios, advinda do Direito Espanhol.
Nessa lógica, pontua XXXXX LÔBO96 que a ninguém é dado valer-se de determinado comportamento, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois voltar-se contra ele, quando não mais lhe interessar, mediante comportamento contraditório.
Em festejada monografia sobre o tema, XXXXxXXX SCHrEIBEr97 afirma que “mais do que a simples coerência, atenta o venire contra factum proprium à confiança desper-
94. XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx. Xx Xxx-Xx xx Xxxxxxx Xxxxx. Xxxxxxx: Almedina, 2001.
95. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 128.
96. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 74.
97. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A Proibiçio do Comportamento Contraditório. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 50.
tada na outra parte, ou em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comporta- mento inicial seria mantido, e não contrariado”.
Na venire, portanto, têm-se dois comportamentos lícitos e sucessivos. O pri- meiro (factum proprium), porém, contrariado pelo segundo (venire). Assim, ao se- rem unidos os acontecimentos, há quebra da confiança e, consequentemente, ilícito, com a configuração da venire contra factum proprium.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
A Súmula 370 do Tribunal da Cidadania verbera que “caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado”. Trata-se de verbete que bem retrata a aplicação da venire, ao passo que há um comportamento inicial (factum proprium) – no sentido do ajuste de apresentação posterior do cheque – e, sucessivamente a contradição (venire) – com a apresentação antecipada.
As condutas, analisadas isoladamente, seriam lícitas. Entrementes, quando reunidas, no contexto posto, são aptas a configurar quebra da confiança, desembocando em ato ilícito.
A vedação ao comportamento contraditório é premissa doutrinária estampada no Enunciado 362 do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual “a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proporium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos artigos 187 e 422 do Código Civil”.
Segundo ANDErSON SCHrEIBEr98, são necessários quatro requisitos para a configura- çio da venire: 1) Um fato próprio, por conduta inicial; 2) A legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo dessa conduta; 3) Um comportamento contraditório com este sentido objetivo e 4) Um dano ou um potencial dano de- corrente da contradição.
O escopo da venire é proteger a parte contra aquele que pretende exercitar comportamento jurídico contraditório ao anteriormente assumido. É possível veri- ficarmos alguns exemplos legais:
a) CC, art. 175 – “A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor”.
Não é factível que após a convalidação do negócio, aquele que o ratificou aju- íze ação em face da contraparte.
b) CC, art. 180 – “O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-
-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”.
Aquele que tiver entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos e dolosamente oculta a idade ou se declara maior não poderá anular o negócio, justamente, com funda- mento na idade, omitida ou não declarada. Seria um verdadeiro ato contraditório.
98. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A Proibiçio do Comportamento Contraditório. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 124.
c) CC, art. 473, parágrafo único – “Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a de- núncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”.
🞂 Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
Se a parte autora indica, na petição inicial, valor da causa incompatível com o proveito econômico pretendido, não pode, após o acolhimento do pedido em sentença, postular a alteração da quantia por ela mes- mo alegada, com o fim de majorar a base de cálculos de honorários de sucumbência. (AgInt no AREsp 1.901.349-GO, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxx, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 21/8/2023, DJe 25/8/2023).
O desfazimento do contrato por ato unilateral de vontade – após gerar na contraparte confiança de execução do contrato por largo período e, consequente- mente, investimentos – traduz quebra da confiança e venire contra factum proprium.
5.1.2. Supressio e Surrectio
A supressio (verwirkung) consiste na perda de um direito, ou de uma posiçio jurídica, em função da ausência de seu exercício por razoável lapso temporal. Aqui há inércia no exercício de um direito, com um comportamento omissivo, e, posteriormente, movimentação contraditória visando à implementação do direito. De fato, em atenção à confiança e coerência, um direito não exercido durante ra- zoável período de tempo não poderá, posteriormente, ser exercitado.
🞂 Atenção!
Não se deve confundir supressio com prescrição. Afinal, a prescrição é a perda da pretensão, enquanto a supressio é a perda do direito, ou posição jurídica em si. Outrossim, na supressio há confiança da outra parte no sentido de que a ausência no exercício do direito perdurará, fato que não toca à prescrição.
Já a surrectio (erwirkung), também denominada de surreiçio ou surgimento, consiste no direito que antes não existia, mas que agora nasce da efetividade so- cial ou da pritica dos contratantes. É o reverso da moeda da supressio. Tendo em vista a omissão no exercício do direito por uma das partes (supressio), não mais sendo viável o seu exercício, nasce na contraparte o direito de exigir a permanên- cia do comportamento originário (surrectio).
Exemplifica-se com uma passagem do Código Civil. Aduz o art. 330 do CC que “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. É dizer: apesar de credor e devedor terem ajustado no contrato o pagamento em um determinado lugar, o comportamento ao longo do tempo no sentido de admitir, sem resistência, o adimplemento em local diverso, acarretará na supressão do direito de exigir o pagamento no local anteriormente ajustado (supressio) e o direito de exigir o pagamento no novo local (surrectio).
🞂 Atenção!
Para afastar a incidência do art. 330 do CC, muitos contratantes inserem nos pactos a denominada cliusula de permissio ou xxxxxxxxxx, quando afirmam, expressamente, que qualquer conduta contrária àquilo que efetivamente está escrito, não configurará renúncia tácita.
Tal cláusula, porém, não vem preponderando em situações nas quais há uma conduta reiterada em sentido contrário. O direito, cada vez mais, abre os seus poros e aceita modificações pelo comportamento humano.
Outrossim, não caberá a incidência da supressio em temas que não admitem disposição pelas partes. Assim já entendeu o STJ ao afirmar a não incidência da supressio na obrigação de pagamento antecipado do Vale-Pedágio previsto pela Lei n 10.209/2001. Trata-se de norma cogente que não admite o instituto da supressio (REsp 1.694.324-SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, Rel. Acd. Min. Xxxxx Xxxxxxx, por maioria, julgado em 27/11/2018, DJe 05/12/2018).
De mais a mais, o mesmo STJ já entendeu que a obrigação alimentar ex- tinta mas mantida por longo período de tempo por mera liberalidade do alimentante não pode ser perpetuada com fundamento no instituto da surrectio (REsp 1.789.667-RJ, Rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Rel. Acd. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, Terceira Turma, por maioria, julgado em 13/08/2019, DJe 22/08/2019).
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
CORREÇÃO MONETÁRIA. RENÚNCIA.
O recorrente firmou com a recorrida o contrato de prestação de servi- ços jurídicos com a previsão de correção monetária anual. Sucede que, durante os seis anos de validade do contrato, o recorrente não buscou reajustar os valores, o que só foi perseguido mediante ação de cobran- ça após a rescisão contratual. Contudo, emerge dos autos não se tratar de simples renúncia ao direito à correção monetária (que tem natureza disponível), pois, ao final, o recorrente, movido por algo além da libe- ralidade, visou à própria manutenção do contrato. Destarte, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão de exigir retroativamente a correção monetária dos valores que era regularmente dispensada, pleito que, se acolhido, frustraria uma expectativa legítima construída e mantida ao longo de toda a relação processual, daí se reconhecer presente o instituto da supressio.
(REsp 1.202.514-RS, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 21.06.2011)
LOCAÇÃO. VEÍCULO. MORA.
Empresa locadora de veículos firmou contratos de locação de 132 au- tomóveis por prazo determinado com a ré (recorrida), mediante pa- gamento mensal fixo reajustado pelo IGPM, mas, antes do término do prazo contratual, a recorrida notificou a locadora de que não tinha intenção de renovar as locações. No entanto, não devolveu todos os veículos ao findar o contrato, levou quase um ano até a devolução de
todos, sem qualquer oposição da locadora, que, por todo esse tempo, continuou a cobrar valores equivalentes ao fixado no contrato. Con- tudo, a locadora propôs a ação de cobrança pelo preço da diária em balcão, que é superior ao fixado no contrato corporativo com respaldo no art. 1.196 do CC/1916 (art. 575 do CC/2002). Diante desse contexto, a Min. Relatora aplicou o princípio da boa-fé objetiva para decidir pela impossibilidade de a locadora receber as diferenças entre a tarifa contratada e a tarifa de balcão para locação dos veículos que perma- neceram na posse da locatária. Observa que, na hipótese dos autos, como apontado pelo acórdão recorrido, o próprio locatário notificou o locador de que não seria renovado o contrato, assim cumpriu uma das funções do art. 1.196, pois não teria sentido o locador promover uma segunda notificação. Todavia, segundo o acórdão recorrido, o locador deixou de informar que o preço do aluguel para os dias excedentes se- ria o da tarifa de balcão, procedimento que facultaria ao locatário to- mar outra atitude. Por outro lado, de maneira contraditória, continuou emitindo faturas no valor original, o que gerou no locatário expectativa da manutenção do preço, daí se aplicar o princípio da boa-fé. Isso posto, a Turma, ao prosseguir o julgamento, deu parcial provimento ao recurso especial apenas para reduzir os honorários advocatícios fixados no TJ.
(REsp 953.389-SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 23.02.2010)
Suspensio da Execuçio por Ausência de Bens do Devedor.
A suspensão do cumprimento de sentença, em virtude da ausência de bens passíveis de excussão, por longo período de tempo, sem diligên- cia por parte do credor, não configura supressio, de modo que não obsta a fluência dos juros e da correção monetária. (REsp 1.717.144-SP, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 14/2/2023).
🞂 Como se pronunciou o Supremo Tribunal Federal sobre o tema?
Seria possível a aplicação dos institutos da supressio e surrectio nas relações de Direito Público?
A ética transita pelos vários braços do Direito. Como decorrência da ética, a supressio e a surrectio também. Nessa linha de intelecção, ci- ta-se decisão do Supremo Tribunal Federal, aplicando ideais de boa-fé nas relações de Direito Público:
EMENTA: DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. INTEGRAL OPONIBILIDA- DE DESSE ATO ESTATAL AO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. CONSEQUENTE IM- POSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO, NA VIA ADMINISTRATIVA, DA AUTORIDA- DE DA COISA JULGADA. EXISTÊNCIA, AINDA, NO CASO, DE OUTRO FUNDAMENTO CONSTITUCIONALMENTE RELEVANTE: O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. A BOA-FÉ E A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA COMO PROJEÇÕES ESPECÍFICAS DO POS- TULADO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. SITUAÇÃO DE FATO – JÁ CONSOLIDADA NO PASSADO – QUE DEVE SER MANTIDA EM RESPEITO À BOA-FÉ E À CONFIANÇA DO ADMINISTRADO, INCLUSIVE DO SERVIDOR PÚBLICO. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM TAL CONTEXTO, DAS SITUAÇÕES CONSTI-
TUÍDAS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES. DELIBERAÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO QUE IMPLICA SUPRESSÃO DE PARCELA DOS PROVENTOS DO SERVIDOR PÚBLICO. CARÁTER ESSENCIALMENTE ALIMENTAR DO ESTIPÊNDIO FUNCIONAL. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
O Tribunal de Contas da União não dispõe, constitucionalmente, de po- der para rever decisão judicial transitada em julgado (RTJ 193/556-557) nem para determinar a suspensão de benefícios garantidos por sen- tença revestida da autoridade da coisa julgada (RTJ 194/594), ainda que o direito reconhecido pelo Poder Judiciário não tenha o beneplácito da jurisprudência prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pois a “res judicata” em matéria civil só pode ser legitimamente des- constituída mediante ação rescisória. Precedentes.
Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. Xxxxxx Xxxxxx), em ordem a via- bilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administra- tivas já consolidadas no passado.
A fluência de longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro. Doutrina. Precedentes.
5.1.3. Tu Quoque
A expressão tu quoque é uma redução da famosa frase tu quoque, Xxxxxx, fili mi! A famosa frase é atribuída a Xxxxx Xxxxx, quando constata, dentre os seus algozes, o seu filho adotivo Xxxxxx.
Factível perceber que tu quoque significa quebra da confiança. Surpresa em decorrência de comportamento da contraparte que coloca a outra em situação de injusta desvantagem.
Aduz FLÁVIO TArTUCE99 que em função da tu quoque é inviável que uma parte que violou uma norma, em abuso de direito, aproveite-se desta violação em benefício próprio. Aquele que viola determinada norma jurídica não poderá exercer a situa- ção jurídica decorrente da mesma norma. No direito inglês fala-se que equity must come in clean hands. O abuso há de ser reprimido.
99. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 590.
Um dos exemplos de tu quoque usualmente recordado pela doutrina é o da exceçio do contrato nio cumprido (CC, art. 476). Nessa, a parte inadimplente com suas obrigações requer o cumprimento da contraprestação da contraparte. Há uma verdadeira surpresa e violação da confiança. Afinal, aquele que violou uma norma jurídica pleiteia da outra parte cumprimento do contrato.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
EXCEÇÃO. CONTRATO NÃO CUMPRIDO.
Tratou-se de ação ajuizada pelos recorridos que buscavam a rescisão do contrato de compra e venda de uma sociedade empresária e dos direitos referentes à marca e patente de um sistema de localização, bloqueio e comunicação veicular mediante uso de aparelho celular, diante de defeitos no projeto do referido sistema que se estenderam ao funcionamento do produto. Nessa hipótese, conforme precedentes, a falta da prévia interpelação (arts. 397, parágrafo único, e 473, ambos do CC/2002) impõe o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, pois não há como considerá-la suprida pela citação para a ação resolutória. Contudo, consta da sentença que os recorrentes já estavam cientes de sua inadimplência mesmo antes do ajuizamento da ação e, por sua inércia, não restou aos recorridos outra alternativa se- não a via judicial. Alegam os recorrentes que nio poderiam os recor- ridos exigir o implemento das obrigações contratuais se eles mesmos nio cumpriram com as suas (pagar determinadas dívidas da socieda- de). Porém, segundo a doutrina, a exceçio de contrato nio cumprido somente µo4e ser oµost5 qu5n4o 5 lei ou o contr5to nio esµecific5r 5 quem primeiro cabe cumprir a obrigaçio. Assim, estabelecido em que ordem deve dar-se o adimplemento, o contratante que primeiro deve cumprir suas obrigações nio pode recusar-se ao fundamento de que o outro nio satisfari a que lhe cabe, mas o que detém a prerrogativa de por último realizar a obrigaçio pode sim postergi-la, enquanto nio vir cumprida a obrigaçio imposta ao outro, tal como se deu no caso. Anote-se que se deve guardar certa proporcionalidade entre a recusa de cumprir a obrigação de um e a inadimplência do outro, pois não se fala em exceção de contrato não cumprido quando o des- cumprimento é mínimo e parcial. Os recorrentes também aduzem que, diante do amplo objeto do contrato, que envolveria outros produtos além do sistema de localização, não haveria como rescindi-lo totalmen- te (art. 184 do CC/2002). Porém, constatado que o negócio tem caráter unitário, que as partes só o celebrariam se ele fosse válido em seu conjunto, sem possibilidade de divisão ou fracionamento, a invalidade é total, não se cogitando de redução. O princípio da conservação dos negócios jurídicos não pode interferir na vontade das partes quanto à própria existência da transação. Ji quanto i alegaçio de violaçio da cliusula geral da boa-fé contratual, arquétipo social que impõe o poder-dever de cada um ajustar sua conduta a esse modelo, ao agir tal qual uma pessoa honesta, escorreita e leal, vê-se que os recor- ridos assim agiram, tanto que buscaram, por virias vezes, soluçio que possibilitasse a preservaçio do negócio, o que esbarrou mesmo na intransigência dos recorrentes de se recusar a rever o projeto com o fim 4e s5n5r 5s f5lh5s; isso obri@ou os recorri4os 5 susµen4er
o cumprimento das obrigações contratuais e a buscar a rescisio do instrumento. Precedentes citados: REsp 159.661-MS, DJ 14/2/2000; REsp 176.435-SP, DJ 9/8/1999; REsp 734.520-MG, DJ 15/10/2007; REsp 68.476-RS, DJ
11/11/1996; REsp 35.898-RJ, DJ 22/11/1993; REsp 130.012-DF, DJ 1º/2/1999, e REsp 783.404-GO, DJ 13/8/2007.
(REsp 981.750-MG, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 13.04.2010)
Ainda nos exemplos oriundos do Superior Tribunal de Justiça enquadrá- veis na tu quoque, coloca-se a Súmula 385, segundo a qual “da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”.
A linha de pensamento é simples. Aquele que já inadimpliu – violou a norma – não pode se sentir moralmente abalado por inscrição pos- terior por débito inexistente, ao passo que seu nome já consta, lici- tamente, no rol dos maus pagadores. Quem violou preteritamente a norma, não poderá requisitar obediência na mesma.
5.1.4. Exceptio doli
Seguindo nos estudos das figuras parcelares da boa-fé, é momento de anali- sarmos a exceção dolosa.
Exceção dolosa é instituto que dialoga com a boa-fé e tem por escopo punir aquele que pauta sua conduta em um único objetivo: lesionar a parte contrária. Consiste na defesa do demandado em face de ações dolosas, afirma FLÁVIO TArTUCE100. Trata-se, nas palavras de XXXX XXxXXXXX SIMÃO101, de uma importante funçio reativa da boa-fé, pois usualmente veiculada em defesa.
Exemplificando o dito, XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO102 citam o art. 940 do Código Civil, o qual informa que “aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for de- vido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição”. Assim, vê-se na repetiçio do indébito o primeiro exemplo.
Outro exemplo corrente é o chamado assédio processual, consistente na prá- tica de atos sucessivos com o único intuito de procrastinar o feito, como petições com requerimentos infundados, recursos descabidos...
5.1.5. Cláusula de Stoppel ou de Estoppel
Consiste em expressão afeta ao Direito Internacional cujo escopo é a preserva- ção da boa-fé e segurança jurídica. Consiste, nas lições de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rO-
100. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 590.
101. XXXXX, Xxxx. Xxxxxxxx. Direito Civil. Contratos. Série de Leituras Jurídicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
102. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11s ed. São Paulo: Método, 2015. p. 123.
DOLFO PAMPLONA FILHO103, na aplicação do ideal da venire contra factum proprium aos con- tratos internacionais, com necessidade de comprovação de quebra de confiança.
5.1.6. Duty to Mitigate the Own Loss
Em vista da ética, o credor possui o dever de nio alargar as próprias perdas, evitando o agravamento de seu próprio prejuízo (Enunciado 169 do Conselho da Justiça Federal). O credor tem o dever de adotar medidas aptas a evitar o agra- vamento do seu dano, não incorrendo na negligência danosa, conduta claramente atentatória ao dever anexo de cooperação.
A adoção doutrinária do tema no Brasil advém de influência da Convençio de Viena, de 1980, sobre a venda internacional de mercadorias, em especial o seu art.
77. Afirma a Convenção que “a parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ele negligência em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída”.
O dever de evitar o próprio prejuízo descortina-se como um dos deveres ane- xos, presente em todo e qualquer contrato, decorrente da função integrativa da boa-fé.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
O leading case sobre o tema no Brasil, na análise das decisões do Tri- bunal da Cidadania, remete ao Informativo número 439, datado de 18.06.2010.
No caso em análise, o promitente comprador deixou de efetuar os pagamentos das parcelas do contrato de compra e venda em 1994, abandonando, posteriormente, o imóvel, em 2001. Entretanto, o cre- dor apenas realizou a defesa de seu patrimônio em 2002, quando do ajuizamento da ação de reintegração de posse cumulada com pedido de indenização. O fato retratou completo descaso com o prejuízo so- frido, em clara desatenção ao dever de mitigar as próprias perdas. Foram sete anos nos quais o devedor ficou no imóvel, sem pagamento das parcelas e sem que o credor tomasse qualquer atitude. Cita-se a ementa:
PROMESSA. COMPRA E VENDA. RESPONSABILIDADE.
Trata-se de REsp em que se discute se o promitente vendedor pode ser penalizado pelo retardamento no ajuizamento de ação de reintegração de posse combinada com pedido de indenização, sob o fundamento de que a demora da retomada do bem se deu por culpa do credor, em razão de ele não ter observado o princípio da boa-fé objetiva. Na hipótese dos autos, o promitente comprador deixou de efetuar o
103. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11s ed. São Paulo: Método, 2015. p. 124.
pagamento das prestações do contrato de compra e venda em 1994, abandonando, posteriormente, o imóvel em 9/2001. Contudo, o credor só realizou a defesa de seu patrimônio em 17/10/2002, data do ajuiza- mento da ação de reintegração de posse combinada com pedido de indenização, situação que evidencia o descaso com o prejuízo sofrido. O tribunal a quo assentou que, não obstante o direito do promitente vendedor à indenização pelo tempo em que o imóvel ficou em esta- do de não fruição (período compreendido entre a data do início do inadimplemento das prestações contratuais até o cumprimento da me- dida de reintegração de posse), a extensão da indenização deve ser mitigada (na razão de um ano de ressarcimento), em face da inobser- vância do princípio da boa-fé objetiva, tendo em vista o ajuizamento tardio da demanda competente. A Turma entendeu não haver qualquer ilegalidade a ser reparada, visto que a recorrente descuidou-se de seu dever de mitigar o prejuízo sofrido, pois o fato de deixar o devedor na posse do imóvel por quase sete anos, sem que ele cumprisse seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com seu patrimônio e o agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiria a extensão do dano. Ademais, não prospera o argumento da recorrente de que a demanda foi proposta dentro do prazo prescricional, porque o não exercício do direito de modo ágil fere o preceito ético de não impor perdas desnecessárias nas relações contratuais. Portanto, a conduta da ora recorrente, inegavelmente, violou o princípio da boa-fé objeti- va, circunstância que caracteriza inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária.
(REsp 758.518-PR, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx (Desembargador convo- cado do TJ-RS), julgado em 17.06.2010)
Há, hodiernamente, outros julgados do Superior Tribunal de Justiça adotando a tese. Cita-se mais um:
DIREITO DO CONSUMIDOR. ABUSIVIDADE DE CLÁUSULA EM CONTRATO DE CON- SUMO.
É abusiva a cláusula contratual que atribua exclusivamente ao consu- midor em mora a obrigação de arcar com os honorários advocatícios referentes i cobrança extrajudicial da dívida, sem exigir do fornece- dor a demonstraçio de que a contrataçio de advogado fora efeti- v5mente necessiri5 e 4e que os serviços µrest54os µelo µrofission5l contratado sejam privativos da advocacia. É certo que o art. 395 do CC autoriza o ressarcimento do valor de honorários decorrentes da con- tratação de serviços advocatícios extrajudiciais. Todavia, não se pode perder de vista que, nos contratos de consumo, além da existência de cláusula expressa para a responsabilização do consumidor, deve haver reciprocidade, garantindo-se igual direito ao consumidor na hipóte- se de inadimplemento do fornecedor. Ademais, deve-se ressaltar que a liberdade contratual, integrada pela boa-fé objetiva, acrescenta ao contrato deveres anexos, entre os quais se destaca o ônus do credor de minorar seu prejuízo mediante soluções amigáveis antes da contra- tação de serviço especializado. Assim, o exercício regular do direito de
ressarcimento aos honorários advocatícios depende da demonstração de sua imprescindibilidade para a solução extrajudicial de impasse entre as partes contratantes ou para a adoção de medidas preparató- rias ao processo judicial, bem como da prestação efetiva de serviços privativos de advogado.
(REsp 1.274.629-AP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 16.05.2013)
Assim, em atenção ao dever de mitigar as próprias perdas, aduz a doutrina, no Enunciado 629 do Conselho da Justiça Federal, que “a indenização não inclui os prejuízos agravados, nem os que poderiam ser evitados ou reduzidos mediante esfor- ço razoável da vítima. Os custos da mitigação devem ser considerados no cálculo da indenização”. Obviamente não pode a vítima ser ressarcida naquilo em que violou o seu dever anexo de abrandar os prejuízos.
5.1.7. Narchfrist
Seguindo na análise das funções parcelares da boa-fé, vem ganhando amplitu- de de debates no direito nacional a aplicação da Narchfrist.
A expressão Narchfrist remete ao direito alemão, significando extensio de pra- zo, concessio de período de carência, prazo adicional, complementar ou suple- mentar. O tema tem regramento na Convençio de Viena sobre Compra e Venda (CISG), a qual firma, em seu art. 47, que “(1) O comprador poderá conceder ao vendedor prazo suplementar razoável para o cumprimento de suas obrigações. (2) Salvo se tiver recebido comunicação do vendedor de que não cumprirá suas obri- gações no prazo fixado conforme o parágrafo anterior, o comprador não poderá exercer qualquer ação por descumprimento do contrato, durante o prazo suple- mentar. Todavia, o comprador não perderá, por este fato, o direito de exigir inde- nização das perdas e danos decorrentes do atraso no cumprimento do contrato”.
A doutrina nacional ainda trata do tema de forma tímida, malgrado, como bem pontuam XXXXX XXXXX e rENATA STEINEr104, não significar que haja incompatibilidade entre o Narchfrist e o direito interno.
Sob o enfoque jurisprudencial, igualmente tímida são as manifestações der- redor do assunto. Ganha destaque uma decisão oriunda do Tribunal de Justiça Gaúcho, intitulada como caso dos pés de galinha (TJRS, Apelação Cível 0000409- 73.2017.8.21.7000, Estância Velha, 12a Câmara Cível, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxxxx Su- dbrack, j. 14.02.2017, DJERS 17.02.2017). Trata-se de situação na qual empresa brasi- leira fornecia pés de galinha para um comprador em Hong Kong. O Tribunal Gaúcho entendeu pela resolução do contrato diante de não ter a empresa nacional en- tregue as mercadorias, mesmo após o prazo suplementar concedido (Narchfrist). Frisou a ementa do acórdão: “contrato de compra e venda internacional de merca-
104. XXXXX, Xxxxx. XXXXXXX, Xxxxxx X. Atraso na obrigação de entrega e essencialidade do tempo do cumprimento na CISG. In Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Curitiba: Juruá, 2014, p. 327-328.
dorias cuja rescisão vai declarada, por força da aplicação conjunta das normas do art. 47 (1), do art. 49 (1) (b) e do art. 81 (2), todos da Convenção das Nações Unidas sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias (“Convenção de Viena de 1980”), a cujo marco normativo se recorre simultaneamente, a teor dos princípios UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais”.
Seguramente o futuro revelará mais decisões e debates sobre o assunto.
6. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS. A TUTELA INTERNA E EXTERNA DO CRÉDITO
O princípio da função social dos contratos surge no ordenamento jurídico na- cional como decorrência da tendência da funcionalizaçio dos próprios direitos subjetivos. Como há muito anunciado por NOrBErTO BOBBIO105, passamos, no estudo do direito, da estrutura i funçio, devendo ser observada a finalidade do exercício do direito subjetivo, abrindo-se o sistema jurídico à percepção de outros importantes valores.
Contratos são funcionalizados em prol da eticidade, sociabilidade e dignidade. Contratos ganham uma função social. A função social é apta a impor limites contra- tuais positivos, de determinação de conteúdo, e negativos, relacionados aos con- tornos da autonomia. Ensina MArIA CELINA BODIN DE MOrAES106 que “o negócio jurídico, no direito contemporâneo, deve representar, além do interesse individual de cada uma das partes, um interesse prático que esteja em consonância com o interesse social geral”.
Essa noção, todavia, adentra os poros legislativos do Direito Civil nacional so- mente em 2002. Destarte, compulsando a Codificação de 1916, percebe-se que esta era omissa sobre o tema. O codificador oitocentista de 1916 enxergava o contrato apenas como um mecanismo individualista, liberal.
A Constituição Federal de 1988, todavia, tratou de promover uma mudança copernicana na análise do Direito, deslocando o centro de leitura do ter (patri- mônio), para o ser (humano). Com este olhar despatrimonializador e repersoni- ficador, já apontou o texto constitucional a necessidade de obediência da função social da propriedade, em várias de suas passagens, a exemplo dos arts. 5º, XXIII e 170. Sobre a função social do contrato, porém, o texto legislativo constitucional não veiculou cláusula expressa.
Entretanto, diante da funcionalização da propriedade e dos direitos subjetivos, os mecanismos de circulação (contratos) não tardariam a ser funcionalizados. Fato que se tornou positivado no Brasil a partir do art. 421 do Código Civil de 2002, o qual foi alterado pela Lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica)
Na redação originária do Código Civil de 2002, firmava o art. 421 que “a liberda- de de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
105. XXXXXX, Xxxxxxxx. Dalla strutura ala funzione. p. 8.
106. XXXXX XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. A causa dos contratos. Revista Trimestral de Direito Civil n. 21. jan./mar. 2005, Rio de Janeiro: Padma, p. 100.
A redação originária sofria críticas doutrinárias. MArIA HELENA DINIZ107 criticava a reda- ção originária do art. 421 do Código Civil, pois se referia ao termo “liberdade de contratar”. De fato, a liberdade de contratar – celebrar contratos – é inerente a todos aqueles que possuem capacidade negocial. Melhor seria falar em “liberdade contratual”, referindo-se especificamente às cláusulas do contrato. Além disso, a expressão “em razão” deveria ser suprimida, ao passo que a liberdade está limi- tada pela função social, mas não é a sua razão de ser. Sufragando o dito, havia, inclusive, Projeto de Lei (PL 276/2007), sugerindo as modificações postas, o qual foi encaminhado por XXXXXXX XXXXXXXxX XX XXXXXXX e XXXXxX XXXXXXX XX XXXXXXX.
A modificação legal implementada pela Lei de Liberdade Econômica, no art. 421 do Código Civil, veio a acolher tais críticas doutrinárias, passando a verberar o caput do artigo que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Com o advento do ideal da função social, obtemperam CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.108, a liberdade passou a ter como fundamento meritório a função social, sendo esta a causalidade dos negócios jurídicos.
Para CArLOS rOBErTO GONÇALVES109, “o Código Civil de 2002 procurou afastar-se das con- cepções individualistas que nortearam o diploma anterior para seguir orientação com- patível com a socialização do direito contemporâneo”. O contrato, mais do que uma função individual, ganha uma institucional, devendo ser amputados os excessos do individualismo e da autonomia.
A autonomia, limitada à função social, passa a demandar uma estrutura de contrato apta a ocasionar, interna e externamente, respeito aos valores sociais cogentes. PAULO LÔBO110 advoga que por conta do princípio da função social, os in- teresses individuais haverão de ser exercidos em conformidade com os sociais, sendo estes sempre prevalentes.
🞂 Atenção!
A função social do contrato seria capaz de excluir a sua função indivi- dual?
Não.
Toda atividade econômica – e o contrato integra esta noção – está submetida à primazia da justiça contratual. Assim, malgrado livre, a atividade econômica deve ser orientada pela realização da justiça con- tratual.
107. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 42.
108. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5s ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 186.
109. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 24.
110. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 69.
Logo, toda atividade negocial, fruto da autonomia, encontra sua razão de ser na função social (єritério fincfístiєo). Como consectário, o exercício da liberdade negocial deve encontrar seu limite nesta finalidade: função social. Limita-se a liberdade de contratar em prol do interesse social.
Tal fato, todavia, como bem coloca PAULO LÔBO127, não quer significar que a função social exclua a individual do contrato. Não há exclusão, mas sim conformação. E o desrespeito à conformação, arremata o Autor, gerará a invalidade contratual.
Assim como a boa-fé, a função social traduz um conceito aberto, a ser deter- minado na análise do caso concreto, avaliando o contrato como uma conduta economicamente útil e socialmente relevante.111
Para o Direito, um contrato, valioso sob o ponto de vista econômico, mas de- letério sob o enfoque social, nio deve ser validado. De nada adianta um contrato extremamente lucrativo para a construção de uma represa, por exemplo, caso não esteja consonante as regras ambientais, ou esteja a se utilizar de mão de obra escrava, por exemplo. O contrato não pode ter uma consequência antissocial, não pode gerar danos metaindividuais.
Referendado o dito, afirma o Enunciado 26 do Conselho da Justiça Federal que “o contrato empresarial cumpre sua função social quando não acarreta prejuízo a di- reitos ou interesses, difusos ou coletivos, de titularidade de sujeitos não participantes da relação negocial”.
🞂 Atenção!
Visionando equalizar interesses públicos e privados, a Lei 14.040/20 veio a regular temas relacionados à educação durante a pandemia da Covid-19.
Assim, estabeleceu a referida Lei regras educacionais a serem adota- das, em caráter excepcional, durante o estado de calamidade pública decorrente do covid-19, autorizando o Conselho Nacional de Educação (CNE) a editar diretrizes nacionais com vistas à implementação do dis- posto na norma.
Prescreve a norma, em primeiro lugar, que os estabelecimentos de ensino de educação básica, observadas as diretrizes nacionais edita- das pelo CNE, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as normas a serem editadas pelos respectivos sistemas de ensino, ficam dispensa- dos, em caráter excepcional: a) na educação infantil, da obrigatorie- dade de observância do mínimo de dias de trabalho educacional e do cumprimento da carga horária mínima anual a que se refere o inciso II, do caput do art. 31 da Lei 9.394/96; b) no ensino fundamental e no ensino médio, da obrigatoriedade de observância do mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, a que se refere o inciso I, do caput e do art. 24 da Lei 9.394/96, desde que cumprida a carga horária mínima anual estabelecida, sem prejuízo da qualidade do ensino e da garantia dos direitos e objetivos de aprendizagem.
111. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 64.
A reorganização do calendário escolar do ano letivo afetado pelo esta- do de calamidade pública é o objeto central da norma, que admitiu o uso de tecnologias da informação e comunicação.
A norma também permitiu à instituição de educação superior antecipar a conclusão dos cursos superiores de medicina, farmácia, enfermagem, fisioterapia e odontologia, bem como a antecipar, em caráter excepcio- nal, a conclusão dos cursos de educação profissional técnica de nível médio, desde que diretamente relacionados ao combate à pandemia da Covid-19.
Ainda sobre o tema educação e COVID-19, importante salientar que o Supremo Tribunal Federal entendeu como inconstitucional a Lei Esta- dual que estabelece redução obrigatória das mensalidades da rede privada de ensino durante a vigência das medidas restritivas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo Coronavírus.
O entendimento fora fixado em sede de ADI em face da Lei do Estado da Bahia (Lei 14.279/2020), diante da percepção de que o tema é de competência da União, conforme o art. 22, I da Constituição Federal. (ADI 6575/BA, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxx. Redator do Acórdão Min. Xxxxxx- xxx xx Xxxxxx. Julgamento virtual em 18.12.2020).
Como cláusula geral que o é, a função social é dotada de grande abertura semântica, não pretendendo dar prévias respostas a todos os problemas da reali- dade. Tais soluções são e serão progressivamente construídas pela jurisprudência, adverte XXXXXX XXxXXXX-COSTA112.
Nessa senda, inviável a tentativa de completa delimitação conceitual e apriorís- tica da função social. A análise demanda voltar os olhos ao caso concreto, perqui- rindo, segundo a doutrina de PAULO NALIN113, um nível intrínseco e outro extrínseco. Explica-se:
a) Intrínseco (individual/interno) – visto o contrato como relação jurídica inter partes, visando obediência à lealdade negocial, boa-fé objetiva e equivalên- cia material entre os contratantes (justiça contratual).
Aqui se coloca a noção de obrigaçio como processo e adimplemento largo, buscando respeito a todos os deveres anexos do pacto. A função social, no seu viés interno, tem por objetivo a autorregulamentação de interesses individuais, ensina PAULO LÔBO114.
Acolhendo a função interna da função social, verbera o Enunciado 360 do Con- selho da Justiça Federal que “o princípio da função social dos contratos também pode ser eficácia interna entre as partes contratantes”. FLÁVIO TArTUCE115, autor da proposta
112. XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: XX, 0000. p. 299.
113. XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno – Em Busca de sua Formulação na Pers- pectiva Civil-Constitucional. Curitiba: Juruá, 2001.
114. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 69.
115. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 573-576.
do enunciado supracitado, afirma que o aspecto interno da função social do con- trato tem cinco fundamentos principais:
i. Proteçio dos vulneriveis contratuais
Como ocorre no CDC, na CLT, no Estatuto do Torcedor, em relação aos Aderentes no Contrato de Adesão (CC)...
Infere-se ser possível a percepção de vulnerável, inclusive, em relação civil, com nulidade de cláusula contratual abusiva. Assim caminha a doutrina no sentido da nulidade da cláusula de renúncia antecipada à indenização por benfeitorias em contrato de locação por adesão, afastando o entendimento da Súmula 335 do STJ (Enunciado 433 do Conselho da Justiça Federal). Na mesma linha propugna-se a nulidade a renúncia ao benefício de ordem, por parte do fiador, em contrato de adesão (Enunciado 364 do Conselho da Justiça Federal).
ii. Vedaçio i onerosidade excessiva
Tema já tratado neste capítulo, quando da análise do princípio da força obri- gatória.
iii. Proteçio da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade
Direitos da personalidade e dignidade hão de ser assegurados.
Nessa linha coloca-se o Enunciado 542 do Conselho da Justiça Federal, o qual entende ser discriminatória a recusa de renovação de apólice de seguro de vida, pelas seguradoras, em razão da idade do segurado.
Outrossim, o Enunciado 411, do mesmo Conselho da Justiça Federal, verbera que cabem danos morais quando da recusa, sem justo motivo, por parte do plano de saúde, de internação do paciente. Vê-se mais um exemplo.
iv. Nulidade ou Ineficicia de cliusulas sociais abusivas
Em sendo a função social uma questão de ordem pública, o seu desrespeito é capaz de ocasionar nulidade ou ineficácia da cláusula contratual e, quiçá, do con- trato (Enunciado 431 do Conselho da Justiça Federal).
Fala-se em nulidade ou ineficácia a depender da violação à função social ser genética – contemporânea à formação do contrato – ou posterior, como bem en- sinam CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.116 Servirá à função social a regular a liberdade de iniciativa e o desenvolvimento do processo obrigacional contratual.
🞂 Como se manifestou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
O próprio enunciado da Súmula 302 do Superior Tribunal de Justiça ca- minha no mesmo sentido, ao entender como nula a cláusula contratual do plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado.
116. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5s ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 191.
Na mesma linha entende o Superior Tribunal de Justiça, agora na Súmu- la 597, ser abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que prevê carência para utilização dos serviços de assistência médica nas situa- ções de emergência ou de urgência, se ultrapassar o prazo máximo de 24 horas contado da data da contratação.
Destarte, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 6452/ES, firma que “por usurpar competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil e política de seguros, é inconstitucional preceito de lei estadual que estabeleça prazo máximo de 24 horas para as empresas de plano de saúde regionais autorizarem ou não solicitações de exames e proce- dimentos cirúrgicos em seus usuários que tenham mais de sessenta anos”.
Segue o Supremo Tribunal Federal, agora na ADI 6493/PB, para aduzir que “por usurpar competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil, Comercial e política de seguros, é inconstitucional legisla- ção estadual que impeça as operadoras de planos de saúde de recu- sarem o atendimento ou a prestação de alguns serviços, no âmbito de seu território, aos usuários diagnosticados ou suspeitos de estarem com Covid-19, em razão de período de carência contratual vigente”.
O Superior Tribunal de Justiça firma, no Tema 1.032, que “nos contratos de plano de saúde não é abusiva a cláusula de coparticipação expres- samente ajustada e informada ao consumidor, à razão máxima de 50% (cinquenta por cento) do valor das despesas, nos casos de internação superior a 30 (trinta) dias por ano, decorrente de transtornos psiquiá- tricos, preservada a manutenção do equilíbrio financeiro”.
Já no EAREsp 1.459.849/ES entendeu o Superior Tribunal de Justiça que “o reembolso das despesas médico-hospitalaes efetuadas pelo bene- ficiário com tratamento/atendimento de saúde fora da rede credencia- da pode ser admitido somente em hipóteses excepcionais, tais como a inexistência ou insuficiência de estabelecimento ou profissional cre- denciado no local e urgência ou emergência do procedimento”. (EA- REsp 1.459.849-ES, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, Segunda Seção, por maioria, julgado em 14/10/2020, DJe 17/12/2020)
v. Objetivo de conservaçio contratual, sendo sua extinçio subsidiiria
A função social deve, em regra, ocasionar a revisão do contrato, no seu campo interno, sendo a extinção do pacto medida de caráter subsidiário (Enunciado 22 do Conselho da Justiça Federal).
b) Extrínseco (público/externo) – analisado o contrato em relação à coletivi- dade, visando seu impacto social. O contrato não é um mero mecanismo de circulação de riquezas, mas, também, de ganhos sociais. No seu âmbito público/externo, a função social visa conformar os interesses individuais aos sociais, obtempera PAULO LÔBO117.
117. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 69.
FLÁVIO TArTUCE118 aponta como decorrências de respeito à faceta externa da função social:
i. Proteçio aos direitos difusos e coletivos
Afinal, o exercício do direito individual não poderá lesionar o social (função socioambiental do contrato).
ii. Tutela externa do crédito (eficicia transubjetiva dos contratos)
Percepção de que o contrato poderá atingir terceiros, ou que condutas destes poderão repercutir no contrato.
Na tutela externa do crédito, dois temas de grande impacto jurisprudencial ga- nham espaço: a teoria do terceiro ofendido e a do terceiro ofensor ou cúmplice.
Quem é o terceiro ofendido?
Por vezes é possível verificarmos que um determinado contrato, malgrado não desrespeitar interesses metaindividuais, acaba por lesionar interesses de um ter- ceiro. Esse sujeito, que a doutrina denomina como terceiro ofendido, vem rece- bendo progressiva tutela jurídica.
Em um primeiro exemplo tem-se a equiparaçio a consumidor daquele que for atingindo por um acidente de consumo (fato de consumo) – art. 17 do Código de Defesa do Consumidor. Caso A adquira um carro e, por falha no sistema de freios, venha a atropelar B, este (B) poderá ajuizar ação de reparação civil em face dos fornecedores (fabricante e concessionária), como consumidor por equiparação. Há responsabilidade civil fulcrada na teoria do risco-proveito dos fornecedores, pois aquele que tem o proveito econômico, há de indenizar o dano. Outrossim, percebe-se a reparação do terceiro ofendido em virtude do contrato celebrado por A e o fabricante.
Em um segundo exemplo, vê-se a Súmula 529 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “no seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuiza- mento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da segura- dora do apontado causador do dano”.
Segue a súmula o entendimento doutrinário posto no Enunciado 544 do Con- selho da Justiça Federal, para o qual “o seguro de responsabilidade civil facultativo garante dois interesses, o do segurado contra os efeitos patrimoniais da imputação de responsabilidade e o da vítima à indenização, ambos destinatários da garantia, com pretensão própria e independente contra a seguradora”. Entrementes, condicionou o Tribunal da Cidadania, para o exercício do direito por parte do terceiro ofendido, o ajuizamento da demanda em face da seguradora e do segurado, ao passo que a conduta culposa deste (segurado), há de ser verificada para que haja imputação de responsabilidade daquela (seguradora). Há, por conseguinte, um litisconsórcio passivo necessário.
118. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 577.
Assim, se Xxxx colidir com o carro de Caio, causando danos a este, e se negar a acionar o seu seguro, Xxxx poderá ajuizar ação diretamente em face da segura- dora de Xxxx, desde que inclua Xxxx no polo passivo da lide. Xxxxxx, como terceiro ofendido, Caio há de ser indenizado. Todavia, para que haja responsabilidade civil da seguradora, a conduta culposa de Xxxx há de ser comprovada.
Percebe-se a tutela externa do crédito, cumprindo o contrato de seguro celebrado entre Xxxx e a seguradora a sua efetiva função social: indenizar os lesados por conduta culposa de Xxxx (xxxxxxxx). Aplica-se o art. 788 do Código Civil, para o qual “nos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, a indenização por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro preju- dicado”.
Em um terceiro exemplo pode-se citar a Súmula 308 do Tribunal da Cidadania, há pouco trabalhada e que protege o adquirente do imóvel (terceiro ofendido) em face de hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro. A súmula em questão, porém, tem tido sua incidência diminuída. Firmou o Superior Tribunal de Justiça, na Jurisprudência em Teses n. 104, item 2, “não se aplicar a Súmula 308 do STJ nos casos envolvendo contratos de aquisição de imóveis não submetidos ao Sistema Financeiro de Habitação – SFH”.
E quem seria o terceiro ofensor ou terceiro cúmplice?
Trata-se daquele que conhece e lesiona um contrato previamente existente e tutelado pelo Direito. Tal ofensa costuma ser concretizada a partir da realização de um segundo contrato, claramente ofensivo ao primeiro. Nessa situação, propugna a doutrina, com fulcro na tutela externa do crédito, que o terceiro lesionado, parte do contrato primitivo, poderá demandar diretamente em face do lesante, parte do segundo contrato e terceiro ofensor ou cúmplice no descumprimento do pacto originário.
Percebe-se que a possibilidade de acionar diretamente o terceiro lesante de- corre da função social, ao passo que não há relação contratual entre lesante (ter- ceiro ofensor) e lesionado.
Voltando-se os olhos ao Código Civil, percebe-se a adoção da tese da penaliza- ção do terceiro ofensor no art. 608, o qual verbera que “aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante 2 (dois) anos”.
O artigo em comento, porém, curiosamente não tem grande aderência prática, sendo raras decisões sobre o tema. Um dos cases mais famosos do Brasil, que po- deria, sem sombra de dúvidas, versar sobre o assunto, mas apenas o tangenciou, foi o do sambista Zeca Pagodinho.
O famoso sambista realizou contrato de cessão de direito de uso de imagem, com cláusula de exclusividade por dozes meses, com a Cervejaria Schincariol. Após realizar a propaganda da Xxxxxxxxxxx e ser pago, ainda durante a vigência da exclusividade, o sambista violou o contrato, realizando propaganda de uma
concorrente direta da contratante originária, a Cervejaria Ambev. Ato contínuo, a Schincariol ajuizou ação contra o cantor, pretendendo reparação moral e in- denização pela quebra do contrato, tendo ambas as pretensões sido julgadas procedentes.
Entretanto, a ação da Xxxxxxxxxxx não foi direcionada à Ambev (terceira ofen- sora), e não teve por fundamento o art. 608 do Código Civil e a tutela externa do crédito. Pautou-se a demanda apenas na violação da boa-fé objetiva de Zeca Pa- godinho e no inadimplemento contratual, como bem colocam CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.119
🞂 Com se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
Responsabilidade Civil. Concorrência desleal. Intervenção em contrato Alheio. Terceiro Ofensor. Violação à boa-fé objetiva. Ação de reparação de danos em que se pleiteia indenização por prejuízos materiais e morais decorrentes da contratação do protagonista de campanha pu- blicitária de agência autora pela agência concorrente, para promover produto de empresa concorrente. Concorrência desleal caracterizada. Aplicação dos ditames derivados do princípio da boa-fé objetiva ao comportamento do terceiro ofensor. (REsp. 1316149/SP, Rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, 3s Turma, DJe 27.06.2014)
D’outra banda, registra-se ser objeto de debate se a responsabilidade civil nas situações de terceiro ofensor e de terceiro ofendido seria aquiliana (extracontratu- al) ou contratual. Concordamos com XXXXXXX XXXXXXXxX DE AZEVEDO120 no sentido de tratar-
-se de responsabilidade civil extracontratual, pois o terceiro não se tornará parte do contrato em razão da função social. Assim, incidente a regra geral codificada de responsabilidade civil pela teoria subjetiva (CC, art. 186).
Não se olvida, todavia, que se o terceiro ofensor e o contratado, conjunta- mente, houverem perpetrado o dano, é viável a aplicação da solidariedade legal, entabulada no art. 942 do Código Civil, o qual verbera que “se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”. Aqui haverá soli- dariedade, mas os fundamentos da responsabilização serão diversos: o devedor responderá de forma contratual, por quebra do pacto originário; enquanto o ter- ceiro ofensor responderá de maneira aquiliana.
Mais uma dúvida ainda paira sobre a questão do terceiro ofensor: e a cliusula penal, seria passível de ser exigida do terceiro?
Em sendo a responsabilidade civil do terceiro ofensor extracontratual, como pontuado anteriormente, por lógica de pensamento entendemos ser inviivel a aplicação, em face do terceiro, de cláusula penal do contrato originário.
119. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 203.
120. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado. Revista dos Tribunais n. 750, abr./1998, São Paulo: RT, p. 117.
E seria a função social uma norma de ordem pública?
Enxerga-se a função social como uma norma de ordem pública (CC, art. 2.035), cuja aplicação poderá ser feita de ofício pelo magistrado, como bem defende FLÁVIO TArTUCE121. Posiciona-se MArIA HELENA DINIZ122 no sentido de que a função social dos contra- tos, prevista no Código Civil (CC, art. 421), promove importante diálogo com valores cogentes constitucionais, como solidarismo social (CF, art. 3º, I), igualdade (CF, art. 5º), justiça social (CF, art. 170, caput) e dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
🞂 Atenção!
O art. 2.035 do Código Civil – como visto na Parte Geral, no tratamento do tema negócios jurídicos – permite a aplicação da função social dos contratos, até mesmo, a negócios celebrados durante a vigência do Código Civil de 1916, mas cujos efeitos adentram o Código Civil de 2002.
Infere-se a retro5tivi454e motiv545 ou justific545, retrooperando a norma em virtude de uma questão de ordem pública, como bem ensina MÁrIO LUIZ DELGADO.
O mesmo raciocínio, registra-se aplica-se à boa-fé.
No sistema atual, é possível falar-se em um diálogo de complementariedade entre boa-fé objetiva e função social?123
Seguramente. A boa-fé é endógena, enquanto a função social é exógena. Há, entre os dois princípios sociais, um diálogo de complementariedade, regulando a boa-fé objetiva o comportamento das partes na cooperação para a prática dos atos do processo obrigacional, enquanto regula a função social a tutela externa do crédito.
Por fim, a intervenção judicial em contratos cíveis e empresariais, por força da função social, deve ser a regra ou a exceção?
Seguramente, a exceção. O dito ficou ainda mais claro após as reformas imple- mentadas, no Código Civil, pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), ao alterar a redação do art. 421 e instituir o novel art. 421-A.
A alteração legislativa encaminha-se consoante os fundamentos da Lei de Liber- dade Econômica, que em seu art. 3o, VIII, aduz que os negócios jurídicos empresa- riais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública.
Nessa linha de pensamento, os contratos civis e empresariais, sendo negocia- dos e paritários, se presumem simétricos. Tal presunção é relativa (juris tantum),
121. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 572.
122. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 42.
123. XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Problemas de Direito Intertemporal no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 94.
sendo plenamente viável o seu afastamento na análise do caso concreto. Xxxxxx, como bem posto pelo Enunciado 170 Conselho da Justiça Federal, o contrato por adesão não se confunde com o de consumo, sendo viável a verificação de um con- trato por adesão na seara empresarial, a exemplo do de franquias e as locações em shopping center.
Assim, partindo da presunção da regra geral – contrato cível e/ou empresarial negociado e paritário –, há de prevalecer o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade e limitação da revisão, sendo viável às partes estabelecer parâmetros objetivos para interpretação das cláusulas negociais, bem como seus pressupostos de revisão ou resolução. Exemplifica-se com a possibilidade de um contrato empresarial, paritário e negociado, regular o que se entende como im- previsível para fins de aplicação da teoria da imprevisão, estabelecendo claros critérios para revisão e/ou resolução do contrato. A conduta em questão é plena- mente possível e abraçada pelo direito.
Ainda na ótica do contrato cível e/ou empresarial, negociado e paritário, tem-
-se como viável às partes definirem a alocaçio dos riscos, o que deve ser devi- damente respeitado. Exemplifica-se com um contrato no qual há a venda de um maquinário usado entre empresas, por um valor bem abaixo do mercado, e a renúncia do comprador à aplicação da teoria dos vícios redibitórios.
O dito, malgrado novidade sob o ponto de vista legislativo, há muito é acolhido pela doutrina e jurisprudência. O Enunciado 21 da Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal já afirmava que nos contratos empresariais o dirigis- mo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais. Já o Enunciado 23 da Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal aduzia que em contratos empresariais é lícito às partes contra- tantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
O aqui defendido há muito é abraçado pelo SUPErIOr TrIBUNAL DE JUSTIÇA, ao enxergar a necessidade de menor intervenção na seara dos contratos empresariais negociados e paritários. Cita-se:
DIREITO EMPRESARIAL. CONTRATOS. COMPRA E VENDA DE COISA FUTURA (SOJA). TEORIA DA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA.INAPLICABILIDADE.
1. Contratos empresariais nio devem ser tratados da mesma forma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo. Nestes admi- te-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. 2. Di- reito Civil e Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos cíveis e empresariais às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam essencialmente iguais. 3. O caso dos autos tem peculiaridades que impedem a aplica- ção da teoria da imprevisão, de que trata o art. 478 do CC/2002: (i) os contratos em discussão não são de execução continuada ou diferida,
mas contratos de compra e venda de coisa futura, a preço fixo, (ii) a alta do preço da soja não tornou a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, mas apenas reduziu o lucro esperado pelo produtor rural e (iii) a variação cambial que alterou a cotação da soja não configurou um acontecimento extraordinário e imprevisível, por- que ambas as partes contratantes conhecem o mercado em que atuam, pois são profissionais do ramo e sabem que tais flutuações sãopossí- veis.5. Recurso especial conhecido e provido. (STJ – REsp: 936741 GO 2007/0065852-6, Relator: Ministro XXXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Data de Julgamento: 03/11/2011, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/03/2012) |
O mesmo SUPErIOr TrIBUNAL DE JUSTIÇA entende, também na linha do dito, que é viável o afastamento da regra de intervenção mínima, mesmo no contrato empresarial, acaso o contrato não seja paritário. Cita-se: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE FRAN- QUIA. CONTRATO DE ADESÃO. ARBITRAGEM. REQUISITO DE VALIDADE DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. DESCUMPRIMENTO. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA “PATOLÓGICA”. ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁ- RIO. POSSIBILIDADE. NULIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO. 1. Recurso especial interposto em 07/04/2015 e redistribuído a este gabinete em 25/08/2016. 2. O contrato de franquia, por sua natureza, nio esti sujei- to is regras protetivas previstas no CDC, pois nio hi relaçio de con- sumo, mas de fomento econômico. 3. Todos os contratos de adesio, mesmo aqueles que nio consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96. 4. O Poder Judiciirio pode, nos casos em que prima f5cie é i4entific54o um comµromisso 5rbitr5l “µ5toló@ico”, i.e., cl5r5- mente ilegal, declarar a nulidade dessa cliusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. 5. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 1.602.076/SP, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, jul- gado em 15/09/2016, DJe 30/09/2016). |
Destarte, ressente-se, porém, por não ter o legislador aproveitado o momento para indicar quais seriam os critérios para a limitada e excepcional revisão, o que, em certa medida, deixa o dispositivo legal um tanto quanto vazio. Caberá à dou- trina e jurisprudência, progressivamente, aprimorar tais ideias.
7. PRINCÍPIO DA EQUIVALÊNCIA MATERIAL OU DA JUSTIÇA CONTRATUAL
Remanesce na doutrina debate sobre a autonomia do princípio da equivalência material em face da função social. XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO124, por exemplo, optam por tratar a justiça contratual como subproduto da funçio social.
124. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 97.
Outros autores, por sua vez, abraçam a tese de ser um princípio autônomo, a exemplo de PAULO LÔBO125.
Por opção metodológica, em vista do progressivo espaço doutrinário e juris- prudencial conferindo ao tema, opta-se por inseri-lo em tópico apartado, lhe dan- do contornos de princípio autônomo. Isso, porém, não quer significar ignorância à sua nítida relação com os demais princípios, como função social e boa-fé.
Desde ArISTÓTELES a noçio de justiça contempla o seu viés distributivo e o corre- tivo ou comutativo. A distributiva visa a repartição de obrigações. Já a comutativa tem por escopo a ponderação, corrigindo desbalanceamentos. É a justiça corretiva que dialoga com o ideal de equivalência material das prestações.
Obviamente que, como visto ao tratarmos do tema autonomia, a justiça comu- tativa não teve ingresso no mundo contratual quando da ideologia liberal. Nesse momento histórico via-se o contrato como produto da vontade, sendo o seu cum- primento, nos moldes do pacta sunt servanda, imposto na forma da contratação. O passar do tempo, porém, demonstrou que a liberdade levou à opressão. O Estado necessitou intervir (dirigismo contratual). Foi, então, com a evolução e o influxo de ideais sociais que a intervenção estatal (dirigismo) passou a permitir a revisio dos contratos, ganhando relevo a noção de equivalência material entre as prestações.
A equivalência material remete a busca de preservação do equilíbrio de direi- tos e deveres no contrato, antes, durante e após a sua execução. O escopo é a manutenção de uma justa e equânime equação contratual, seja para manutenção do equilíbrio inicial, seja para corrigir desequilíbrios supervenientes. Sua matriz constitucional é a igualdade substancial (art. 3º, III, da CF/88), objetivando o con- trato manter um certo nível de paridade (trocas úteis e justas).
Sobre o tema, o Enunciado 22 do Conselho da Justiça Federal bem coloca que “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.
Nessa ótica, o Estado, por meio do dirigismo contratual, faz intervenções, me- diante diversos institutos, com o claro escopo de manutenção da justiça contratual. Tem-se, nesse contexto, a verificação de uma série de mecanismos aptos a este objetivo, como o instituto da lesão (CC, art. 157), a teoria da imprevisão (CC, art. 478), a revisão de cláusula penal abusiva (CC, art. 413), a interpretação das cláu- sulas do contrato de adesão pró aderente (CC, art. 423), a nulidade de renúncia antecipada a direito em contrato de xxxxxx (CC, art. 424), as normatizações pro- tetivas (CDC, CLT, Estatuto do Torcedor...). Tais termos já foram estudados ao longo dessa obra e na Parte Geral.
Dissecando o tema justiça contratual, PAULO LÔBO126 ensina que o princípio da equivalência material das prestações tem dois aspectos distintos:
125. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 70.
126. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 70.
a) Subjetivo – o qual considera o poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. Assim a lei presume vulnerável o con- sumidor, o empregado, o torcedor... São presunções que desembocam em normas protetivas;
b) Objetivo – que leva em conta o real desequilíbrio dos direitos e deveres contratuais, seja no próprio ato de contratar, seja por causa superveniente. Nessa toada, a norma combate tais desequilíbrios por institutos específicos, como a lesão (CC, art. 157) e a imprevisão (CC, art. 478).
🞂 Como o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o tema?
O SUPErIOr TrIBUNAL DE JUSTIÇA afasta a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas questões relacionadas à conta corrente para gestão de criptomoedas.
Diante da inegável repercussão nas novas relações jurídicas advindas do uso e da circulação das moedas digitais, notadamente a bitcoin, especializada doutrina passou a dela tratar, ressaltando, entre as suas características, a desnecessidade de um terceiro intermediário para a realização de transações e a ausência de autoridade estatal regulado- ra. Ressai evidenciado, portanto, que o serviço bancário de conta-cor- rente oferecido pelas instituições financeiras em nada repercute na circulação ou na utilização das moedas virtuais, que, como visto, não dependem de intermediários, possibilitando a operação comercial e/ ou financeira direta entre o transmissor e o receptor da moeda digital. Nesse contexto, tem-se, a toda evidência, que a utilização de servi- ços bancários, especificamente o de abertura de conta-corrente, dá-se com o claro propósito de incrementar sua atividade produtiva de inter- mediação, não se caracterizando, pois, como relação jurídica de consu- mo — mas sim de insumo —, a obstar a aplicação das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor. Por consectário, o encerramento de conta-corrente, antecedido de regular notificação, não constitui prá- tica abusiva comercial, na esteira da legislação consumerista. Ademais, destaca-se que a Lei n. 4.595/1964, recepcionada pela Constituição Fe- deral de 1988 com status de lei complementar e regente do Sistema Financeiro Nacional, atribui ao Conselho Monetário Nacional competên- cia exclusiva para regular o funcionamento das instituições financeiras (art. 4º, VIII). E, no exercício dessa competência, o Conselho Monetário Nacional, por meio da edição de resoluções do Banco Central do Bra- sil que se seguiram, destinadas a regulamentar a atividade bancária, expressamente possibilitou o encerramento do contrato de conta de depósitos, por iniciativa de qualquer das partes contratantes, desde que observada a comunicação prévia. Nessa linha de entendimento, atendo-se à natureza do contrato bancário, notadamente o de con- ta-corrente, o qual se afigura intuitu personae, bilateral, oneroso, de execução continuada, prorrogando-se no tempo por prazo indetermi- nado, não se impõe às instituições financeiras a obrigação de contratar ou de manter em vigor específica contratação, a elas não se aplicando o art. 39, II e IX, do Código de Defesa do Consumidor. Nessa medida,
longe de encerrar abusividade, tem-se por legítima, sob o aspecto ins- titucional, a recusa da instituição financeira em manter o contrato de conta-corrente, utilizado como insumo, no desenvolvimento da ativi- dade empresarial de intermediação de compra e venda de moeda virtual, a qual não conta com nenhuma regulação do Conselho Mone- tário Nacional. De igual modo, sob o aspecto mercadológico, também se afigura lídima a recusa em manter a contratação, se sua atividade empresarial se apresenta, no mercado financeiro, como concorrente direta e produz impacto no faturamento da instituição financeira. Des- sa maneira, o proceder levado a efeito pela instituição financeira não configura exercício abusivo do direito.
(REsp 1.696.214-SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, por maioria, julgado em 09/10/2018, DJe 16/10/2018).
II
C a p í t u l o
Formação dos Contratos
Sumário • 1. A Importância dos Contratos e a sua Evolução Histórica – 2. Tratativas, Negociações Preliminares ou Fase de Pontuação (Pontuazione) – 3. Proposta, Oferta ou Policitação – 4. Aceitação ou Oblação.
1. A IMPORTÂNCIA DOS CONTRATOS E A SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Como visto no capítulo introdutório no direito contratual, desde que o ser é humano, contrata. Assim o é porque o contrato é um instrumento de conciliaçio de interesses, por meio do qual são alinhados desejos, com vistas à pacificação social, ultrapassar as dificuldades e o desenvolvimento econômico. Afirma FLÁVIO TArTUCE1, a própria palavra sociedade traz consigo a noção de contrato.
Compondo o contrato diferentes vontades, em diferentes sentidos e segundo a sua autonomia, a contratualística é predominante na vida em sociedade. Dessa maneira, consiste o contrato em um instrumento apto a atender as necessidades da coletividade; dos homens.
Tendo o escopo de compor diferentes interesses, o contrato demanda uma fase prévia, de formação, na qual as partes alinham seus objetivos mediante tra- tativas, propõem e aceitam o pactuado. O contrato, então, demanda um iter pro- cedimental, um processo de formação.
Vaticina MArIA HELENA DINIZ2 que “sem o mútuo consenso, expresso ou tácito, não haverá qualquer vínculo contratual”. Exige-se uma espécie de consenso mútuo, uma uniformidade de buscas. Ensina PAULO LÔBO3 que “o contrato se forma quando uma parte (ofertante) faz uma oferta de prestação de uma prestação à outra parte (acei- tante) e esta a aceita, fundindo-se as duas manifestações de vontade em um acordo, que obriga ambas as partes.”
É justamente sobre esse processo de formação do contrato e, especificamente, derredor de suas três fases clássicas – tratativas, proposta e aceitaçio – que pas-
1. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 3. ed. São Paulo: Método, 2008. p. 39.
2. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 57.
3. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 56.
saremos a falar. Analisaremos o iter de formaçio dos contratos, perpassando pelo conjunto de atos necessários ao nascimento de uma obrigação contratual. A lógica será da leitura desta obrigação como um processo, na herança dos festejados e inesquecíveis ensinamentos de CLÓVIS COUTO E SILVA4.
Registra-se que tal formação, também conhecida como conclusão do contrato, não firma o término do pacto, mas sim a finalização de sua formação e início da relação. O fim da relação contratual, propriamente, é denominado extinção do contrato, tema estudado em capítulo específico, mais à frente.
D’outra banda, a tripartição proposta (tratativas, proposta e aceitação) é dire- cionada aos contratos cíveis e paritários. A análise do tema na seara dos contratos de adesão, de consumo, eletrônicos e plurilaterais tem suas nuances. Justo por isso, focaremos no ideal cível paritário e desenvolveremos notícias sobre as outras figuras e respectivas adaptações.
🞂 Atenção!
Malgrado a maioria da doutrina afirmar que as fases de formação do contrato são tratativas, proposta e aceitação, há quem na doutrina, a exemplo de PAULO LÔBO5, defenda serem as fases de formação dos con- tratos oferta, aceitaçio e acordo ou consenso.
Em verdade, malgrado os batismos diversos, o conteúdo tratado pela doutrina para cada uma das fases é bastante próximo, como se verá adiante.
De mais a mais, recorda-se que o esquema de regra de formação dos contratos relaciona-se às figuras paritárias e consensuais. São paritá- rios por terem como pressuposto a igualdade entre as partes e con- sensuais por se tornarem perfeitos e acabados com o mero consenso (encontro de vontades). Exemplifica-se com a compra e venda entre particulares. Aqui a entrega do objeto diz respeito à eficácia, relacio- nando-se à fase de execução do pacto.
Caso, porém, o contrato seja paritário real, além do consenso, será exi- gido para que o contrato esteja perfeito e acabado a entrega da coisa (tradição), a exemplo do depósito e do comodato. Aqui a tradição fará parte do iter de formação contratual, ganhando a formação do pacto mais um item de validade.
Outrossim, nos contratos plurilaterais – a exemplo do social constitutivo de pessoas jurídicas – não há oferta. Nesse tipo de ajuste, a vontade das partes não é oposta, mas sim comum e complementar. Outro exem- plo salutar deste tema é o condomínio.
Caso o contrato tenha forma vinculada pela lei ou pela vontade, essa passará a ser da substância do ato, integrando sua formação, sob pena de nulidade absoluta (CC, arts. 109 e 166, IV). Mais uma vez teremos uma fase de formação do contrato um pouco mais dilatada.
4. XXXXX X XXXXX, Clóvis. A Obrigaçio como um Processo.
5. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 78.
Outrossim, em sendo por adesão – entendido como aquele contra- to pré-formatado unilateralmente por uma das partes, com conteúdo rígido (inalterável) – obviamente a fase de negociações preliminares inexiste. Há, todavia, proposta do hipersuficiente e opção do hipossufi- ciente em aceitar, ou não, o bloco contratual proposto (take it or leave it). Nessa toada, a clássica teoria da formação dos contratos resta re- duzida à proposta e aceitação.
É momento de dissecarmos as usuais fases de formação dos contratos.
2. TRATATIVAS, NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES OU FASE DE PONTUAÇÃO (PONTUAZIONE)
As tratativas (tractatus, trattative, pourparles) são um período de negociações preliminares, anteriores à formação do contrato. Visam sondagens, conversas e estudos sobre os interesses de cada contratante, com a pontuação do que há de comum.
Recorda FLÁVIO TArTUCE6 que as tratativas não possuem tratamento no Código Civil, relacionando-se a acordos parciais na fase do pré-contrato. Nas lições de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO7 é o momento em que “as partes discutem, ponderam, refletem, fazem cálculos, estudam, redigem a minuta do contrato, enfim, contemporizam interesses antagônicos, para que se possa chegar a uma proposta final e definitiva”. São, segundo MArIA HELENA DINIZ8, “conversações, entendimentos e reflexões sobre a oferta até se encontrar uma solução satisfatória”.
A fase de negociação, a depender da complexidade ou do perfil das par- tes, pode ser rápida ou demorada, tendo como traço característico a não vinculação à realização do negócio. Afinal, ninguém é obrigado a contratar. Nas tratativas, obtempera CArLOS rOBErTO GONÇALVES9, não há vinculação, podendo qualquer das partes afastar-se, simplesmente, por mero desinteresse, sem responsabilidade.
Recorda-se, porém, que em sendo uma fase pré-contratual, demandam as tra- tativas respeito à ética e confiança, em atenção ao primado da boa-fé, conforme já enfrentado no capítulo destinado à principiologia. Aqui surge uma importante questão, veiculada na doutrina de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E xXXXXXX PAMPLONA FILHO10: qual seria o limite entre o direito de nio contratar e a quebra de eventual legítima expectativa criada na contraparte?
6. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Manual de Direito Civil. Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 602.
7. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 128.
8. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 60.
9. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 71.
10. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 129.
O fato de existir um legítimo direito de não contratar não retira a necessidade de indenizar eventual quebra de expectativa pela ausência da contratação, mor- mente quando presentes: quebra de lealdade, confiança, sigilo, cuidado, proteção, esclarecimento e boa-fé.
Como é consabido, a boa-fé, hodiernamente, contamina desde o pré até o pós-
-contrato. Assim, como posto pelo Enunciado 170 do Conselho da Justiça Federal, “a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contra- to”. Verifica-se, ensina PAULO LÔBO11, a aplicação da teoria da culpa in contrahendo de IHErING, pela qual eventual injustificada frustração de contratar, após negociações encaminhadas, deve ocasionar indenização ao lesado12.
Mas essa eventual responsabilidade civil seria contratual ou extracontratual?
Grande questão. Mais uma daquelas ligada ao “misterioso e paradoxal período pré-contratual”, como pontua MAZEAUD. Versando sobre a controvérsia, aduz PAULO LÔBO13, caminhando com a maioria, que na relação contratual comum tendeu-se para a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, segundo as regras ge- rais; já na relação de consumo, trilha-se a responsabilidade civil objetiva, atento aos regramentos protetivos ao consumidor.
Na mesma linha coloca-se a doutrina de CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.14, para a qual a quebra injustificada e arbitrária das tratativas, em clara violação da confiança, é apta a ocasionar responsabilidade civil pré-contratual e aquiliana, em clara venire contra factum proprium.
Nesses casos a solução, porém, afirma XXXXxXXX SCHrEIBEr15, será indenizatória (perdas e danos), ao passo que a liberdade de não contratar há de ser preserva- da, mormente quando há meras tratativas. Haverá reparação do dano à confiança, gastos empregados nas negociações e a perda da oportunidade de negociar com outrem (ocasiões frustradas). Logo, hão de ser reparados tanto os interesses po- sitivos, como os negativos.
A responsabilidade por quebra da boa-fé pré-contratual em seara de negocia- ções, segundo CArLOS rOBErTO GONÇALVES16, pode ter como fato gerador as despesas rea- lizadas por uma das partes em tais tratativas ou, ainda, a perda da oportunidade de contratar com terceiros.
Inviável, todavia, será aqui uma tutela específica obrigando a celebrar o con- trato, diante do direito de não contratar. Indeniza-se a quebra da confiança, mas não avançamos no sentido de uma tutela específica obrigando o contrato.
11. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 86.
12. Para aprofundamento do tema a boa-fé nas relações pré-contratuais indica-se a leitura do capí- tulo desta obra dedicado aos princípios dos contratos.
13. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 86.
14. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 55.
15. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A Proibiçio do Comportamento Contraditório, p. 241.
16. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 72.
🞂 Como se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?
DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL.
A parte interessada em se tornar revendedora autorizada de veículos tem direito de ser ressarcida dos danos materiais decorrentes da conduta da fabricante no caso em que esta – após anunciar em jornal que estaria em busca de novos parceiros e depois de comunicar ique- l5 5 5v5li5çio µositiv5 que fizer5 45 m5nifest5çio 4e seu interesse, obrigando-a, inclusive, a adiantar o pagamento de determinados valo- res – romµ5, 4e form5 injustific545, 5 ne@oci5çio 5té entio lev545 5 efeito, abstendo-se de devolver as quantias adiantadas. A responsa- bilidade civil pré-negocial, ou seja, a verificada na fase preliminar do contrato, é tema oriundo da teoria da culpa in contrahendo, formulada pioneiramente por Xxxxxxx, que influenciou a legislação de diversos países. No Brasil, o CC/1916 não trazia disposição específica a respeito do tema, tampouco sobre a cláusula geral de boa-fé objetiva. Todavia, já se ressaltava, com fundamento no art. 159 daquele diploma, a im- portância da tutela da confiança e da necessidade de reparar o dano verificado no âmbito das tratativas pré-contratuais. Com o advento do CC/2002, dispôs-se, de forma expressa, a respeito da boa-fé (art. 422), da qual se extrai a necessidade de observância dos chamados deveres anexos ou de proteção. Com base nesse regramento, deve-se reconhecer a responsabilidade pela reparação de danos originados na fase pré-contratual caso verificadas a ocorrência de consentimento prévio e mútuo no início das tratativas, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo destas, a existência de prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. Nesse contexto, o dever de reparação não decorre do simples fato de as tra- tativas terem sido rompidas e o contrato não ter sido concluído, mas da situação de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material.
(REsp 1.051.065-AM, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, julgado em 21.02.2013)
🞂 Atenção!
Em entendimento interessante e ímpar, entende FLÁVIO TArTUCE17 que a quebra da boa-fé, em casos tais, poderá remeter a ruptura de um dos deveres anexos, em claro inadimplemento do próprio contrato e responsabilidade civil objetiva por abuso de direito (art. 187 do CC e Enunciados 25, 170, 24 e 37 do Conselho da Justiça Federal).
Logo, avança o professor paulista na defesa de uma responsabilidade civil objetiva e contratual, por desrespeito à boa-fé nas relações civis.
Seguindo nas tratativas, nessa fase, as partes irão pontuar seus interesses recíprocos, visando alinhar quais os desejos em comum na busca de um bom con-
17. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Manual de Direito Civil. Volume Único. 4. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 602.
trato para ambos. Exemplifica-se com um cidadão que, desejoso em adquirir um televisor de LCD, dirige-se a uma determinada loja. Lá chegando, afirma ao ven- dedor que quer adquirir um televisor de LCD de 42 (quarenta e duas) polegadas. O vendedor, por sua vez, passa a listar as opções existentes na loja, no perfil do comprador. Percebe-se uma tratativa em que se pontuam (fase de pontuação) os interesses em comum, na busca de um possível negócio.
Veja-se ser plenamente possível que a tratativa não vingue. Por vezes acontece das tratativas não terem seguimento em uma proposta, por inexistir na aludida loja um televisor de LCD nos moldes do interesse do comprador – ausência de pon- tos em comum. Em outros casos, todavia, a negociação prossegue, desembocando em uma proposta; a segunda fase da formação dos contratos.
As tratativas podem ser desenvolvidas informalmente – de maneira verbal – ou formalmente – mediante protocolos de intenções e, até mesmo, minutas. Geral- mente, pela dinâmica pós-moderna, tratativas informais costumam ser a regra. Entrementes, negócios maiores, como incorporações empresariais, demandam tra- tativas formais, com minutas nas quais constam os pontos já acertados, visando avanços negociais, consoante os ensinamentos de MArIA HELENA DINIZ18. Tais acordos parciais ou provisórios, ainda segundo a autora, não ocasionam obrigatoriedade, pois firmados em sede de negociações preliminares, sendo aptos, porém, a gerar responsabilidade civil aquiliana por quebra da boa-fé.
Problemas práticos, porém, há na tênue distinção entre uma minuta formal e assinada e uma proposta. Para SÍLVIO DE SALVO VENOSA19, apenas a análise do caso con- creto revelará o real objetivo do documento. Se este for assinado por apenas uma das partes, aproxima-se mais de uma proposta; caso assinado por ambas, já se torna mais próximo de uma minuta prévia e negocial. Aqui o cuidado do operador do direito será salutar, para que não gere à contraparte, na hipótese de eventual litígio, prova relevante de algo que não se emoldura à realidade fática.
E seria possível a formação de um contrato sem prévia tratativa?
A resposta é positiva. Nada impede que já haja, diretamente, uma proposta. Tal ocasião se dá, por exemplo, quando há propostas ao público em geral (ofertas), por meio de vitrines de lojas. Nessa situação não houve negociação prévia, mas sim uma proposta exposta e aceita. Outras casuísticas são os contratos de adesão, já pré-prontos e apresentados para mera assinatura da contraparte.
Ocorre, porém, que no universo dos contratos com uma complexidade um pou- co maior, não é o usual. Nesses casos, o ordinário são longas negociações e pontu- ações, com concordâncias paulatinas até à primeira proposta global, lembra SÍLVIO DE SALVO VENOSA20.
18. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 61.
19. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 524.
20. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 523.
🞂 Atenção!
Não se confunde tratativas com contrato preliminar.
Malgrado tais figuras se aproximarem, por antecederem o contrato definitivo, elas se afastam, por terem gêneses e escopos diversos. O contrato preliminar é um contrato perfeito e acabado. Já as tratativas são negociações preliminares objetivando a formação de um contrato. Recorda-se que nas tratativas não há obrigações, mas meras negocia- ções consoantes à boa-fé pré-contratual. Tratativas, por vezes, são até mesmo veiculadas mediante protocolos de intenções (minutas), mas sempre sem um viés vinculativo. Outrossim, das negociações prelimina- res (tratativas) pode decorrer um não contrato, um contrato definitivo, ou uma figura preliminar. Como contrato que o é, as tratativas fazem parte do iter de formação da figura do contrato preliminar.
D’outra banda, no contrato preliminar há obrigações previamente es- tabelecidas, obrigatórias e exigíveis. Há vinculo decorrente de um con- trato perfeito, acabado e autônomo. Nessa ordem de ideais sobre o contrato preliminar, ensinam CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.21, “não pode ser visto como uma fase entre negociações preliminares e con- trcto 4efinitivo. Cui4c-se 4e figurc cutônomc”.
Sintetizando bem o tema, XXXX XXxXX XX XXXXX PErEIrA22 verbera que as ne- gociações preliminares “não envolvem compromissos, nem geram obri- gações para os interessados, limitam-se a desbravar terreno e salientar conveniências e interesses, ao passo que o contrato preliminar já é positi- vo no sentido de precisar de parte a parte o contrato futuro.”
Uma vez vencidas as tratativas e entabulados os interesses em comum, é mo- mento de uma proposta.
3. PROPOSTA, OFERTA OU POLICITAÇÃO
A proposta é uma declaração receptícia de vontade dirigida pelo proponente (policitante ou solicitante) ao oblato (aceitante ou solicitado), com o escopo de formação de um contrato. Há de ser séria e concreta, em bases razoáveis de mer- cado. Deve ser completa, contendo preço, quantidade, tempo de entrega, forma de pagamento... todos os elementos básicos necessários do que se propõe, sendo clara, inequívoca e compreensível.
Nas lições de OrLANDO GOMES23, “é uma declaração receptícia de vontade, dirigida por uma pessoa a outra (com quem pretende celebrar um contrato), por força da qual a primeira manifesta sua intenção de se considerar vinculada, se a outra parte aceitar”.
A aludida proposta poderá ser endereçada a pessoa certa e determinada – como um e-mail para um certo cliente – ou ao público em geral, como uma vitrine em exposição.
21. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 52.
22. XXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Instituições de Direito Civil. Vol. III. p. 81.
23. Op. Cit., p. 65.
🞂 Atenção!
Proposta e oferta seriam expressões sinônimas?
Há quem entenda, como CrISTIANO CHAVES DE FArIAS e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.24, que a proposta realizada ao público em geral deve ser chamada de oferta. Para esses, tal oferta ao público tratada pelo Código Civil englobaria hipóteses em que há uma oferta para empresários e empresas indi- viduais que pretendem, por exemplo, adquirir grandes quantidades de bens de um determinado fornecedor. Para fins desta obra, porém, proposta e oferta serão tratadas como sinônimas.
Seguindo nos conceitos de proposta, para VON TUHr25 é “a declaração de vontade dirigida a outrem, visando com ele contratar, de modo que basta seu consentimento para concluir o acordo”. Recorda XXXXXX XX XXXXX VENOSA26 que a proposta séria “é aquela que demonstra efetiva vontade de contratar, não um simples espírito jocoso ou social, por exemplo”. Sem firmeza, precisão e completude, a proposta será um mero con- vite para posterior apresentação de uma verdadeira proposta.
Lembra rOBErTO DE rUGGIErO27 que “nem toda iniciativa ou manifestação de vontade no sentido de dar vida a um contrato é oferta em sentido técnico, mas apenas a declara- ção de vontade dirigida por uma parte à outra com intenção de provocar uma adesão do destinatário da proposta”. Nessa toada, segundo MArIA HELENA DINIZ28, não se deve confundir a proposta com as negociações preliminares. Elucida a professora que “as negociações preliminares são meras proposições levadas por uma parte ao conhecimen- to da outra para estudo, sem intenção de se obrigar [...]”, enquanto a proposta “traduz uma vontade definitiva de contratar nas bases oferecidas, não estando mais sujeita a estudos ou discussões, mas dirigindo-se a outra parte para que aceite ou não [...]”.
A proposta, portanto, é a oferta inicial, o ponto de partida com o fito de gerar aceitação da contraparte e, por conseguinte, um contrato. É o ápice das tratativas exitosas. Trata-se de ato com forma livre, com natureza jurídica de negócio unila- teral à espera de aceite.
🞂 Atenção!
Não se deve confundir a proposta com a oferta de negociações preli- minares, como bem recorda CArLYLE POPP29.
A oferta para negociações preliminares – invitation à pourparlers, como posto no direito francês – traduz um convite a negociar, não revelando uma proposta propriamente. Equivale, por conseguinte, a um convite para tratativas e, quiçá, avançando-se nas negociações, uma proposta.
24. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 74.
25. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 59.
26. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 525.
27. XXXXXXXX, Xxxxxxx xx. Instituições de Direito Civil. Trad. Ary dos Santos. Vol. III. p. 207.
28. XXXX, Xxx. Tratado das Obrigações. Tomo I. p. 143.
29. XXXX, Xxxxxxx. A Responsabilidade Civil Pré-Negocial: O Rompimento das Tratativas. Curitiba: Juruá, 2002. p. 230.
A proposta, advertem XxXXXXXXX XXXXXX DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.30, pode ser es- crita – por documento enviado ao oblato –, oral – quando declara verbalmente ao oblato – ou ticita (proposta silenciosa ou silêncio como proposta) – quando exte- riorizada por atos inequívocos, como a exposição ao público de um determinado objeto com o respectivo preço.
Diferentemente das tratativas – sobre as quais o Código Civil fora omisso –, o legislador civilista de 2002 dedicou-se à análise da proposta, especificamente nos arts. 427 usque 429.
De pronto, inaugurando o tratamento do tema, o art. 427 do Código Civil afirma que a “proposta obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”. É aquilo que a doutrina de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO31 denomina como Princípio da Vinculaçio ou Obrigatoriedade da Proposta. Decorre do caráter de negócio jurídico unilateral da proposta, como aduz PAULO LÔBO32. Infere-se que a proposta obriga o policitante, tendo, então, consequências jurídicas apenas para ele.
🞂 Atenção!
Curioso pensar, como o fazem CrISTIANO CHAVES DE XXxXXX e XXXXXX xXXXXXXXX Xx.33, que não é propriamente a proposta que obriga. De fato, a obrigato- riedade em contratar haverá quando do aceite da proposta, havendo ausência de melhor técnica na redação do Código Civil. Antes do aceite, percebe-se, o proponente não está obrigado a nada.
De volta ao Código Civil (art. 427), a proposta, em regra, obriga, deixando de ser cogente caso:33
a) o contririo (nio obrigatoriedade) resultar de seus termos: leia-se, caso a própria proposta veicule a ressalva de possível retratação ou arrepen- dimento do proponente, com frases do tipo “não vale como proposta”, “proposta sujeita à confirmação”, “sem compromisso” (...);
b) o contririo (nio obrigatoriedade) resultar da natureza do negócio: exem- plifica-se com as propostas realizadas ao público em geral e que perdura- rão enquanto durar o estoque;
c) o contririo (a nio obrigatoriedade) resultar das circunstincias do caso:
análise realizada consoante o caso concreto e a razoabilidade.
🞂 Atenção!
Caso seja uma oferta ao público em geral, poderá ser revogada pela mesma via de divulgação, desde que haja ressalva, na própria propos- ta, conferindo esta faculdade ao proponente (CC, art. 429).
30. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 58.
31. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 131.
32. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 82.
33. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; e XXXXXXXXX XX., Xxxxxx. Contratos. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. IV. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 60.
O legislador nacional, segundo SÍLVIO DE SALVO VENOSA34, fez opção diversa da legis- lação francesa, na qual inexiste dispositivo expresso derredor da obrigatoriedade da proposta, sendo viável a simples retirada da policitação ainda não aceita. Segue o autor, aliado à MArIA HELENA DINIZ35, afirmando que se aproxima o ordena- mento jurídico nacional do alemão, no qual a proposta é vinculativa e, em regra, revogável, quando gerará perdas e danos.
Voltando à legislação nacional: esta proposta que, em regra, é obrigatória, obriga até quando? Qual seria o lapso de obrigatoriedade da proposta?
É cediço que a proposta não há de ser eterna... Os parâmetros de mercado mudam, a situação se altera... Nessa linha de pensamento, a duração da proposta dependerá se for feita entre presentes ou entre ausentes. Mas o que seria uma proposta entre presentes (inter praesentes) e o que seria uma proposta entre ausentes (inter absentes)?
Aqui, o colega há de tomar cuidado. Isso, porque, o conceito de presença do Código Civil não demanda a presença física, mas mera comunicaçio simultinea. Conforme aduzem XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO36, sempre que o aceitante tomar ciência da proposta no momento em que ela foi emitida, estar-se-á diante de uma policitação feita entre presentes. São exemplos: negociações pessoais, ao telefone, pelo Skype, chat... A presença, perceba, não é necessariamente física, mas sim jurídica, como ensina MArIA HELENA DINIZ37, quem aponta a adoção nacional da teoria de Xxxxx.
Por proposta entre ausentes, de seu turno, entende-se aquela em que o pro- ponente não mantém contato direito com o aceitante. Há um lapso temporal entre a emissão da proposta e a aceitação. Exemplifica-se com cartas e telegramas.
Veja-se que as pessoas podem estar na mesma cidade e contratarem entre au- sentes, por não haver comunicação simultânea imediata; ou estarem em cidades diferentes e contratarem entre presentes, diante da existência da simultaneidade na comunicação. A tecnologia tem sido cada vez mais alvissareira em possibilitar o fenômeno da contrataçio i distincia, seja entre presente ou ausentes.
E o e-mail? Seria entre presentes ou entre ausentes?
O Código Civil nacional é omisso sobre contratos eletrônicos. Pior. Ainda ca- recemos, no Brasil, de normatização específica sobre o assunto. Tem-se como in- concebível que nesse momento da evolução, o Poder Legislativo persista sem se manifestar sobre tema tão caro à sociedade...
34. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 526.
35. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 72.
36. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 133.
37. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extra- contratuais. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 59.
Diante da lacuna, outro caminho não há senão a analogia, com o que con- cordamos com XXXXX XXXXXX XXXXXXXX E rODOLFO PAMPLONA FILHO38. Devem ser buscadas as regras do Código Civil e, eventualmente, o regramento do Código de Defesa do Consumidor.
Nessa ordem de ideias entendemos entre presentes contratos celebrados ele- tronicamente com possibilidade de conversas on-line, quando se percebe que a proposta feita é imediatamente conhecida pelo aceitante. Entre ausentes são con- tratos nos quais não há este imediatismo, verificando-se o lapso temporal entre a remessa da proposta e o conhecimento do aceitante, a exemplo do e-mail.
Caminhando nessa mesma linha está a doutrina de SÍLVIO DE SALVO VENOSA39, afir- mando que mesmo sendo o e-mail veiculado por linha telefônica, como não há colóquio direto entre as partes, o contrato é entre ausentes; o que concordamos.
🞂 Atenção!
Advoga PAULO LÔBO40 a tese de que o e-mail (mensagem eletrônica) po- derá ser considerada mecanismo entre presentes, caso haja registro dos horários de recebimento e envio e percepção de instantaneidade.
Data venia, a linha em tela é minoritária, posto a impossibilidade de o remetente perquirir, no e-mail, se a outra parte está, ou não, on-line.
Assim, com todas as vênias e respeito ao Professor, discordamos, citan- do o seu importante posicionamento divergente.
Diante desse cenário, o lapso de tempo de obrigatoriedade da proposta vai variar a depender de realizada entre presentes ou entre ausentes. Iniciaremos com a proposta entre presentes.
Se feita entre presentes e sem prazo para aceitaçio, a proposta apenas obri- gará se for imediatamente aceita. É o denominado contrato com declaraçio con- secutiva. Caso, porém, a proposta entre presentes tenha eventual prazo para aceitaçio, este haverá de ser respeitado, tendo o aceitante até o último momento do seu prazo para dizer se aceita, ou não, persistindo o caráter vinculativo da proposta até então.
Caso seja entre ausentes e sem prazo para aceitaçio, a proposta apenas obri- gará até que tenha decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conheci- mento do proponente. É o que a doutrina denomina como prazo moral, conforme ensina CArLOS rOBErTO GONÇALVES41. Veja-se que a opção legislativa foi de um conceito aberto – tempo suficiente – cabendo ao operador do direito, no caso concreto, perquirir com razoabilidade o que seria este lapso. Como parâmetro, por exem-
38. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; e PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Direito Civil. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. Vol. III. 11. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 134.
39. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 530. |
40. XXXX, Xxxxx. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 94/95. |
41. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 76.